Você está na página 1de 26

Rev. Bras.

Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 379

Inquietações Sobre a Produção do Encarceramento de

Lemos et al.
Adolescentes no Brasil
Flávia Cristina Silveira Lemos1

Adriana Elisa de Alencar Macedo2


Resumo
Fernanda Teixeira de Barros Neta3
Sabendo-se que se vive em uma sociedade, a qual está
caminhando em um processo de subjetivação pela racionalidade
securitária demandando medidas repressoras e punitivas a fim
de conter a violência e que um dos atores principais propagados
como causadores dessa violência são os jovens, sobretudo, os
pobres e negros, recaindo sobre estes medidas de
recrudescimento penal, este trabalho buscou analisar, com base
no método genealógico de Michel Foucault, as justificativas
presentes nas propostas de redução da maioridade penal. Os
aspectos mais salientes e recorrentes que justificam a redução
da maioridade penal referem-se ao fato de o ECA ser uma
legislação que não pune exemplarmente, de os adolescentes já
terem completado o desenvolvimento maturacional, e por isso,
sabem discernir o certo do errado e têm amplo acesso às
informações, e de que as medidas socioeducativas são
ineficazes.

Palavras-chave: Genealogia. Redução da Maioridade Penal.


Criminalização da Pobreza. Juventude.

Concerns about Teenagers Incarceration Production in


Brazil

1Universidade Federal do Pará,


Abstract
Programa de Pós-Graduação Knowing that we live in a society which is moving in a
Stricto Sensu em Psicologia. subjective process by securitarian rationality demanding
E-mail: flaviacslemos@gmail.com
punitive and repressive measures to quell the violence, and that
2Universidade Federal do Pará, one of the main actors propagated as causing this violence are
Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Psicologia. young people, especially the poor and black, falling on them
upsurge criminal measures. This study aimed to analyze, from
3Universidade Federal do Pará,
Programa de Pós-Graduação Michel Foucault's genealogical method, justifications present in
Stricto Sensu em Psicologia. the proposal for reduction of criminal majority age. The most
salient and recurring aspects that justify the reduction of the
criminal majority refer to the fact that the ECA is a legislation
that doesn´t punish ideally, as the teenagers had already
completed the maturational development therefore they can
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 380

discern the right from wrong, that they have broad access to
information, and that socio-educational measures are ineffective.

Keyword: Genealogy. Reducing the Age of Criminal.


Criminalization of Poverty. Youth.

1 Introdução
Segundo as autoras Scheinvar e Cordeiro (2007) a juventude se
configuraria como “um terreno movediço de conceituação”. A
adolescência – que é diferente de puberdade e de juventude é um
construto socialmente estabelecido e como tal é significado na e
pela cultura. Constatação a qual nos possibilita pensar em uma não
existência da universalidade dos conflitos adolescentes. A título
de curiosidade e que vem reafirmar o exposto acima tem se que
“A infância, a juventude e a terceira idade foram, em um primeiro
momento, fenômenos vividos pela aristocracia e a burguesia.
Somente depois foram vivenciados pela classe trabalhadora”
(CASTRO; GUARESCHI, 2007, s/p). Logo, assinalam para o fato
de a adolescência ser um acontecimento histórico e cultural
engendrado por essas práticas culturais.

As autoras Coimbra, Bocco e Nascimento (2006) defendem a


ideia de que o conceito de adolescência serve aos propósitos de
homogeneização e padronização das práticas sociais e dos modos
de existência, ao afirmar a crítica do conceito de adolescente como
uma fase universal e histórica do desenvolvimento humano.
Contudo, a visão a-histórica de universalidade é propagada e está
presente nos documentos, nas políticas, nas práticas e nos
discursos em boa parte das teorias psicológicas, ao instituírem
determinadas características enquanto inerentes a essa fase da
vida, pelas quais todos nós supostamente passaríamos de forma
similar. Há um modelo que dita como se deve passar por essa
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 381

etapa; se fugiu a ele há um desvio, uma anormalidade. Esses


pressupostos são encontrados nas teorias desenvolvimentistas que
ainda são bastante utilizadas pelo saber psicológico.

O que aqui está sendo exposto tem o objetivo de problematizar e


de lançar luz sobre quanto se pode cair em um campo
normalizador e normativo ao criar a identidade “ser adolescente”;
sobre quanto produzimos e legitimamos o engessamento da
adolescência, afinal, pressupõe-se que haja um jeito correto de ser
e estar no mundo; pressupõe-se a adolescência como um momento
de definição, de constituição da personalidade. É muito corrente a
ideia de que, passada essa etapa decisiva, o sujeito vai seguir um
ou outro caminho e, assim, encerrar sua subjetividade, tomada
aqui como algo estanque, bem como a noção de que as
características da adolescência passariam por certa sintomatologia
(rebeldia, transgressão, consumismo, entre outras). E recairíamos,
então, na concepção naturalizada, individual e interiorizada de
sujeito.

Será mesmo que um adolescente de classe média, estudante de


escola particular vivencia a mesma adolescência de um menino
morador da periferia dos centros urbanos, que trabalha e estuda
em escola pública ou a de um menino morador das comunidades
ribeirinhas amazônicas? Ou ainda, os conflitos e as preocupações
de um jovem internado em uma medida socioeducativa são
similares aos de um que não se encontra na mesma situação? É
importante questionar se, independentemente da faixa etária, nós
vivemos e sofremos e nos subjetivamos da mesma forma. É
preciso saber de quais jovens estamos falando, como eles se
expressam e vivem, não tendo um a priori desses. Nós somos um
devir, estamos em todo momento, nos constituindo e nos
modificando, sendo atravessados por diversos vetores de
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 382

subjetivação.

Após esse primeiro momento, as inquietações caminharam no


sentido de perceber que os jovens, em especial os que estão à
margem da sociedade em um processo de exclusão social, a
exemplo dos que estão nas medidas socioeducativas, são sempre
vistos sob o prisma negativo. Exemplo disso é o vínculo
propagado entre essa população e a delinquência. Vale fazer o
adendo de que não está se falando de qualquer juventude
(GONÇALVES, 2005). Fala-se da pobre. Castro e Guareschi
(2007) acrescentam que na modernidade, a infância e a juventude
foram consideradas estágios perigosos e frágeis da vida dos
sujeitos, tendo como consequência a probabilidade de estes virem
a contrair doenças do corpo e da mente, como perversão sexual,
preguiça, delinquência, uso de tóxicos, etc.

O adolescente é visto como adolescente em potencial; ele pode ser


moldado para o bem (produtividade econômica, obediência e
docilidade) ou para o mal (delinquência). Tido como um ser que
está em processo de desenvolvimento, passando a noção de
evolução para um fim, e que ainda não tem todas as faculdades
mentais, morais e cognitivas formadas; ao adolescente, conforme
o ECA e o artigo 228 da Constituição Federal de 1988 é-lhe dado
a inimputabilidade penal.

2 Desenvolvimento
2.1 Da situação irregular à proteção integral

A fim de iniciar a análise sobre o tema, faz-se necessário um breve


retrospecto das legislações e políticas dirigidas para a juventude,
desde a Primeira República até a atualidade. A preocupação com
as crianças e os jovens que teimavam em ter a rua como sua
moradia e os pequenos delitos como seu modo de sobrevivência
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 383

não é novo no processo histórico de formação da sociedade


brasileira. Os corpos que desviam e escancaram a crueldade da
miséria, das desigualdades sociais e do não acesso ao mercado de
trabalho e de consumo é reatualizado a cada modo de produção.
Bem como, as práticas eugenistas e higiênicas a eles direcionadas
também ganham novas configurações.

Do século XIX até finais do século XX – época da promulgação


do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – a legislação
voltada para as crianças e para os adolescentes era de cunho
coercitivo destinado aos “menores” e não a todas as crianças e
adolescentes. Prova disso foi a criação dos Códigos de Menores
(1927 e 1979), os quais regularam famílias, crianças e jovens que
não viviam sob os modelos hegemônicos forjando a categoria
“menor” que, segundo Scheinvar (2002) “é um símbolo da
exclusão”. A utilização desse termo, conforme a ideia defendida
por Londono (1991) evidencia preocupação com a preservação da
ordem social ameaçada por essa infância abandonada exposta aos
perigos da rua e das más companhias.

Doutrina da Situação Irregular embasou a construção dos dois


códigos de menores, o de 1927, Código de Mello Mattos, e o de
1979. Era utilizada a expressão Menor em Situação Irregular no
quais eram enquadrados os “menores” abandonados, delinquentes
ou carentes. Esse código culpabilizava as próprias crianças e
adolescentes, sobretudo aquelas vindas das camadas mais pobres
da população, pela sua situação de abandono, violência e
marginalização. Por situação irregular, depreende-se que há uma
vida regular e certa. Neste sentido, a infração cometida pelos
“menores” que estão na marginalidade social é uma situação
irregular.
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 384

Além disso, previa que esses menores seriam alvo da tutela do


Estado, o qual criou mecanismos para atuar diretamente nos
núcleos familiares, caracterizados por uma intervenção ativa no
controle da população “carente”: a suspensão do pátrio poder do
pai ou da mãe que “por abuso de autoridade, negligência,
incapacidade, impossibilidade de exercer o seu poder”, faltasse
“habitualmente” ao cumprimento dos deveres paternos (RIZZINI,
2011, p. 134).

Todo um estigma foi tecido em nome da defesa da sociedade ao


pensar que criança e adolescentes nas ruas se tornariam futuros
criminosos e vadios que impediriam o progresso da nação e
comprometeriam a saúde e o desenvolvimento do país. Dentre os
esforços para definir políticas sistemáticas de intervenção, com o
intuito de "recuperar" e "reintegrar" os jovens “desvalidos” e
“infratores” ao meio social, foi fundado o Serviço de Assistência
do Menor (SAM), em 1942. Este foi uma política estatal mais
intervencionista, que freou um pouco a noção liberal que
dominava as políticas assistencialistas na República Velha, visto
que no código de 1927 as ações eram dispersas em instituições
filantrópicas, privadas e algumas poucas públicas e destacava-se
o papel do Juízo de Menores. O SAM propunha centralizar a
assistência em um órgão a fim de controlar e sistematizar as ações.

Junto a ele surgem os reformatórios, que abrigavam em regime


disciplinar classificados como "menores delinquentes". A
estrutura dos reformatórios era análoga ao do sistema
penitenciário. A disciplina e o trabalho eram os meios empregados
para corrigir condutas que respondiam a defeitos morais. Os
idealizadores e defensores do SAM acreditavam que o modelo
repressivo faria extinguir a criminalidade. Entretanto, as crianças
e os adolescentes autores de atos infracionais que chegavam ao
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 385

Juizado eram considerados delinquentes natos, indivíduos de má


índole e dotados de alto grau de periculosidade. Desde aqui já se
nota aspectos da recente história brasileira de urbanização das
cidades, como a excessiva mão de obra de reserva advinda do
processo de imigração europeia e dos ex-escravos, agora libertos,
e a ausência de políticas de geração de emprego, renda e moradia,
juntamente com ações que fugissem ao modelo caritativo, não
foram levadas em consideração.

As instituições corretivas, sob o manto de uma proposta


pedagógica adaptacionista, ou, mais tarde, reabilitadora, apenas
institucionalizavam a exploração da mão de obra de crianças e
adolescentes pobres, inviabilizados pela lei. Nos trabalhos de Irma
e Irene Rizzini (2011) são citadas as representações sociais
negativas que o SAM obteve – “escola do crime”, “fábrica de
criminosos”, “sucursal do inferno”, “fábrica de monstros morais”
são apenas alguns dos exemplos. Tal visão assinalou a falência
dessa política e vislumbrou a emergência de outra.

Com o Golpe Militar de 1964, aquele foi extinto, instituindo-se,


de fato, a intervenção pública sobre crianças e adolescentes por
intermédio da Política do Bem-Estar do Menor (PNBEM) e,
posteriormente, do Código de Menores (1979). Partindo-se do
princípio de que o "menor" com conduta antissocial era
considerado um ser "doente", que necessitava de "tratamento", a
ação corretiva da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
(Funabem), criada em 1964, fundamentou-se em métodos
terapêutico-pedagógicos desenvolvidos com a finalidade de
possibilitar a "reintegração" do "menor" à sociedade (Faleiros,
2011).
A FUNABEM voltava-se para a utilização de políticas de
prevenção capazes de evitar que esse incorresse no processo que
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 386

levaria à marginalização, na medida em que a marginalidade


representava um fator de risco para a ordem e a paz social. Assim,
por meio desta instituição, o infrator teria acesso a um modelo
educativo não repressivo. Todavia, apesar dessa abordagem
messiânica e de uma proposta pedagógica, o país passava pela
ditadura militar, período no qual autoritarismo mesclado com
situações de tortura, abusos e maus-tratos fazia parte do cenário
brasileiro, inclusive, nas casas corretivas.
Na sociedade, de forma generalizada, imperava o discurso de
segurança nacional e da presença do inimigo interno, presente no
enquadramento do adolescente autor de ato infracional nessa
categoria. Para Migliari (1993, p. 171), a FUNABEM “serviu ao
propósito de disseminar, por todo o território brasileiro, a
ideologia determinada pelos Objetivos Nacionais Permanentes da
Doutrina de Segurança Nacional, subjacente às ações dos
governos militares [...]”. Karam (2009, p. 150) nos fala da sua
concepção de inimigo como quem “assume o perfil de estranho à
comunidade, a quem, por sua apontada ‘periculosidade’, não se
reconhecem os mesmos direitos das pertencentes à comunidade, e
que, desprovidos de dignidade e de direitos, perde a qualidade de
pessoa, tornando-se uma não pessoa”.
Em síntese, a lógica menorista, que fundamentou as legislações
anteriores, tem sido produzida no Brasil, desde a Primeira
República, com a difusão do pensamento higienista e da
antropologia criminal no país. As práticas dos higienistas e dos
criminalistas do final do século XIX produziram, no interior das
classes populares, a distinção entre os “pobres dignos” – isto é,
aqueles que trabalham e conseguem preservar a família unida,
ainda que sobrevivendo com parcos recursos; – e os “não dignos”
– aqueles que se encontravam “perdidos nos caminhos viciosos”
da vagabundagem, alcoolismo e delinquência.
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 387

Em meados na década de 1980 – momento no qual os movimentos


sociais fervilhavam no país e no mundo visando mudanças
políticas pelo fim da ditadura, pela criação da constituição federal;
lutas por direito a ter direitos (por exemplo, direito à saúde) –
propõe-se outro modo de olhar, assistir à infância e à juventude.
A luta pelos direitos da criança postos é posta em evidência por
algumas organizações – Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua; Pastoral do Menor, ONGs – e por pressões
internacionais como Regras de Beijing (1985), Diretrizes de Riad
(1988) e Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das
Crianças (1989) da qual o Brasil é signatário. Tais movimentos se
articularam, em uma aliança denominada Fórum dos Direitos da
Criança e do Adolescente – Fórum DCA.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de
13 de julho de 1990, que consistiu na regulamentação do artigo
227 da Constituição Federal de 1988, é o instrumento legal, em
consonância com as diretrizes internacionais, que consolida os
direitos constitucionais, estabelecendo o caminho para a
intervenção popular nas políticas de assistência, e traçando as
diretrizes da política de atendimento: criação de conselhos
municipais, estaduais e nacionais dos direitos da criança e do
adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em
todos os níveis, assegurando-se a participação popular por meio
de organizações representativas, segundo leis federais, estaduais e
municipais.

O ECA está baseado no princípio da Proteção Integral da infância,


não fazendo distinções econômicas ou sociais, ou seja, esse
estatuto aplica-se a todos os menores de dezoito anos e essa
legislação implica o Estado, a Família e a Sociedade no processo
de fazer cumprir os direitos que nela estão legitimados. Tal
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 388

legislação, ainda que mantenha resquícios de uma perspectiva


assistencialista, inaugura uma posição jurídica importante: “[...] a
de dirimir a suspeita sobre os empobrecidos”. Ainda que
estabeleça certo vínculo entre pobreza estrutural e medidas
estatais assistencialistas, o Estatuto é o instrumento que, em tese,
despenaliza a pobreza (OLIVEIRA, 1999, p.77); ou, como
comenta Scheinvar (2002, p.11) “[...] um de seus focos é a
descriminalização da pobreza”.

Para os adolescentes autores de ato infracional está prevista no


título III do Estatuto (Da Prática de Ato Infracional) a aplicação
das denominadas medidas socioeducativas: advertência;
obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade
(PSC); liberdade assistida (L.A); semiliberdade; e as medidas de
internação. No que se refere à aplicação dessas medidas aos
adolescentes em conflito com a lei, na faixa etária dos doze aos
dezoito anos, são-lhes conferidos a inimputabilidade penal, e o
Estatuto prioriza a convivência comunitária e a liberdade, por isso,
ressalva a internação como uma medida de privação de liberdade
que deve estar “[...] sujeita aos princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento” (BRASIL, 2011, p.59).

Tal como Lemos (2009, p.146), pensamos o ECA como um


dispositivo que “[...] representa o resultado de lutas e embates de
forças que se imbricam em uma rede de relações de demandas e
reivindicações [...]”, assim, não se trata de uma concessão de um
Estado benevolente, mas do produto de um conjunto de ações e
pressões políticas de movimentos sociais, instituições e
organismos internacionais, como foi descrito anteriormente.
Exemplo disso foi o embate de forças na formulação dessa
legislação entre estatistas e menorista. Vale ressaltar, ainda, que
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 389

ele não deve ser tomado como um documento que não deva ser
alvo de questionamentos e de releituras críticas e
contextualizadas.

Recentemente, uma nova legislação que dispõe sobre o


atendimento socioeducativo entrou em vigor no panorama
brasileiro, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE). Apesar de ser fruto de uma construção coletiva com o
Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente) desde 2006, apenas em fevereiro de 2012 foi
sancionado, aprovado com valor de lei. Este é: “o conjunto
ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico,
político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve
desde o processo de apuração de ato infracional até a execução da
medida socioeducativa” (SINASE, 2006, p.22).

Essa política encontra-se atrelada aos demais componentes do


Sistema de Garantia de Direitos (SGD) – Sistema Educacional;
Sistema de Justiça e Segurança Pública; Sistema Único de Saúde
(SUS); o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) – no intuito
de deflagrar a incompletude institucional, a fim de promover o
atendimento integral do sujeito mais próximo da comunidade. O
SINASE vem validar cada vez mais os princípios e pressupostos
do ECA ao afirmar a natureza, sobretudo, pedagógica das medidas
socioeducativas, priorizando aquelas em meio aberto. Somando-
se a isso, lança diretrizes de como proceder a um atendimento
mais singular a cada adolescente ao propor que seja feito um plano
individual de atendimento (PIA) e de diretrizes arquitetônicas e de
funcionamento das unidades de internação.

Neste ensejo, é pertinente estar atento à contextualização dessas


políticas no contexto maior de mundialização, de políticas de
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 390

segurança repressiva, de criminalização da pobreza – cenário em


que o jovem pobre desponta como um problema social, ocupando,
majoritariamente, a posição de autor da violência que não a de
vítima nos holofotes midiáticos.

2.2 Ressonâncias da política punitiva encarceradora no


contexto da juventude brasileira

A gestão dos denominados indesejáveis e dos perigosos fomenta


discursos e práticas de encarceramento precoce, em nome da
defesa social e da garantia de direitos, caminhando lado a lado
com a diminuição de investimento em políticas sociais. Sobre esse
movimento de desinvestimento nas políticas públicas sociais e,
em contrapartida, investimento maciço na política de
encarceramento, Loic Wacquant (2003), no livro Punir os Pobres
– A nova gestão da miséria nos Estados Unidos mostra que se vive
sob a égide da produção da sociedade penal, com base em
demandas punitivas. Há um movimento crescente de penalização
dos pequenos desvios e das pequenas condutas, em que, a inflação
carcerária rotineira e indiscriminada não reflete efetivamente um
crescimento da criminalidade.

Os efeitos de uma política de Tolerância Zero que combate as


mais irrisórias infrações embasadas por uma teoria das janelas
quebradas são mais devastadores e nocivos num país como o
Brasil, marcado pela herança de quase quatrocentos anos de
escravidão, por uma proclamação da república que não contou
com a participação popular, por uma república que já teve dois
momentos ditatoriais – Estado Novo e Ditadura Militar, e por um
neoliberalismo no qual se evidencia o estado penal.

As ideias da Política de Tolerância Zero são apresentadas no livro


de Benoni Belli intitulado Tolerância Zero e Democracia no
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 391

Brasil. Nele, o autor discorre que tais políticas surgiram em Nova


Iorque a fim de gerir o crime e a criminalidade e que têm sido
reaplicadas em outros países, como o Brasil, como modelo exitoso
de contenção dos distúrbios sociais e controle dos espaços da
cidade. Tal política, alicerçada na teoria das janelas quebradas,
entende que a mínima infração não deve ser tolerada, para evitar
que crimes mais graves aconteçam.

Com o avanço da lógica punitiva a palavra de ordem é conter.


Conter a população insatisfeita e desempregada; conter os corpos
em todos os níveis; conter o desequilíbrio e a discrepância social
– a qual afeta a sociabilidade. É interessante perceber o jogo que
o Estado promove, ele produz “os males” e depois age em cima
deles. Em uma sociedade dita democrática nunca se viu tamanha
hiperinflação carcerária, encarceramento este, seletivo.

Diante desse cenário de política estatal de criminalização das


consequências da miséria de Estado, tem-se a transferência dos
investimentos nos poucos serviços sociais existentes em
instrumentos de vigilância e controle das novas “classes
perigosas” – termo cunhado por Morel (1857) no bojo de teorias
racistas e eugênicas. Assiste-se à radicalização da política
punitiva. Não somente se assiste como se clama por ela; e um
exemplo disso na sociedade brasileira é o burburinho e a polêmica
causados pelo assunto do rebaixamento da idade penal para os
adolescentes. Em nossa sociedade o pareamento jovem em
situação de conflito com a lei e periculosidade é a tônica. Segundo
Batista (2009, p.96):

O neoliberalismo trouxe outra vez a juventude para o


centro das atenções criminológicas, ao mesmo tempo
em que o fim das ilusões do pleno emprego
keynesiano, a descartabilidade da mão de obra e a
supremacia da ideologia do mercado configuram de
outro modo a visão dessa etapa da vida como
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 392

problema. A destruição das políticas públicas e a falta


de perspectivas de trabalho em contraste com a
energia juvenil fizeram com que grandes contingentes
de crianças e adolescentes passassem a ser ‘tratados’
pela lógica penal.

A autora contextualiza a juventude (pobre) como um segmento no


qual a agenda pública dá visibilidade perene ao jovem como
problema, sinalizando, ainda, a associação dela com a
criminalidade, a periculosidade, o risco e a condição de não
humanidade. Para Foucault (1996, p.85):

Assim, a grande noção da criminologia e a penalidade


do final do século XIX foi o escandaloso conceito, em
termos da teoria penal, da periculosidade. A noção de
periculosidade significa que o indivíduo deve ser
considerado pela sociedade ao nível de suas
virtualidades e não de seus atos; não ao nível das
infrações efetivas a uma lei também efetiva, mas das
virtualidades do comportamento que elas
representam.

Este excerto vai de encontro ao que a legislação do direito penal


de Beccaria propunha – o princípio fundamental dissertava que só
haveria punição quando houvesse a infração de uma lei explícita.
No entanto, a noção de periculosidade dá margem para que o
panoptismo, o qual se funda na vigilância das virtualidades, não
só emerja como também floresça. A impressão dominante é que a
periculosidade se remete à quantidade de “mal” que o sujeito traz
em sua essência, trazendo a reboque também, a noção de
delinquência como característica intrínseca definidora do sujeito
como criminoso, independentemente do cometimento do ato em
si. É o criminoso em potencial; assim, o crime adentra no campo
da previsibilidade. Essa concepção é tão recorrente que ainda
predomina o julgamento baseado no direito penal do autor ao
invés do direito penal do fato; pune-se o sujeito, sua biografia ou
quem ele poderá vir a ser, e não o delito.
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 393

Risco e perigo são entrelaçados na sociedade securitária na qual


nos encontramos, que busca se assegurar contra os perigos
virtuais, logo, nós nos subjetivamos pelo binômio proteção-risco.
Tudo se torna em risco; cálculos estatísticos são feitos a fim de
tentar quantificar e controlá-lo. Lemos, Scheinvar e Nascimento
(2010, p.8) atenta-nos para o uso político da noção de risco ao
dizer que “a inflação dos riscos é concomitante à intensidade de
demanda pela segurança da população”. Topamos tudo para
vivermos longe de riscos, perigos.

A fim de esquadrinhar e controlar são forjados os nomeados


“grupos de risco”, sobre os quais recaem a fabricação dos
estigmas e o controle social de cunho moral. Não é à toa que as
classes populares continuam a figurar como suspeitas, diante dos
dispositivos de poder-saber, que continuam atribuindo a elas uma
natureza mais suscetível à degradação moral. A pobreza, de algum
modo, sempre foi criminalizada; não é incomum encontrarmos a
divisão entre os pobres dignos (trabalhadores e seguidores da
moral e dos bons costumes), tido como vulneráveis, sob os quais
incidem o controle social constante, e os pobres viciosos, a que
lhes restam supostamente medidas coercitivas, o encarceramento
e o ostracismo social. A categoria risco atua como um paradigma
articulador da relação com os jovens – desconstruir a centralidade
do jovem como problema ou ameaça. Há uma panaceia de riscos
a qual fomenta práticas discursivas de proteção e controle
generalizadas. O risco permite burlar a própria lei.

É veiculado que os jovens são violentos, que as medidas


socioeducativas do ECA assinalam para uma impunidade e que
para nos protegermos é melhor que eles estejam confinados em
um lugar onde não possamos vê-los nem nos preocuparmos com
riscos, pois, agindo sobre o agente causador extirparemos a
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 394

violência. É ilusão acreditar que o problema do crime, da violência


possa ser trancafiado atrás das grades, juntamente com o sujeito
que foi preso. Contudo, tal pensamento ganha destaque na
sociedade contemporânea, na qual há o mecanismo de poder
chamado biopolítica. Para Foucault (2012) esse mecanismo de
poder incide sobre a espécie humana, sobre o uso político e
histórico da vida. Em primeiro lugar, busca-se garantir a vida da
maioria da população, defender a sociedade. O próprio Estado tem
como princípio norteador essa garantia da vida, todavia, e aí se
tem um paradoxo, em defesa da vida de alguns, deixa-se morrer
ou matam-se outras vidas. Há uma gestão calculista da vida.

Nessa forma de regulação, de controle e de governo protege-se


uma parcela populacional maior da sociedade em detrimento de
outras. Ante ao clamor da sociedade brasileira por uma volúpia
punitiva, tem-se a defesa da proteção de grande parte da
sociedade, a qual se sente amedrontada e ameaçada pela “onda de
violência juvenil”, e o consequente menosprezo, extermínio e
punição daqueles tidos como causadores da desordem, e do caos
que tiram a paz e a tranquilidade dos “cidadãos de bem”.

Neste sentido há a construção de toda uma retórica sobre a


“monstruosidade do criminoso”, sua “incorrigibilidade” e a
“salvaguarda da sociedade”. Não é à toa que “são mortos
legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo
biológico para os outros” (FOUCAULT, 2012, p.150). Em nome
da vida de alguns, deixa-se que outros morram. E essa morte pode
ser física, simbólica, social. As denominações: “monstruosidade
do criminoso”, “incorrigibilidade” e “salvaguarda da sociedade”
são postas a fim de legitimar o discurso de pena capital,
identificando aqueles que poderão ser matáveis, em favor da
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 395

sociedade, na tecnologia biopolítica. Tais ideias estão presentes


no livro História da Sexualidade I – a vontade de saber.

Os discursos de proteção/prevenção andam lado a lado com


discursos e práticas que preveem penas mais duras.
Encarceramento em nome da proteção e em nome da vida. Essa
constatação deveria soar estranha, ao menos incomodar, se grande
parcela da população não estivesse despolitizada. É mais difícil
transformar quando a gente enquadra. Para gerir a insatisfação da
sociedade produziram-se instrumentos de controle social, como o
encarceramento maciço e indiscriminado e a manipulação da
insegurança e do medo. Neste cenário neoliberal a própria
violência, o monopólio estatal da violência, passa a ser uma
estratégia, justificando medidas como as de RMP.

Como nos assinala Lancetti (1989, p.80): “Há muitas formas de


prevenção sempre sob o argumento de preservar a vida. Às vezes,
purificando o espaço urbano, outras salvando almas, outras
normatizando práticas familiares, corporais e de trabalho”.
Scheinvar e Cordeiro (2007, p.4) nos dizem que “a produção do
chamado risco tem redundado no controle das pessoas e não dos
fatores que determinam tal condição”. O rebaixamento da
maioridade penal/os jovens/e os riscos configuram num trinômio
no qual a pena incide sobre os corpos juvenis, mas nem sequer
cogita as condições de vida desses jovens como um risco. A
internação é a opção devido o risco que o jovem representa para a
sociedade; que tal inverter essa lógica e nos questionarmos se e a
sociedade, por acaso, nunca representou risco para ele?

As mesmas autoras ainda complementam a ideia ao alertar que


“As análises sobre as condições sociais, sobre o contexto sócio-
político são claras, mas as propostas de intervenção não as
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 396

consideram, pois agem em cima de pessoas exigindo delas


mudanças e, assim, responsabilizando-as pela possibilidade de
transformação de sua situação” (SCHEINVAR; CORDEIRO,
2007, p.11). Ou ainda, “opera-se uma estratégia de correção dos
corpos, sem incidir no contexto que os produz”.

É a isso que se propõe a RMP. Ela atua como uma ortopedia social
pelo fato de que não deslocamos o olhar para os adolescentes em
situação de conflito com a lei, limitamo-nos a criar mais aparelhos
de vigilância, mais punição, mais instituições pedagógico-
corretivas. A RMP atua como exclusão com a reclusão anterior
dos adolescentes. Enquanto certos estigmas como “perigosos”,
“irrecuperáveis”, “incorrigíveis” continuarem recaindo sobre esse
público, as práticas permanecerão as mesmas, com uma viseira,
apolíticas, reforçando estratégias individualizantes, coercitivas.

Essa proposta ganha solo fértil e adeptos em um cenário de


recrudescimento das formas de controle, de punição e das penas;
enrijecimento penal. Face à proposta de propagação da
avassaladora onda de crimes perpetrados por adolescentes; pelos
sentimentos de insegurança e medo; por tomar a questão de
maneira individualizada e corporificada, pedimos soluções de
urgência, baseadas na lógica judicializante e criminalizante da
vida; não desejamos nos preocupar com as condições de vida do
outro, ou se vamos ferir os direitos humanos, aliás, eles são
humanos?

Antes de cometer algum crime, esse segmento populacional tem


uma origem geográfica, social e racial definida, nos causa temor
pelo seu “vir a ser”, pelo ambiente/meio social que ocupa (produz-
se a periferia como um lugar perigoso) ou pela família
desestruturada que tem; quando cumprem o que já esperávamos
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 397

deles, os queremos mais longe possível dos nossos olhos,


tratando-os como a escória da população (BOCCO, 2008, p.132).
Um ator que contribui para essa visão simplista é a mídia.

Há espetacularização da violência juvenil promovida por ela


mediante estatísticas alarmantes e impactantes. Tais
acontecimentos são divulgados como entretenimento, de forma
banalizada, sugerindo a produção do medo e da insegurança. E o
medo, entendido como uma tática política virou pretexto para
destruir a liberdade e criminalizar a população pobre; por sua vez,
o capital aufere lucro dessa produção desenfreada do medo. As
citações a seguir sinalizam como esse quarto setor vem se
presentificando na vida de cada indivíduo e da população.

O medo sentido pela cultura dirigente criou uma


mentalidade obsidional, cuja lógica interna de
suspeita superdramatiza e demoniza tudo o que não
faz parte do sagrado oficial. Um dos elementos
constitutivos desse tipo de mentalidade é a ideia de
que o traidor de dentro é pior que o inimigo de fora,
além de estar ao alcance da mão (BATISTA, 2009,
p.92).

No Brasil, país que congrega aspectos da sociedade de controle


(DELEUZE, 1992), os meios de comunicação passam a ser
dispositivos de controle social e de prescrição de modos de ser,
viver e existir. O emparelhamento mídia-neoliberalismo-mercado
não deixa dúvidas sobre a seletividade das notícias que serão
veiculadas. É um poder punitivo onipresente e capilarizado. No
tocante a essa temática, duas considerações se fazem necessárias.
A primeira remete ao fato de que o olhar de criminalização
lançado ao jovem pobre permanece e tem continuidade através
dos tempos. Somos constantemente subjetivados pela figura do
jovem-violento-criminoso e invisibilizamos o jovem-
criminalizado-violentado (BOCCO, 2008).
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 398

A segunda consideração a que somos convidados a estranhar é em


relação à frequência com que propostas desse tipo ganham
notoriedade e alcance da sociedade, tendo em vista que, como se
sabe, essa mesma proposta é inconstitucional, pois a alteração no
artigo 228 propõe a abolição dos direitos e garantias individuais
dos adolescentes assegurados pela própria constituição, além do
ECA e de outras normativas internacionais, das quais o Brasil é
signatário.

Soluções individualistas para problemas coletivos se alinham com


a dinâmica da meritocracia. Infração diz respeito ao modo da
sociedade funcionar, logo, é preciso tomá-la em seu aspecto mais
amplo como salienta Bocco (2008, p.78): “a infração é, então, um
dispositivo que coloca em análise o funcionamento do
contemporâneo: a forma como lidamos com a pobreza, com o
desemprego, com a desigualdade, com a juventude, com o medo,
com a insegurança”. As propostas aqui analisadas buscam, por
meio da punição, igualar vivências desiguais pelo mote de lei e
ordem.

Um dos efeitos da RMP será a ampliação da pena de prisão, tão


falada por sua ineficácia e atestada como falida. É interessante
notar que nos momentos de crise do sistema carcerário, da prisão,
propõe-se como alternativa a essa situação ela mesma. A suposta
“solução” não é encarcerar mais cedo ou aplicar mais medidas
socioeducativas de internação, visto que devemos colocar em
análise também a pretensa “ressocialização” destinada a pessoas
que estão em um processo de marginalização crônico dentro de
um estado neoliberal. Utilizando jogo de palavras descrito por
Vicente (2007), ao invés de pensarmos em penas alternativas
temos as alternativas às penas. Já nos diria Foucault (2011) que a
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 399

prisão fabrica delinquentes, mas os delinquentes são úteis tanto no


domínio econômico como no político.

Cabe pensar, se, em uma sociedade, na qual os adolescentes antes


mesmo de serem incriminados já são, previamente,
criminalizados, será mesmo que, podendo ser condenados
precocemente eles assim não o serão? A lógica menorista ainda é
muito presente, na qual pesa termos uma legislação baseada na
doutrina de proteção integral e no entendimento da criança e do
adolescente como sujeitos de direitos.

Outro ponto, advindo daquela que se impõe é a velha conhecida


questão da formação, porém que continua sendo um gargalo. A
formação da grande maioria dos juízes e expertises que lidarão,
cotidianamente, com essas temáticas apresenta uma leitura crítica
em relação à construção cultural, política e econômica da
sociedade brasileira? A questão dos direitos humanos se faz
presente ou ainda impera o ranço positivista? Para uma pessoa
leiga, submersa pelos sentimentos de medo e insegurança,
tomada, diariamente, por uma avalanche de notícias selecionadas
acerca da violência e da criminalidade juvenil, essa proposta
parece ser bastante convidativa.

Ela visa ao recrudescimento de leis e à suspensão das garantias e


dos direitos dos adolescentes em conflito com a lei. O
rebaixamento da maioridade penal coaduna com o que Karan
(2009, p.151) nos diz acerca do autoritarismo, controle social e
poder punitivo que permeiam a realidade brasileira
contemporânea. O autoritarismo é classificado como um
autoritarismo cool, que, mantendo nas democracias as estruturas
formais do Estado de direito, não se revela aos olhos distraídos da
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 400

maioria. Voltada para seus cegos anseios de segurança, essa


maioria aprova e aplaude os avanços do poder punitivo.

3 Considerações Finais

Do mesmo modo, produz-se o objeto delinquência juvenil e,


seguindo a lógica acima, por meio da proposta de rebaixamento
penal, estamos prevendo a construção de mais instituições de
medidas de internação, as quais, análogas às estruturas e ao modo
de funcionamento das penitenciárias, têm seu sucesso garantido,
isto é, já tem seu público se multiplicando acintosamente. Isto é
dito, visto que as práticas discursivas de saber-poder são correlatas
à criação de instituições. O chamado circuito da vida do menor
que vai da marginalidade ao crime, deste ao recolhimento e à volta
ao crime, culminando na prisão ou morte por enfrentamentos entre
si e com as autoridades, tem de ser rompido. O problema também
é seu.

O problema é seu, meu e nosso não pela promoção da verborragia


dos discursos de lei e ordem, mas sim, por descentralizar a
responsabilidade da figura unicamente do Estado e se implicar
eticamente nessa temática. Não é possível que seja, docilmente,
aceito o fato de que uns são mais matáveis, mais descartáveis que
outros. Convém ressaltar que, diante desse cenário, também há
produções de resistências e de linhas de fuga, caso contrário não
estaríamos debatendo acerca dessa temática por quase vinte anos.
Diversas entidades – Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia
Brasileira; Conselho Federal de Psicologia; CONANDA;
UNICEF; Fundação ABRINQ; Pastoral da Criança; Movimento
de Educação Popular; Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua; Fórum Nacional de Direitos das Crianças e
Adolescentes; entre outros – e parlamentares já se pronunciaram
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 401

contrários à redução da maioridade penal, empreendendo


esforços, embates, lutas e estratégias políticas.

Enveredando para o fim deste trabalho neste momento de


conclusão de curso, não para o esgotamento da discussão
levantada por essa temática, deixo a reflexão do Luís Antônio
Baptista acerca dos amoladores de faca da nossa sociedade. É
interessante perceber quanto a nossa atuação, seja com nossas
práticas, nossos discursos, com a produção de documentos, com
propostas de emendas constitucionais, com o silenciamento e com
a complacência seguem a linha dos amoladores de faca. Quantas
ações e/ou palavras produzem de potência ou de mortificação dos
corpos de jovens brasileiros, pobres, negros e de baixa
escolaridade.

Referências

BAPTISTA, L.A. A atriz, o padre e a psicanalista: os amoladores


de faca. In: BAPTISTA, L.A. Cidade dos sábios. São Paulo:
Summus, 1999.

BATISTA, V.M.A juventude na criminologia. In: BOCAYUVA,


H.; NUNES, S.A. (Org.). Juventudes, subjetivações e violências.
Rio de Janeiro: Contracapa, 2009, p.91-100.

BENEVIDES, R. Clínica e social: polaridades que se


opõem/complementam ou falsa dicotomia? In: RAUTER, C.;
PASSOS, E.; BENEVIDES, R. (Org.). Clínica e política:
subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Te
Cora, 2002, p. 123-140.

BOCCO, F. Cartografias da infração juvenil. Porto Alegre:


ABRAPSO SUL, 2008.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: Senado


Federal, 2002.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: Senado


Federal Subsecretaria de Edições Técnicas, 2011.
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 402

CASTRO, A.L.S.; GUARESCHI, P.A. Adolescentes autores de


atos infracionais: processos de exclusão e formas de subjetivação.
Psicologia Política, v.13, n.1, 2007.

CFP. Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas (os) em


Programas de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. Crepop.
2012.

COIMBRA, C.; BOCCO, F.; NASCIMENTO, M.L. Subvertendo


o conceito de adolescência. Arq. Bras. Psicol., v.57, 2006.

COIMBRA, C.M.B.; NASCIMENTO, M.L. Jovens pobres: o


mito da periculosidade. In: FRAGA, P.C.F.; IULIANELLI, A.S.
(Org.). Jovens em tempo real. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 19-
37.

DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle e


conversações. Rio de Janeiro, 1992.

FALEIROS, V.P. Infância e processo político no Brasil. In:


RIZZINI, I.; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a
história das políticas sociais, da legislação e da assistência à
infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 33-96.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro:


Nau, 1996.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber.


São Paulo: Graal, 2012.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2011.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões.


Petrópolis: Vozes, 2005.

GONÇALVES, H.S. Juventude brasileira, entre a tradição e a


modernidade. Tempo Social: Rev. Soc. USP, v.17, n.2, p.207-219,
2005.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do


desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.

KARAM, M.L. Controle social e criminalizações. In:


BOCAYUVA, H.; NUNES, S.A. (Org.). Juventudes,
subjetivações e violências. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009, p.
147-158.
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 403

KOLKER, T. A atuação dos psicólogos no sistema penal. In:


GONÇALVES, H.S.; BRANDÃO, E.P. (Org.). Psicologia
jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Nau, 2010, p.157-204.

LANCETTI, A. Prevenção, preservação, e progresso em saúde


mental. In: LANCETTI, A. (Org.). Saúde e loucura.1. São Paulo:
Hucitec, 1989, p. 75-89.

LEMOS, F. O Estatuto da Criança e do Adolescente em discursos


autoritários. Fractal, Rev. Psicol., v.21, n.1, p.137-150, 2009.

LEMOS, F.C.S.; SCHEINVAR, E.; NASCIMENTO, M.L.


Crianças e jovens em risco? Psicologia e Sociedade, 2010.

LONDONO, F. T. A origem do conceito menor. In: PRIORE, M.


D. (Org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto,
1991.

MIGLIARI, M.F.B.M. Infância e adolescência pobre no Brasil:


Análise social da ideologia. 1993. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) – Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro,
1993.

NASCIMENTO, M.L.; MANZINI, J.M.; BOCCO, F.


Reinventando as práticas psi. Psicologia e Sociedade, v.18, n.1,
p.15-20, 2006.

NASCIMENTO, M.L.; SCHEINVAR, E. Infância: discursos de


proteção, práticas de exclusão. Estudos Pesq. Psicol., v.5, n.2, p.
51-66, 2005.

OLIVEIRA, S. A moral reformadora e a prisão de mentalidades:


adolescentes sob o discurso penalizador. São Paulo Perspec.,
v.13, n.4, p.75-81, 1999.

PASSETTI, E. O que é menor. São Paulo: Brasiliense, 1985.

RAGO, M. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo


Social: Rev. Sociol. USP, v.7, n.1/2, p.67-82, 1995.

RIZZINI, I. Crianças e menores: do pátrio poder ao pátrio dever:


um histórico da legislação para a infância no Brasil. In: RIZZINI,
I.; PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das
políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil.
São Paulo: CORTEZ, p.97-149, 2011.

RIZZINI, I. Meninos desvalidos e menores transviados: a


trajetória da assistência pública até a Era Vargas. In: RIZZINI, I.;
Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2015(13):379-403 404

PILOTTI, F. (Org.). A arte de governar crianças: a história das


políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no
Brasil. São Paulo: CORTEZ, p.225-286.

SALES, M. A. Juventude Extraviada de Direitos: Uma crônica das


rebeliões na Febem-SP. In: FRAGA, P.C.F.; IULIANELLI, A.S.
(Org.). Jovens em tempo real. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.
188-220.

SCHEINVAR, E. Idade e proteção: fundamentos legais para a


criminalização da criança, do adolescente e da família (pobres).
In: NASCIMENTO, M.L. (Org.). Pivetes. Rio de Janeiro: 2002,
p. 83-109.

SCHEINVAR, E.; CORDEIRO, D. Juventude em “risco social”?


Dilemas e perspectivas entre as pedras das políticas públicas
dirigidas aos jovens. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL AS
REDES DE CONHECIMENTOS E A TECNOLOGIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS, COTIDIANO E CULTURA, 4.,
2007, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2007.

SINASE, 2006. Disponível em:


http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/sala-de-
imprensa/publicacoes/sinase.pdf. Acesso em: 5 fev. 2015.

SOUZA, E.L.C.; BARROS NETA, F.T.; VIEIRA, E.M. Interface


do plantão psicológico e as políticas de assistência. Rev. Nufen,
v.4, p.71-82, 2012.

UNIPOP. O adolescente e as medidas socioeducativas no Estado


do Pará-Brasil: Relatório Final da Pesquisa. 2011.

VICENTE, L.M.D. P.E.C: propostas de emenda à constituição ou


processos de exclusão e criminalização? 2007. Dissertação
(Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal Fluminense,
Rio de Janeiro, 2007.

WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos


Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Você também pode gostar