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O MINISTRO GHE GUEVARA EA GESTAO ECONOMICA E£ EMPRESARIAL EM CUBA ‘Che Guevara como jovem viajante pela Améri- ca Latina, em sua moto, ou como guerrilheiro € ‘martr da luta pela libertagdo dos paises ltino-ame- ricanos, sio algumas das facetas bastante divulgadas do revoluciondrio argentino. Entretanto, quase nao se conhece um aspecto fascinante de sua trajetéria, quando Guevara, membro do governo cubano, de. feve em suas mios a direcio da economia. Esse aspecto pouco estudado de sua vida ¢ sua atuagdo no debate econdmico travado em Cuba no ink dos anos 1960 é tema central do excelente livro de Luis Bernardo Pericés.' A posigio critica de Che Guevara a0 proceso de reformas econdmicas desencadeadas na Unio Soviética ¢ em patses do Leste europeu ¢ sua discussio com os defensores dessas reformas foi um debate que mobilizou nio $6 08 cubanos e soviéticos, mas também importan- tes intelectuais de esquerda como Ernest Mandel Charles Betcelheim. © trabalho de Pericds partiu da elaborasio teérica e da ago de Che Guevara no governo cubano para analisar essa importante polé- Ao mostrar a trajet6ria de Che Guevara como diretor do Departamento de Industrializacio do Instituto Nacional de Reforma Agriria (Inta), pre- sidente do Banco Nacional de Cuba e como mi two das Indiistrias, Pericés assinalou a importancia que 0 governo cubano deu ao investimento na in- dustrializagdo, como uma politica de Estado, que seria efetuada por meio da planificasao econdmi- ca. Quando assumiu 0 Ministério das Indistrias, em 23 de janeiro de 1961, Che Guevara buscou Feorganizar o setor industrial, para impulsionar o outoranda em Histria Social na Universidade de Sio Pal (usp, (Silvia Cezar Miskulin’ ) desenvolvimento da industria nacional. A plani ‘ago econdmica tornou-se uma prioridade do Mi nistério sob a diresao do médico argentino. O Ministério das Industrias incentivou a centraliza- so da cconomia por meio de uma gestio centrali- zada das empresas ¢ da elaboracio de planos, primei- ro um plano quadrienal em 1962 e, posteriormente, planos anuais em 1963 e 1964, que seriam coorde- nados pela Junta Central de Planificasio (Juceplan) € pelas Juntas de Coordenacio, Execugio e Inspe- so Gucei) O sistema orgamentério de financiamento foi elaborado pelo Che para a gestio centralizada das ‘empresas ¢ baseava-se num fundo bancério centea- lizado que supritia as necessidades financeiras das fabricas. A valorizagdo desse sistema por Che ‘Guevara foi alvo de duras erticas, como bem apon- tou 0 livro de Perieés, foi um dos motivos pelos quais argentino foi acusado de trazer problemas ccondmicos para a ilha. A gestio econémica im- pulsionada por Che no Ministério das Indistrias bascou-se em um sistema de controle maximo, onde a contabilidade geral, o controle de inventérios e as visitas periddicas dos diretores nas fibricas busca- vam no s6 impor uma diresio centralizada, mas também promover a cooperacio entre as indiistrias de uma mesma regio, além de uma aceleragio na industrializaco. A gestio de Che enfientou muitos desafios para 4 industrializagdo répida, que se constitufram em obsticulos a serem superados: problemas de infra- estrutura nos portos, necessidade de aumentar a producdo de energia, falta de pegas de reposicio, escassez de divisas, diminuigio da importagao ¢ falta de produtos, 0 que gerou uma crise de abaste- cimento, Jé em 1962, 0 projeto de ripida indus- Avo 21 + 0845 + 2006 @ Novos Runes ‘tecnicos e administradores. trializagio nao atingia os resultados esperados, embora muitas méquinas © equipamentos tivessem sido impor- tados da Uniso Sovittica e paises do Leste europeu. Diversos acordos fir smados entre Cuba e demais paises do mundo socialista ndo garantiram um ripido desenvolvimento econdmico na ilha, jé que faltavam técnicos ¢ administradores. Cuba tornava-se cada ver mais dependente de técni- he Gane cos desses paises AA presenga de assessores e de manuais de eco- nomia elaborados na Unido Soviética influenciow alguns membros do governo cubano. Desde mea- dos dos anos 1950, Kruschev buscava incentivar a descentralizagio econdmica na Unio Soviética ¢ certos economistas propunham reformas econdmi- cas, O economista Yevsei Liberman publicou 0 at- tigo “O plano, o lucro © os prémios", em 9 de se- tembro de 1962 no Pravda, que Foi um marco no debate cconémico soviético. Liberman defendia a introdugio de novas céeni- IED) para produzir produtos Dhersosacordastinrados | com alta qualidade e ter entre Cubaedemaispases | ™aior eficicia na producio, : ‘que, segundo Pericés, pro SHITE Se | moveria a abertura econ6: ‘garantiamumrdpido eee. das esenohimeeormi¢o Folic condmica pial raitha, aque fatavam ta. Ja em agosto de 1964 fee Viadmir Trapeznikov propu- nha uma reforma macro- jea nos pregos, a0 reromar as ids de Liberman, e buscar uma flexi- bilizaséo no sistema de pregos das empresas sovie- A partir de 1965, aps a saida de Kruschev do governo, o premié Alexei Kossygin introduziu ofi cialmente a reforma econdmica na Unio Soviet: ca. Nese mesmo perfodo, reformas também ocor- feram na Hungria, Checoslovéquia, Alemanha Oriental e Bulgéria, onde as empresas foram esti- muladas a ser financeiramente autOnomas € entrar ‘em competigio com outras empresas, com 0 obje- tivo de obter maior lucratividade ¢ maior acurnula ao de capital, 0 que significava uma guinada par priticas capitalistas. O livro de Pericés mostra de que maneira os economistas porta: vozes dessas reformas ausiliaram a implementar as mudangas econdmi- cas nesses patses a0 longo dos anos 1960. Na Polénia, as reformas levaram a descentealizagio das empresas € & adogio da lucratividade como o prin- cipal indicador das indistrias. Jé na Iugoslavia, o sistema de “aurogestio das empresas iniciou-se muito antes, em 1949, com a rupcura de Tito com a Unigo Sovi- rica. Tratou-se de uma reagio contra a excessiva centralizagio e contra a burocracia, que tinha um papel exagerado no Estado soviético. Muitas medi das adotadas na Tugoslévia levavam em diregio a0 mercado livre, por exemplo, o eritério de rentabili- dade das empresas estar vinculado com o estimulo a0 aumento de produtividade e a motivagio pelo lucro. Para os defensores do sistema iugoslavo, 0 surgimento de um “mercado socialsta” seria poss! vel em uma economia no periodo de transisio, jé que levaria i abundincia de mercadoria ¢ aumen taria o nivel de vida da populagio. A planificagio da economia seria efetivada a partir de melhores condigdes materiais na sociedade. Enereranto, Che Guevara posicionou-se contra as reformas econdmicas que estabeleciam elemen- tos capitalistas nas economias desses paises e pu- blicow artigos em revistas cubanas, durante 0 anos de 1963 e 1964, para questionar os defensores des- sas mudangas que ocorriam na Unido Soviética € Leste curopeu. Che Guevara criticou a proposta de autogestio das empresas € 0 uso de manuais eco- nnémicos da Unio Soviérica em Cuba, jd que seriam de “tendéncia revisionista’ ¢ defenderiam argumen- tos capitalistas. Essas reformas aumentavam 05 €5- timulos matcriais ¢ incentivavam os trabalhadores a0 interesse pelo lucro, impulsionando a lei do valor. Para Che, Cuba deveria consolidar o sistema corgamentitio de financiamento, com a diregao cen- ttalizada da economia, ampla participagao dos tra- balhadores ¢ introdusio de uma série de medidas para controlar e diminuir os custos da producio ¢ ‘0 pregos finais das mercadorias. Entretanto, a po- sigio do Che Guevara era criticada pelos defenso- res do sistema de célculo econdmico, que defendi- am a autogestio financeira das empresas, com @ finalidade de obrengio do lucro pelas empresas, por meio dos estimulos econdmicos. Hover Rumos @ Avo 21 + 1245 + 2006 Charles Bertelheim foi um dos defensores do cileulo econdmico, em conferéncia proferida na Universida- de de Havana, em 1963. Betclheim propunha a gestio descentralizada em algumas instincias dos paises cm tran- sigao ao socialismo, uma flexibilizasio ‘que permititia 2 convivéncia com ca- tegorias mercantis, como a lei do va- lor. As idéias de Bertelheim aproxima- vam-se das concepgées de Stalin, que acreditava na importincia da lei do valor no perfodo de cransigio do ca- Pitalismo ao socialismo e na passagem do socialis- mo 40 comunismo, jé que a lei do valor no podria ser abolida ou transformada, Para Bettelheim, a au- tonomia financeira das empresas, a autogestio, de- pendia da aga0 dos burocratas ¢ do dominio dos trabalhadores sobre as condigées de produsio, que formariam as “comunas populares”. Em Cuba, es- sas idéias do cleulo ecénomico, da autonomia fi- nanccira das empresas e da lei do valor como regula- dora da produsio foram defendidas por Carlos Rafael Rodriguez (presidente do Tnra), Marcelo Ferndndez Font (presidente do Banco Nacional) e por Alberto Mora (ministro do Comércio Exterior), entre ou- tros. Durante certo periodo, o sistema de céleulo econdmico e o sistema orgamentirio conviveram de maneira concomitante em Cuba Além de Guevara, 0 economista trotskisa bel- ga Emest Mandel também crticou as reformas eco- nomicas e as concepgées de Bertelheim. Mandel defendia que no perfodo de transigio se deveria lutar contra a lei do valor, com a utilizagio da pla- nificagao socialista e com o estabelecimento de um sistema de autogestio democrético centralizado, em que os trabalhadores por meio de conselhos operé- tigs controlariam a gestio das empresas. Para Mandel, a transigio para o socialismo seria fruto de um cilculo sério, de uma politica global de pre- 505, comparacio de custos de producio, estimulo A pequena produsio na agricultura de politicas ‘estatais baseadas em incentivos morais, que bus- cassem aumentar o rendimento e a produtividade no trabalho, além do nivel de vida dos produtores. Os sistemas de incentivos, a emulagio socialis- ‘a, 0 trabalho voluntirio foram defendidos por Che para a construgéo do “homem novo” em Cuba. Li Bernardo Pericés preocupou-se em enfocar no seu livro os aspectos histéricos econé- micos que levaram Che & laboragio sobre 2 construgio do “homem novo", pois se tratava de um coneei- to sobre 0 qual Marx e muitos ou- ‘os marxistas tinham refletido e ha- via se convertido em importante objetivo da Revolugéo Cubana. Che Guevara € seus colaborado- res defendiam que os estimulos mo- rais eram os mais adequados para os trabalhadores cubanos e que estati- am em consonncia com a constru- go do “homem nove”. De outro lado, Charles Betrelheim e Carlos Rafzel Rodeiguer defendiam 0 tuso de estimulos materiais para incentivar a maior produtividade dos trabalhadores. Che Guevara acre- ditava que a criagio do “homem novo" era concomitante com 0 desenvolvimento da técnica ¢ com 0 surgimento e desenvolvimento de uma cons- cigncia comunista, enquanto 0 estimulo material era parte do mundo capitalista ¢ gerava egoismo individualismo. Che também alertou para os peri- {805 que os estimulos materiais podcriam acarretar Para a sociedade em Cuba, como o surgimento de uuma camada burocratica dentro dos érgios estatais © das empresas. Os estimulos morais por meio de prémios, me- dalhas, bandciras e diplomas foram adotados nos primeiros anos da revolugio. O sistema de incenti- vos defendido por Che estava diretamente ligado com a emulagdo socialista, em que os trabalhado- res premiados eram utilizados como propaganda po- litica para aumentar o nivel de conscigncia dos trabalha- a dores ¢ clevar a sua produ- tividade. A emulagio socia- | CheGuevaraacredtevaquea lia ein com objetivo © | giagod“honemnow" ea incremento da produtivida- deselRinclonaa tog ce concamitniecomo sete ideoligico, que | dgemhiert catcicze timulava a “competicao fraternal” entre os tcabalha- comosurgimentoe dores e exaltava as virtudes do socialismo. Entretanto, peepee: ‘em meados dos anos 1960, ‘consciéncia comunista, quando 0 projeto econdmi- co de Che Guevara nio ‘mostrou os resultados esperados, os estimulos ma- teriais voltaram a ser preponderantes, sobretudo com a distribuigio de bens duriveis ¢ de viagens. do 21 + 045 + 2006 @ Novos Runes (O trabalho voluntério também foi defendido por Guevara como um dos componentes para a criagio do *ho- clemento ideoldgico importante em Cuba, como também foi fundamen- tal do ponto de vista econémico, jé aque era decisivo para a colheita da safra de cana-de-agiicar, Em seu li- vr0, Pericés apontou que esse tipo de trabalho scm pagamento foi realiza do por varios setores: trabalhadores que atuavam fora de seu horério de servigo em outra 4rea, estudantes, mulheres desempregadas ¢ integrantes do servigo militar obrigatério. O trabalho voluntério também foi imposto a presos politicos como forma de rea- bilitagio social. Entretanto, faltou ressaltar que os trabalhadores ¢ escudantes foram, com o passar do tempo, muitas vezes pressionados a fazer trabalho voluntétio devido a0 rigoroso controle politico es- tabelecido nos centros de trabalho e de estudos € nos Comités de Defesa da Revolugio (CDR) Em seu trabalho, Luiz Bernardo Pericés desta: ‘cou a mancira pela qual os prisioneiros ideoldgicos foram obrigados, como punicio, a realizar trabalho nio-remunerado e obrigatério, como forma de ree- ducagao, e mostrou o contraste entre os niimeros oficiais (de 15 mil a 20 mil presos politicos entre 1964 e 1965) ¢ as cifras levantadas pelo economista Carmelo Meso-Lago (entre 50 mil a 75 mil presos politicos). © livro também revelou como foi instica- do, cm 1963, 0 servigo militar obrigatério, por trés anos, para homens de 16 a 45 anos, € de como os recrutados cram divididos em dois grupos: aqueles que eram considerados de confianga eram direc nados para o trcinamento militar, que era combina- do com trabalho produtivo voluntério, enquanto os “nio-integrados politicamente” eram destinados &s Unidades Militares de Apoio & Produgéo (Umaps), © cram obrigados a trabalhar no setor agricola como forma de prestagio do servigo militar. Entretanto, as Umaps significaram muito mais do que 0 cumprimento do servigo milicar obriga fio, j4 que diversos testemunhos? de internos rela- taram que as Umaps foram uma maneira de © go- yerno cubano controlar ideolégica e moralmente @ juventude cubana. Nesse ponto, faltou que o livro aclarasse que as Umaps acabaram por se transfor ‘mar em campos de trabalho forgados para “dissi- dentes politicos” ¢ “desviados sexuais’. Muitos jo eet Mad vens que foram considerados hippies, homossexuais, religiosos (entte ele, muitos “santeros" e testemunhas de Jeové), jovens que queriam deixar 0 pais, estudantes “depurados’ das uni versidades, além de todos 0s consi derados “anti-sociais’ foram forga- damente internados nas Umaps. O governo visava reabilité-los de sua Sconduta impr6pria” por meio do tra- balho obrigatério no campo ¢ utili zou métodos repressives para garan- tir a producio da parcela jovem da populacio considerada “desajustads’, ‘6 que acabou por significar a sua exploragio como mio-de-obra gratuita ‘A coeréncia de Che Guevara com suas idéias a respeito da construgio do “homem novo" fez. com que cle desse o exemplo ¢ realizasse imimeras vezes trabalho voluntétio, como bem mostrou Luiz Bernardo em seu livro. A politica elaborada por Che em Cuba levou-o a defender nio s6 a répida industrilizagio da ilha, mas também a expansio da revolugio como caminho para sustentar as con- quistas revoluciondrias. A concretizagao dessas aconteceu com sua saida do Ministério das Indiiscrias de Cuba para lutar pela libertagao do Congo ¢ posteriormente da Bolivia.’ No preficio da obra, Luiz Alberto Moniz Ban- deira aproximou as concepgoes de Che das de Trostki, no s6 porque Che buscou a industraliza- «io acclerada, mas por suas criticas & Unido Sovié Tica e seu apoio as revolugées no Terceiro Mundo. ‘A trajet6ria como guerrilheiro € 0 assassinato na Bolivia em 1967 transformaram a figura de Che no defensor da revoluggo permanente, que dew sua vida para expandir a Revolugéo Cubana na América Latina, A leitura do livro de Luiz Bernardo Pericés mostra que Guevara também deixou uma reflexdo relevante em suas concepgbes econdmicas, além de ser bastante atual quando pensamos nos dilemas perspectivas de sociedades em transigao do capica- lismo para o socialismo. Notas Luis Bernardo Peres, Che Gevarse 0 debate econimico om Guba (Sto Paul: Xara, 2004), Néstor Almendros 8 Orlando Jiménes-Leal, Condacta Jnpropia (Mads: Playox, 1984) ‘Outro va de Perifsrelat lua de Che ma Bolivia ver Luie Berando Peres, Che Guevara ea uta rvelaciondria a Bolivia (Gio Paulo: Xara, 1997). Novos Runos @) Ano 21 + n6 45 + 2006

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