ORIA
NEG
RA
4 8 13
18 23 28
Jarid
Arraes
31
S
e prestarmos atenção, conseguiremos
ouvir a respiração pesada e os batimentos lentos da
literatura brasileira que sobrevive entre abismos: gê-
neros, raças, classes sociais, ideologias...
Existe uma ordem em que ainda prevalecem au-
tores homens, brancos, heterossexuais, classe média,
nascidos no Sul e Sudeste do país.
Precisamos urgentemente romper com isso. Assim,
a Parênteses propõe espaço para a produção poética de
autoria negra nesta edição especial e espera que, além
de conhecermos estes autores e saborearmos seus es-
critos, possamos pensar, como leitores, em ações para
romper essa ordem excludente de minorias da litera-
tura brasileira
os editores
Lívia
Natália
Freudiana
No mais fundo dos homens que amo
há meu pai, com sua carne de maresias.
Ele se desenha na pele dos meus homens
como o mar inscreve, no peixe, as escamas.
(Todo corpo em que derivo absorta
tem algo de sua voz pedregosa.)
5
As mãos de minha mãe
As mãos de minha mãe são imensas
e seguram seu corpo minúsculo
como as chagas de cristo lhes se sustentam a santidade.
6
Sina
Todo mês eu sangro.
Diversa de mim,
atravesso águas brutas,
oceanos que me povoam bravios.
Expulso o que em mim excede
e, do que sobra,
algo se move lívido
pulsando nas sendas de meu ventre.
Quando sangro,
o animal onde moro troca de pele
por dentro,
expurgando entranhas.
Lívia Natália é baiana de Salvador, poeta e professora da Universidade Federal da Bahia, onde ensina
Teoria da Literatura no curso de Letras. É doutora em Literatura e Cultura e dedica-se ao estudo de
Literatura Negra Contemporânea. É autora dos livros de poesia Água negra (Prêmio Banco Capital de
Poesia/2011), Correntezas e outros estudos marinhos (2015) e Água negra e outras águas (2016).
7
Marcelo
Ariel
A história do êxtase____parte 1_____Flutuação
9
A história do êxtase_____________parte 2_____Pólen
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No Congresso Oceânico das Mulheres do Povo
O Silêncio ensurdecedor de cinquenta e quatro mil mortes negras
me trouxe de volta
Patricia Galvão: Mas o ar é irrespirável, cheiro de massacres e fascismos, por isso tentei meter aquela
bala na cabeça.
As ruas e canais
evocam a morte de uma democracia-karaokê
Os pássaros voam de propósito
contra os vidros dos arranha-céus
maquetes em tamanho real
da ausência de espírito
vidros da morte
trincados por gritos
Pagu: Mas ser mulher é algo sempre inaugural , uma insurreição mais do que uma reação, nós
não criamos o macho, ele se desfez em totalitarismos vários, crianças da noite tentarão em vão
cancelar o dia.
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A Deusa Artémis quando perguntada sobre qual oferenda a agradaria mais
respondeu ‘ Correr livre pelas matas vestida apenas com meus arcos e minhas flechas’
Patrícia Galvão: Quando não houver mais pretos e pretas dormindo nas calçadas, haverá um Brasil.
Pagu: Meu fantasma vaga sem paz, pelas ruas das favelas de Santos , Cubatão e São Vicente
como uma baleia feita de nuvens transparentes, como uma onça feita de brisa do mar, uma
secundarista chorando deitada na calçada, escreve meu nome com orvalho e sangue.
Solange Sohl: Ontem atravessamos vários corpos no meio da manifestação.
sem ter que usar armadura, podia ser menos agoniado que vinte reuniões na mesma
sem ter que antecipar resposta, semana
sem ter que aprender como dá murro e nem (com palavra de ordem / questão de ordem / contra todas
mapear o espaço antes de entrar as ordens mas organizando tudo tão igual...)
pra ver quem tá lá podia ser menos vigiado que todomundo perguntando se é
imaginar aberto ou fechado,
que ameaças eles fariam reafirmando no “mas quem come quem” os binarismo
quantos são heterocentrado,
se viram a gente, se nos seguiriam alfinetando com “ah, mas c num sabia que ela tinha namorado?”
pra mim o paraíso cuíer podia ser menos burocrático que podia ser menos tudo que dá esse cansaço, essa desesperança,
casamento igualitário regulado pelo estado essa diz-
(porque é o mesmo estado que paga confiança... pra mim um paraíso cuíer podia ser mais
a polícia, lembra?) tranquilo,
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mais respirado. podia ser eu y você num dia ensolarado (mesmo que daqui
a pouco fosse cada uma pra um lado; eu ia gostar. ah, e a parte do
pecado, essa parte eu ia gostar também)
mudado mesmo. pra mim o paraíso cuíer ia ser deitar um pouco do seu lado,
ver seu rosto dançando na fumaça, a cortina respirando sua janela,
pulmão a céu aberto: exposto, delicado,
sentir seu coração conversar com a pele do meu ouvido enquanto a noit
e vira dia y a rua esvazia o silêncio com aqueles barulho de manhã le
vantando, pássaros celebrando, vizinho cantando cedo, transporte púb
lico começando tarde (afinal, é o DF)... pra mim
um paraíso cuíer é um pouco de qualquer coisa que me traga
a calma da sua
coragem.
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a reinvenção da saudade, em trêstempo:
pra bruna
1. (ainda)
na aeronave, um susto:
em suas vaga,
aérea,
nado
2. vudu:
no aeroplano, um surto:
de saudade
do teus
beijo
área, plano…
âncoras há(gulha): a
gora boa
gouro
y fu(tu)ra (te) de
sejo.
cheia
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diástole: o banzo é da saudade que demor
a solidão
banzo é a saudade que não mor
a nesse chão banzo é
saudade que derr
ama escuridão
banzo, é?
benza
fé:
na unção
transatlântica
da função
desoceânic
a jun-
são:
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O ser
Chegou pela primeira vez
no inverno,
como se fosse um pedido meu.
Trouxe o melhor vinho.
Safra e uva, ele mesmo escolheu.
Me beijou como se me sonhasse,
me comeu como se voltasse,
me aconchegou na cama
como se me amasse.
Elisa Lucinda, poeta, atriz, jornalista, professora e cantora, Elisa Lucinda
Digno. Bonito. Lógico. Inexato
nasceu ao meio dia, de um domingo de Carnaval, na cidade de Vitória do
Conversador. Silencioso
Espírito Santo, em dia de Yemanjá. É uma das autoras que mais vendem no
Firme e terno. Brasil. Seus livros, em sucessivas edições, percorrem o país sendo lidos, in-
Dorme tranquilo ao meu lado. terpretados, encenados, enquanto seu nome figura dando títulos a biblio-
Como se fôssemos eternos. tecas e outros espaços de leitura. A carismática Elisa, que, nas palavras de
Nélida Piñon, “tem a linguagem em chamas”, possui dezessete livros pu-
blicados, dentre os quais a Coleção amigo oculto, de livros infanto juvenis,
que lhe rendeu, em 2002, o premio Altamente Recomendável (FNLIJ) por
A menina transparente. A multiartista encena e circula muito de sua obra
pelos palcos brasileiros e estrangeiros, e comemora o reconhecimento de
ser uma das escritoras que mais popularizam a poesia em nosso tempo.
Versos de Liberdade, que ensina a palavra poética aos jovens que cumprem
medidas, é um dos projetos que a sua instituição Casa Poema desenvolve,
entre cursos de Poesia Falada para todos. Seu primeiro romance Fernando
Pessoa, o cavaleiro de nada, uma autobiografia do poeta, foi finalista no
Prêmio São Paulo de Literatura 2015. Vozes guardadas reúne dois livros iné-
ditos de poesia, escritos entre 2005 a 2016.
Facebook: facebook.com/elisalucinda
Email: casapoema@casapoema.com.br
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Ray Cruz
minha consciência
é negra
não me lembro
quando percebi que sou negro
deve ter sido no colo da minha mãe
quando percebi que sou também tem aqueles que dizem
alguma coisa com fome “eu amo a sua cor”
“queria ser preto”
mas acho que percebi
o que ser negro significa todos os dias
nos primeiros anos da escola alguém julga minha pele
como se eu me importasse
todos os dias com minha embalagem
as pessoas me lembram que sou negro ou vivesse o tempo todo
será que elas acham que eu me esqueço? esperando ser discriminado
ou ser ovacionado
todos os dias alguém por simplesmente
comenta minha cor ser o que sou
fala algo sobre o meu cabelo
na maioria das vezes eu to acostumado
dizem que é feio com o medo me olhando
dentro dos carros
me aconselham a evitar e nos becos sujos
o preconceito
raspa esse cabelo duro eu to acostumado
para de tomar sol com a desconfiança
bebe menos café me examinando
eu sei que querem me embranquecer abaixo das sirenes
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eu to acostumado
com os pronomes escuros
e ai neguin, e ae negão
eu demorei um pouco
pra parar de querer
ser branco igual o Superman
o Neo, o Goku e tantos outros
heróis da infância
eu demorei um pouco
pra não me importar
com o que as pessoas
falavam e continuam a falar
conhecendo a história
descobri minha herança dia 20 de novembro
passei a apreciar é só um dia pra relembrar que
o que me ensinaram o preconceito é um vizinho psicopata
que era feio e que apesar da carne negra
ser a mais barata do mercado
comecei a sentir os tambores é ela que continua
tocando meu sangue alimentando essa nação
O trabalho braçal
Irrefletido e irracional Treze longos anos
Me torna mais um animal Na escola para
Aprender a ser
Cada pá de areia Um burro
Uma agulhada De carga
Em cada músculo
Alguém me vende
A endorfina Um emprego
Nem parece mais Pago com
Um agradecimento O resto
Pelo meu corpo ainda Da minha
Estar inteiro Vida.
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outro calo na
palma do meu olho
minha mão sangra
no cabo do próximo verso
que caleja a labuta maldita
dando cabo de si
entulho obscuro
resto duro indigesto
soterrado no peito nu
escombro escavado
no suor sangrado
Souza
Elizandra
Rio
Hoje amanheci rio,
Não fico no mesmo lugar
Minhas margens não me comprimem
Minhas águas estão a navegar
Da montaria do cavalo
Da pisada na estrada
Da aroeira ao bocapio
O carro do boi que cantava
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Reflexo
preta,
essa tua pele
cinco tons
mais marrom
que a minha
atiça o toque
das minhas mãos
e dos meus beijos
a saliva
te olho derramada
escorrendo
em contraste
no lençol
absorvida
e quero cada poro preta,
induzindo melanina você tem a textura
desmedida qua arrepia
meus pelos
tem o toque
que desperta Jarid Arraes: escritora, cordelista e autora do li-
meus peitos vro As Lendas de Dandara. Criadora da Terapia
Escrita, mediadora do Clube da Escrita Para
Mulheres e do Clube Leitura Independente. Até
‘e meus olhos
o momento, tem mais de 60 títulos publicados
transbordam
em Literatura de Cordel, incluindo a coleção
um tesão Heroínas negras na história do Brasil e publica-
que é espelho. ções em parceria com a Artigo 19 e o Think Olga.
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Edição
Bruno Palma e Silva
Lubi Prates
Projeto gráfico
Bruno Palma e Silva
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