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Ce aac ne Ros aa cero ey Cetera to Tee eas to Meaty rere hoe ude we tee Cie citar Ce euOceet tit Taner eee Lote sirens ey ma de Sao Paulo onde agora exerce o cargo de Professor Descansem em paz os tas dentro de mim 6 0 seu Francisco as coisas da minha da morte com a paix3o, da morte com 0 proprio sex Para Perazzo a psicoterapia no depende em absoluto de uma inha para ser eficiente. im, de uma rela¢o 1m © paciente. No estabel SERGIO PERAZZO DESCANSEM EM PAZ OS NOSSOS MORTOS DENTRO DE MIM (Sobre psicodrama.diante eatravés da morte) Francisco Alves aM © 1986, Sérgio Perazzo Rovisio tipogrifica: Argemiro Figueiredo e RosSngela Pinheiro Impresso no Brasil Printed in Brazil 1986 ISBN — 85-265.0030.9 ‘Todos os direitos desta edigdo reservados 8: LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A. Rua Sete de Setembro, 177 — Centro 20050 — Rio de Janeiro ~ RJ réeverso perverso Tao certo quanto trés mais quatro sao sete @ sete so as colinas em que Roma capital se fez, capitais e sete so 0s pecados cristéos, Igualmente sete e felinas si0 as léguas ¢ as rotas, folegos, cartesianas cotas, aleance do Gato de Botas; ea outra medida, palinos sete, de subterraneos gros de terra, terra-mortalha, noite feita ao fim do dia, curto caminho de ida, passage que este verso moroso corta e cruamente entalha na carne morta, carne fria, de téo penoso, de to perverso. ‘Aos que me parecem tantos, esta meia dazia entre os bilhGes do mundo, que me pediram tanto e tao pouco, Acestes, que um dia 868, nus, mudos ou mortos, espelhos multifacetados de minha propria alma, vieram se permitir ou ndo rire chorar em minha companhia, A estes a quem nem sempre pude dar ncio, ouvido, palavra, afeto, acolhida, competéncia, e de quem vislumbrei fragmentos e, que, em momentos, acreditei ver inteiros quando fui inteiro. Querendo me encontrar com eles, tropecei tantas vezes ern meus proprios desencon ros. Talvez eu também quisesse fixar para sempre algum pequeno instante de felicidade perdido numa curva derrapada, fa poeira que sobe e que embaca o que ficou indistingu vel da janela traseira, hoje sem consisténcia vivenciada, mero, registro num mapa intemporal. E especialmente a vocé, Hotécio, 0 Nene, meu pai assim mesmo em castelhano, sem acento, que me fez percorrer até a sua morte, ocorrida entre 0 término e a publicacao deste livro, muitos dos caminhos que aqui descrevo, calgados hoje apenas de tristeza e de lembrancas, fas que foram a tempo as dividas de parte a parte; © a Junia, companheira de todas as horas. Quero agradecer a todos que direta ou indiretamente contribuiram para a realizagdo deste livro, que, com poucas modificacées, é origindrio de um trabalho apre- sentado por mim na Sociedade de Psicodrama de Séo Paulo para credenciamento como terapeuta de alunos e supervisor. Particularmente a Miguel Perez Navarro, mais uma vez orientador e amigo; a Alfredo Naffah Anibal Mezher, Antonio Carlos Eva e Wilson Castello de Almeida, pelas valiosas sugestes; a José de Souza Mar- tins, pelo incentivo; e particularmente a Dalmiro Manoel Bustos que fez emergir a morte e a vida de dentro de mim e que prefaciou este livro curiosamente no dia se- guinte ao do meu aniversario. PREFACIO . ‘SUMARIO INTRODUGAO— "1, ‘Sobre a Vida | CAPITULO! CAPITULO HT capiTULO | CAPITULO IV CAPITULO V CAPITULO VI BIBLIOGRAFIA. APENDICE 2, Caminhes. . MORTE, DESTINO HUMANO: ‘MORTE, ATO ESPONTANEO? . . . ‘© HOMEM £ A MOATE: ES80¢O HISTO. RICO... A SIMBOLOGIA E A COMPREENSAO DA MORTE, MORTE E SEPARAGAO, PAIXAO’ E TRANSFERENCIA 1. A Dor e seu Itiner @ a Minha Morte . on 2. "0 Triunfo da Morte”, ov, “De Como 2s Razbes e Descazbes Arbitririas do Meu De. sajo Fazem com que Soja Dificil para Mim Acreditar que no te Amo" MORTE € SEXUALIDADE 1. Os Irmios Gémeos. 2! Digressio Sobre uns Guantcs Pontes a Teoria de Paptis 3. O "Papel Sexue 10 Ate o Encontro. 4. A Intersego com # Morte: Foco, Cacho do Papis e Catarse de Integragio . .. DESCANSEM EM PAZ OS NOSSOS MOR. ‘TOS DENTRO DE MIM 1. Uma Lacuna Existencial do. Psicodrama Tebrico. 2,0 Mortos Insepultot Permanecem em ‘Transferéncia Assombrando os Vivos, ‘A Morte do Outro 0 seu Desenvolvimen: 1, AMORTE E OS MORTOS DENTAO DE mM. 2. OMEDICO E AMORTE . 3. O SEGUNDO ESPAGO MORTUARIO - n ” 18 23 35 51 63 63 69 7 n 81 80 100 107 107 113 121 125 139 149 PREFACIO Dalmiro M, Bustos Nos dltimos anos, a até entdo exigua bibliografia psicodramé. tica_foi enriquecida por uma série de trabalhos que se caracteriza ram pelo seu alto grau de criatividade, juntamente com seu valor cientifico. Todas eles encerram 0 espirito moreniano, mesmo quando possam questionar alguns ou muitos de seus postulados. Creio que nunca li um livro sobre Psicodrama, ou escrito por um psicodramatista, que me tenha aborrecido. Carecem do hermetis mo que caracteriza outros enfoques, sio de fécil leitura, mesmo que possa haver, certamente, uns mais ricos do que outros. Moreno istia em enfrentar 0 tragico com calma, o sério com um sorriso, desterrando o solene.’ A sensualidade transita em todos os territ6 rios. Mesmo no tratamento de temas que tenham a profundidade do que é tratado neste livro; nada menos que a morte. Para sorte do leitor, Sergio Perazzo & um excelente psicodramatista bras Fo que nos leva pela mao para refletir sobre a morte. Para fazé-lo, recorre ao didlogo agil com o leitor, o interlocutor estando sempre presente, vivo, participante. Deixa que confluam suas experiéncias ‘em uma sintese existencial, permitindo que Ingmar Bergman con- viva com Freud, Moreno com Bob Fosse (que seguramente o en- cantou, assim como poderia ser Fellini}, Poe com Drummond de Andrade. Junto deles aparecem seus pacientes e também seus pré- prios fantasmas. Sergio Perazzo pode abordar o teria porque esti * ~Quero ser lembrase como alguém que levou alegs 4 Psiqvatria”, dasa Mareno. " assistindo sua propria maturidade, que 6 também aceitar fugaz~ mente sua propria morte, O poeta, 0 escritor, o médico, o filéso- fo (negado mas indubitavelmente presente) também se retinem, € © resultado é altamente satistatorio. Talvez me ocorra pensar, estimulado pela proposta vibrante do autor, que houve um convidado possivel que faltou a reunido: ©. J. L. Moreno que escreveu As Palavras do Pal,’ Como 0 autor no 0 convidou, tomo a liberdade de convida-lo, porque, neste vro, Moreno nos comunica muitas de suas reflexdes sobre a Morte. Nestas paginas aparecem duas posturas frente a morte: uma, quan- do nos fala como Deus; outr, diferente, quando escreve suas pre- ces. Entre as primeiras, uma das mais significativas é a seguinte: “Bu disse: que exista 0 tempo, E 0 tempo existiu. Eu disse: que exista o nascimento, Um comego de vida, E cada ser comecou a nascer. Eu disse que exista morte, Um término de vida E cada ser comecou a morre! Em outro poems, diz: “Oh, ninguém voltaré a amar de novo Na terra ou nas estrelas, Se eu nao nasco. Oh, ninguém voltaré a morrer [novamente, na terra ou nas estrelas, Se eu ndo morro.”” Mais adiante, se rebela: “Por que deve existir um menino tio [querido, em minha mao desnuda, se se ha de morrer?” 7 Moreno, JL, Las Polavrat det Padre, Busnos Aires, Editorial Veneu, 1976, 2 A dialética inexordvel, plena de confirmagées indestrutiveis aparece claramente quando nos pergunta "Por acaso ouvi alguém dizer: Deus esta morto? Como pode estar morto, Nao havendo ainda nas Por acaso ouvi alguém dizer: Deus nasceu? Pois, como poderia eu nascer, Sendo ele Ser imortal?” Nas preces reaparece 0 tema com outro tom, onde aparece o ser humano Moreno “'Oh Deus, esta ¢ minha prece: A morte me ha de conduzir de novo a Ti, Mas contigo presente na morte, quem pode morrer jamais?” Como esta ha muitas que tratam de sua postura frente & mor- te, 80 quero citar, final mente, a que me parece a mais elogiiente de todas: “Oh Deus, dé-me tempo Para orar com vigor. Dé-me tempo, Para cantar uma prece antes de morrer. Isto seré muito répido, eu doutor assim 0 E aenfermeira o Eu sinto a morte vir, Descendo desde minha cabeca, Até meu coragao. Mas antes que meu coragdo se detenha, Eu te agradeco, Pela vida marav 1082 que tu me deste {para viver, Pelas arvores, 13 Que Tu plantaste, Justamente em frente de minha casa, E pelo tempo, Que Tu me presenteaste gratuitamente, Para esta prece.”” Esta prece foi escrita por Moreno quando ele tinha menos de trinta anos. Eu fui testemunha dos ltimos dias de Moreno. Estive ‘em Beacon uns meses antes ¢ poucos dias depois de sua morte. Nos Lltimos tempos ele esqueceu o inglés e s6 falava o aleméo. Houve rebeldia, aceitagao, paz. O que Sergio Perazzo menciona no livro sobre 05 mitos da volta de Moreno em portas que se fecham e fan- tasmas noturnos nao presenciei nunca, embora seja muito possi- vel, ié que a vida dos homens famosos ndo Ihes pertence, é conti nuamente reinventada por seus adeptos e inimigos. Estou certo de que ele teria se 10 muito com tudo isto. Se bem que sem diwvida ecredito que Moreno nos mostra a sua concep¢io da vida e da morte, cabe perguntar-se se no hé em todo pensamento humano, independente do contetido, uma tenta tive de negar a morte. José Donoso, um grande escritor chileno, formula este pensamento, colocando-o na boca de um dos perso- nagens de sua novela A Coroagao: “Mas, no vés que toda vida, toda obra, seja em que campo seja, todo ato de amor, ndo & mais que uma rebeldia contra a extingo, nao importa que seja false ou verdadeira, que dé resul- tado ou néo? Eu acrescentaria que as proprias bases da razio, que a raiz da alica, tem por objeto negar 2 existéncia da morte, Fica entéo muito dificil tentar sua profunde compreensio a partir de um sistema montado para negé-la. Toda a cultura ocidental e crist@, com seus ritos, enterros, vel6rios, sous prantos e gritos, mesmo nas mortes mais esperadas, nos falam da incapacidade de sua aceitacd 0 proprio Carnaval, a festa mais colorida, criativa e vital que ‘temos no Brasil, e certamente na maior parte do mundo, nasce na Idade Média, como uma fantasia de triunfo do homem frente a morte. Quando por ocasido da passagem do século se faz a predi- G0 do fim do mundo e depois de se comprovar que isto ndo ocor- Te, mas que, sim, morre na Hora assinalada para o fim geral um aprisioné-la, vencé- “ homem chamado Pierre, todo o povo se pie a festejar, seguindo o cortejo funerério. A morte tem, como era usual, uma méscara fu- nerdria branca, seguida pela mulher que cuidava dos nichos (co- lombas) e por um menino que anunciava 0 cortejo com maltiplas campainhas (guizos). A comédia da Arte os resgata dep Pierré, Colombina, Polichinelo, etc. (Carné Valet, O Servente da Morte Pessoalmente, beirando o meio século de vida, com minhas satisfacdes e frustraces, com minhas luzes e minhas sombras, me contento com fazer coro ao grande poeta Amado Nervo, que disse: “Certo, aos meus vigos vai se seguir 0 inverno, Mas Tu nao disseste que maio seria eterno. Achei sem duivida longas as noites de minhas penas Mas nao me prometeste Tu s6 noites boas, E, por outro lado, tive algumas santamente serenas, i amado, 0 sol acariciou minha face. ada me deves! Vida: estamos em Paz. La Plata, Argentina, 5 de abril de 1984 18 INTRODUGAO 1 - SOBRE A VIDA E porque estou e porque sou profundamente ligado a vida que escrevo sobre a morte. Escrever sobre a morte é de alguma forma estar podendo con- fronté-la, no sei_se face a face, mas pelo menos de viés, embora sua verdadeira fisionomia esteja sempre de algum modo irremedia- mente encoberta, Talvez por este motivo tanto tenho adiado o in{cio deste livro. Afinal de contas eu poderia mudar o tema. Nao se trata, no entanto, de teimosia diante do mais humano e interro- gativo desafio. N3o foi por acaso que um dia escrevi sobre aban- donos em um grupo de psicodrama. Sentimentos de abandono trouxeram-me por instantes, no plano da transferéncia, a vivér de estar morrendo, enfim, de vida e de amor irrecuperdveis. Houve um tempo muito depois que tais sensaces puideram ficar razoavel- mente separadas dentro de mim e integradas & compreensdo de do- res to distantes quanto mal pressentidas, e que tornavam o pre- sente bem mais dificil de ser vivido e suportado, Nasceu daqui 0 meu desejo de escrever sobre a morte. E, como to freqilentemen te acontece na pritica das psicoterapias, pude prestar mais atencdo ainda a0 quanto ela esté presente explicitamente ou sob variados disfarces no processo psicoterdpico das pessoas em seu cotidiano, interferindo decisivamente no desempenho de tantos papéis. Penso hoje que sua resolucdo é a vida em todas as suas possi presumivel ou imponderavelmente incluindo até a probal a prova do sofrimento. Uma gestagdo comecou daf, e como resul tado, fiquei grévido de idéias que ganhavam corpo a cada dia e que 7 5° recusavam a percorrer o caminho aparentemente curto que as separavam de um caderno de rascunho. Uma noite sonhei com @ insénia @ acordei impulsionado para escrever de madrugada. E aqui esta. Aqui estou. Talvez aqui pelo menos um pouco estejamos to- dos: otemor eo enfrentamento que leva a alguns a divida que for: mula 0 viver apenas como um del{rio coletivo diante da dnica cer- ‘teza comum ao ser humano, a sua finitude; e a outros a propria raiz e razdo da plenitude de ser e do ser em cada momento, do que chamamos existir ou existéncia, verbo e substantivo a um s6 tem Po unissonos e simultaneos. 2—CAMINHOS Decantemos, a bem da clareza e da metodologia, 0 curso de ‘meus trope¢os, com a morte do plano deste livro. Total indepen: déncia é, porém, invidvel. De minhas reminiscénciss, aos quatro anos, a morte de minha av. © choro. Os gritos. A organiza¢ao finebre das coisas. E eu saindo pela janela com medo de pasar pela sala. Suas érbitas vazias me perseguem trinta e quatro anos depois em uma sesso de minha terapia. A imagem onirica dramatizada e meu sentimento real de pavor acabam me levando a afasté-la em cena e com ela umas tantas paixdes impossiveis, cujas marcas persistentes teima- vam em se repetir. ‘A morte me vern como um filme, Tenho oito anos -e, com Tereza, um pouco mais velha, prima e irma postica, enterro pela primeira vez os meus mortos — um coelhinho branco da criacao do quintal, numa caixa que fizemos de casca de palmito amarrada com barbante, no jardim da casa. Nem uma légrima. Travessura di- vertida partilhada com risos por toda a familia. Vinte e cinco anos depois estou s num quarto de hospital ‘com Tereza, Nem uma palavra é dita. Apenas nos olhamos de mos dadas, Em Sao Paulo somos os Gnicos parentes um do outro, com excecdo de seu marido e filhos. Tinham aqui se fixado hi menos de um ano. Um ganglio, a bidpsia, a cirurgia e o cancer inoperavel. Volto para casa e me deito, peito nu, na noite quente de verao. Acordo em plena madrugada assustado e batendo queixo de tanto frio. Tenho certeza que @ noite é quente. Apanho um cobertor, cubro meu corpo, ¢ 0 meu medo e o frio no passam. Passa, isso sim, 18 um pensamento: "Tereza morreu.”” Uma quase certeza. Nao é so- nho. Viro para 0 outro lado e durmo, Acordo com o telefone pela manha. Sou informado de que sua morte ocorrera aproximada- mente aquela hora, Nunca tivera outras vezes sensacdes sequer pa- recidas e to assustadoras. A morte como que me avisava, Multid®es silenciosas passaram trés vezes as minhas vistas, quase na minha porta no Rio de Janeiro da minha infancia e eu no quis vé-las. Acompanhavam os funerais de Carmen Miranda, de Francisco Alves, cujas vozes eu ouvia nos programas da Radio Nacional, e de Getilio Vargas,. quase meu vizinho no Palacio do Ca tote. Eu sentia a multidéo, ouvia 0s passos e nao sabia que partici pava da Historia, Eu temia intensamente a morte. E haviano ar uma certa morte coletiva. Aos doze anos fui forgado a comparecer a meu primeiro en- terro real. Aos anteriores os adultos apenas me ameacavam: "Vou levar vocé para beljar 0 pé do defunto e s0 assim 0 medo passa.” Eu ficava paralisado. E, além de acreditar que eles seriam até capa: zes de me forcar a tal, sentiame também envergonhado por ter medo, humithado mesmo. Mas naqueles doze anos em que conju- guei o verbo evitar, entra em minha sala de aula um padre e me es- colhe junto com outros quatro, justo eu, para representar 0 colé- gio no velério do diretor de uma outra escola, Como iria eu admi- tir para 0s meus pares 0 meu terror? Fui. Impassivel, Fingindo a maior naturalidade. Endo senti medo, Ou ele estava escondido de- mais. Esta morte, pelo contrério, encheume de alegria porque acreditei ter perdido o medo. No dia seguinte, comecei pela pri- meira vez a considerar a hipotese de vir a ser médico — meu esfor- 0 de superacao da morte. Secretamente, antes do inicio das aulas, logo apés meu ingres- s0 na faculdade, fui sozinho até o anfiteatro de Anatomia para ve tificar 0 estado do medo. J4 formado, depois de passar por tantos niimeros do circo de horrores da profissdo, em hospitais e prontas-socorros (antes de psiquiatra fui clinico), estava eu de plantio e tive que atravessar um corredor escuro para constatar um dbito. O mesmo sentimento de terror infantil se apossou de mim no trajeto e $6 cessou quando fechei os olhos vitreos do morto, © Drama comega, portanto, em mim. Estou diversas vezes diante da morte e, através dela, desenvolvo até alguns papéis, exor- cizando fantesmas antigos, os meus e os dos outros, Observo a 1 mim mesmo como num espelho, um pouco mais distanciado, 0 ‘que me permite tomar o papel de meus clientes e redescobrir sob este prisma da morte a nossa esséncia humana comum. € por esta razo que as minhas reflexdes pensando na morte como 0 destino humano. Estas reflexdes acabaram me levando a questio- rar a espontaneidade do ato de morrer. leitor talvez estranhe, nesta primeira parte do livro, que diante de tal tema hé pouca ou nenhuma referéncia ao pensamen- to filosofico, que certamente muito o enriqueceria, Para mim é uma questo de manejo. Nao posso mover-me na filosofia com mesmo relative conforto com que me movimento na drea espect- fica das psicoterapias e particularmente do psicodrama, onde ainda hoje muitas vezes me debato. Tenho mesmo uma certa mé vontade erante a inundago de psicologismos nas diversas dreas no espe- cificas das Ciéncias Humanas e das Artes. Com a intenedo de ilus- trar melhor 0s seus estudos, tanto professores de literatura quanto artistas e socidlogos cometem pequenos e grandes atentados, sem perceberem que assim o fazem, contra os principios mais rudimer- tares da psicologia ¢ das psicoterapias, que em riada os dignifica. Assim sendo, por nio estar afeto a mecinica e 8 funcionelidade da metodologia e ao discorrer filosofico, no quere repetir 0 mes- mo erro “praticando" uma estre. E uma questéo de bem entender o seu offcio. Um marceneiro sabe muito bem onde serrar a madeira e onde pregar 0 prego, Eu mal entendo de ser- rotes. 0 esforco de entender a atitude do homem diente da morte, a partir do que eu observava na sala de psicodrama, acabou me le- vando a estudé-la na Historia, A economia de referéncias 4 morte na literatura sobre psicodrama, uma quase auséncia, encaminhou meu interesse para outras fontes. Salvo pequenas alusdes em Bouquet, Pavlovsky e Naffah Neto e uma breve leitura lacaniana, mais que psicodramética, de Lemoine, mais voltada para aspectos do complexo de Edipo, nada encontrei sobre 0 tema entre os psi- codramatistas. Por esta razdo e porque em reportagem sobre a morte, no jornal O Estado de Séo Paulo, em fins de 1982, li a afirmago baseada em depoimentos de psicoterapeutas, parcial mente transcritos, em que se dizia da raridade da abordagem do tema nas salas de psicoterapia, fiz questo, porque é diferente a minha experiéncia pessoal, de exemplificar abundantemente, tal- vez até inflacionando com isto este livro, minhas. consideragdes, 20 com muitos fragmentos de sessdes de psicodrama. Quis com isto chamar @ ateng’o no s6 para a oportunidade da temética, como também para a sta evocacéo cotidiana na vida profissional de um psicodramatista, 0 que torna inexplicével a sua lacuna no psi- codrams, ‘A correlacdo entre 0 esboco historico € 0 presente vivido no cenério psicodramdtico acabou desembocando na necessidade de entender a simbologia ¢ @ compreenséo da morte, que vém a se constituir no capitulo seguinte, sem 0 que no seria possivel avan- ar em qualquer conceituagdo 8 {uz da teoria do psicodrama. Nos Capitulos |VeV_trato do intercruzamento da morte com separacao, paixéo e sexualidade, o que me obrigou a rever diversos pontos obscuros e controversos do psicodrama, quais sejam, trans- feréncia, papéis, cacho de papéis, foco, catarse de integracdo 2, mais particularmente, 0 que se convencionou chamar de “papéis sexuais” ¢ seu desenvolvimento, Tais reflexes convergem para 0 capitulo final, que, mais que conclusdes, pretende levantar ques- tionamentos, num trabalho que eu desejaria estar sempre em aberto, porque sei ndo poder jamais ser considerado acabado & definitivo. Quero destacar, finalmente, a importancia das contribuigdes dos psicodramatistas brasileiros em meus estudos, dos quais me utilize’ indmeras vezes para a elaboracdo deste livro. Varios deles, pertencentes como eu Sociedade de Psicodrama de Séo Paulo, escreveram rhonografias em que refizeram muitos conceitos mo- renianos pouco claras e criaram outros, com isso muito me auxi- liando a compor com mais esta pega o imenso mosaico ineomple- to do psicodrama criado por Moreno. i, bs conferinciat porerores, a qual a aera pars manter su unideds, a 1 MORTE, DESTINO HUMANO: MORTE, ATO ESPONTANEO? ““— Hoje eu quero conversar com vocé sobre a morte.”" As sim me fala Beatriz no primeiro minuto da sessao. Preciso, Beatriz, para melhor vé-la, descer primeiro ao in- ferno, como Dante, para chegar a0 céu do encontro. E, como Mo- reno, olhar bem nos seus olhos, que me parecem agora um quadro de Escher — olhos cujas pupilas sdo representadas por caveiras, Ne- nhum vaticinio, apenas neles o meu proprio reflexo. A morte, Bea triz, n6s 0 sabemos, est presente como destino no fundo de todos 16s e, neste momento, se eu a negasse em mim, nao poderia me aproximar de voc8 de suas indagagdes com minhas proprias in- dagagdes. Fosse eu Brés Cubas e este trabalho minhas memérias péstu- mas, talvez eu pudesse Ihe adiantar algo de concreto. A morte que para n6s existe vi a do outro, @ nds homens somos eternos inconformados pois “’o que nés néo podemos conceber é nao ter meméria da nossa morte... Passamos a vida inteira nos preparando Para a nossa morte, e quando ela vem, nao podemos assisti-la. Segundo 0 jornal O Estado de So Paulo, o Estado, Bea triz, apesar de tudo, morrerio na Terra, este ano, 70 milhGes de seus 4,1 bilhdes de habitantes. E isto se no forem disparados 16s esses milhares de artefatos bélicos, das Exocets da vida, fizeram sua triste estréia nas Malvines, a requintada bomba de néutrons, que destréi 0 ser humano preservando o inanimado. Diante de tal evidéncia, nao ha como negar 2 morte e bem faze- ‘mos nés em discuti-la Lute Femando Verssime, Memérie erénie) 23 190 Nasar levantou-se “'No dia em que © matariam; Sa 5h 30m da manhd para esperar o navio em que chegave o bispo. De nada adiantou saberem, e quase toda a cidade sabia e anun- ciava_que dois homens o aguardavam para assassiné-lo. Nao se CO” gitava que toda a cidade o sabendo e anunciando, que Santiago também ndo 0 soubesse, NZo foi avisado. O dia para ele era o de esperar 0 navio do bispo. Como num dia qualquer, levantou-se 2 5h 30m e, na mesma manhé, “caiu de brucos na cozinha’”. E como se, reproduzindo Bergman em o Sétimo Selo, jogéssemos xadrez com a morte. Por isto Ihe conto esta historia colombiana, Beatriz. Ela se parece com milhares de outras historias, no acha? ‘A morte est onde menos esperamos que ela esteja. Tanto na imasica dos Beatles como no samba, por exemplo. Eleanor Rigby, uma composi¢o de John Lennon e Paul Mc Cartney, de 1966, con- ta a solidao e a morte de uma mulher que vive num sonho, desa- parecendo com ela o seu proprio nome, Os Beatles chamam a atengGo para as pessoas solitérias e que morrem solitariamente. No mesmo ano, compunham Yellow Submarine (quem no se lem bra?), e diziam que ‘todos nés vivernos num submarino amarelo’ Nelson Cavaquinho, renomado sambista, assim expressava um pouco da alma popular brasileira: a quando morre um poeta todos choram. ‘em Mangueira porque - Sei que alguém ha de chorar quando eu morrer’ “Sei que estou no Gltimo degrau da vida, meu amor. Ja estou envelhecido, acabado, Por isso muito eu tenho chorado’ E este primor macabro: “Quando eu paso perto das flores quase elas dizem assim: "Vai, que amanha enfeitaremos 0 seu fim’ "* Gabriel Garcia Mérquer, /Bnica do ume Marte Aaunciads. Prante do Poets ~ paraais com Guilherme do 8: Dagrous da Vida — parceria corm Cosar Sra ¢ Antonio Braga Eu'0a8 Flaras ~ porcatia com Jie Coste, m4 Se os Beatles expressam seus sentimentos pelo morrer sol rio, Nelson Cavaquinho confessa sua necessidade de ter quem cho- re por ele, embora ele proprio chore sua morte, No entanto nosso sambista esta em boa companhia. A peca Amadeus, de Peter Shaffer, nos mostra ur Mozart, séculos antes, aterrorizado e perse- guido por uma figura cinzenta no fim de sua vida, enquanto com: Se de encomenda uma Missa de Réquiem que acaba acreditando ser a da sua propria morte. Curiosamente uma misica folclorica americana e um samba iro de Noel comegam com as mesmas palavres: “And when | die..." “Quando eu morrer no quero choro nem vel 6 quero choro de flauta jo e cavaquinho’ ete, Vi E natural. Sentimento nao conhece latitudes, logo, a misica, uma de suas mais bonitas expresses, tera necessariamente que se repetir. E aqui, neste samba de Noel, surge a preocupagao com os ritos da morte. O pedido de samba no vel6rio vem até sendo cum- prido nos funerais de musicos e de compositores famosos, como Por exemplo Adoniran Barbosa e Cartola, costume com alguma semelhanga com o das bandas de jazz presentes nos enterros dos negros de New Orleans. Sao incontaveis os exemplos na Historia da Musica que estio estreitamente vinculados & Historia das Mentalidades e aos cos. tumes. As antigas missas de Réquiem (de requies, repouso) tém seus correspondentes modernos até no jazz: Réquiem, do pianista Lennie Tristano, em memria do saxofonista Charlie Parker; / Remember Clifford, de Jon Hendricks e Lenny Jolson, lembran. do 0 falecido miasico Clifford Brown; Funeral (de Ra Chair in the Sky e Goodbye Pork Pie Hat, as duas Ul Joni Mitchell, aproveitando @ mi as de composta pelo proprio misi- 25 co homenageado post-mortem, o baixista Charles Mingus so alguns exemplos . Ainda entre nés, na misica popular moderna estéo presontes tragos de costumes tradicionais e regionais no que diz respeito @ ritos fanebres: ton Nascimento e Fernando Brandt: Em Sentinela, de “Morte, vela: sentinela sou Do corpo desse meu irmio que ja se vai Revejo nessa hora tudo que ocorreu. Meméria no morreré. Vulto negro em meu rumo vem Mostrar a sua dor plantada nesse cho. Seu resto brilha em reza, brilha em faca ¢ flor Historias vern me conte. ... Longe, longe, ougo essa voz Que o tempo nao vai levar.”” Qu na Su/te das Pescadores, de Dorival Caymmi: “€ tao triste ver Partir alguém que a gente quer com tanto amor...” “... Uma ineslenga entrou no Para(so! Adeus, irmao, adeus Até 0 Dia do Juizo” ‘Ambas, poeticamente, falam de velorio com termos regionais proprios. A primeira insiste na persisténcia da meméria diante da impossibilidade da persistncia do corpo, e na segunda, também chorando a auséncia e desejando o reencontro perdido, a composi- ‘tor coloca para si proprio a questo da sua igual mortalidade. Ja que estamos falando em misica, Beatriz, que acompanha mento dar a tudo isso? Até aqui fica evidente que a questo da ine- idade da morte esta inscrita ndo so na historia de cada ho- mem, como na prépria Histéria, como ficaré mais claro no desen- 26 volvimento deste livro. Conseqiientemente, os sentimentos do ho- mem, claramente expressos ou negados, que deste destino decor- re, aparecem em qualquer manifesta¢do ou atividede humana, A. Arte é um excelente portavoz, profundamente enraizada que esta ‘ria, da qual jamais poder desvincular-se, As representacdes da morte ultrapassam os simples limites do antigo e do moderno. Apesar da predominancia em cada época de uma determinada maneira de traté-la, sempre existiram e existirdo polaridades em sua perspectiva. Se por um lado Edgar Allan Poe em meados do século passado, época em que a morte era tingida com tinturas excessivamente roménticas, em um conto de horror, epresenta a morte como um péndulo com o formato de uma lua crescente, feito de aco afiado que inexordvel e muito lentamente vai descendo até 0 peito de uma vitima imobilizada e aterrorizada pera dilaceré-la®, por outro lado, nos dias de hoje, em que a morte é cada vez mais escondida e evitada, Bob Fosse em seu filme O Show Deve Continuar (All That Jazz), em uma seqiiéncia tio nda quanto inesquectvel, fotografa 0 encontro final de seu perso- nnagem com a morte, uma mulher belissima @ irresistivelmente se dutora, no mais absoluto siléncio. E evidente, pois, que o homem projeta, nega ou desloca sua angistia de mortal em tudo aquilo que 0 cerca quando nao pode claramente expressé-la Busquemos ainda no cinema um outro exemplo: “Blade Runner”, de Ridley Scott. A aco é situeda no ano 2019. André des criados pelo homem por mutacdo genética rebelam-se porque tm uma vida muito mais curta do que ado homem. Acabam por fazerss mesmas indagagdes sobre vida e morte que os humanos. Pedem aos geneticistas uma providéncia que Ihes prolongue a vida. O curioso é que neste filme no s6 a projec da angistia de morte se faz sobre 0 andréide como também no futuro. Ou seja, nenhuma tecnologia sera capaz de modificar nosso destino. Em uma missa rezada nos subterraneos do DOPS no perfodo negro e recente da repressio politica brasileira, Frei Betto faz 0 comentério da leitura evangélica. Neste comentério, diz textual mente: ... para Marx, a alienacao cria o descompasso entre a nos- sa existéncia e a nossa esséncia. Nao vivemos o que somos e nem edgar Allan Por, “O Poroe 0 Rind, én Mitre Bxtraordintrias 27 podemos ser o que gostariamos de viver. Para nos cristios, essa adequacdo entre a esséncia ea existéncia é a santidade.”” Com os olhos de psicodramatistas poderiamos dizer talvez que como seres humanos ndo podemos desempenhar todos os pa- ppéis que gostarfamos de viver. Que a alienagao de ns mesmos, ida aqui a alienacdo de nossa propria morte, nao s@ cria tam bem o descompasso entre nossa existéncia e a nossa esséncia, como também seu maior ou menor grau depende do quantum de espon- taneidade passivel de ser mobilizada, 0 que permitiré ou néoa cria- eGo e 0 desenvolvimento mais ou menos criative de um'maior ou menor niimero de papéis. Para nés psicodramatistas esta harmo- nizardo entre esséncia e existéncia seria a satide mental. Assim co- ‘mo 0 nascimento, a morte também 6 ou deveria ser um ato espon- tineo. Ou o espontineo do ser humano seria o lutar permanente contra a morte? Ou ambos? Considerando a concepeio moreniana do nascimento como um ato espontaneo resultado de um longo aquecimento corres pondente 8 gestacéo, e o proprio ciclo vital do ser humano, seria legitimo supor ser a vida também, num plano existencial, um pro- cesso de aquecimento para outro ato espontaneo, a morte, Entre- tanto, podemos dizer que a morte é um ato esponténeo? Ora, Moreno formula seu deslumbramento face ao nascimenta dizendo que, dadas as condigées adversas em que se dé a passagem do mundo intra-uterino para o mundo exterior, entre as quais séo tes a8 diferencas de proterao e de agressdo para a sobreviven- Cia, “é quase um milagre o fato de ele (o bebé) nascer vivo""°, @ que este milagre ocorre gracas & espontaneidade que existe nele. Manter-se vivo também depende de atos espontaneos executa dos sucessivamente através da existéncia: comer, reagir a doencas, curar-se, desviar-se de um carro, no ceder a um impulso suicida, € assim por diante, infinitamente. Neste sentido, o viver é um nascer continuo, Por outro lado, a espontaneidade, na definiggo que Naffah Neto Ihe deu, supde nao s6 a propria aco, como também a expres- so de compromisso da rela¢o sujeito-mundo, para cuja interiori- 9 ai Bette, Bavizme de Sarge 19 porano, 4, Pricodrams, S80 Paulo, Cui, 1978, p. 100. 28 2acd0 € recuperago um esforco esté sempre presente e renovado, original, @ como tal inclui a temporalidade, no podendo se desvin: cular da categoria momento. Ora, a morte é 0 desprendimento definitivo da ago e a ruptura final da relagdo sujeito-mundo. De xando de existir no real, persistimos apenas na meméria, na fantasia e talvez no inconsciente do outro. Teremos que analisar, portanto, a propria agdo de morrer, o momento em que esta ago se die a possibilidade de ser presenga atuante e participante da prépria morte sem perder neste ato 0 compromisso da relacdo com © mundo. Assim, se 0 ser humano no exato momento de sua morte, momento este que corresponde ao desprendimento de sua ago no mundo, consegue atuar comprometidamente com este mundo, integrante e quase nao integrante dele, ainda se tornando presente © quase ausente, realizaré Seu dltimo ato espontaneo e como tal conferiré 8 morte 0 mesmo cunho de espontaneidade que selou seu nascimento, Desta maneira, se hé um nivel de espontaneidade, o instinti vo, proprio da crianga edo homem primitivo, que esté ligado dire- tamente & sobrevivéncia e, portanto, & luta permanente contra a morte, hd um outro, mais fino, mais elaborado, da espontaneida- de criativa, nao automética, dependente da meméria, da conscién- cia e da historicidade e caracterizada como esforco, que permitira a0 homem o ato espontaneo de morrer. Cabe ainda levantar mais uma questo que diz respeito aos iadores e ao aquecimento do morrer. Com muita felicidade, Naffah Neto, revisando Moreno e rede- finindo aquecimento e iniciadores, assim se expressa: .. no mo- mento em que 0 individuo se abre & propria situagdo deixa-se pe- netrar por ela, ... forma-se entre seu corpo e a situago uma rede de significagdes, onde todos os seus sentidos e os vérios segmentos do seu corpo passam a articular-se ea rearticular-se numa totalida- de expressiva... Assim, pois, o aquecimento nao é um pracesso me c&nico, mas representa um esforco de abertura a situacao, onde to- dos 0s sentidos funcionam como iniciadores... Assim, pois, pode- riamos dizer que o iniciador fundamental éapropria percepeao...”"* Deste modo, poderlamos também dizer que o processo de * Natfan Neto, A, Psicadrams: Deteolonizand 0 lmopndsio, S&0 Pa nse, 1979, p. 66, Ee, Brat 28 aquecimento de morrer se inicia a partir da percepedo de um con- junto constitufdo, por exemplo, pelas percepebes cenestésicas ro- sultantes de uma doenca e de sua repercusséo no mundo circun- dante, envolta em um campo de memoria para fatos semelhantes fem que, 0 agora jacente, desempenhou algum papel neste mesmo mundo circundante, um contrapapel. Ou, entéo, pela percepgao de algum perigo mortal vizinho, instintivamente, ou enriquecide pela memoria e pela experiénci Permanece, todavia, 0 mistério, ainda insoldvel, sobre o que determina em um dado momento 0 inicio do aquecimento do morrer, assim como paira o mesmo mistério, no outro polo, sobre 2 deflagracdo de um trabalho de parto. lustremos tais legendas com 0s seguintes trechos de sessbes de psicodrama Renata é uma mulher jovem que foi operada recentemente. Em vigilia, fora da sessio, viu uma imagem como se estivesse num sonho: um carro em marcha & ré acende as luzes traseiras verme- Tas e brancas. Peco que feche os olhos e que tente novamente vi- sualizar a imagem. A medida que @ imagem vai tomando corpo, Renata esta no pés-operatorio e prefere no dramatizar, vou solici- tando inversées de papel” com cada elemento da imagem, e seus significados vo se delineando: o carro em marcha ré éa preser- a da morte impedindo que Renata siga em frente; as luzes verme- Ihas representam o sangue perdido na cirurgia e as luzes brancas, que inicialmente representam um fantasma, véo aos poucos se tensificando e 0 seu brilho passa a representar a vida, Este brilho vai como que preenchendo o seu interior (Renata ainda esté de ‘olhos fechados), seu rosto como que se ilumina e ela passa a “ver” apenas o britho intenso, sentindo-o penetrar em cada particula de seu corpo. Marta tem 27 anos ¢ esté gravida do segundo filho. Nono més. O nené custa a nascer. Tem medo de precisar ser submetida a uma cesariana e de morrer durante a cirurgia. Como tem dificulda- de de movimentar-se, proponho um trabalho com imagens inter- Para os nde familicizados com o pricodrama, a inversdo de p pricodrama am que © protagonists etue como se fost um ou ramblrm tomar © papel de urn sensmento, de ura senssps0 ou mesmo de Um abjeto nimado, axpressandselivremente n0 Peps 30 ke PE nas, cuja seqiiéncia e desenvolvimento, em que se incluem inver- sbes de papel, aqui se seguem Surge um caminhéo dirigido pelo pai de uma amiga, Marta ro cabe no caminhéo. A mie de sua amiga esté sendo levada ao hospital para fazer uma cirurgia plastica. Marta protesta porque a ime de sua amiga € muito moga e em seu entender nio precisa ser operada, Como no hé lugar, Marta 6 deixada sozinha em um pavilhdo amarelo. Fora é noite muito escura. Olhando 0 eéu, vé um fisco vermelho que se transforma num tronco da mesma cor, com as ra(zes para cima, de onde sai um filete de sangue, E um canal va- inal estreito. O nené de Marta esté dentro do utero , na vagina, ha uma trouxa de pano empurrada por uns tios velhos que nao dei. xam o nenésair. A trouxa, ao se abrir, revela Marta em seu interior. 0 Gtero onde esté 0 nené 6 seu proprio Gtero, Marta puxa o nend para a vagina e ficondo os dois empacados, até que ela, em um movimento rapido, dé passagem ao filho, que nasce, entrando em seu proprio Utero. Tem uma sensago ruim. Nao quer ficar |é dentro. Escorrega e também sai. Deixa o corpo de uma mulher, Reconhece ser sua me morta, Chora e lembra das fotografias de uma cesa riana publicada em uma revista que folheou no dia anterior e que the davam a impresso de que a mulher fotografada estava morta. Chorando, olha 0 corpo de mie e se agarra a ele. O corpo est frio. 0 seu nené recém-nascido esta sozinho, Nao quer deixé-lo assim, como sua mae a deixou quando faleceu (Marta tinha trés anos), Chora ainda abracada a mde a empurra suavemente para o nada, © branco, onde ela cai mas no se machuca. E sobre ela se fecha 0 céu negro. Chora copiosamente, lembrando que é dia do aniversé- rio da morte dela e que tinha querido que seu filho nascesse no mesmo dia (2 data limite provével do parto era o dia anterior). Sente paz e alegria porque seu filho est vivo, Sente contragdes. Acaricia a propria barriga — 0 filho, No dia seguinte vem a sesso sem angistia, Sente-se excitada por causa do nené que vai cheger. Pela primeira vez tem a sensacdo de que espera realmente o filho. Acaricia seu anel de pedra lisa e preta. Diz aue este anel me repre. senta; @ comoo tem contra a luz, ele Ihe parece branco. € como me sente e percebe, e acha que é mais facil aproximar-se de mim do ue imaginava antes. Dois dias depois nasce seu filho. Cesariana, Clarissa parara a terapia ha um ano. Todos concordamos com 31 sua salda — 0 grupo e eu. Volta a me procurar desesperada, Bate na porta de minha sala, Nao marcou hora. Pega-me pelo braco: “Me ajude. Estou em surto.” Realmente me assusto com 0 que vejo. Clarissa ndo esta brincando e é urgente. Seu contato com a realidade 6 frouxo. Esté muito excitada. Nao para de andar. Ca minho junto e ao lado. Revela-me fragmentos do que the acontece. Quer juntar a vida com a morte. Quer que eu percorra o mesmo ca- minho que ela. Acredita que tem poderes excepcionais, Quer ver imediatamente um namorado que mora em outro pais. Ha alguma coisa secreta que nao me conta. Olha-me como se se despedisse de mim. Meu trabalho na sesso é 0 de no desconfirmé-la, a0 mesmo tempo procurando Ihe dar algum referencial de realidade, Ela me chama de “Dr. Pé no Chao” divertidamente. Clarissa a medicada, No dia seguinte tomo a véla no consult6ri voltou ao seu estado habitual. Chora e me abraga. Explica tem, quando eu vim aqui, eu tinha certeza de que jé estava morta. Eu via vocé com os olhos de uma morta, Foi horrivel!”’ Conversa- mos entdo calmamente e Clarissa comeca a elaborar verbalmente diversas experiéncias pelas quais havia passado apés a interrupcao da terapia, na busca de seus caminhos de vida, No quer morrer agora e acha que esteve muito perto da morte, Henrique @ protagoniste de uma sesso de grupo em que pre- dominam suas sensag8es corporais, $6 conseguindo dar expresso a elas. Nao fala, Parece revivenciar algum estégio préverbal de sua existéncia. Seu corpo se enrosca ¢ 208 poucos st grande forea contra a parede e lentamente va mento’, até ficar solto no meio da sala, ocupando 0 maior espaco possivel. Depois comenta que a sensagdo que teve foi a de nasci mento, e que aquilo que empurrava (simbolizado pela parede) era uma tampa de caixao, Cabe aqui um pequeno processamento de alguns pontos destas sessbes: Na primeira, tentando, como Moreno, dar coragem para Re- nata “sonhar” novamente, a visio ~ possibilidade ~ de sua morte surge claramente e, com ela, a ruptura da relagio de Renata com (© mundo, representada por um carro em marcha a ré. Nao s6 nao hé um prosseguimento, como também se manifesta um retorno como se diante da morte houvesse um passado a ser recuperado, assim como 0 sangue perdido, e de cuja transfuséo dependesse a vivificagéo do presente e do agora. E neste momento que sua espontaneidade brilha a ponto de traduzir-se em vida e la com sua luz, abrindo para ela uma nova dimenslo no fantastico, num papel jamais experimentado no real pelo ser humano — 0 papel de morto, papel unicamente psicodramético {imaginério). Sua percep¢do transferencialmente comprometida, inicia um aquecimento para a morte que, por realizar-se apenas no imaginario, resulta na tomada de papel de morto, desprovido de espontaneidade, por fechar-se & relagdo com 0 mundo, com o qual neste momento néo estabelece qualquer vinculo de compromisso, Nascimento e morte esto representados em Henrique — a es- pontaneidade do nascimento confundindo-se com o esforco de su perago da morte (luta pela sobrevivéncia) © com 0 apego & vida, Este nascer in extremis esté presente em freqiiéncia considerd vel em muitas € muitas cenas em que é dramatizado um nascimen: to em psicodrama. Algumas vezes 0 bebé corre perigo de vida, ou tras a mie, ol, os dois, em todos os cursos da fantasia Novamente morte e nascimento se superpdem até na data e nna expresso “aniversério de morte”, no caso de Marta, As rela- ges que aqui se estabelecem, tormam-se mais complexas por se intercruzarem em outros papéis. A apreensio e o medo da morte tem suas raizes transferenciais na relaedo filha:mée morta, Falta espontaneidade a Marta no papel de mae {ou de gravida) até para a espera. Enquanto ela, em sua fantasia, ndo se dispée a renascer a despeito da mae morta, permanece como opréprio obstéculo que impede a deflagrago do processo de parto do seu filho — impede quecimento e portanto a aco. A partir do momento em que se dispSe ao renascimento, permite o nascimento do seu bebé e se permite sepultar a me. A forcavital supera a morte. $6 entdo pode voltar-se para 0 real e relacionar-se com o filho dentro de si mesma @ até comigo de uma outra forma em razio do cacho lcluster) de papéis." Tal apanhado néo explica nem modifica o destino human: tenta apenas retratar algumas de suas linhas neste meu longo sol loquio decorrente de seu desejo (Beattiz) de falar comigo sobre a (© cancsita de cacho de papdis er8 melhor ox 140 no Capltuo V. 33

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