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Fundação Instituto Tecnológico de Osasco
-rabalhando com a perspectiva histórico-cultural em Psicologia, que enfatiza que cada
ser humano se constitui como uma pessoa totalmente única (por suas experiências e sua
história de vida) e que ressalta a importância das práticas culturais na definição do
desenvolvimento psicológico do sujeito, buscou-se selecionar um personagem humano
(Kaspar Hauser) que não correspondia, na época em que viveu (séc. XIX), aos padrões
de comportamento tidos ou esperados como "normais" dentro da cultura da época.
Para efetuar esta análise, pretende-se utilizar as referências sobre a vida do rapaz
encontradas em diversas fontes, inclusive jornais e, principalmente, no filme O Enigma
de Kaspar Hauser, de Werner Herzog (1974) e nos livros Kaspar Hauser ou a
Fabricação da Realidade, de Izidoro Blikstein (1983) e The Lost Prince: The Unsolved
Mistery of Kaspar Hause, de Jeffrey Moussaieff Masson (1997).
r menino Kaspar Hauser apareceu pela primeira vez numa praça de Nuremberg, em
maio de 1828. Era um estranho: ninguém sabia quem era ou de onde vinha. Trazia uma
carta de apresentação anônima para o capitão da cavalaria local, contando que fora
criado sem nenhum contato humano, em um porão, desde o nascimento até aquela idade
(provavelmente 15 ou 16 anos) e pedindo que fizessem dele um cavaleiro como fora seu
pai.
Ficou-se sabendo mais tarde (quando K. Hauser aprendeu a falar) que uma pessoa, que
ele não conheceu, tratava dele enquanto esteve isolado, deixando-lhe alimentos
enquanto ele dormia.
Quando apareceu em Nuremberg, o garoto não entendia nada do que lhe diziam; sabia
falar apenas uma frase: "quero ser cavaleiro" e não sabia andar direito. Parecia um
menino dentro de um corpo adolescente. Seu comportamento estranho para os padrões
sócio-culturais estabelecidos, causava um misto de espanto e interesse. Era visto como
um "garoto selvagem," apesar de demonstrar ser dócil, simples e gentil. Possuía
algumas habilidades peculiares interessantes, descritas tanto no filme de Herzog, quanto
na obra de Masson: conseguia enxergar muito longe, no escuro, e sabia tratar os
animais, principalmente os pássaros. Ao mesmo tempo tinha medo de galinhas e fugia
delas aterrorizado. Numa das cenas, atraído pela chama de uma vela, colocava seu dedo
no fogo e, ao sentir dor, aprende que a chama queima.
Graças à sua curiosidade infantil e memória notável, aprendeu várias coisas muito
depressa.
Kaspar Hauser tornou-se uma espécie de atração por sua história de vida diferente.
Todas as pessoas da cidade queriam vê-lo. r filme de Herzog mostra, em uma das
cenas, K. Hauser junto com outros indivíduos, tidos como anormais (um anão, um índio
e uma criança autista), em exposição num circo.
Um ano depois de ter chegado a Nuremberg, foi ferido e recebeu um grande corte na
fronte. Em dezembro de 1833, recebeu outro ferimento que lhe seria fatal. Herzog
sugere, em seu filme, que os dois ferimentos sofridos por K. Hauser foram tentativas de
assassiná-lo. Masson diz, em seu livro, que em dezembro de 1833, K. Hauser foi atraído
para uma emboscada, com a promessa de receber informações sobre seu nascimento. No
local, em vez disso, recebeu uma facada no peito, morrendo três dias depois.
Muitas foram as hipóteses levantadas para explicar o fato de Kaspar Hauser ter sido
criado no isolamento. Dentre essas hipóteses há duas explicações principais:
Ñ? a primeira diz que Kaspar Hauser seria um mendigo espertalhão que fingia ser
pobre de espírito para atrair a simpatia alheia. Dentro dessa visão, ele próprio
teria se ferido para atrair mais atenção, ao perceber que o interesse dos outros
por sua figura estava diminuindo.
Ñ? a segunda explicação trabalha com a hipótese de que Kaspar Hauser seria neto
de Napoleão Bonaparte.
r livro de Masson (1997) oferece documentação variada sobre esta segunda hipótese,
argumentando que a filha adotiva de Napoleão, Stéphanie de Beauharnais, tinha-se
casado com Karl, duque de Baden e, em 1812, ambos tiveram um filho a quem ela teria
dado o nome de Gaspard. No entanto, Luise, a madrasta de Karl, segunda mulher de seu
pai, querendo garantir para seu próprio filho a herança do trono de Baden, trocou o filho
de Karl e Stéphanie por uma criança doente que morreu logo depois.
r herdeiro saudável foi posto a pão e água em um calabouço, atendido por um homem
cujo rosto ele nunca via. Passava seu tempo dormindo ou brincando com um cavalinho
de pau. Quando chegou perto da adolescência, o homem que cuidava dele levou-o para
Nuremberg.
A fama que começou a granjear preocupou os conspiradores, a tal ponto, que recrutaram
um inglês, o Conde de Stanhope, para aproximar-se do garoto, fingindo ser um amigo
que queria protegê-lo. Segundo Masson, teria sido Stanhope o responsável pelas duas
tentativas de assassinar Kaspar Hauser; na verdade, o crime nunca foi esclarecido.
Porém, a tese de Masson de que Kaspar Hauser seria um príncipe perdido foi refutada
por um exame de DNA, cujo resultado, revelado em abril de 1997, na Alemanha, mostra
que Kaspar Hauser não era herdeiro do trono de Baden, como se acreditava.2
R
r século XIX, época em que Kaspar Hauser viveu, foi um período marcado pela
perspectiva positivista, evolucionista e desenvolvimentista. A visão de que havia um
modelo de civilização e de desenvolvimento a ser alcançado, tanto pelos homens, como
pelas sociedades, estava em seu auge. Todos aqueles que não correspondiam ao
protótipo do homem "civilizado" eram classificados como primitivos, atrasados e
deveriam ser "ajudados" a alcançar graus mais avançados na escala de desenvolvimento
e evolução. É dentro dessa visão de mundo que Kaspar Hauser vai ser socializado.
Ao chegar em Nuremberg Kaspar Hauser sabe apenas repetir, com dificuldade, a mesma
frase ("quero ser cavaleiro como meu pai"). A sociedade o vê com estranheza. Ele
próprio se vê, de repente, num mundo estranho. r filme de Werner Herzog mostra
Kaspar Hauser na praça de Nuremberg com um olhar assustado. Na verdade tudo lhe é
estranho: as dimensões, os movimentos, a perspectiva, o pensamento, a fala.
Com o tempo aprende a falar. Mas mesmo a linguagem não lhe permite capturar esse
estranho mundo em que vivem as pessoas. Numa das passagens do filme Kaspar Hauser
olha, do campo, a torre em que fica seu quarto e observa que ela é muito menor do que
ele próprio. "Como pode ser isto?" pergunta.
Kaspar Hauser se sente confuso pois não tem a mínima noção de que a distância de
onde observava criara uma perspectiva que fazia com que a torre parecesse menor do
que realmente era.
Quando seu tutor aproxima-se com ele da torre, vem a observação: "Como esta torre é
grande! O homem que a construiu deve ser muito alto!"
A paisagem em que Kaspar Hauser foi colocado, apesar de explicada pela linguagem,
pelas palavras, por signos lingüísticos, permanece, para ele, indecifrável. Muitas vezes,
pedia para contar histórias que imaginava, mas não conseguia verbalizar o conteúdo
pensado.
Conhecer o mundo pela linguagem, por signos lingüísticos, parece não ser suficiente
para Kaspar Hauser "talvez por que a significação do mundo deve irromper antes
mesmo da codificação lingüística com que o recortamos: os significados já vão sendo
desenhados na própria percepção/cognição da realidade" (Blikstein, 1983, p. 17). Nesse
sentido, também Vygotsky insiste que o pensamento e a linguagem se originam
independentemente, fundindo-se mais tarde no tipo de linguagem interna que constitui a
maior parte do pensamento maduro.
Kaspar Hauser parece não entender as explicações que lhe dão. As pessoas impõem
todos os tipos de signos a ele, na certeza de que compreenderá o insólito ambiente que o
cerca. Como K. Hauser poderia compreender o significado das palavras e que elas
representam coisas, se não passou por um processo de aprendizado e socialização
necessários para que compreendesse a representatividade dos signos? Blikstein (1983)
diz que a educação não passa de uma construção semiológica que nos dá a ilusão da
realidade; ou seja, a educação vai estimulando na criança um processo de abstração. É
justamente esse processo que K. Hauser não vivenciou.
A forma diferente como ele percebia a realidade parecia suficiente para que fosse visto
como "diferente," estranho, o "outro" pela sociedade da época. Ele próprio se via como
um estranho, deslocado, frágil e impotente diante de uma realidade que não conseguia
compreender, pelo menos não da forma como esperavam que ele compreendesse.
rs objetos não eram percebidos por K. Hauser da forma como a prática social definia
previamente, ou seja, K. Hauser estava despido dos "filtros" e estereótipos culturais que
condicionam a percepção e o conhecimento. Tais "filtros" ou estereótipos, por sua vez,
são garantidos e reforçados pela linguagem. Assim, o processo de conhecimento da
realidade é regulado por uma contínua interação de práticas culturais, percepção e
linguagem.
A forma como Kaspar Hauser compreende o mundo e se relaciona com ele indica que a
percepção depende sobretudo da prática social. Sabemos que, do nascimento à
adolescência, K. Hauser esteve isolado de qualquer contexto ou prática social. r que
podemos verificar no seu percurso de desenvolvimento psicológico é que a despeito da
ação da linguagem (adquirida na fase adulta) ou de um eventual "potencial" inato, K.
Hauser não consegue captar o mundo como o faz a sociedade que o cerca, ou seja,
decodifica à sua maneira, com uma lógica diferente da estabelecida, a significação do
mundo. Fica evidente, então, que o seu sistema perceptual está desaparelhado de uma
prática social3 necessária para gestar o referencial cultural de interpretação da realidade.
Podemos concluir que, como Kaspar Hauser não passou por um processo de
socialização, onde exercitaria a compreensão através da prática social, não consegue
atribuir significado às coisas, mesmo tendo adquirido a linguagem. Assim, analisando o
caso de Kaspar Hauser, somos levados a pensar que não apenas o sistema perceptual,
mas as estruturas mentais e a própria linguagem são resultantes da prática social, ou
seja, as práticas culturais "modelam" a percepção da realidade e o conhecimento por
parte do sujeito.
Em virtude de não ter sido exposto a essa "modelagem" cultural, Kaspar Hauser era
visto como um ser "incompleto," como se estivesse sempre em "déficit" em relação aos
outros; teria Kaspar instrumental de reflexão internalizado para construir a compreensão
da diferença? Aqui parece ser possível detectar uma inverossimilhança no filme de W.
Herzog: numa das cenas, K. Hauser diz a uma das pessoas que o acolheu: "Ninguém
aceita Kaspar." Segundo o filme, ele tem consciência de sua situação. Porém, na
realidade, parece não ser possível esse grau de consciência em alguém que não tem
instrumental de reflexão internalizado.
Kaspar Hauser se sente perturbado pelo mundo: "o mundo é todo mau," comenta com
seu tutor após perceber que alguém pisou as flores que plantara no jardim.
Tanto Masson (1997), quanto Herzog (1974) e Blikstein (1983), apontam para o fato de
que após algum tempo de convivência com a comunidade de Nuremberg, Kaspar
Hauser passa a representar um incômodo, pois vê a realidade, que aos olhos dos outros
estava tão bem ordenada, com outros olhos: os olhos "subversivos" que não aceitam os
referenciais que a sociedade insiste em lhe impor, negando, de certa forma, a ordem
social vigente. Ele olha as pessoas, os objetos e as situações com o espanto e a
perplexidade de um olhar "puro," sem "filtros" ou estereótipos perceptuais. A sua
aproximação cognitiva da realidade é direta, ou seja, percebe o mundo de uma maneira
ainda não programada pela estereotipia cultural.
Vygotsky, citado por rliveira (1997, p. 24), diz que a relação do homem com o mundo
não é uma relação direta, mas uma relação mediada, sendo que os sistemas simbólicos
são os elementos intermediários entre o sujeito e o mundo; porém, tendo vivido no
isolamento, K. Hauser não aprendeu nem internalizou este sistema simbólico que, para
ele, não fazia sentido.
Em um dos diálogos no filme de Herzog, K. Hauser conta ao seu tutor que havia
sonhado com uma caravana. r tutor fica animado e lhe diz: "que bom Kaspar! Você fez
um grande progresso! Já sabe a diferença entre o sonho e a realidade! Até a semana
passada você não fazia esta distinção, acreditava que as coisas sonhadas haviam
acontecido realmente ..."
Nesse sentido, Blikstein (1983) afirma que o que concebemos como realidade é apenas
uma ilusão, pois a práxis opera em nosso sistema perceptual, ensinando-nos a "ver" o
mundo com os "óculos sociais" e gerando conteúdos visuais, tácteis, olfativos e
gustativos que aceitamos como naturais. Como Kaspar Hauser não passou por esta
práxis, ou apenas começou a vivenciá-la quando adolescente, sua forma de
comportamento abala os fundamentos da ilusão referencial, pois não "enxerga" a
realidade da forma como os outros esperam. Essas expectativas das pessoas em relação
a K. Hauser fazem com que sua identidade, já bastante comprometida devido à ausência
de um passado familiar, torne-se ainda mais deteriorada.
K. Hauser não é reconhecido como parte da sociedade e ele próprio não se reconhece
como parte dela. Em uma reunião da qual fora convidado a participar, em que estavam
vários membros da alta sociedade, foi apresentado à esposa do prefeito de Nuremberg,
que lhe perguntou como era sua prisão e ele respondeu: "melhor do que aqui fora."4 Vai
sofrendo, assim, um processo de estigmatização que o marca, não apenas como
"diferente" ou "anormal," mas também como alguém que não possui identidade.
Goffman (1988) define como estigmatizado o indivíduo que poderia ter sido recebido
facilmente na relação social cotidiana, se não possuísse um traço que chama a atenção e
afasta aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros
atributos seus. Ele possui uma característica diferente do padrão esperado. É exatamente
o que ocorreu com K. Hauser. Embora ele tivesse muitos atributos e uma inteligência
prodigiosa que lhe permitia aprender as coisas muito rapidamente é visto, por exemplo,
como insensível porque não demonstra medo diante de um soldado que lhe mostra uma
espada (que para os outros representa um sinal de perigo). Assim, não correspondia às
expectativas de comportamento, ou seja, aos padrões de comportamento esperados de
um jovem da sua idade.
Goffman afirma que acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente
humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais
efetivamente reduzimos sua chance de vida. Construímos uma teoria do estigma, uma
ideologia para explicar a sua "inferioridade" e dar conta do "perigo" que ela representa,
racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças como as
de classe social. Vemos que isso ocorre, também, no filme de Herzog, quando é
aventada a hipótese de que Kaspar Hauser seja filho de algum nobre (e que por disputas
palacianas teria sido afastado e escondido), e o capitão da cavalaria diz que isso seria
impossível, pois "K. Hauser tem traços muito grosseiros para ser um nobre"; e, quando,
ao final do filme, os legistas acreditam finalmente ter encontrado as explicações para
todos os "problemas" de Kaspar: uma pequena deformidade que ele possuía no cérebro.
Dessa forma, o caso foi dado, na época, como solucionado: havia uma explicação
racional, objetiva (porque visível e palpável - o cérebro), de caráter fisiológico e que
concentrava no próprio indivíduo a "culpabilidade" de sua situação.
r caso de Kaspar Hauser serve para ilustrar o erro básico de uma organização social
fundada sobre os princípios do racionalismo positivista.
Kaspar Hauser nunca se transformou nesse animal de costumes; no máximo, poderia ser
visto como "domesticado" pela sociedade da época.
Alguém como Kaspar Hauser que enxergava, mesmo na escuridão, e que ouvia os
"gritos do silêncio" (coisas inconcebíveis para o homem "civilizado"), não poderia ser
visto como "normal."
Mesmo tendo aprendido a andar, falar e escrever e apesar de haver internalizado
símbolos de comportamentos, Kaspar Hauser nunca seria considerado um "igual" pela
comunidade de Nuremberg, pois sua história de vida estava inevitavelmente marcada
pelo estigma da rejeição.
%040.5
Herzog, W. (1974). Jeder für sich und gott gegen alle. Alemanha: ZDF Produções
(rriginal: Cada um por si e Deus contra todos. Traduzido como: r enigma de Kaspar
Hauser) [ Links ]
Masson, J. M. (1997). The lost prince: The unsolved mystery of Kaspar Hauser. New
York: Free House. [ Links ]
Recebido em 20.07.2001
Aceito em 05.10.2001.
1
Mestranda na FEUSP - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,
professora na Fundação Instituto Tecnológico de rsasco. E-mail: saboya@usp.br
2
Esta notícia foi veiculada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 09 de março de 1997,
p. D6.
3
A expressão prática social pode ser entendida, aqui, no sentido que lhe atribuiu Karl
Marx, ou seja, como "praxis:" conjunto de atividades humanas que engendram não
apenas as condições de produção, mas de um modo geral, as condições de existência de
uma sociedade. Essa parece ser também uma idéia presente em Vygotsky e mais do que
isso, um de seus pressupostos: "o homem transforma-se de biológico em sócio-histórico,
num processo em que a cultura é parte essencial da constituição da natureza
humana...não podemos pensar o desenvolvimento psicológico como um processo
abstrato, descontextualizado...pois está baseado fortemente nos modos socialmente
construídos de ordenar o real" (rliveira, 1997, p. 24).
4
Esta é uma das cenas do filme de Herzog (1974), quando Kaspar Hauser é apresentado
à alta sociedade como um fenômeno. É convidado a tocar piano e se mostra depressivo,
pois após dois anos de estudo, não consegue tocar tão bem quanto um outro jovem que
se apresentara anteriormente. Seu tutor, então, lhe diz que ele havia feito grandes
progressos para um jovem que viveu tanto tempo no isolamento.
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Em fevereiro de 1829, foi produzido uma nova versão da autobiografia de Kaspar Hauser, que
Stanhope publica em seus °
(1835). ͞Comunicado ao barão Stanhope pelo Senhor
presidente von Feuerbach. Em fidelidade à autobiografia͟. As
de Daumer (1831)
reproduzem igualmente o texto, precedido do comentário preliminar: ͞De um terceiro ensaio
(de uma autobiografia, K.H.), de fevereiro de 1829, na qual vemos uma maneira de escrever já
um tanto mais culta, porém ainda muito natural e ingênua, o que segue é um fragmento͟ As
divergências entre as duas restituições são desconsideráveis.
A prisão, onde eu vivi até a minha libertação, tinha um pouco mais de seis a
sete pés de comprimento, quatro de largura e cinco de altura. O chão me
parecia de terra batida, do lado atrás duas janelinhas eram cobertas com
madeira, que pareciam totalmente pretas. Sobre o chão ficava a palha, onde
eu costumava ficar sentado e dormir. Minhas pernas ficavam cobertas a
partir dos joelhos com um cobertor. Sobre o lado esquerdo do meu abrigo
tinha um buraco no chão, onde havia um pote; havia também uma tampa em
cima dele, que eu tinha de tirar, e que eu sempre tampava de novo. As
roupas que eu vestia na prisão eram uma camisa, uma calça curta, se ndo que
nelas faltavam a parte de trás, para que eu pudesse fazer minhas
necessidades, já que eu não podia tirar as calças. Os suspensórios eu tinha
por cima da pele. A camisa ficava por cima. Minha comida não era nada além
de água e pão; da água eu sentia falta de vez em quando; pão tinha sempre
bastante; eu comia um pouco de pão, porque eu não tinha movimentos, eu
não podia andar, e nem sabia que podia me levantar, porque ninguém tinha
me ensinado a andar; nunca me veio a idéia de querer me levantar. Eu t inha
dois cavalos de madeira e um cachorro, com eles eu sempre me ocupava; eu
tinha fitas de cor vermelha e azul, com as quais eu enfeitava os cavalos e o
cachorro, mas de vez em quando eles caiam, porque eu não podia amarrá -
los. Quando eu acordava, o peda ço de pão estava do meu lado, e uma
canequinha de água. Primeiro eu bebia água para diminuir a sede, depois
comia pão, depois eu pegava os cavalos, tirava todas as fitas, e enfeitava de
novo, e continuava assim mais um pouco. Depois eu comia pão, eu queria
beber também, mas não tinha mais lá dentro, então eu pegava o cachorro, e
queria enfeitar ele, como os cavalos, mas eu não conseguia fazer até o fim,
porque minha boca ficava seca demais, eu pegava várias vezes a canequinha
na mão e ficava com ela um tempão na boca, mas a água nunca que saia, eu
abaixava ela sempre, esperando um pouco, se uma água não vinha de
repente, porque eu não sabia que a água e o pão eram trazidos para mim; eu
não tinha a menor idéia que lá fora de mim poderia ter mais alguém ʹ Eu
nunca vi um humano, nem nunca escutei um deles; quando eu esperava um
pouco e nenhuma água aparecia, aí eu me deitava de costas e dormia. Eu
acordava de novo, meu primeiro gesto era de procurar pela água, e cada vez
que eu acordava tinha água na canequinha, e um pão aparecia também. A
água quase sempre eu bebia ela inteira, aí eu me sentia muito bem, eu
pegava os cavalos e refazia exatamente de novo como eu já contei.
Geralmente eu achava a água boa de verdade, mas de vez em quando ela
não era tão boa, e quando eu bebia, eu perdia todo o ânimo, não comia
mais, e não brincava mais, mas adormecia. Quando eu acordava, fazia cada
vez mais claridade que antes; eu nunca tinha visto uma claridade do dia
como aquela presente. Até que pela primeira vez o homem entrou na minha
casa, ele colocou uma cadeira bem baixa na minha frente, um pedaço de
papel e um lápis em cima, depois ele pegou minha mão, me deu o lápis na
mão, me fechou os dedos e me mostrou como escrever alguma coisa. Ele fez
isso várias vezes, até que eu pudesse imitar aquilo. Ele me mostrou de sete a
oito vezes; aquilo me dava bastante prazer porque aparecia preto e branco;
ele deixava minha mão solta, me deixava escrever sozinho, eu continuava a
escrever, e fazia exatamente como ele tinha me mostrado, e re petia aquilo
mais vezes. Quando o homem soltava a minha mão eu não sossegava de jeito
nenhum e continuava a escrever, não me vinha nenhuma idéia do porquê
minha mão perdia a firmeza. Durante esse tempo, o homem ficava atrás de
mim observando se eu podia im itá-lo ou não; eu não escutava a saída, nem a
chegada dele. Eu ficava escrevendo assim por um tempo e via logo depois
que as minhas letras não pareciam com aquelas feitas; mas eu não parava
até que elas ficassem parecidas. Aí eu queria beber de novo, porqu e com a
concentração eu não reparava na sede; comia um pouco de pão, pegava os
cavalos, enfeitava eles como eu contei ali em cima. Mas eu não podia mais
enfeitá-los tão facilmente como antes, porque a cadeira me impedia, que
estava colocada na frente e por cima das minhas pernas, e me causava bem
mais esforço, porque os cavalos estavam do lado, e eu não tinha tanta
compreensão, para que pudesse levantar a cadeira ou colocar os cavalos na
cadeira. Aí eu ficava com bem mais sede, e não tinha mais água, daí eu
dormia. Logo que eu acordava a cadeira estava colocada de novo em cima
das pernas; meu primeiro gesto continuava sendo o de pegar a água; depois
eu comia pão, depois eu escrevia um pouco, pegava os cavalos e o cachorro,
quando eu terminava eu bebia o resto da minha água, comia um pouco de
pão. Eu repetia isso.
Se eu acordava com o dia, eu não posso afirmar isso, porque eu não tinha
noção de dia e de noite. Eu não consigo dizer também quanto tempo eu
dormia, de acordo com a minha estimativa atual bastante t empo, minha
brincadeira durava bastante, o tanto que eu posso julgar atualmente, quatro
horas ou mais. Quando o homem me pegava para escrever, ele não dizia
nem uma palavra, mas pegava a minha mão e mostrava como escrever;
quando ele pegava a minha mão eu não tinha a idéia de virar a cabeça para
ver o homem; isso porque eu não sabia que existia uma figura assim como eu
sou uma. O homem veio pela segunda vez, carrega um pequeno livro, coloca
ele aberto na minha frente em cima da cadeira, pegou minha mão e
começou a falar, ele apontou para os cavalos e disse suavemente: cavalo,
várias vezes; até que eu entendesse aquilo eu escutava muitas vezes, eu
escutava sempre a mesma coisa; aí me veio a idéia que eu devia fazer
também daquele jeito, eu disse também as mes mas palavras, pegou uma fita
da mão esquerda e disse mais uma vez cavalo, porque eu não podia pegar
com a mão direita, que o homem agarrava; então ele disse várias vezes
͞segurar isso͟ e colocou minha mão sobre o livrinho e de repente depois
disso no cavalo e balançou ele de um lado pro outro. Isso me deu muito
prazer, ele disse fazendo: repetir desse jeito, aí você ganha um cavalo bonito
assim do pai. Essas palavras ele repetiu várias vezes, eu não repetia e as
escutava por muito tempo, e como escutava sempre as mesmas palavras,
comecei a repetir; ele disse talvez sete ou oito vezes, então eu pude repetir
com um pouco mais de clareza, como eu podia repetir com mais clareza, ele
apontou mais uma vez para os cavalos, balançou novamente de lá para cá e
disse: ͞aprender isso͟, ͞pronunciar o cavalo, aí você vai ter o direito de fazer
assim também͟. Nesse momento minha mão estava livre e o livrinho estava
parado em cima da cadeira; eu olhava sempre para o livrinho porque ele me
dava bastante prazer porque tinha exatamente a aparência do meu papel
que eu tinha escrito; eu disse para ele várias vezes por conta própria, eu
acabei de beber meu pouco de água, comi um pouco de pão, embalei em
seguida os cavalos primeiro bem lentamente e sem barulho, como o homem
tinha me mostrado; disse também as palavras aos cavalos; fazendo isso eu
fiquei com muita sede, cansado e sonolento e quando eu não tinha mais
água eu me deitei no chão e dormi. Quando eu acordei o meu livrinho
continuava sobre a cadeira. Eu não vi ele antes de ter bebido água; aí eu
escrevi, enfeitei os cavalos e o cachorro, em seguida eu passei a mão pelo
livrinho, e eu disse as palavras que o homem havia me ensinado, e apontava
ao mesmo tempo para os cavalos, e disse também estas palavras ͞aprender
isso, receber seu cavalo bonito do pai͟ aí eu apontava as páginas do livrinho
e repetia mais uma vez as palavras, depois do que eu passei de uma a outra,
sentia de novo sede, acabei de beber minha água, comi um pouco de pão,
disse essas palavras mais algumas vezes, e comecei a embalar (os cavalos)
pra cá e pra lá; mas balançava tão forte, que aquilo machucou a mim mesmo.
Aí o homem veio com um bastão, me bateu no braço, isso que me machucou
muito e eu chorava; eu fiquei daí bem quieto e não balancei mais os cavalos.
Quando eu chorava muito, queria beber água, eu não tinha mais água, comi
um pouco do pão e dormi. Quando eu acordei eu sentei e bebi minha água,
depois coloquei bem calmamente as fitas nos cavalos, como o homem tinha
me mostrado, e disse as palavras aprendidas aos cavalos, escrevi de novo,
depois do que pronunciei também essas mesmas palavras ao livro, peguei a
canequinha, acabei de beber meu resto de água, eu brinquei ainda mais um
pouco, fiquei bem cansado e sonolento e dormi. Eu devo ter ainda acordado
várias vezes, talvez mais quatro ou cinco vezes, até que o homem me
carregou. Na noite em que o homem veio me buscar eu dormia muito bem,
acordei e já estava vestido, menos com as botas, ele me calçou, me colocou
um chapéu, me ergueu e me apoiou na parede, peg ou meus dois braços e os
colocou ao redor do seu pescoço. Quando ele me carregou para fora da
prisão ele teve de se abaixar, e precisou subir uma colina, talvez fosse uma
escada, depois veio um pouco de caminhada, eu já sentia grandes dores e
comecei a chorar; aí veio uma montanha grande, quando eu chegava ao fim
de um caminho mais alto o homem disse: você deve parar de chorar agora
mesmo, ou não vai ganhar o cavalo. Eu obedeci ele, ele me carregou por
mais um tanto, eu dormi. Como eu acordei, eu estava dei tado no chão, com a
cara virada para a terra. Eu mexi a cabeça, talvez o homem viu que eu estava
acordado, me pegou, me colocou debaixo dos braços e começou a me
ensinar a andar. E como eu devia começar a andar, ele colocou meus pés em
cima dos dele para me fazer saber como eu deveria fazer. Eu tive que
avançar com alguns passos, aí eu comecei a chorar, eu já sentia uma dor
muito forte nos pés, ele disse ͞você tem que parar de chorar agora mesmo,
senão não vai ganhar o cavalo͟ eu disse ͞cavalo͟, querendo di zer com isso
que eu queria voltar bem rápido para minha casa e para os meus cavalos, o
homem me disse: ͞você tem que aprender bem a maneira de andar, você
deve se tornar um cavaleiro assim como foi seu pai͟. Ele me atormentou de
novo com a maneira de andar , eu comecei a chorar porque meus pés doíam
muito. Ele disse de novo as palavras: ͞você tem que parar de chorar agora
mesmo, senão etc.͟ Antes quando ele dizia essas palavras, eu parava sempre
bem rápido de chorar; mas dessa vez, porque meus pés doíam dema is; aí ele
me deitou no chão com o rosto virado para baixo, e eu tive que ficar deitado
um pouco até dormir. Como eu acordei de novo, ele me levantou e disse: eu
deveria aprender a andar direito, daí você vai ganhar um cavalo bem bonito,
ele me treinou de novo do mesmo jeito da primeira vez. Depois que o
homem começava a me falar durante o caminho, ele me colocou várias vezes
no chão, porque eu ficava cansado sempre bem rápido. Daí ele começou a
dizer:
ï ï ïï
ï
ï
Ele colocou o pão ao meu lado; eu o peguei imediatamente com as mãos; ele
colocou água na caneca; colocou no chão. Então ele começou a me
questionar. Ele me questionou com uma voz tão rápida, que ele me causou
muita dor na cabeça, eu chorei e disse: ͞eu também gostaria de me tornar
um cavaleiro, como pai é͟, ͞mostrar casa͟, ͞eu não sei͟, ͞na cidade grande,
lá está seu pai͟. Essas palavras eu dizia sem distinção para exigir aquilo que
eu queria. O guarda da prisão foi embora, porque não me entendeu, ele
entendia bem as palavras, o que elas queriam dizer, mas não o que eu disse
com elas e eu não o entendi também, o que ele me disse. Eu comi meu pão,
quando eu o levei à boca ele não estava tão duro quanto o outro que eu
tinha no meu abrigo antigo. Eu o vi e considerei que era um pão, mas não
tinha o mesmo gosto e dureza. Eu comi mesmo assim, porque eu estava com
fome, eu o tive por alguns minutos no estômago e comecei a sentir dores
fortes pelo corpo, eu comecei a chorar e disse: ͞mostrar casa͟, pelo o que eu
queria dizer que não deveriam me fazer tão mal assim e dev eriam me levar
para lá onde estavam os meus cavalos. Então eu ouvi de novo o trompete
imperial; eu escutei e me alegrei bastante porque minha esperança estava
que quando os cavalos chegassem eu contaria para eles o que eu tinha
escutado. Eu escutei por bastante tempo, eu não ouvi mais nada. Então
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