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AUT

ORIA
NEG
RA

revista parênteses | edição especial #04


distribuição on-line gratuita
Lívia Marcelo tatiana
Natália Ariel nascimento

4 8 13

Editorial 3 Elisa Ray Elizandra


Créditos e contato 35 Lucinda Cruz Souza

18 23 28

Jarid
Arraes

31
S
e prestarmos atenção, conseguiremos
ouvir a respiração pesada e os batimentos lentos da
literatura brasileira que sobrevive entre abismos: gê-
neros, raças, classes sociais, ideologias...
Existe uma ordem em que ainda prevalecem au-
tores homens, brancos, heterossexuais, classe média,
nascidos no Sul e Sudeste do país.
Precisamos urgentemente romper com isso. Assim,
a Parênteses propõe espaço para a produção poética de
autoria negra nesta edição especial e espera que, além
de conhecermos estes autores e saborearmos seus es-
critos, possamos pensar, como leitores, em ações para
romper essa ordem excludente de minorias da litera-
tura brasileira

os editores
Lívia
Natália
Freudiana
No mais fundo dos homens que amo
há meu pai, com sua carne de maresias.
Ele se desenha na pele dos meus homens
como o mar inscreve, no peixe, as escamas.
(Todo corpo em que derivo absorta
tem algo de sua voz pedregosa.)

Nas peles negras em que me banho


flutua sua existência de maré:
prenhe de naufrágios.

Aos pés destes timoneiros delicados


que pensam singrar minhas águas
sou a kianda-sereia,
um coral espelhado,
sou a ostra que se desmora em silêncio.

Sou a água eternamente translúcida.


Precipício denso de onde estes peixes bebem
- apenas -
um silêncio delicado.

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As mãos de minha mãe
As mãos de minha mãe são imensas
e seguram seu corpo minúsculo
como as chagas de cristo lhes se sustentam a santidade.

Nos dedos vincados de veias grossas,


na curva que se enruga no mais preto das dobras
as mãos de minha mãe perfazem os caminhos de meu mundo.

Se os búzios cantam nas palmas singradas de rotas negras


é para predizer maresias e ondas dolentes em meu caminho.
As mãos de minha mãe, cada vez mais idosas,
guardam, em suas linhas, o segredo de nosso destino,
elas se cruzam no ventre da espera,
e nasce sempre feliz, sempre feminino

6
Sina
Todo mês eu sangro.
Diversa de mim,
atravesso águas brutas,
oceanos que me povoam bravios.
Expulso o que em mim excede
e, do que sobra,
algo se move lívido
pulsando nas sendas de meu ventre.

Quando sangro,
o animal onde moro troca de pele
por dentro,
expurgando entranhas.

Todo mês eu sangro.


Todo mês eu singro este mar,
em que me banho.

Lívia Natália é baiana de Salvador, poeta e professora da Universidade Federal da Bahia, onde ensina
Teoria da Literatura no curso de Letras. É doutora em Literatura e Cultura e dedica-se ao estudo de
Literatura Negra Contemporânea. É autora dos livros de poesia Água negra (Prêmio Banco Capital de
Poesia/2011), Correntezas e outros estudos marinhos (2015) e Água negra e outras águas (2016).
7
Marcelo
Ariel
A história do êxtase____parte 1_____Flutuação

Uma vibração assim a vibração círculo


símile diminui ou cessa do qual vemos
da onda para que não se torne apenas metade
que retira insuportável sonho
da gravidade da luz
vida da morte como um na transparência
até que se manifeste arco-íris da tarde
o cansaço que preenchesse
que resvala o céu estilhaço
no sublime por meses delicado
evocando a geral da poderosa
por estranhamento indiferença vontade
e arte que arde
como se o próprio tempo necessário é no centro
nos amantes que a intensidade de uma paixão
fosse também um pouco dure que tudo invade
duplo como o arco-íris
do pensamento que por sua brevidade
que está atrás provoca
do pensamento espanto e admiração

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A história do êxtase_____________parte 2_____Pólen

Crescente dentro da terra


não como a lua como o que há
mas como sua filha no fundo
a onda do coração
ou a hera magma do inominável
a não-palavra que pulsa em você
dentro do corpo como uma estrela de névoa
flutua em nosso alento assim, este êxtase
desenhando passa por nós
o êxtase como quem erra
esculpindo raios para depois
que sobem voltar a ser
até o alto o menor
da cabeça e depois ponto de luz
descem até o Sol em nossa treva

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No Congresso Oceânico das Mulheres do Povo
O Silêncio ensurdecedor de cinquenta e quatro mil mortes negras
me trouxe de volta
Patricia Galvão: Mas o ar é irrespirável, cheiro de massacres e fascismos, por isso tentei meter aquela
bala na cabeça.
As ruas e canais
evocam a morte de uma democracia-karaokê
Os pássaros voam de propósito
contra os vidros dos arranha-céus
maquetes em tamanho real
da ausência de espírito
vidros da morte
trincados por gritos

Pagu: Mas ser mulher é algo sempre inaugural , uma insurreição mais do que uma reação, nós
não criamos o macho, ele se desfez em totalitarismos vários, crianças da noite tentarão em vão
cancelar o dia.

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A Deusa Artémis quando perguntada sobre qual oferenda a agradaria mais
respondeu ‘ Correr livre pelas matas vestida apenas com meus arcos e minhas flechas’

Patrícia Galvão: Quando não houver mais pretos e pretas dormindo nas calçadas, haverá um Brasil.
Pagu: Meu fantasma vaga sem paz, pelas ruas das favelas de Santos , Cubatão e São Vicente
como uma baleia feita de nuvens transparentes, como uma onça feita de brisa do mar, uma
secundarista chorando deitada na calçada, escreve meu nome com orvalho e sangue.
Solange Sohl: Ontem atravessamos vários corpos no meio da manifestação.

Marcelo Ariel, Dez de 2016, Ano do Golpe.

Marcelo Ariel____1968___Santos-SP____. Poeta, performer e drama-


turgo. Vive em Cubatão e é autor dos livros Tratado dos anjos afoga-
dos (LetraSelvagem, 2008), Diário Ontológico I e II (Pharmakon, 2013),
Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (Editora Patuá, 2014,
semifinalista do Prêmio Oceanos), O rei das vozes enterradas (Editora
Córrego-2015), entre outros. Coordena oficinas de criação literária em
Santos-SP .
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Foto: Léo Haedo
tatiana
nascimento
cuíer paradiso
pra mim,
o paraíso cuíer podia ser um lugar muito simples:
encostar a cabeça no meio das suas teta, ou
te receber no meio das minhas coxa podia ser menos desesperado que a paixão inteira num dia só
(calma,
e depois ir ali na padaria contigo, tomar um suco amanhã eu
(laranja com banana y açaí), posso vir aqui, y
passar a mão no seu cabelo (te reconheci depois de amanhã a gente vê, mas quando você vier
pelo seu “corte preciso”) eu vou gostar de te ver)

sem ter que usar armadura, podia ser menos agoniado que vinte reuniões na mesma
sem ter que antecipar resposta, semana
sem ter que aprender como dá murro e nem (com palavra de ordem / questão de ordem / contra todas
mapear o espaço antes de entrar as ordens mas organizando tudo tão igual...)

pra ver quem tá lá podia ser menos vigiado que todomundo perguntando se é
imaginar aberto ou fechado,
que ameaças eles fariam reafirmando no “mas quem come quem” os binarismo
quantos são heterocentrado,
se viram a gente, se nos seguiriam alfinetando com “ah, mas c num sabia que ela tinha namorado?”

pra mim o paraíso cuíer podia ser menos burocrático que podia ser menos tudo que dá esse cansaço, essa desesperança,
casamento igualitário regulado pelo estado essa diz-
(porque é o mesmo estado que paga confiança... pra mim um paraíso cuíer podia ser mais
a polícia, lembra?) tranquilo,

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mais respirado. podia ser eu y você num dia ensolarado (mesmo que daqui
a pouco fosse cada uma pra um lado; eu ia gostar. ah, e a parte do
pecado, essa parte eu ia gostar também)

eu tô tão cansada de ter que corrigir o mundo inteiro na minha cabeça y


continuar errado... de tentar resistir, responder (sem esquecer de
dançar, de sorrir) e ver que eu vou morrer sem nada tá mudado,

mudado mesmo. pra mim o paraíso cuíer ia ser deitar um pouco do seu lado,
ver seu rosto dançando na fumaça, a cortina respirando sua janela,
pulmão a céu aberto: exposto, delicado,

(por isso mesmo) forte.

sentir seu coração conversar com a pele do meu ouvido enquanto a noit
e vira dia y a rua esvazia o silêncio com aqueles barulho de manhã le
vantando, pássaros celebrando, vizinho cantando cedo, transporte púb
lico começando tarde (afinal, é o DF)... pra mim
um paraíso cuíer é um pouco de qualquer coisa que me traga

a calma da sua

coragem.

15
a reinvenção da saudade, em trêstempo:
pra bruna

1. (ainda)
na aeronave, um susto:
em suas vaga,
aérea,
nado

2. vudu:
no aeroplano, um surto:
de saudade
do teus
beijo
área, plano…
âncoras há(gulha): a
gora boa
gouro
y fu(tu)ra (te) de
sejo.

3. (pra ela tb)


a lu
a boc
a mar

cheia
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diástole: o banzo é da saudade que demor
a solidão
banzo é a saudade que não mor
a nesse chão banzo é
saudade que derr
ama escuridão

banzo, é?

benza

fé:

na unção
transatlântica
da função
desoceânic
a jun-
são:

pedaços de cacos de vidro com banzo de areia sis-


palhando aos bandos (de cor
ação sís-
tatiana nascimento - poeta, tradutora, slam-
tole
mer (slam das minas y slam a coisa tá preta, no
DF), editora na padê editorial (livros artesanais
ás de autoras negras/lgbtqi), zineira, video-maker,
pera experimentadora em curas, diver-sãs, prazeres.
adora sol, chuva, mar, planta, bicho. estrelas!
ou) part aquariana com muita coisa em peixes (aérea,
idos na diás- mergulhando). canta, compõe, recita no projeto
pora de música + poesia “água”, de bossa velha y poe-
mas afrofuturistas
[pra tu, uma música que não fizemos juntas] contato: palavrapreta@gmail.com
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Elisa
Lucinda
Vozes guardadas
Todo poema é um bilhete, uma carta, uma seta.
Todo poema é uma visão, um aviso, um pedido, uma conversa.
Todo poema é um sinal de perigo, socorro, promessa.
Todo poema pode ser um convite, um alfinete, um beijo, um Escrever é um modo novo e antigo de ver,
[estilete. de perceber a elaboração do pensamento sobre um sentido,
Todo poema é fome, banquete, destino e meta. enquanto testemunha-se o imponderável do acontecimento dos
Eu, pra todo lado que miro, vejo a bagunça, a farra dos inéditos, fatos.
a festa. A palavra fotografa mas não é um retrato.
Está tudo em mim pelas bordas, Nada tem de estática, nunca mais.
e só Deus sabe do disse me disse no interior das gavetas! Uma vez escrita está esperta e à espreita.
Multidões de vozes me habitam com desenvoltura, Muito mais à espreita do que quando pensada.
invadiram estradas, linhas, cadernos, partituras. Basta um olhar alfabetizado sobre a escrita palavra,
São tribos que vêm com seus alforjes, e pou! Volatiza-se sua potencialidade, abrem-se as travas,
são sonhos de literatura, e o mar de significados começa e não cessa de bater e de voar.
são palavras que aproveitam e fogem, Pois de tudo isso, deste acervo contido,
são verbos do norte que vieram da loucura, é que meu espírito está hoje repleto,
são letras cotidianas que traduzem a experiência do viver, e é por estar muito cheio que este meu ser está incompleto.
são rebanhos de incertezas que migram para as rimas para ...
vencer A cena interna é alarmante:
são lágrimas de dor e beleza, há palavras crianças trabalhando em mim, para mim,
que se fizeram guerreiras antes de escorrer. perdidas
Fantasmas flagrados em pleno delito, [nas agendas!
organização do não dito, manobra do subjetivo. São verbosinhos menores de idade,
aos quais prometi livro, abrigo, um lugar no mundo onde
morar.
Há palavras inocentes fazendo trabalho escravo,
sem que de tal exploração eu não me imaginasse capaz.
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Outras, velhas demais, são palavras que passaram do ponto da
publicação,
viraram tardias explicações do que já não interessa mais.
Creia-me, trago vozes antigas, vozes ancestrais,
que dominam minhas páginas, as de papéis e as virtuais.
Quando quero dormir, roncam as mais inquietas,
ronronam as mais descansadas, gemem as mais caladas,
gritam as que querem ser libertas, forçando a porta da casa.
Todo poema é uma notícia, um pedaço de diário, um desabafo,
uma fala emocionada ou triste
no calendário do nosso ambíguo caderno de chorar.
Choro por guardá-las,
chorei ao escrever algumas,
e choro agora na hora de oferecê-las ao público redentor.
Estavam dentro do tempo esperando essa hora, este clamor.
Todo poema é um comunicado, uma batida de tambor.
Todo poema é um chamado, uma missiva que a gente ainda
não mandou.
Todo poema pode ser um romance, uma nova chance,
um caso mesmo de amor.
Uma prova factual, uma epístola de fervor com a vida,
um emplastro, um pacto, um fino haicai sobre a ferida,
ainda que não seja premeditadamente a última, a do suicida,
todo poema, de alguma forma é,
daquele beiral do instante,
daquela varanda da lida,
todo poema é
uma carta de despedida!

(Quase verão, Goiânia, 2012)


20
A ilha
Na solidão da existência,
nado firme na batida das águas,
corpo revolto à mercê da decisão das ondas,
vou destilando coragem no desespero das braçadas.
É noite.
Ainda bem que os versos são claros,
me ancoram, me falam, me salvam,
me beijam na boca o beijo longo da salvação,
me devolvem o ar, a vida, a trilha.
O poema é para mim terra firme,
como é, para o náufrago, a ilha.

(Luar crescente, 13 de julho de 2008)

21
O ser
Chegou pela primeira vez
no inverno,
como se fosse um pedido meu.
Trouxe o melhor vinho.
Safra e uva, ele mesmo escolheu.
Me beijou como se me sonhasse,
me comeu como se voltasse,
me aconchegou na cama
como se me amasse.
Elisa Lucinda, poeta, atriz, jornalista, professora e cantora, Elisa Lucinda
Digno. Bonito. Lógico. Inexato
nasceu ao meio dia, de um domingo de Carnaval, na cidade de Vitória do
Conversador. Silencioso
Espírito Santo, em dia de Yemanjá. É uma das autoras que mais vendem no
Firme e terno. Brasil. Seus livros, em sucessivas edições, percorrem o país sendo lidos, in-
Dorme tranquilo ao meu lado. terpretados, encenados, enquanto seu nome figura dando títulos a biblio-
Como se fôssemos eternos. tecas e outros espaços de leitura. A carismática Elisa, que, nas palavras de
Nélida Piñon, “tem a linguagem em chamas”, possui dezessete livros pu-
blicados, dentre os quais a Coleção amigo oculto, de livros infanto juvenis,
que lhe rendeu, em 2002, o premio Altamente Recomendável (FNLIJ) por
A menina transparente. A multiartista encena e circula muito de sua obra
pelos palcos brasileiros e estrangeiros, e comemora o reconhecimento de
ser uma das escritoras que mais popularizam a poesia em nosso tempo.
Versos de Liberdade, que ensina a palavra poética aos jovens que cumprem
medidas, é um dos projetos que a sua instituição Casa Poema desenvolve,
entre cursos de Poesia Falada para todos. Seu primeiro romance Fernando
Pessoa, o cavaleiro de nada, uma autobiografia do poeta, foi finalista no
Prêmio São Paulo de Literatura 2015. Vozes guardadas reúne dois livros iné-
ditos de poesia, escritos entre 2005 a 2016.
Facebook: facebook.com/elisalucinda
Email: casapoema@casapoema.com.br
22
Ray Cruz
minha consciência
é negra
não me lembro
quando percebi que sou negro
deve ter sido no colo da minha mãe
quando percebi que sou também tem aqueles que dizem
alguma coisa com fome “eu amo a sua cor”
“queria ser preto”
mas acho que percebi
o que ser negro significa todos os dias
nos primeiros anos da escola alguém julga minha pele
como se eu me importasse
todos os dias com minha embalagem
as pessoas me lembram que sou negro ou vivesse o tempo todo
será que elas acham que eu me esqueço? esperando ser discriminado
ou ser ovacionado
todos os dias alguém por simplesmente
comenta minha cor ser o que sou
fala algo sobre o meu cabelo
na maioria das vezes eu to acostumado
dizem que é feio com o medo me olhando
dentro dos carros
me aconselham a evitar e nos becos sujos
o preconceito
raspa esse cabelo duro eu to acostumado
para de tomar sol com a desconfiança
bebe menos café me examinando
eu sei que querem me embranquecer abaixo das sirenes
24
eu to acostumado
com os pronomes escuros
e ai neguin, e ae negão

eu demorei um pouco
pra parar de querer
ser branco igual o Superman
o Neo, o Goku e tantos outros
heróis da infância

eu demorei um pouco
pra não me importar
com o que as pessoas
falavam e continuam a falar

conhecendo a história
descobri minha herança dia 20 de novembro
passei a apreciar é só um dia pra relembrar que
o que me ensinaram o preconceito é um vizinho psicopata
que era feio e que apesar da carne negra
ser a mais barata do mercado
comecei a sentir os tambores é ela que continua
tocando meu sangue alimentando essa nação

porque pra mim


o dia da consciência negra
é todo santo dia
que enxergam minha cor
primeiro que meu interior
25
odeio meu
trabalho
Meu suor
Tem cheiro de
Concreto fresco

Minhas lágrimas com


Sabor de argamassa
Meu sangue da cor
Daquelas telhas
De cerâmica

O trabalho braçal
Irrefletido e irracional Treze longos anos
Me torna mais um animal Na escola para
Aprender a ser
Cada pá de areia Um burro
Uma agulhada De carga
Em cada músculo
Alguém me vende
A endorfina Um emprego
Nem parece mais Pago com
Um agradecimento O resto
Pelo meu corpo ainda Da minha
Estar inteiro Vida.

26
outro calo na
palma do meu olho
minha mão sangra
no cabo do próximo verso
que caleja a labuta maldita
dando cabo de si
entulho obscuro
resto duro indigesto
soterrado no peito nu
escombro escavado
no suor sangrado

por falta de ter o que escolher


por força de vontade de comer

outro dia entornado


em si destroçado
no cabo de saber
na boca o gosto amargo
do “ter ou não ser?”

minha mão chora Ray Cruz sobrevive na periferia da periferia


flores vermelhas de Brasília: Cidade Ocidental. Em 2017 partici-
ao cabo do inacabado pou da antologia Seres da noite (editora INDE).
Filho adotivo da Iluzine, posta seus poemas em
que soa como um
sua page Deus cadela no Facebook e em seu blog
calo sangralienado.
pessoal Exu do Absurdo. Amante de amendoim
japonês, dias nublados e Paratudo ou café com
qualquer coisa.
27
Foto: Ellen Faria

Souza
Elizandra
Rio
Hoje amanheci rio,
Não fico no mesmo lugar
Minhas margens não me comprimem
Minhas águas estão a navegar

Hoje amanheci rio,


Vou beber e me banhar

Menstruação Não quero barco!


Hoje sou redemoinho, pode deixar
Sangre mais uma vez! Não vou me afogar
Expele do teu corpo
o embrião não fecundado Hoje amanheci rio,
Junte todo o amargor Quero anoitecer me encontrando com o mar
e sangre outra vez! Pescar estrelas
E adormecer na brisa do ar
É dolorido,
mas sinta com intensidade essa cólica
esse mal estar,
mas sangre mais uma vez!

Sangre nessa hipócrita sociedade,


junte todas as dores expelidas,
retire da calcinha
esse absorvente encharquecido
E jogue fora todos esses sangrados.

Mas Mestrue e Ação!


29
Nas curvas do cajueiro
Carregava na face
Alma que latejava
Confissões da seca
Do árido nordeste

Da montaria do cavalo
Da pisada na estrada
Da aroeira ao bocapio
O carro do boi que cantava

A plantação que o sol destruiu,


A prece destinada à chuva
São Pedro dono das águas do céu:
“Manda uma trovoada de mansinho”

Em São Paulo com a alma


Elizandra Souza, poeta, jornalista, editora da
Plantada e enraizada
Agenda Cultural da Periferia na Ação Educativa,
Nas curvas do cajueiro
locutora da Rádio Comunitária Heliópolis
No gosto da castanhas e na beira do rio FM, integrante do Sarau das Pretas - SP. Co-
organizadora do livro de poesias Terra fértil, de
Que falta faz sair sem destino Jenyffer Nascimento, e da Antologia Pretextos
Contando as estrelas, seguindo o luar de mulheres negras, com Carmen Faustino. É au-
Nos seus olhos o verde da colheita tora do livro de poesias Águas da cabaça, lança-

O coração um toque de zabumba do em outubro de 2012 e co-autora do livro de


poesias Punga, com Akins Kintê (Edições Toró,
2007). Tem participação em antologias literárias
Seus sonhos eram um sítio florido de frutos ácidos
como Cadernos negros, Negrafias, entre outras. É
Filho de África e Sertão também idealizadora do evento Mjiba em Ação
Sorriso de quem esperava – Comemoração ao Dia da Mulher Negra (25 de
Fogueiras, foguetes e forró.... julho) e editora do Fanzine Mjiba (2001-2005).
30
Jarid
Arraes
Origem
Não conheço minha história
Tão bem quanto eu gostaria
Eu não sei do meu passado
Nem minha genealogia
Mas carrego algumas pistas
Que por mim são muito quistas Que tentaram se apagar.
Fortes são filosofias. Dessa África distante
Sei que vim dum povo belo O meu corpo se formou
Dumas terras deslumbrantes Entre mil desaventuras
Com mil cores aguerridas O meu povo batalhou
Imponentes seus semblantes Hoje sou sobrevivente
E na pele a cor bem preta Sou herança dessa gente
Girando uma carrapeta Que por mim só guerreou.
De histórias instigantes. Sobre mim foi derramada
Eu não sei de onde veio Essa importante missão
Meu cabelo enrolado De crescer a identidade
Minha cor escurecida Do meu povo na nação
Ou nariz nesse formato E com fala flamejante
Mas a força ancestral Com coragem incessante
Se mostrou a maioral Feito um bruto furacão.
E de mim fez um contrato. Não conheço minha história
É que meus antepassados Tão bem quanto gostaria
Precisavam de juntar Mas no peito bate forte
Uma gente descendente Minha genealogia
Para se fazer lutar Pois a garra visceral
Relembrando nossa história Vinda do meu ancestral
Conquistando essa memória É certeza que me guia.
32
Bruxa Eu num deixo nem o pó
Nem o caldo, nem restim
Sou feroz e perigosa A história é conto meu
Três espinho em cada mão Que só presta sendo assim
Minha garra é amolada Eu que falo com vontade Eu mastigo sua carne
Minha boca é confusão Como louca divindade No meus dente a triturar
Só golpeio de certeira Girando um redemoim. Té seu osso vai chupado
Que é pra ver a bagaceira O meu casco é feito pedra É lambido e descartado
Pra causar rebelião. Minha língua é esquentada Pro meu chão se adubar.
Me criei pra perturbar Quando pega no espinhaço Sou a fera que desperta
Rebuliço é meu cartão Sai pior que chicotada Que se atiça revoltada
Onde vou me acompanha E o meu verbo a estralar Viro pedra e correnteza
Ventania e furacão Vai mermo na jugular Pela noite e madrugada
No meu útero eu cresci Vira música cantada. Eu vomito larva pura
Esse vento pra bulir Tudo o que você disser E a chaga não tem cura
E arrombar todo portão. Eu enfrento a responder Se por mim for provocada.
Piso forte, braba toda A palavra brota viva Sou um corvo carniceiro
E a poeira vai subindo Erva daninha a crescer Sou uma besta indomada
No turbante dou meu nó Enveneno na cuspida Tempestade corre solta
E veloz eu vou agindo Só pra piorar a lida Com força descontrolada
Se alumeia meu olhar De quem vem me aborrecer. Só começo pra acabar
Pronto pra hipnotizar Se tiver inteligência Se vier me afrontar
De leoa eu vou rugindo. Não me venha provocar Se prepare pra dentada.

33
Reflexo
preta,
essa tua pele
cinco tons
mais marrom
que a minha
atiça o toque
das minhas mãos
e dos meus beijos
a saliva

te olho derramada
escorrendo
em contraste
no lençol
absorvida
e quero cada poro preta,
induzindo melanina você tem a textura
desmedida qua arrepia
meus pelos
tem o toque
que desperta Jarid Arraes: escritora, cordelista e autora do li-
meus peitos vro As Lendas de Dandara. Criadora da Terapia
Escrita, mediadora do Clube da Escrita Para
Mulheres e do Clube Leitura Independente. Até
‘e meus olhos
o momento, tem mais de 60 títulos publicados
transbordam
em Literatura de Cordel, incluindo a coleção
um tesão Heroínas negras na história do Brasil e publica-
que é espelho. ções em parceria com a Artigo 19 e o Think Olga.
34
Edição
Bruno Palma e Silva
Lubi Prates

Projeto gráfico
Bruno Palma e Silva
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