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À CAÇA DE

EVIDÊNCIAS

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CIÊNCIA FORENSE

Desvendar crimes e solucionar processos judiciais cada vez mais é uma tarefa da ciência. Com tecnologia avan-
çada e conhecimentos interdisciplinares, os peritos forenses de todo o mundo examinam vestígios em busca de
evidências. No Brasil, a ciência forense enfrenta problemas de infraestrutura e de falta de vontade política para
incorporar as técnicas produzidas no país ao dia a dia das investigações. Mas, ainda assim, pesquisadores bra-
sileiros desenvolvem métodos e instrumentos reconhecidos internacionalmente.
SOFIA MOUTINHO
Ciência Hoje/RJ

corpo de um homem é encon- Quando as células falam_A genética é a área da


trado dentro de uma banhei- ciência forense que mais tem avançado. Basta uma pe-
ra com um tiro na cabeça. quena amostra de sangue, saliva, pele ou sêmen para
Em sua mão, uma arma e, identificar uma vítima ou um suspeito. “Os exames de
sobre seu peito, uma carta DNA estão tão sofisticados que hoje podemos fazer testes
com suas últimas palavras, com amostras cada vez menores e também mais antigas”,
de despedida. Não há si- conta o biólogo e perito judicial Eduardo Paradela, consul-
nais de arrombamento na tor científico do Laboratório Vingene, da Universidade
casa nem pegadas no chão Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio). Um exem-
do banheiro. Uma cena que à plo disso foi a recente reviravolta que envolveu um crime
primeira vista parecia um suicídio ocorrido em Londres em 1910, quando o médico norte-
pode muito bem se revelar um assassinato sob o olhar -americano Hawley Crippen foi condenado à forca por
atento de um perito criminal. ter matado sua mulher. Na época, a esposa do médico
Com a ajuda do luminol, substância que reage com o desapareceu e a polícia julgou que ele a assassinara. A
ferro do sangue produzindo luz, o perito descobre que, na prova era um pedaço de pele, supostamente da jovem, en-
verdade, a cena foi limpa e que a vítima não foi morta quan- contrado no porão da casa do casal. Agora, passados 100
do estava deitada na banheira. Ao procurar por vestígios de anos, pesquisadores da Universidade de Michigan, nos
pólvora na mão do morto, não encontra nada, o que prova Estados Unidos, fizeram um teste de DNA comparando a
que não foi ele quem disparou a arma. A carta de suicídio pele com o material genético de parentes vivos da vítima e
é enviada para o laboratório onde especialistas em análise descobriram que o tecido era, na verdade, de um homem.
de documentos descobrem que a tinta usada não é compa- Os pesquisadores norte-americanos analisaram o DNA
tível com nenhuma caneta da vítima. Debaixo das unhas mitoncondrial, que resiste mais tempo do que o do núcleo
do morto, é encontrado um pouco de pele, um indício de da célula. Esse tipo de material genético é passado de mãe
que a vítima tentou se defender. Pronto, um exame de DNA para filhos e pode ser usado para determinar o parentes-
desse material pode desvendar a identidade do assassino. co entre duas pessoas. Existem diversos outros tipos de
Essa situação de ficção, digna de séries policiais de te- exames de DNA, mas o mais comum nas investigações
levisão, não está longe da realidade. Com o auxílio de di- forenses é o que analisa o material do núcleo da célula.
ferentes áreas do conhecimento, como química, física, Ao contrário do que muita gente pensa, o exame não é
biologia, computação e psiquiatria, a ciência forense é feito com todos os genes de uma pessoa. Como os seres hu-
SPL DC/LATINSTOCK

capaz de dar voz às evidências e solucionar os mais com- manos compartilham muitas sequências genéticas iguais,
plicados crimes e processos judiciais. os testes examinam apenas determinadas regiões dos cro- >>>

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mossomos, chamadas de microssatélites, em que há repe- tocou o objeto, revelando suas digitais. A impressão é
tição das bases nitrogenadas que compõem o DNA. Essas fotografada e uma fita adesiva é aplicada sobre o pó para
sequências são únicas em cada indivíduo. transferir o desenho para outro suporte. Esse material é
A genética está tão avançada que já é possível iden- então analisado pelo papiloscopista pelo modo tradicional,
tificar características físicas de uma pessoa pelo seu ma­ com uma lupa, ou por um programa de computador que
terial genético. Essa técnica inovadora foi desenvolvida utiliza um banco de dados digital.
por pesquisadores da Universidade Erasmus de Roterdã Os bancos de dados automatizados, conhecidos como
(Holanda) e utiliza marcadores genéticos específicos Afis (do inglês, Automated Fingerprint Identification
para revelar a cor natural dos olhos e do cabelo de uma System), foram criados nos Estados Unidos na década de
pessoa. “Esses estudos são bastante relevantes para futuras 1970 e desde então são uma poderosa ferramenta forense.
aplicações forenses, pois podem dar pistas na busca das Para usar esse sistema, o papiloscopista não precisa ter um
autoridades por um criminoso de identidade desconhe­ suspeito. A impressão coletada é escaneada e inserida
cida”, explica um dos responsáveis pela nova técnica, no programa, que procura pontos em comum entre ela e
o geneticista Manfred Kayser. todas as outras que compõem o banco. “Ao contrário do
No Brasil, o teste de DNA é muito popular em proces­- que é mostrado na TV, na maioria dos casos, o programa
sos judiciais de reconhecimento de paternidade. Nas in- não aponta logo de cara o dono da digital, mas apresenta
vestigações criminais, esse recurso é mais utilizado para uma lista de possíveis nomes”, conta Márcico, que trabalha
a identificação de vítimas do que para caçar criminosos. no Setor de Investigações Gerais de Taquaritinga, São
Isso porque o nosso Código Penal garante que ninguém Paulo. “Cabe ao papiloscopista refinar essa pesquisa e
seja obrigado a produzir provas contra si mesmo. Assim, chegar à pessoa certa.”
os suspeitos só fornecem material genético para compa­
ração se quiserem. Em países da América do Norte e da
Europa, as polícias mantêm bancos de dados com o códi­-
go genético de toda pessoa acusada de algum delito.
Apesar de ser amplamente usado como prova, o teste
de DNA não é 100% infalível. “O DNA costuma ser apre-
sentado como algo isento de erros e inclusive muitos juízes
pensam que isso é verdade”, afirma o biólogo e perito ju- As impressões Magna cor sit in
dicial do Rio de Janeiro André Smarra, professor da Uni- henibh exercing
digitais
versidade Estácio de Sá. “Mas existem muitos casos de etum iril ilis
são únicas.
acillan henim quisl
contestações judiciais e invalidação de exames.” Os prin- Cada indivíduo
irit lore dolobor
cipais fatores que podem influenciar no resultado do teste apresenta pontos
eraessectet,
característicos que
são a contaminação das amostras e erros de estatística. o identificam sequismGait
eugait iriustie
Certeza na ponta dos dedos_A mais antiga e diamcon sequis .
conhecida ciência forense é a papiloscopia, que estuda as
saliências da pele do pé, mãos e dedos: as famosas impres-
sões digitais. Os pequenos desenhos que temos nos dedos
são considerados o meio mais preciso de identificação, pois
cada indivíduo, até gêmeos idênticos, tem um padrão úni-
co de linhas, formadas ainda na barriga da mãe.
As impressões digitais são a forma de identificação ofi-
cial da maioria dos países, entre eles o Brasil. Ao se encon-
trar um corpo abandonado, a comparação das suas digitais
com as do banco de dados do país é a primeira ferramenta
usada para descobrir quem é a vítima. Já em uma cena de
crime, as digitais deixadas para trás pelo delinquente são
uma prova incontestável da sua presença. “Na grande
O espectrograma
maioria dos crimes, principalmente nos furtos, o criminoso compara as
não toma cuidado e deixa para trás suas impressões digi- frequências
tais”, afirma o papiloscopista José Eduardo Márcico. sonoras de dois
Não existe lugar ou objeto sem impressões digitais, falantes (F1 e
por isso coletar essas marcas em uma cena de crime não F2) e do disparo
de duas armas
é tarefa fácil. A ferramenta mais usada é o pó de chumbo de calibres
FONTE: NA ATUE ENT VELIQUIS EAFAC

ou grafite, aplicado com um pincel sobre a superfície a ser diferentes


analisada. O pó adere à gordura e ao suor da pele de quem (AR45 e AR 15)

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Necropsias e armas_O assassinato é o crime de

SPL DC/LATINSTOCK
maior impacto social, tanto que um dos critérios para medir
o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de um país
é o número de homicídios solucionados. No Brasil, em
todo caso de morte violenta ou suspeita, o corpo da vítima
é enviado para o Instituto Médico Legal (IML), onde é
feita a necropsia, exame do cadáver que pode revelar,
en­tre ou­tras coisas, a causa e o tempo estimado da morte.
Durante o procedimento, o médico-legista examina
os membros e os órgãos internos do cadáver em busca
de alguma anormalidade que justifique a morte. O con­
teúdo do estômago é recolhido e permite saber qual foi a
última refeição da vítima. Essa informação, aliada à ob­ Pela análise dos insetos e larvas encontrados na cena do crime,
servação da rigidez dos membros da vítima – que aumen­- os peritos podem dizer quando e como se deu uma morte
ta progressivamente após a morte –, ajuda a estimar o ho-
rário do falecimento. “Se encontramos pão, queijo e café
com leite, sabemos que aquela pessoa provavelmente que o tiro ricocheteou ou atravessou algum anteparo
morreu depois do café da manhã”, explica o médico-legis- antes de atingir o alvo. Para descobrir o caminho do tiro,
ta Roger Anciloti, ex-diretor do IML do Rio de Janeiro. o perito tem que reconstituir mentalmente a cena do cri­-
Esse material, junto com amostras do sangue do cadáver, me e efetuar diversos cálculos físicos e matemáticos.
também pode ser testado para envenenamento e drogas.
Tudo o que é verificado na necropsia é documentado. Os insetos contam a história_Não só de alta
SPL DC/LATINSTOCK

O médico-legista descreve, inclusive, os padrões de feri- tecnologia vive a ciência forense. Os peritos criminais tam-
mentos encontrados para que os investigadores saibam bém contam com técnicas seculares como a entomologia,
qual foi a arma usada. Quando a morte é provocada por o estudo dos insetos. Esses animais invertebrados são ver-
arma de fogo, o corpo é submetido a um exame completo dadeiras testemunhas na resolução de crimes de morte.
de raios X e o legista contabiliza os projéteis encontrados. Logo depois de morto, um corpo atrai todo tipo de inse-
“Pela aparência do ferimento de entrada e de saída, é pos- tos que se alimentam de matéria em decomposição. As
sível descobrir a arma usada e estimar se o tiro foi efetuado primeiras a chegar são as moscas, que depositam ovos,
longe ou próximo da vítima”, conta Anciloti. dos quais saem larvas. Passadas 72 horas, a necropsia
Os crimes com arma de fogo são tão comuns que na já não é eficaz para determinar a hora da morte e a análise
ciência forense há uma área especializada nisso, a balísti- do desenvolvimento desses insetos é a melhor opção.
ca. Os exames de balística podem determinar o tipo de “As larvas funcionam como um relógio biológico”, expli­
arma usada, a origem da munição, a distância e a trajetória ca o entomólogo Leonardo Gomes, professor da Universi-
de um projétil. Segundo o perito criminal Domingos Toc- dade Federal do Pará (UFPA). “Levando em conta a fisio­
chetto, da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio logia do animal e alguns aspectos do ambiente, como a
Grande do Sul, um dos testes mais comuns é o confronto tem­peratura, podemos saber quanto tempo foi preciso para
microbalístico, que compara, ao microscópio, duas muni- que ele chegasse à fase de desenvolvimento de quando
ções para saber se vieram da mesma arma. A superfície foi coletado. ”
interna do cano da arma tem pequenas imperfeições in­ Os insetos também podem revelar a causa e algumas
visíveis a olho nu. Quando um disparo é feito, a bala in­ circunstâncias da morte. Se a vítima foi envenenada ou usou
corpora essas marcas únicas – como uma impressão digital. drogas antes de morrer, essas substâncias são encontradas
Um tiro deixa vestígios também em seu autor. Durante nas larvas que se alimentam do cadáver. Já o tipo de insetos
um disparo, a pólvora do cartucho da munição se espalha pelo encontrado pode mostrar se o corpo foi movido de local.
ar e no atirador. “Usamos um esparadrapo ou papel filtro para “Caso uma pessoa seja assassinada na cidade e seu cadáver
coletar qualquer partícula na mão do suspeito e analisamos levado para uma região rural para despistar a polícia, sabe-
essa amostra em um microscópio eletrônico de varredura”, remos, pois o corpo leva consigo ovos, larvas e insetos carac-
explica Tocchetto. “Se encontrarmos chumbo, bário e anti- terísticos do local de origem”, explica Janyra Oliveira da
mônio, fica provado que a pessoa tocou em uma arma.” Costa, perita responsável pelo Laboratório de Entomologia
Já para saber com precisão a que distância um tiro Forense do Instituto de Criminalística do Rio de Janeiro.
foi dado, os peritos efetuam uma bateria de tiros contra um Os insetos podem até apontar a identidade do criminoso.
FONTE: CORTESIA DE RICARDO MOLINA

tecido de algodão. Pela comparação dos resíduos que fi­- Para conseguir essa informação preciosa, os peritos têm
cam ao redor dos orifícios produzidos pelas balas no pano recorrido à genética. O primeiro caso em que essa técnica
com os resíduos observados na vítima, eles podem afirmar foi usada se deu em 2005, quando cientistas italianos ex­
a que distância se deu o disparo. Desvendar a trajetória traíram o sangue de uma vítima do estômago de um mos-
pode ser mais complicado, principalmente nos casos em quito encontrado na casa do seu assassino. O corpo da >>>

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mulher foi achado em uma praia na Sicília e os investiga- material coletado. Essa tarefa pode ser dificultada caso o
dores desconfiaram de um empresário que tinha sido visto computador tenha arquivos criptografados ou que exijam
de carro na região. O homem jurou não ter estado com a senha para o acesso. “Nesse caso, usamos técnicas especí-
mulher, mas os peritos encontraram em sua casa o inseto ficas para decodificar ou quebrar as senhas”, diz Marcio
que guardava o DNA da vítima. A espécie de mosquito não Machado, também perito criminal da Polícia Federal. “Nos
era capaz de viajar longas distâncias, como da casa do ho- casos mais complicados, podemos demorar semanas para
mem até a praia, e ficou provado que o empresário mentia. ter acesso aos arquivos.”

Máquinas que deduram_Além das provas bioló- Detetives da mente_Nas investigações, os peritos
gicas, há evidências que ficam registradas em aparelhos recorrem a diversas ciências para conseguir provas. Uma
de som e vídeo. Gravações de câmeras de segurança e das últimas áreas a que a justiça recorre é a psiquiatria fo-
escutas telefônicas são pistas comuns. Para analisar esse rense. Geralmente, o perito com formação nesse campo é
tipo de material, o perito precisa ter conhecimentos de chamado para dar a última palavra sobre a sanidade mental
fonética e manipulação de imagens. de um criminoso. Caso o autor do crime seja considerado
No caso de um arquivo de som, há três exames básicos: doente mental, o seu delito não é tratado como crime e ele é
transcrição, autenticação e identificação. Na transcrição, encaminhado para uma casa de custódia e tratamento.
o perito ouve e escreve, da forma mais exata, o conteúdo O psiquiatra forense Guido Palomba, que já atuou como
da gravação. No exame de autenticidade, o som é anali- perito em mais de 10 mil casos no estado de São Paulo,
sado em busca de alguma manipulação, como cortes e conta que o teste de sanidade mental é extremamente téc-
inserções. No último procedimento, o perito busca iden- nico e leva em consideração aspectos psíquicos, físicos e
tificar as vozes e sons envolvidos na gravação. Para isso hereditários. “É um exame minucioso em que analisamos
conta com um sonógrafo, aparelho que transforma sons a relação do indivíduo com outras pessoas, seus hábitos, a
em espectrogramas, gráficos que mostram as diferentes presença de doença mental e tendências suicidas na famí-
frequências sonoras. lia e até fatores de saúde que afetem o psiquismo, como,
O perito particular especializado em fonética Ricardo por exemplo, um tumor cerebral.”
Molina explica que pelo estudo dos espectrogramas é O psiquiatra forense também pode ser chamado pelo
possível distinguir os mais diferentes sons. “Podemos delegado para ajudar na investigação traçando o perfil de
determinar, por exemplo, se um falante estava alcooliza- um criminoso e verificando a possibilidade de um suspeito
do ou forjando a voz, se um barulho é de um carro ace- ser o autor do crime. “Todo crime é uma fotografia fiel e
lerando ou freando, de que tipo de arma é um disparo e em cores do comportamento do indivíduo que o praticou”,
até de que raça é o cachorro que late ao fundo.” diz Palomba.
Já para analisar imagens, existem programas de com-
putador próprios para os peritos, como o “dTective”, capaz Deficiências brasileiras_Apesar do enorme leque
de ampliar detalhes, aumentar a nitidez de uma imagem de técnicas forenses disponíveis, menos de 25% dos crimes
e reduzir ruídos específicos. Por falar em computador, essa no país são elucidados, segundo dados do Ministério da
máquina também é alvo frequente de perícia em inves- Justiça. A ausência de prova material é a causa mais comum
tigações criminais. Ele tanto pode ser usado como ferra- para o arquivamento das denúncias e dos processos. Mui-
menta de apoio a um crime (por exemplo, quando guar- to dessa situação se deve à falta de infraestrutura das pe-
da a contabilidade do tráfico de drogas), quanto como rícias científicas do país. Resultados preliminares de uma
meio para o crime (quando a internet é usada para dis- pesquisa encomendada pela Secretaria Nacional de Segu-
tribuir pornografia infantil ou quando é feita uma fraude rança Pública (Senasp) ao Programa das Nações Unidas pa-
bancária virtual). ra o Desenvolvimento (PNUD) apontam que 84% dos 173
O perito criminal em computação da Polícia Federal laboratórios oficiais de perícia do país apresentam deficiên-
Pedro Eleutério conta que, no seu dia a dia, o que mais cias de estrutura, como a falta de equipamentos básicos.
faz é examinar computadores e discos rígidos e celulares, Muitos estados não têm sequer estrutura para realizar
apreendidos à procura de arquivos que possam ajudar análise de DNA. Atualmente, existem 18 laboratórios
na investigação dos delegados. “Hoje, o computador au- oficiais de genética forense no país, um da Polícia Fede-
xilia muitos crimes convencionais”, aponta. “Em época ral e 17 vinculados às secretarias estaduais de segurança
de eleição, por exemplo, a compra de votos é muito comum pública de 16 estados. Os 10 estados restantes têm que
e a computação forense pode encontrar esse tipo de evi- recorrer a universidades ou a laboratórios privados.
dência, como planilhas contendo listagem de títulos de De acordo com Smarra, outro problema da genética
eleitores, pagamentos e ‘festinhas’ para compra de votos.” forense no Brasil é a falta de padronização dos proce-
A perícia desses materiais eletrônicos se parece com dimentos e métodos de coleta e análise do DNA entre as
uma necropsia. Primeiro, todos os arquivos da máquina são unidades laboratoriais públicas e privadas. “O laboratório
extraídos. Em seguida, o perito usa diferentes programas da Polícia Federal e alguns da Polícia Civil seguem pa-
para filtrar e analisar todas as possíveis evidências entre o drões de qualidade estabelecidos internacionalmente, mas

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há muitos outros que não, principalmente entre os priva- A RIBPG vai permitir interligar crimes praticados por
dos”, pontua o perito. um mesmo indivíduo, pois as instituições de perícia ofi-
Atualmente, não existem normas brasileiras que esta- cial poderão pesquisar no banco de dados se um mate-
beleçam procedimentos compulsórios para os laborató- rial genético encontrado na cena do crime já tem registro
rios forenses em nível nacional. Cada estado tem suas pró- anterior. A ferramenta também vai contar com um banco
prias normas e o MJ recomenda que todos sigam as reso- de dados civil com o DNA de familiares de desapareci-
luções publicadas pela Senasp. A iniciativa mais próxima dos. Assim será possível identificar corpos e restos mor-
de uma padronização está sendo elaborada pelo Instituto tais a partir do confronto do seu material genético com o
Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade In- dos cadastrados no sistema.
dustrial (Inmetro), que criou o Programa Nacional de Nor- No entanto, de acordo com o perito criminal da PF
malização e Metrologia Forense para acreditação volun- Guilherme Jacques, o uso da RIBPG terá um baixo im-
tária dos laboratórios de perícia com base em normas da pacto na resolução de crimes se ficar restrito aos vestígios
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). encontrados em local do crime ou ao material cedido
Os problemas são muitos, mas a genética forense está voluntariamente. “Caso fossem inseridos os perfis dos
prestes a ganhar um grande impulso com a implementação condenados por todo tipo de crime, estima-se que 40%
da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG), dos vestígios biológicos seriam prontamente identificados”,
criada em maio de 2010 pela Senasp, em parceria com a PF afirma. “Essa taxa é ainda mais expressiva se a amostra
e algumas secretarias estaduais de segurança. O projeto, biológica do suspeito puder ser obtida durante a fase de
que integra 16 laboratórios de genética oficiais do país, vai investigação, como ocorre no Reino Unido. Nesse caso, a
pôr em funcionamento, ainda este ano, um banco brasilei- identificação de vestígios chega a ultrapassar 50%.”
ro de perfis genéticos alimentado com o DNA encontrado Jacques conta que um grupo de trabalho foi criado
em cenas de crimes ou doado por condenados e sus- pelo Ministério da Justiça para estudar uma proposta de
peitos. O sistema usa o Codis (Combined DNA Index Sys- lei determinando a coleta do DNA de condenados. “Na
tem), programa de computador desenvolvido pela Agência situação em que a sociedade brasileira se encontra, refém
Federal de Investigações norte-americana (FBI, na sigla da criminalidade, é preciso avançar e os bancos de perfis
em inglês) – equivalente à nossa Polícia Federal –, que genéticos são a ferramenta mais moderna, precisa e efi-
armazena informações genéticas. ciente para identificar criminosos.” >>>

A MALA DO PERITO SAIBA O QUE O PERITO CRIMINAL LEVA PARA COLETAR EVIDÊNCIAS NA CENA DO CRIME

1 TESOURA 9 APARELHO DE GPS


4 Para cortar vestes de corpos Diz a localização exata
encontrados da cena do crime
2 LUPA 10 LUZ FORENSE
Para observar detalhes Equipamento que emite luz em
diferentes comprimentos de onda e
3 ALICATE
facilita a visualização de impressões
Usado para desobstruir o
digitais, fluidos, pêlos e fibras
caminho, quando necessário
11 CÂMERA FOTOGRÁFICA
2 3 4 INSTRUMENTOS DE MEDIDA
1 Para registrar o local do crime
5 Trenas, réguas e paquímetros
e as provas coletadas
são usados para verificar
distâncias entre as evidências 12 PÓ DE CHUMBO E PINCÉIS
Para coletar impressões
5 SACOS PLÁSTICOS
14 digitais latentes
Para armazenar o material
9 coletado 13 LUVAS DESCARTÁVEIS E MÁSCARA
10 Usadas para proteger o perito
6 LUMINOL
6 e não contaminar as evidências
13 Para identificar a presença de
15 14 REAGENTES QUÍMICOS
vestígios de sangue
7 8 Identificam drogas como
11 7 PLACAS NUMERADAS
12 a cocaína e o crack
Sinalizam vítimas e vestígios
15 ESPARADRAPO
8 FITA AMARELA
Para coletar vestígios de
Para isolar o local do crime
pólvora de um suspeito
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TECNOLOGIA NACIONAL

MARCAÇÃO DE MUNIÇÕES ESPECTROMETRIA DE MASSA A LASER EASI-MS

Na fabricação da mu- O produto a ser ana-


nição são adiciona- lisado é bombardea-
1 dos corantes fluores- 1 do com elétrons do
centes invisíveis a aerossol ionizante e
olho nu passa a emitir íons

Ao disparar a arma
No espectrômetro,
carregada com mu-
FONTE: EDUARDO CÉSAR/PESQUISA FAPESP
um campo magnético
nição especial, a
separa os íons emiti-
2 substância se espa- 2
dos em um padrão
lha ao seu redor e no
chamado de espec-
alvo, marcando o
trograma de massa
rastro do tiro

Sob luz ultravioleta, a A análise do espectro-


munição, o alvo e a grama permite iden-
arma ficam brilhan- tificar os elementos
3 3
tes e coloridos. Assim que compõem a amos-
é possível saber a ori- tra e dizer se ela é ou
gem da munição não falsa

Outro banco de dados que vai ganhar força ainda este químico Cláudio Cerqueira Lopes, do Laboratório de
ano é o de impressões digitais, o Afis. Com a recente regu- Síntese e Análise de Produtos Estratégicos (Lasape)
lamentação do Registro Único de Identidade Civil (RIC), da UFRJ, o novo luminol não é tóxico e produz uma rea-
os cadastros das impressões digitais de pessoas com ficha ção de quimiluminescência por até 10 minutos, 20 vezes
criminal, que antes eram regionalizados, passarão a ser mais do que os produtos similares estrangeiros.
interligados nacionalmente. “O Brasil tem hoje um dos O luminol brasileiro é também mais barato, porque usa
sistemas Afis mais avançados do mundo e com o RIC pre- matéria-prima nacional. Apesar disso, o produto não é com-
tendemos estender o seu uso a todos os estados do país”, prado pelo governo federal, que inclui nas maletas do pe-
afirma o papiloscopista Marcos Elias Cláudio de Araújo, rito distribuídas pelo Ministério da Justiça um luminol
diretor do Instituto Nacional de Identificação (INI). importado. “Em 2009, o Brasil teve cerca de 40 mil casos
Ainda assim, a papiloscopia, bem como a grande maio- de homicídio por morte violenta. Se metade deles fosse
ria das ciências forenses, sofre com a falta de profissionais. investigado com o luminol, seriam no mínimo 20 mil gar-
“Infelizmente, existem muitos estados brasileiros que não rafas do produto vendidas, R$ 4 milhões em retorno para
têm papiloscopistas e em quase todos os casos em que um investir nas pesquisas de ciência forense.”
papiloscopista não vai ao local do crime, não são coletadas Também no Lasape foi criada uma técnica inédita
impressões digitais”, observa Márcico. de identificação da origem de balas perdidas, tão comuns
nos confrontos entre policiais e bandidos. O grupo de pes-
Made in Brazil_Se por um lado falta infraestrutura, quisa coordenado por Cerqueira desenvolveu uma muni-
por outro sobra criatividade para pesquisas na área foren- ção especial, marcada com corantes fluorescentes visí-
se. Um exemplo disso é a criação do luminol brasileiro, veis apenas sob luz ultravioleta. A bala libera os pigmentos
produto semelhante ao usado pelo FBI, só que ainda me- no atirador, no alvo e em tudo o que atravessar, permitin-
lhor. Segundo o responsável pela criação da substância, o do rastrear a trajetória do tiro.

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CIÊNCIA FORENSE

A EASI-MS tem diversas aplicações, desde identificar


cédulas de dinheiro, perfumes e bebidas falsificadas até
determinar a idade da assinatura de um documento por
meio da análise da tinta da caneta usada. A nova técnica já
vem sendo usada para ajudar em investigações. “Grande
NUDETECTIVE parte dos laboratórios e órgãos de investigação estão preca-
riamente equipados e usam técnicas rudimentares, pois não
há investimento”, analisa Eberlin. “A academia pode ajudar
desenvolvendo métodos forenses seguros, rápidos, simples
O programa é rodado de serem implementados e de baixo custo, como este.”
no computador apre- Outro método está sendo pesquisado sob a coordenação
1
endido e procura pelos da entomóloga Janyra da Costa que, com Carlos Chamoun,
arquivos de imagem orientando de doutorado da UFRJ, estuda uma técnica para
resgatar o sêmen de um estuprador no estômago de larvas
encontradas no cadáver de sua vítima. Como as moscas
preferem pôr ovos nos orifícios do corpo humano, todo
A ferramenta usa material orgânico dessa região é ingerido pelas larvas. “Esse
uma fórmula mate- método é apropriado nos casos em que o corpo já estiver
mática para detectar em decomposição e não for mais possível fazer a coleta do
2 nas imagens os pixels esperma diretamente”, explica Costa. “O sêmen é coleta-
formados por cores do e o material genético dos espermatozoides pode ser
encontradas na pele confrontado com o de um suspeito.”
humana Na área digital, o Brasil também se destaca. Um exem-
plo é o programa de computador NuDetective, que iden-
tifica arquivos de pornografia infantil em computadores
O programa detecta apreendidos. A ferramenta detecta automaticamente
as maiores áreas da qualquer imagem de nudez em um disco rígido. O pro-
pele a partir do nú- grama é capaz de filtrar uma média de 100 mil arquivos
3 mero de pixels da cor em apenas dois minutos. “Há operações em que temos
da pele. Então, é pos- que cumprir mais de 100 mandatos de busca e apreensão
sível dizer se há nu- simultâneos e precisamos de programas rápidos que pos-
dez ou não sam ser executados no local do crime, possibilitando a
prisão do pedófilo em flagrante”, justifica Eleutério, um
dos criadores do NuDetective.
O programa de computador é uma prova do sucesso da
A ideia é que a tecnologia seja usada para diferenciar as
tecnologia forense brasileira e já é usado por polícias da
munições de policiais e civis. “No Brasil, temos apenas uma
Argentina, Suécia, Áustria e Polônia, além de estar em fase
indústria de munições. Se ela usasse essa tecnologia, seria
de avaliação pelo FBI. “Alguns países têm uma infraestru-
possível que cada batalhão ou delegacia adotasse uma colo-
tura superior à nossa, como mais laboratórios, equipamen-
ração diferente, o que facilitaria muito o trabalho da perícia
tos e profissionais. Mas ainda assim a tecnologia forense
e das corregedorias”, afirma o pesquisador. “A tecnologia já
brasileira não perde em absolutamente nada em relação
está criada, só falta o interesse político para usá-la.”
ao resto do mundo”, conclui Eleutério.
Outra inovação é uma técnica brasileira de análise
por espectrometria de massa, procedimento que revela a
natureza e a concentração das diferentes moléculas e
átomos de uma substância. Batizada de EASI-MS (do
inglês Easy Ambient Sonicspray Ionization Mass Specto-
metry) e desenvolvida no Laboratório ThoMSon da Sugestões para leitura
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a nova
técnica se diferencia porque é mais simples e preserva COUTO, S. P. Manual de investigação forense. Rio de Janeiro, Ideia e Ação, 2010.
a amostra analisada. “Com os métodos convencionais, ELEUTÉRIO, P. M. S. E MACHADO, M. P. Desvendando a computação forense.
São Paulo, Novatec Editora, 2011.
para se obter essa identidade química de algum material
PALOMBA, G. A. Tratado de psiquiatria forense civil e penal. São Paulo,
é preciso extrair todos os seus componentes por meio de Editora Atheneu, 2003.
processos que o destroem”, explica um dos responsáveis TOCHETTO, D. Balística forense. São Paulo. Sagra Luzzatto,1999.
pela pesquisa, o químico Marcos Eberlin. A nova meto- GOMES, L. Entomologia forense – novas tendências e tecnologias nas
dologia requer apenas que um aerossol ionizante seja ciências criminais. Rio de Janeiro, Technical Books, 2010.
aplicado sobre o produto antes de inseri-lo no aparelho.

MAIO 2011 | CIÊNCIAHOJE | 31

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