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116 te porque a escola, instituigdo tao central para o perfil atual da atividade infantil, permanece exclufda. Somente em funcdo deste diafragma ¢ que se pode levar tao longe a tese da sentimentalizacao da infancia, como faz Viviana Zelizer (1985), principalmente por ‘meio de sua caracteriza¢ao da transicao das criancas “from useful to useless”. Recomenda-se completar a pergunta sobre a utilidade das criangas, apondo-se a pergunta "para quem?” Aqui fica claro que as criangas — mesmo se no bojo da modernizaao tenham se tornado materialmente iniiteis em cada um dos niveis econmicos — conti- nuam como sempre necessérios e uteis em nivel social, e principal- ‘mente no sentido economico. Se, ao invés de trabalho, utilizarmos o conceito introduzido por Qvortrup de atividades infantis, entao fica tambem relativizada a descontinuidade entre a trabalho infantil prée proto-industrial, de um lado, ea moderna escola, de outro. A escola aparece, nos marcos da moderna infancia, como equivalente ao trabalho infantil no sentido tradicional, e a critica radical a escola, tal como feita por Hartmut von Hentig (1993), insere-se historicamente na tradigao da uta contra o trabalho infantil. Contudo, se a escola nao € vista como rupturacom o trabalho infantil pré e proto-industrial, mesmo que de maneira pedagogicamente eufemistica, propria dos estaclos de bem- estar social, mas antes como continuagio deste trabalho, entao pode- se evidentemente refletir sobre até que ponto determinadas formas de trabalho infantil — na correspondente dependéncia de cada estado de desenvolvimento de uma sociedade — podem ser consi- deradas apropriadas ou inapropriadas. Ja tratei desta questdo num trecho anterior, O tiltimo trecho retoma a problematizagio; decerto que sob a insereao da revisao do acesso ao tema trabalho infantil na tentativa de uma redefinicao geral do conceito de trabalho. 6. Para a consideracao das atividades infantis na redefinicao do conceito de trabalho Muito j se escreveu sobre a redefinicao de trabalho, assim: como sobre a erosto do conceito tradicional de trabalho de subsis- tencia, Também ja se apontaram solugoes possiveis sem que tudo 7 isso tenha se fixado de forma duradoura na realidade dos mercados de trabalho. Pelo contrario, as tensdes e contradi¢des sociais nunca foram tao grandes como hoje desde o fim da Segunda Guerra Mandial. A posicdo das criangas na divisio geracional do trabalho e des recursos nao tem sido observada na maior parte dos discursos pertinentes. Vejo, no essencial, doisrumos paraa discussio: trabalho como valor positivo (1) ¢ erosio do trabalho de subsisténcia classico (2). Para concluir, esforgar-me-ei por tornar as criangas mais vistveis nes marcos de ambos os contextos de discussio, 1. Tendo como fundo o trabalho infantil difundido na Colom- bia, Cecilia Muntoz Vila (1996,104) discorre: “Se voce reconhece que & através do trabalho, do pensamento € Castro, Lucia Rabello de. (1998) Infancia e adolescéncia na cultura de consumo. Rio de Janeiro: Nau Editora 123 Se fosse necessério explicé-lo, considerariamos que a infancia «que fica dentro das regras de consumo, por sua vez, fica presaa uma problematica propria diferente daquela a qual queremos nos referr. Coincidimos com aqueles que sustentam que o sintoma da infancia tual €a marginalidade,* compreendendo que a marginalidade nao ¢ somente causada por uma exclusto do ponto de vista economico, mas também que esta ligada a uma profunda solidao qual esto expostas as criangas e adolescentes desta época, qualquer que seja sua condigdo s6cio-economica Entao, sem desconhecer a situacio da infancia contempora- nea em sua totalidade, estamos querendo discorrer sobre as praticas exercidas sobre esse setor da infancia que nao tem garantida as condigdes de sobrevivencia: criangas e jovens que nao tem acesso & educagao, a0 sistema de satide, naocontam com uma familia, ou para osque a possuem, ela nao é um lugar de protegao sendo que as vezes € ali precisamente onde sofrem maus tratos, exploracao e negligen- cia, Com diversas intengdes e resultados dispares, a estas criancas e jovens se direcionam uma quantidade de estratégias que, mais ou menos profissionalmente, pretendem repararo dano conseqiienteas diversas caréncias que eles sofrem. A apropriacao: uma forma de se “fazer algo” Tenta-se caracterizar uma dastendéncias sempre presentesna vislo e nas agdes que se exercem sobre as criancas deste setor social: a tendencia a'sua apropriacao. A apropniacao, segundo o dicionano Larousse, € definica como “a ago e efeito de apropriar e se aptopriar”, por sua vez, apropriar ‘como: “tomar, apoderar-se de uma coisa” sendo seus sindnimos “usurpar, atribuir-se, adjudicarse, tomar, monopolizar, arrebatar” Portanto, podemos definir aquilo que entendemos por apro- priagao como a tendencia a se apoderar dos destinos das criancas. Istoé, manipularseu presente e seu futurotomando decisdesque nao + Volvonich, Jorge. (1999) Los complices del silencio. Infancia, subjetvidad y prticasinstucionales. Buenos Aires: Ed. Laimen. 124 levem em conta seus desejos, sua histéria, sua identidade, mas sim privilegiando o cumprimento das expectativas que respondam a0 ‘modelo internalizado? como *bom”, seja de crianga, seja de familia, Em varias ocasides desta natureza, se recorre a propria experiencia como progenitores, sem poder tomar distancia instrumental das situagées conflitivas nas quais Ihes cabe intervie profissionalmente A apropriagao tem se tomado um minimo denominador ‘comum que atravessa todo 0 campo de compreensaoe praticas sobre a infancia vulneravel. Pode-se observé-la nos programas espectais. para inféncia em risco, em entrelinhas, e nas praticas dos operado- res sociais, Quem e desde onde se exerce apropriacao sistema esta organizado de maneira tal que uma porgao de Instituigées denominadas “protecionistas" deveriam se ocupar em. restituir direitos as criancas que ja foram vulnerdveis, por sua vez prevenindo e resguardando-as das possibilidades de riscos futuros. Neste sentido tem-se institufdo: Juizados de menores e de familia, lares de criancas, programas de protecio especial, Conselhos de protecio, Defensorias de direitos, etc. Na medida em que se tem colocado em destaque os diferentes “fatores de risco” que enfrentaa Infancia, foram surgindo instituigées publicas e privadas que come- saram a se ocupar desta questo, Ou como o caracterizaria Juan Carlos Volnovich: “Frente a estas estatsticas (sobre a alta taxa de mortandade infantil ede jovens por causas evitaveis) existe um acordo tacito de que “algo tem que ser feito”. O discurso dominante de quase todos os organismos governamentais convoca a levar adiante maltiplas campanhas e infinidades de programas para socorrer e proteger as criangas; para cuidar e tutelé-los. Quando este discurso oficial obtem consenso e se torna hegemdnico, vem, entdo, a fase de diagndstico, que consiste em classificar e categorizar os grupos de alto risco (os ? Entendemos 0 conceito de internalizacio segundo o desenvolvimento de D.W. Winnicott. Ver Winnicott, D.W. (1995) La familia y el desarll del individuo, Buenos Aires: Ed. Limen-Hormé, 4 ed. 125 Innis necessitados de atengio) para, depois, Ihes aplicar programas tle salvamento que propdem, claro est, a formacio e a capacitacio de especialistas, peritos, técnicos e instituigoes” * A complexidade dos propésitos acumulados para os quais estas instituigoes foram criadas nos impede caracterizar este campo institucional, tal como se péde fazer em uma época, como institui- (poescom um Unico proposito: o do “controle social”.’ Precisamente, © observado tanto em nfvel de andlises das instituigdes, como dos individuos que as operam, nos fazem entrever uma trama na qual se misturam: 0 controle social, o altruismo, a beneficéncia, os princi- plos de promogao social, 0 desenvolvimento comunitario, o de trabalho pela integracao social, ete Na ultima década se ha instituido a concepeao da crianga como sujeito de direitos, consequentemente o principio de levar em conta sua palavra € um ponto central no discurso manifesto. Novas doutrinas politicas sobre infancia e juventude se impdem. Formalmente a atitude “politicamente correta” é a defesa do mocelo de protecio integral em detrimento do antigo modelo de considerar a infancia marginalizada em “situacdo irregular". A pri- mmetra supde atuar no marco do respeito pelos direitos humanos estabelecidos na Convengio dos Direitos das Criangas. O velho paradigma da situacio irregular derivava no controle e na repressio das criangase jovens considerados marginais, Entao, segundo nossa observagao estamos advertindo sobre a possibilidade de que a consideragao da crianga como sujeito de direltos fique circunscrita ‘uma enunciagio e argumento vazios de contetido, ao nao se refletit napraticaa conviecae do argumento. Istono caso de que “se faca algo com isso” jé que nao ignoramos que se reiteraasituagao de “que nto se faz nada”, Bem, pelo menos em nosso pais, observamos a retirada do Estado como planificador e executor de politicas sociais. Aqui, insistimos, observamos um forte discurso garantindo direitos que nado se refletem em ages concretas. *Volnovich,J.C. (1999) Efninodel“Sigldel nino. Buenos Aires: Ed.Lamen, 7 Gareta Mendez, E. ¢ Caranza, E. (orgs) (1990) Infancia, adolescenciay control social en America Latina. Buenos Aires: Depalma 126 Algumas observacoes Faz um tempo realizamos uma investigacao sobre dois progra- ‘mas assistenciais que se desenvolveram no Conselho Nacional do Menor e da Familia da Argentina: um programa de familias acolhe- doras, ¢ um programa de jardins maternais.* Ambos tinham entre seus objetivos centrais a ajuda a familias de alto risco social através da inclusao de seus filhos em sistemas de cuidados especiais. O que Pudemos comprovar é que em ambos programas os operadores que 6s instrumentavam pouco a pouco deixavam de lado as acdes dirigidas a familia para se centrarem somente no cuidado e atengao A crianga, Entao a instituigao protecional, por diversas causas entio analisadas, terminava reforcando a distancia da familia com seus filhos, sem possibilitar uma recriagao dos vinculos familiares, Deste modo os operadores profissionais tomavam decisoes sobre as crian- ¢as sem levar em conta o que a propria familia deles pudesse opinat. Desta maneira formulamos nossa hipdtese: "Na realidade, grande parte dos programas que dizem apoiar as familias sao substtutivo de algumas de suas fungdes importantes. Em Imuitas ocasies se chega assim a aprofundar as difculdades familia res ao do estarem instrumentados— a pratica~, de mancra tal que Se orientem a um total validamento do grupo familiar"? Em nossa tese consideravamos que uma das causas deste obstaculo institucional teria relagao com uma concepgio de “periculosidade” atribuida as familias diferentes do modelo nuclear. Desta maneira se produzia um destino de “descarte” destas mies ¢ pais, e a instituicdo pretendlia acupar esse hugar vago. Nesse movimento que se produz ao deixar de lado quem deveria exercer a autoridade parental, ainda levando em conta as dificuldades que efetivamente os adultos possam ter, entrevemos 0 ‘que aqui estamos caracterizando como apropriacao. * Luna, Matilde. (1994) “El tratamiento de familias en instituciones proteccionales de nitosy familias”. Dissertagao de Mestrado, Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina. "Luna, Matilde, (1999) Qué hacer con menores y familias. Buenos Aites: Ed Lamen. 127 Sobre a sobrevivencia do velho discurso Se bem que ficou dito que o ato de apropriacao se produz na decisao que possa tomar um operador social, também consideramos as condigdes contextuais que facilitam a produgdo desse ato. O assistente social, o psic6logo, o Juiz de Menor respondem de acordo com os condicionamentos que os formaram. Como ficou dito mais acima, considero que poderiamos agrupar os determinantes contextuais da apropriagao em: * Convivencia das velhas priticas assistencialistas com as novas posturas de desenvolvimento social como direito dos cidadiios criancas ¢ adultos. + Negligencia da sociedade em seu conjunto e, como contrapartida, delegagao da tarefa assistencial a um conjun- to circunscrito de especialistas e voluntarios. Em relagdo a repeticao e reciclagem das velhas idéias, citamos 0 fildsofo Carlos Pereda: “Por exemplo,éconhecido que tendencias politicas avangadas podem conviver com atitudes regressivas no plano legal, cienifico,técnico, artistico ou sexual. A respeto, € uma tentacdo comum mas fatal da razdo arrogante se agarrar a “posicdes”e, seguindo o mecanismo do “tudo ou nada”, pensar em “blocos de pensamento respaldando-se na regra: Sempre é melhor do mesmo. Assim, por um sentimento desca bido, castuma-se considerar que uma perspectivaadequadaa respeito de varios bens — por exemplo, de certos bens morais — tem que mecanicamente resultar valida em relacdo a todos os bens, morais e nao morais. Trata-se de um falso gencralizar.” Apropriacao versus responsabilidade “...abranger a definigao de posturas reflexivas, enunciagdes posticas ou paras argumentativas nas que se incluam,seja fag ‘mentariamente,as marcas de umnatensdoaté um Outro lugarideal "© Dereda, C. (1999) Critica de la razon arrogante. México: Taurus, ™ Fortunati, V.; Steimberg, 0. e Volta, L. (1994) Utopias Buenos Aires: Corregidor. 128 Em épocas nas quais se entrecruzam culturas, nas quais se vivem mudan¢as vertiginosas, aprofundam-se as contradig6es, Isto € 0 que entendemos, acontece neste novo século. Impde-se, ent&o, a necessidade de prefigurar até onde conduz esta crise buscando distinguir até onde queremos chegar. Se estivermos colocando em destaque a possibilidade de que a.infancia vulneravel continue sendo apropriada, também queremos tomar o desafio de pensar e enunciar o que é que propomos como valor diferente a apropriacio. Em primeiro lugar, se continuamos considerando estas crian- as eadolescentes como “restos", corremos 6 risco de, no melhor dos casos, continuar instrumentando politicas e subsidios especiais para isold-los do conjunto social. Assim continuar criando instituicdes e “programas depésito”, decidindo por eles e suas familias em “medi- das de protegao” ilusérias. Eimpossivel queas criancase jovensseparados de seuentorno familiar, de cria¢ao, possam chegar a construir uma identidade social."* Entio, todas as tentativas de apropriagao, significam, desde uuma perspectiva social, favorecer a fragmentagio."” E no plano individual, contribuir a formagao de novas subjetividades e patolo- agias sociais: violentas, de comportamentos sociais narcisistas, isola- das, condutas aditivas, etc. Para finalizar, proponho a responsabilizacéo no cuidado das criangas ejovens. A responsabilidade que deveriam assumir:o Estado, 6s profissionais eos operadores das instituigdes especializadas, e uma sociedade que, em seu conjunto, promovaa possibilidade de que estas criangas e suas familias sejam protagonistas de siias vidas. Que elee também possam recuperar sua capacidade de decidirsobre seu futuro. "= Em La apropriacion en el acogimiento familiar, no prelo, ocupei-me em detalhar os efeitos que tem sobre a configuragio da identidade das criangas a manipulacto que se costuma fazer delas a0 colocé-las em familias substtutas sem resguardarorespeito sobre suas origens biologi cease culturas " Galende, Emiliano. (1998) “Crissy perspectvas de la integracion socal ylasalud mental” em Castronuovo,R.(org.)"Integracién odesintegracion social” em El Mondo del Siglo XXI, Buenos Aires: Espacio. 0 trabalho escolar infantil tem valor? A colonizacdo das criancas pelo trabalho escolar: Jens Qvortrup Introducao A principal tee deste capitulo é que as cians sempre trabalharam, porém a natureza de seu trabalho obrigatério mudou, deacordo com os modos de producao predominantes, Este ponto de visea, que vai ser argumentado teérica e historicamente, implica transmit uma aparente descontinuidade histricano trabalho das criangas a um sentido de continuldade, Somente uma perspective comparativa, fiel a idéia de equivalencia de significado, € capaz de fazer justiga a uma diversidade em relagao ao trabalho de criangas, ‘conquanto afirmando que basicamente apenas suas formase contet- dos mudaram, Apesar de todas as complexidades, quero na medida do idéiaestéemsua cssivel seguir esta déia simples. A simplicidade da i Bae compreender continuamente 0 trabalho das criangas como parte da divisto do trabalho de qualquer economia; perceber ren’ school worke have @ value? “Titulo do original ingles inédito: Does childre " Clonsatonfchdren hugh iirschol work Tradugtoautozada pelo Autor (N. do T.) Tradugdo: Pedro Henrique Bernardes Rondon. 130 © trabalho das criancas como um problema comum sob diversas Gircunstancias sociais ¢ econdmicas; isto €, nao deixar que o probe. tau cela perturbado por tempo e lugar — seguindo areceita compa. fativa de Mare Bloch: “A unidade de lugar € apenas desordems Sonfente a unidade de problema faz um centro” (Bloch: 1934, p. 81, ttaduzido do francés por Skocpol, 1994, p. 89) © socialista austriaco Outo Felix Kanitz escreveu ha trés amos de século sobre as criancas da classe operira de Viena, que clas tinkam que realizar tes tipos de trabalhos:além dos trball-og escolares, que ele definia como “trabalho socialmente necessitio em termos de qualificar-sefisicae psiquicamente — urn trabalho que é «Continua sendo necessério em qualquer sociedade”, as criancas tinham que fazer trabalho assalariado regular, e trabalho domeéstico nolar (Kanitz, 1970, p30) Kanitzcaptou dois pontos importantes Por um lado a sugestio de que o trabalho escolar das crianeas € trabalho necessirio e, por outro lado, que diversas forma de trabalhos podem coexistr, Este ltimo €particularmente verdadesea Cur Periods de transicao da sociedade. A propésito do primetro, Kanitz esta enfatizando que o trabalho das criangas noceseou, nem necessariamente cedeu, a medida que seu trabalho predominante fosse eventualmente realizadona escola. Ele estavaapenasindicandds due @ composigao das formas de trabalho das criancas estava mudando, eque umadelas —o trabalho escolar —estava caminhan: do para tomar-se o dominante, enquanto o trabalho manual estarg aradativamente atrofiando-se. Esta opinito € importante porque obriga-nosa compreender as atividades obrigatorias das crianeas a0 relacionamento destas com as economias predominantes, Nio ha nada seussacional quanto aideia de formas coexistentes de economias em periodos de transigdo. Esta questi tem side enfrentada por muitos historiadores e economistas, talves mais convincentemente por Marx que em particular lidou com remanes. centes de feudalismo durante as fases iniciais do capitalismo, Nestas fases hi lutas em curso entre forcas interesses pertencentesa cada uum dos modos de producio envolvidos, Este fatohistorico, entretan, {0, ndo conseguiu esconder que um deles predominava cada vee mais, enquanto 0 outro finalmente perdia sua importancia, mesmo se bolsbes dele pudessem sobreviver em formas arcaicas ou ansero 131 juadro similar diz respeito a0 ices. E minha proposta que um qi eee puna fori/ oslo tit finalmenteganhando importancia — de at, sso comes sto temps na hana atest enon nas modernas ec . for n sobreviver como nichos crores seypmeracetinres succes tvultarlargamente no cotdiane de mulaserangas. , lar das criangas — como contribui- Sugiro que o trabalho escolar clo presumivelmenteconsdenivel pasa modem eednomin cura importante prticaparaascriangas—€ umadreaneglgenciada tanto na dncia quanto na polica. Essa neglgenla tem —e tere por muito tempo — uma quantidade de consequeneias, que precisam ser esclarecidas na politica e examinadas por cientistas sociais. Essas comeciicia ver nin sng lesoert co aNSSEES SEG ao tab, fen pela apse era MAESTEG o cultural para elas, de que ndo precisam ser vist eee 2 ssivo eoondrico devdo «sua supesta inate subennnaiit “ uuma quantidade de outras esses consequencias tem a ver com uma 4) ne uenbel also esr net ng eveieuoteCe AND maior exposicao das criancas ao relativo empobrecimento, e w proslema de longo prazo com a seguridade dos idosos. O debate e a pesquisa atuais sobre o trabalho infantil Asani ¢ os debates sobre o abl da eriana — 08 wath ffl — come atsliment 0 condi ein gua excsivament as atvidades de abl ford eso. De fa, tbl el ¢ aml plicamete olen trabalho infantil, como umaalternativa pela. Ido eke lovey tee Se es . ainda esta—fora de aleance para um nomeroimenso de cies ects Gove Carle eh cia vO alte nn eslt aeges 4 pobblidae to long quanto propi itoni bumane, A dlarusso acereadele como questo pola que ata Ineressemoral e politico € muito mais nova—tem, digamos, dois séculos, am 132 queaexploracao das criancas atravésde seu trabalho forcado tornou- se visivel, tanto em alcance quanto em gravidade. Desde entao tem estado na agenda, embora 0 estigio de ser faco de especial preocus Pagsomoveu-sedo passaclo dos paises ocidentais parao presente dos Patses do sul e do oriente, © erabalho infantil € uma questao da méxima imporancia, seu estuco merece muita atengao e muito respeito. Por razdes de Extrema gravidade, este ¢ antes de mais nada 0 caso em palses subdesenvolvidos contemporaneos,emuitas licdes devern seraprens dias dessas arenas —em termos de compreender tanto o deservols vimento economico quanto a agao das criancas. Entretanto, esta na € aarena.a que quero dirigit-me neste capitulo, no qual de maneira eral vou confirmar minha andlise tendo a Europa como cenario-—- passado e presente. Na Europa (¢ em outras partes do mundo desenvolvido) a dlscussto acerca do trabalho infantil esta intensamente ativa, A quesido ainda ¢ capaz de despertar o debate entre os representantes de diferentes interesses, como fcou claro ha poucos anos, quando a Uniao Europeia legislava sobre isso ¢ estipulou um novo limite de ‘dade para se permitir que uma crianga trabalhe por dinheiro fornda escola e do lar. Entretanto, em geral a discussao acerca do trabalho infantil na Europa hoje em dia ¢ diferente do que foi istoricamente As razdes para a mudanca na abordagem da questio devem.se em Parte @ que 0 problema nao tem mais a mesma importancia que j j{xer €m termos quantitativos, e em parte porque seus perigos esto longe de ser tao graves e importantes como anteriormente, embora tantoaexploracio quanto os grandes riscos para satide das criangag ainda sejam multe numerosos. Como uma realidade para dezenasde mnilhares de eriangas na Europa, o estudo do trabalho infantil continua sendo importante, também em termos da colocacao das ctiancas na divisao do trabalho, seus motivos para adotare aceitaros contratos de trabalho ¢ os salarios. Muitas ligdes tém que ser aprendidas do trabalho infantil, também em termos das atitudes da sociedade adulta em relagio as criancas e a0 préprio estatuto das riangas como participantes do tecido da sociedade. ‘A minha parte de questionamento na pesquisa sobre trabalho 'nfantl, portanto nao é uma tentativa de depreciar a importancia da 133 pra ealdade, nem de sua signifcagao emtermos de resides I inepocttuatine desi ei cnet simplesment nda {ima ou duas questdes seu potenca racaso quanto a uma sdequ incompreensio de sua posigio — e da posigto das cranes ae alham — na medera economic, na avalaio, a meu ver qiivocada, que faz do trabalho extracurricular das criancas tr endo Cunningham 2000 us recs intret nacre pesquisa sebe tab nfantilcontu quem frabatho infant compreendido como trabalho assilariado fora és nda em nomno mar po oncrt ec dexamesma forma escort sun supe deque ua ‘adulizsto" Aotrbalho oconeu. Erretanto.aperpectvaescfida neste captilo suger que as conclustes de Cannngtam sto problemas por cle,como praticamente todo mundo, indica continuidade do tra cca parece inca que 0 trabalho infant em prinpo iin mesma coisa quesempresgfco, esto sob eens cies economicas intelramente diferentes, e assim fica just aie Sa peceepe crete anae ina ezlr como serdo 0 novo —¢ “manent ose — tshalhoinfntl ea ft lang-se uma denovasperspestes bem comonovas perguntas apresentadasaosconceitosrel trabalho infantil tradicional Importancia e posicdo das escolas na sociedade moderna ‘Numa notavel declaragao feita pelos autores do Quine a teiosobrea FamiliaaoParlamente Alem fo dito que dispendio come sistem eluecional ten a mesma importnca media ara a sociedade ea economia do que o dispéndo com a infe-estratra no inst, po enusa ds conseqancis superiors que uma pten- cal fren de trabalho qualiicada tem come instrumento para a politica economica fundamental. Assim, esse dispendio a Frimaviamente contabilzado como umn elemento na ae As encargos de familia" (Bundesminiserum ..,1994, p. 291). B+ Compensacio deenca an gos famillareséumeleme argo poticaalensdafantlacomoemmueccen ae Seasincaitanha € wma questao muito explictamente debate, eco antes de tudo aiviaras fata que tem crema Serpe diets indretas com a criago dos ilhos. Assim conte oe de atlas quetemcriangasstonesesteroslershnse ones = tals como as despesas Insito, os militares, pes 'spesas com 0 transit spite 0, ae litares, pesquisa, O reconhecimento do si i sistema educacional como r lidade que tem que ser compartilhada ee Pagano para criancas através do orcamento pata as escol a Pa r a as escola. compensndarntamtemente, posigto de que os pais merecem se Mio 6 ined P ot Ses encargos e sacrificios por educarem os filhos ' mas continua sendo controvertida — exatament exatamente 135 plas mesmas razdes: eles fazem contribuigdes inestimaveis para a forca de trabalho e, afinal, para o resgate de pensoes e atencao para uma populagao idosa finalmente numerosa Os dois pontos de vista refletem uma crescente diferenciagio dasociedade na modernidade, Estao sinalizando que as criangas nao to responsabilidade comum e piiblica, pelo contrario, porém também transmitem a mensagem de que uma aceitagao nao-reco- hikecida e sem reciprocidade de uma responsabilidade unicamente parental pode causar dano no final das contas. Mesmo a curto prazo esa sendo reconhecido que uma crescente taxa de pobreza entre as ccrangas tem que ser tratada como parte de qualquer programa de governo, dado que tal tendéncia moderna pode ser atributda as dhificuldades dos pais a gastar apenas o que ganham quando tém criangas em casa, se ponto de vista nao ¢ propriamente novo, masa novidade sua emergencia na agenda politica, embora com grande relutancia por causa de suas potenciais consequiéncias orcamentaias. Em boa medida, portanto, busca-se esta perspectiva enquanto compreendi- de como uma questao de politica social ou de politica para a familia ede modo algum como uma questo que tem a ver com transferén- cias ou justica distributiva entre geragdes. A excecdo € o citado relatério alemao que levantaa questo como sendosistemica. Porém, ‘conquanto se fagam progressos assim até aqui, uma visto parece estar faltando seja por causa dos riscos que implica ou porque simplesmente nao € trazida a consciéncia de ninguém, a saber, que as proprias criangas podem ser contribuintes ¢ com isso no final autores de reclamacoes através de seu papel no sistema educacional. Numa perspectiva historica, de fato esta era.a posigio que as criancas sustentavam anteriormente: podiam como contribuintes fazer recla- magoes de recursos na economia local, da qual faziam part. ‘Oqueestive dizendoacerca do sistema educacional edo papel dos pais visa a servir como marco do arcabougo e do alcance dentro dos quais devem ser vistas as modernas atividades obrigatorias das ctiangas. Em especial quero sugerit que o trabalho escolar das ctiangas € a continuacto do trabalho manual feito por elas antiga- mente. A fim de tomar transparente este argumento, tenho que tratar da mudanga de contextos dentro do qual o trabalho infantil ¢ 37 Tealizado, Em Particular quer nent a0 spa HR gto desucar noeto de tbh ine Quand do Arits, a inftncia fol “inventada” — e ele Hibotese de que as atvidades infantis e a meen ormulando a ica cm especial ela ead importante nes itis e a infincis o indica vida maroi neste engasadas em modiiagder horns nt em sera sag processo — estava calgado o caminho para uma crescente atencao Aquilo queascriancas faziam. Asdescricdesdo trabalho infantil feitas pelos historiadores no século XIX é suficiente para compreendermos pelo menos duas coisas: uma, que as criangas realmente faziam —e faziam, deixando de lado as minucias, atividades manuais, como quanto asugerir que sempre tinham feito até essa época; e dois, mesmo que em larga geri que ao longo medida compartilhassem tipos de atividades com adultos, ficava cevidente aquilo que elas faziam — alguns, mas longe de serem todos, inlerscon comegaram a ficar alarmados com aquilo que foi compreendido i; Por exes como um ataque aos corpos e as mentes das criancas. Isso relletia Infancia, modernidade e diferenciacao social “proles”, que quer dizer « ho"seque um prolesnioera um romeo oes rd ‘um, uma nova conscientizagao acerca das criancas, como foi sugerido por Imponan. 0 $9 ocortiam através de seus filhos avs oe Aries e por muitos outros. Porém, no se tratava simplesmente de ZZPomn, mas muito rapklamentee sem queen uma nova conscientizagdoacerea das criangas, mas também acerca ©, € provavel que — deixando de lado os disde pees ctl ds familia e da economia. Como diz Brunner, “somente no século meias€ meninos nas Segue peed ocr XVII o mundo da familia penetrou na linguagem didria alema e PogeuPavam em cacar, que nas vilas de pescadores as erie atngiu essa emocionalidade especial que ligamos a ela” (Brunner, vam com aividadesrelativas& pesen hes ingas 1980, p. 89). Mais surpreendente isso fica, talvez, quando Levine diz obrigadas a fazer trabalho agricola ete 1" M2 Serteultura eram que “O que fazer com a economia tem sido um problema desde que a ae historiadores podem estar tabelando mais evide pela primeira vez nos demos conta de que tihhamos uma. Nossa pie canta thas nao muito mais, Uma razto para essas Ine ae consciéncia da economia, entretanto, éum desenvolvimento bastan- 0 conhecimento € sugerida so lacunas no te recente” (Levine, 1995, p. 12). ak Por Ariés. Quando em sua famosa . oes leclaagto ele emite a opinine de ee sua famos: Todas as trés citagoes, de Ariés, Brunner ¢ Levine apontam exista aidéia de infancia”..“faltava . cetera nna mesma diregao e tem grande importancia para nossas finalida- particular da infania, dagucls ra *COnsiencia da natura des. Todos eles falam de uma falta de consciéncia acerca respecti- Grianga de um adulto™ (anes, 1962, p “1B, ele coe eta vamente da infancia, da familia e da economia. Eu nao leio isso polio ee que a compreensio acerca da diferenci a a como se simplesmente bastasse algum construcionismo social — s dificilmente existia, porque de fato ne aio ot, -cisamente: ivi -ntal — tuir a & egastadas na comunidad na qual pase Moe as dade neplente— por melo da crescent dierenciagdo devas Seas filhos viviam e trabalha- : nee ag Portanto, que estamos justificados quanto a Hs tt exigencias de produgdo que se modificavam — pos fim a unidade co Ra § diferencincto eftivada pela dvisto do usleeee ee de produgao até entao dominante, a saber, a familia, aquilo que os OH Seu dagquilo que criangas © adultos f ea ma alemaes chamam “das ganze Haus’, isto é, a familia toda com seus ainda quando as atividades sepals agregados ou c fe ni dades corporat tnd? a8 tividedesfossem ‘daptadasa suas capaci, igregados ou uma propriedade, conforme o caso. Este nao era 0 lugar para uma familia intima como a conhecemos hoje, nem as ctiancas formavam um grupo segregado; e aquilo que Levine | | 138 chama de economia, era a familia c sar o termo grego, a oikos, i et ee roducdo, consumo, a arc agg Onsume, circulacdo,divisio de trabalho erepredugae Sas formas ¢ importante “economizar”, Conquanto, sere eer itetblo nada tivesse mudado em termos de funcoes 4 eram idénticos aquel iam, 0 que significava que aqueles que reproduziam, si 0 que signifi rea an Podia serum mercenatio no sistema nem esquivar-ce a res lida ponsabilidade pelo interesse comum. Isso implicava impor, na soa manutengto assegurada, mas também tinham que trabalhar sets pa brett do que esperava-se que tomassem conta de de bapa iia que estesenvelhecessem. Num estado moderne ar liscal, € possivel argumentar, tudo ¢ feito de mancira 139 Se este quadtro da sociedade pré-moderna soa exageradamente \dilico, nao é esta a minha intencio; sei perfeitamente bem acerca da imiséria e dos conflitos por uma variedade de raz6es, mas nao é este o ponto aqui, medida que eu simplesmente quero retrataros principios do sistema, Da mesma maneira pretendo retratar os prinefpios da ‘mocema oikos. Os processos sio os mesmos, porém osistera funciona cde uma maneira dramaticamente diferente, devido ao alto grau de diferenciagéo e divisio do trabalho como resultado das novas deman- das dosmétodos de producao ora dominantes. familia propriamente ditaqueanteriormente era um dos elementos nucleares da antiga oikos, esta afastada dos locais de produgao, que simplesmente precisam de individuos da familia como empregados. Os locais de produglo, por outro lado, no produzem criangas — tarefa que continua sendo negécio da familia. Entretanto, € um negécio que, diferentemente do que ocorreu anteriormente, nao implica qualquer ganho em termos materiais; pelo contrério, as motivagdes tradicionais da fertilidade desepareceram inteiramente — as criangas nao trabalham mais no inte:esse dos pais e os pais nao dependem mais de seus filhos para a provisto da velhice. Assim, ndo éde admirar que osniveis de fertilidade tenham caido verticalmente durante o século XX Mais importante de tudo para os nossos propésitos, as crian- 28 ¢ 0 uso de seu tempo ndo se tornaram redundantes. Contraria- mente a visio daqueles que consideram as criancas na modernidade como intteis, elas ganharam uma nova importancia na esteira da modernizagao.e como elemento indispensivel na moderna cikos. Seu tempo e suas atividades foram exigidos e portanto colonizados pelo novo mevodo de produgave consequenternente eles Canina en ‘massa para os locais universalmente estabelecidos para o trabalho da crianga moderna —a escola. As escolas se tornaram 0 novo local de trabalho das criancas, tornaram-se o lugar onde as criangas foram br gadas a passar a maior parte de seu tempo durante a infancia— foi cada vez mais assim a medida que o século avangou. Asescolas tomaram-se o novo ambiente para as criancas desempenharem seu tratalho imanente ao sistema. Porém, uma vez que o sistema se moiificou, modificou-se também o trabalho que Ihe era imanente, Ha uma logica nisso. Na pré-modernidade —e no ha razto aqui para discutir quanto ao momento em que a mudanca ocorrew, Porque © desenvolvi lvimento teve atingiram a modemi: teve lugar em todos 141 dade — as atividades ing Imanencia ao sistema, continuidade e descontinuidade Vale a pena lidar mais com a nogio de imanéncia ao sistema. A hhogdo sugere que em qualquer sistema ou modo de producao deve haver uma logica que faca a conexio de suas partes principais, se € que {eparafuncionar sem tensdese paraa satisfacéo da maior parte do povo. Se isto soa funcionalista demais para o gosto de alguém, quero acrescentar em primeiro lugar que nao tenho medo do funcionalismo; ‘emsegundo lugar, que com isto nao pretendo estar dizendo que todos os sistemas sto suficientemente fortes para garantirumasuave imanen- cia ao sistema; entretanto, se nao for atingida uma correspondéncia entre elementos cruciais, tetemos que levar em conta os conflitos — quer tenhamos consciéncia deles quer no. A questao do trabalho das criancas ¢ um exemplo caracteris- lice, E plenamente possivel encontrar diferentes espécies e formas de trabalho infantil simultaneamente, e de fato isso foi claramente visto nahistoria e encontra-se em diferentes partes do mundo atualmente. Em épocas anteriores na historia sempre se viu, como ja mencionet, alguma freqtncia a escolas, mas quanto mais para tras na histéria, menos abrangente era essa frequéncia, em termos de participagao dascriangas, Entretanto, foi crescendo uniformemente, o que nos da razto de falar da freqaencia a escola como uma atividade embriona- ria das criancas. No Terceiro mundo, hoje, experimentamos semelhantemente uma simultaneidade de trabalho escolare trabalho manual, mas também percebemos um conflito exatamente entre aqueles que querem usar as capacidades manusis das criangas ¢ aqueles que pressionam em direcio a escola. A razao desse conflito obviamente € que a demanda popular para atividade escolar das criangas, embora desejada em principio, nao ¢ forte o bastante diante da demanda de ajuda para a sobrevivencia. Até um certo ponto de inflexdo no processo de modernizagao, 0 trabalho manual nesses paises vai continuar sendo imanente ao sistema apesar do fato de que normativamente e culturalmente a atividade escolar finalmente seja recenhecida como desejavel para as criancas. No presente, na sociedade ocidental, ha muito tempo che- gamos ao outro extremo do processo. Ainda encontramos as duas formas do trabalho infantil, mas dado o fato de que todas as 20 sistema — era logico que as Icitadas a empregar em escolas a Se = 142 ctiangas passam todo sei Rotavel absenteismo, tem se tornou a norma, mas ta da economia dominant. escolas ainda esta conose U tempo regulamentar na escol : cola. sem: os teed de sugerir que isso ndo apenas bem expressa uma demanda por part © trabalho manual das criancas fore deg -0 em graus varidveis de um ee ana am pals a outr ae a MP um fendmeno marginal ou residual O mmero de eee nai Pelas criangas no trabalho escolar a cada semana ultrapassa por larga larga marge r trabalho manual asaarado, ® S HOTS passadas no manu. v reas hoje em dia tivesse posicao, estatutoe importancia equiva csquisas acta ht 100 ou 200 anos. Se iss0 € sugeridb por p saul cris ae Site Ro camino errad, Pior ainda, o at de lucesse trabalho atualmente tem recuado di aed : recuado dramaticamente a medida Alle © tempo passa, ¢ infelizmente tomado por mutes, oer observadores, to discernimento, como sinal de crescent iutlidade das criancas, porque estao comp lo apenas as ativi 1648, Porque esto computa s i das cettlhantemente fcaria sem ser las criancas tivesse aume dhs cans ntado porque © tempo que passam na des daa havelmente. Como medida ou computo das aia eae mos que comparar a quantidade de aiv. imanentes ao sistema, o que provavel a + 0 que provavelmente ¢ impos- scineet tue aproximacao. Em outras palavas, vemos que afvidades manuais infantis do tempo antigo com as ntido sugerir que a utilidade 143, {ais como o trabalho escolar embrionario anteriormente, eo trabalho manual residual atualmente. Seguindo essa linha estaremos sendo fieis as sugestées prove- hientes da pesquisa comparativa, a saber, buscar alcancar a equiva- lencia de significado, ou como foi formulado por Erwin Scheuch: indicadores similaresem diferentes patses, podem ser interpretados ‘omo funcionalmente diferentes, enquanto indicadores diferentes podem ser interpretados como funcionalmente equivalentes” (Scheuch, 1969, p. 173). Esta importante compreensto nao ¢ nova para os comparativistas, Poderiamos, por exemplo, consultar pesquisadores descola dos Anais Franceses, como Marc Bloch e Lucien Febvre, ou examinar a obra de Barrington Moore e Karl Polanyi. Vou citar aqui aquilo que Dalton escreveu na introdugao que fez a uma colecdo de artigos de Polanyi: “toda sociedade estudada por antropélogos, historiadores e economistas tem uma economia de alguma especie, porquea vida pessoal eem comunidade exige a provisio estruturada dle bens materiais e servigos. Esta €a definicao minima de economia «que chama atencao para similaridades entre economias que de outro modo sao tao diferentes entre si comoas IIhas Trobriand, um kibbutz istaelense, um solar senhorial do século XII, a Inglaterra do século XIXeaeconomia de hojeem diana Unido Sovietica. Essas economias to diferentes tém em comum o fazer uso de recursos naturais, tecnologia, divisdo de trabalho e, freqaentemente, praticastaiscomo comércio exterior com estrangeiros, 0 emprego de mercados, ¢ alguma forma de dinheiro. Porém, a institucionalizagao espectfica decses aspectos pode variarradicalmente entreascconomias" (Dalton, In Polanyi, 1971, p. xxii) ‘Oque Dalton explica aqui acerca da similaridade de economi- as bastante diferentes ¢ paralelo ao que estou argumentando acerca das similaridades de diferentes formas de trabalho infantil; trabalho escolar e trabalho manual so as formas significativas a comparar porque compartilham uma fungdo comum, tum sentido e importan- cia para as economias ou oikos nas quais estdo engastadas. Se — parafraseando Dalton — houvéssemos de sugerir “uma definigao minima de trabalho infantil que chame atencao para similaridades entre economias que de outro modo so tdo diferentes”, poderiamos consequencias, O trabalho escolar na divisao diacronica do trabalho Parece-me que, entre os pes hd concordancia quanto a suges inkciais da historia — onde qu. transversal — de fato contributivo dentro de do original inglés inédito: Overburdened school-going children: some reflecions from a small town in India, Traducao autorizada pelos autores (N.doT) ‘Tradugao: Pedro Henrique Bernardes Rondon. 154 das sociedades contemporineas “o aspecto predominante da infan- cia € 0 da impoténcia e falta de conttole sobre aquilo que Thes acontece” (Landsown, 1994, p.34).A infancia socialmente margina- lizada restringe as atividades das criancas a “lugares e modos especificos das criancas” (Bardy, 1994, p. 307). As atividades das crian¢assao rigidamente organizadas por horarios. Além disso, “cada tipo de atividade tem sua propria lideranca adulta” (Nasman, 1994, p. 182). A infancia como construgio social nao pertence a ninguém, mas todo mundo compete com todo mundo para controli-la, Os competidores posstveis sio a sociedade/escola, a familia eas proprias criangas. “Ascriangas que em todasas sociedades estao por definicdo fora do jogo do poder, sio as que menos controlam a infaincia” (Shamgar-Handelman, 1994, p. 264). Em nossas sociedades con- temporaneas numerosissimas criangas passaram quase diretamente dos primeiros anos para a idade adulta, e se algum dia vivenciaram a infancia, esta foi apenas um estagio fugaz. As criangas de nossas sociedades contemporaneas estio sobrecarregadas. ‘Nenhuma sociedade hoje ¢ considerada completa sem uma escola, E aqui que dar instrugdo sobre determinados assuntos € também treinar a crianga em outras tarefas da vida, d& como resultado 0 desenvolvimento da sua personalidade. O sistema edu- cacional representa a forca estrutural fundamental da infancia mo= derma. O sistema educacional estruturaa vida da crianga por meio do tempo passado na escola diariamente, pela quantidade de deveres de casa, pela atitude do professor, pela estrutura do curso, etc. ‘Aeescola nao ¢ apenas a aprendizagem de fatos e algarismos, A Convencio das Nacdes Unidas sobre os direitos das criancas expressa pontos de vista acerca do espitito da escola e dos valores a seremensinados. Os métodos pedagdgicos deveriam ser ministrados de um modo coerente com a dignidade da crianga humana e de conformidade com a presente Convengao (Art. 28: 2). A Convencao das Nacdes Unidas interpreta isto como significando que 0 castigo corporal nao deve ser permitido em escolas. A educagao deve visa ‘desenvolvimento da personalidade, dos talentos e das capacidades fisicas e mentais das criancas, 20 seu pleno potencial. Deve preparar a crianga para uma vida responsdvel numa sociedade livre, no espirito de compreensto, paz, tolerancia, igualdade dos sexos, € 155 amizade entre todos os povos. O respeito aos direitos humanos especificamente mencionado no Art. 29. O direito da crianga a0 epouso, ao lazer e a brincadeira, é abrangido pelo Art. 31. O sistema escolar competitivo e em expansao contribu pesa- damente para o desenvolvimento de uma ideologia educacional de comocriar criangas. E possivelargumentar que o carater da educacao das criangas como investimento basico no futuro implica que a edlucagao pode ser interpretada como trabalho. O sistema educaci- ‘onal em expansao que domina o dia das criangas numa medida cada \vez maior representa o trabalho infantil da sociedade pos-industrial (Field, 1995, p. 51). A nova crianca trabalhadora é a crianga escolar (Qvortrup, 1987, p, 15). Pais e professores pressionam a erianga a distinguir-se no mundo da competicdo, especialmente em buscas academicas, De fato esta preocupacao é evidente em todasas culturas que valorizam os feitos académicos. O esforgo feito para acelerar a aquisigao de habilidades academicas das criancas inicia-se, para ‘muitas, ogo apés o nascimento. A formacio académica que se inicia 405 4 anos de idadle considerada muito atrasada, Aestreiteza de visto a propésito das criangas atingiu propor- ‘bes epidemicas. O futuro assoma com tal grandeza nos horizontes Imentais de pais educados, que o presente fica totalmente engollado. © presente torna-se um meio para atingir um fim, o futuro sendo 0 fim, Eesse futuro ndo tem, como objetivos a serem alcangadlos ou luagosa serem cultivados, a marca da felicidade ou da compaixao, O futuro da crianca, conforme € visto pelos pais, ¢ vida confortavel, sucesso, dinheiro, etc. A importancia destas metas ¢ inflada pelos puis fora de qualquer proporeio. A definigao corrente de “conforto” Into pederia sequer tersido imaginada tres décadasatras: € oaciimulo debens duraveis, comida pronta, tecnologia de informagao atualiza- da e cidadania de pals desenvolvido. Para comecar, sucesso, & ademico: classificacoes, estrelas, medalhas e os trabalhos, logo seguidos pela opcdo por carreiras. Empurrar as criangas na direcao esses objetivos significa também colocé-las em camisas-de-forca em diversos momentos ao longo da infancia. No processo, o sistema tucacional € o parceiro condescendente. As escolas gostam de ter ions resultados” e sabem que pais ambiciosos vao estimular seus fihos « que atinjam bons resultados nas provas. 156 “Assim, todas as praticas educacionais, em alguma medida, S10 inumanas porque pressupdem que de fato exista uma correspon- dencia enire as medidas educacionais e as necessidades das ccriangas, uma vez que as necessidades das criancas sto conside= radas como sendo aquilo que € conveniente ¢ adequado a nnatureza das criancas. Assim, as necessidades das criancas $10 reificadas e explicadas como naturais’ (Castro, 1996, p. 76).. ‘Assim vicejam as conspiragées dos adultos contra as crian¢as, A escola institucionalizou ainda mais a separagdo entre as criangas € & sociedade, atribuindo-Ihes uma identidade separada: seu lugar apro= priado € a sala de aula, Do ponto de vista dos adultos as criangas deveriam ficarisoladasem larese em escolas porque o mundo em geral pode ser perigoso para elas (Castro, 2000, p. 139). Assim, as criangas sfioexcluidasdomundo adulto. E ditoascriancastodo o tempo: “€ para seu bem’; geralmente qualquer tentativa, por parte das criangas, de pediruma redefinicao dos objetivos parentais ¢ tratada como umslogan deliberdadenum patssob ocupacio. A qualidade dainfancia deteriora- se nitidamente. Ariés (1962) conclui que a familia e a escola s40 responsiveis pelo afastamento da crianca da sociedade adulta Objetivos Contra esse pano de fundo, a intencdo deste conciso estudo € analisar em que medida ¢ dada liberdade aos estudantes de participar da tomada de decisbes a propésito de questies educacionais. O estudo examinacriticamente acarga de trabalho fisico emental dos estudantes dle uma amostra em duas situacoes diferentes, isto, escola e o lar. estudo tenta dar lugar a voz das criancas a propésito de seu ambiente na escola e no lar. O estudo finalmente destaca a divergencia entre a perspectiva que as criangas tém sobte suas proprias vidas, e as perspectivas dos adultos sobre as vidas das criancas. Area de estudo © estudo foi realizado entre estudantes de uma pequena’ cidade de Orissa. Orissa é um dos Estados menos desenvolvidos da 157 Indiaelocaliza-se na parte oriental do pais, Acidade de Brajarajnagar, #1 irea de estudo, fica no distrito de Jharauguda, Das onze escolas, locilizadas nessa pequena cidade, as 4 escolhidas para o presente ido sao: Daniel Public School, Kendriya Vidyalaya, OPM Boys’ High School e OPM Girls’ High School. Nossa amostra de escolasem. lirga medida representa o quadro de toda a india, uma vez que eneontramos escolas desses tipos por toda a India urbana. Os estudantes das escolas da amostra esto submetidos a 3 tipos de ‘curriculos escolares, por exemplo, o Certificado Indiano de Exame Secundario (Indian Certificate Secondary Examination — ICSE), 0 Exame Secundario do Conselho Representante (Council Board of Secondary Examination — CBSE) e 0 Certificado de Exame de Escola Securdatia (High School Certificate Examination — HSC). Das 3 diferentes estruturas de cursos, a ICSE éconsideradaa mais dificil de todas, seguida pela CBSE. A estrutura de curso HSC é considerada Iigeiramente mais fécil em comparacao com as outras duas. Um humero total de 120 estudantes da VI X série, entre 11 e 16 anos de idade, foram escolhidos como entrevistados primérios. Foram incluidosna amostra 40 estudantes de cada tipo de curriculo escolar. (Os dados para o estudo foram recolhidos com a ajuda de entrevista € métodos de observacao. Os estudantes da amostra também foram solicitados a que nos fornecessem informacoes a respeito de suas experiéncias diarias em relacdo a escola e ao lar, Os resultados desse estudo refletem 0 estatuto dos escolares na {ndia urbana? * Patamelhor compreensio das paticularidades do sistema educaciomal na India por parte do leitor brasileiro, o autor ofereceu esclarecimentos adicionais: ‘A maioria das escolas particulares de nivel medio, com ensino ministrado «em lingua inglesa, de V1 X série, segue o curriculo ICSE, considerado 0 maisdificil dostrés. Um aluno que sigao curso ICSE termina X série mais ‘ou menos com 16 anos de idade. Estas escolas custam muito caro e, portanto,nelas nto se encontram estuantes provenientes de farnilias de baixa renda. Todis as escolas do Governo seguem estrutura identica de curso (CBSE) no rivel secundatio, Estas escolas se localizam em todas as cidades grandes em algumascidades médias. O curso CBSE ¢ lgeiramente mais 158 Daniel Public School A Daniel Public School (denominada DPS daqui por diante) € uma escola média mista cujo ensino € ministrado em ingles: Localiza-se nui ambiente relativamente isoladoe menos poltido, A escola estabeleceu-se no ano de 1982 e afiliou-se ao ICSE em 1994, E particular, dirigida pela comunidade crista local. A escola segue 0 curso ICSE na educacio dos estudantes. O numero de alunos e dé professores na escola € de 516 © 21 respectivamente. A escola facil do que 0 ICSE, mas € ainda arduo em termos de nivel de dficuldade Neste curso o aluno também chega aos exames finals da X serie com 16 anos. Asescolas que seguem o curso CBSE custam relativamente maisearo do que as escolas médias em idioma Oriyae relatvamente menos caro do que as escolas ICSE. Os funcionsrios do Governo Central preferem matricula seus filhos em «scolas CBSE (conhecidas popularmente como*Kendiya Vidyalaya"). As Kendriya Vidyalaya sio dirigidas pelo Governo Central e portanto os flhos dos funcionérios tem nelas algumas vantagens. (© curso HSC ¢ desprestigiado pelo Govern do Estado. Cada Estado tem, sua propria estrutura de curso HSC. O curso € ministrado no idioma nativo, No Estado de Orissa (onde foi realizado nosso estudo) 0 curso € ‘inistrado no dialeto Oriya, idioma nativo do povo de Orisa Acstrutura do curso HSC érelativamente mais leo que as outras dias Um estudante HSC apresenta-s para exames finais na X serie com cerca de 15 anos de idade. As criangas dos grupos de renda baixa" “media batxa” habimalmente frejientam essas excolas de idioma Oriya, Uma ‘importante razto para isso € que custam menos caro, Portanto, ontmero Iaximo de estudantes de nivel secundario no Estado sio matriculados neste cutso, A maioria dasescolasde idioma Oriya no Estados dirigidas pelo govemo do Estado. Portanto, estas escolas nfo estao em boa forma, no que se refere a instalagoes de infra-estrutura i, em Orissa, 62 comunidades tribals, cada uma com sua propria cultura seu proprio dialeto. Constituem aproximadamente 18% da populacio total do Estado. As criancas ribais nao falam Oriya, Portanto, a maioria delas quando admitidas em escolas de idioma Oriya abandonam 03 estudos muito cedo. Elas nao acham o curso interessante, uma vez que este nao se orienta em termos da cultura delas proprias. (N. do T,) 159 funciona entre 11 € 16 horas. Embora tenha segoes primaria e secundiria, restringimos nosso estudo aos alunos pertencentes ao -cundario, Esta escola é mais cara do que as demais escolas da a, Portanto, tem um nimero de alunos provenientes do Jejymento econdmico superior relativamente maior em comparacao com as outras escolas da amostra. Os pais de renda mais baixa em sgoral acham dificil matricular seus filhos nesta escola. Os estudantes dle sexo masculino usam calga marrom e camisa branca e colocam dlistintivo e o cinturdo da escola. As meninas vestem saia marrom blusa branca, Todos os estudantes usam sapatos pretos e meias, brancas, Entretanto, aos sabados vestem uniforme branco, uma vez «que participam das aulas de educagao fisica. A escola tem biblioteca com instalagoes de sala de leitura. Tem dois onibus para o transporte de seus alunos e professores que vem de relativamente mais longe. Kendriya Vidyalaya Kendriya Vidyalaya (KV daqui em diante) é uma escola média mista €o Governo Central, cujo ensino ¢ ministrado em lingua inglesa, Situa-se nos arredores da cidade, Estabeleceu-se em 1983 e aliliou-se em 1987. O ntimero total de estudantes da escola é 1096, © 46 professores trabalhiam af, A escola segue o programa CBSE. O horario€ de 10:30 as 15:30, Os alunos de sexo masculino usam calea azul e camisa branca, enquanto as meninas vestem saia azul e blusa branca. Todos calgam sapatos pretos com meias brancas. Toda segundi-feira os alunos vestem uniforme branco. A escola tem 4 onibus para o transporte de alunos e prolessores. A escola tem um biblioteca mal administrada, Os estudantes tém permissio de retirar livros e lé-los na sala de leitura anexa a biblioteca, mas nao Ihes € permitido levar os livros para casa OPM Boys’ High School AOPM Boys’ School (OPMBHS daqui por diante) éumaescola média cujo ensino € ministrado em Oriya (o dialeto regional do Estado), localizada no centro da cidade, A escola estabeleceu-se em 160 1942. Por muito tempo esteve sob administragio dos Moinhos Orient Paper, Brajarajnagar. Entretanto, foi tomada pelo governoem 1994. A escola segue 0 curriculo HSC. Tem 592 alunos ¢ 18 professores. A escola mantém horarios normais, isto €, das 10:30 as 16 horas. Os estudantes usam cal¢a céqui e camisa branca em todos 0s dias de trabalho. OPM Girls’ High School ‘A OPM Girls’ High School (OPMGHS daqui por diante) localiza-se ao lado da OPM Boys’ High School. E também uma escola média cujo ensino € ministrado em Oryia. A escolaestabeleceu-seem 1966. Foi gerida inicialmente pelos Moinhos Orient Paper, Brajarajnagar. Também foi tomada pelo Governo em 1994, junta- mente coma OPMBHS. E proporcionado asalunas o ensino segundo o curriculo HSC. Sao 622 alunas € 18 professores. Diferentemente das outras 3 escolas, aqui a escola funciona no hordrio da manha, isto 6, das 6:50 as 11:30 da manha, As criancas na escola “A escola como instituigao social € uma situagio em que crucialmente a autoridade dos adultos € mais notavel e menos possivel de desafiar do que no lar” (Mayall, 1904, p. 122). A escola € diferente do lar em seu cardter como instituicdo com objetivos sociais aceitos e normas formalizadas e implementadas através do regime; ou como foi claramente dito: modos padronizados de comportamento (Giddens, 1979, p. 96). As atividades das criancas. na escola sto burocratizadas pelo adulto (Hartley, 1987). “As criangas sto os objetos do empreendimento escolar, pessoas. a quem sfo feitas agdes; e, além disso, sio impotentes para reconstruir a escola como instituigio social que atende suas proprias idéias quanto aquilo que constituiria uma situagao de educacio favorivel acrianca, Para las. escola ¢ uma constructo congelada e impenetrivel de normas socials” (Mayall, 1994, 124), 161 “Comparada a vida no lar, a vida na escola oferece pouco espaco 4 negociagao com os adultos em posicio de autoridade... As criangas se sentem tratadas como membros de um grupo ¢ nao como individuos, e como objetos de sociabilizagao e nao como pessoas particlpantes” (ibid. p.124). adulto tem mais conhecimento da escola como ambiente ideal para garantir que as criangas nao tenham voz legitima. As ncasnuncaalcangam.a maturidade oua independencianaescola. ‘A independencia que os professores dizem visar para as criancas significa submissao as normas da escola, tanto académicas quanto socials (Ibid., p.122). Os professores distribuem ensinamento e {reinamento as criangas dentro do atcabouco daquilo que compre- endem como sendo a “crianca boa’ (ibid., p.123). As4 escolas daamostra ainda hoje seguem a forma colonial de educagio, comcurriculosinadequadose rigidose métodosdeensino ultrapassados, Todas as escolas funcionam 6 dias por semana (sendo co domingo o dia de folga). Os dados adicionais sobre os alunos da amostra sao apresentados na tabela 1. Dos 120 estudantes da amostra, 52 (43,3%) provem de uma famtlia nuclear enquanto os remanescentes 68 (56,7%) vive em familias maiores. Um total de 37 (30,8%) dos estudantes da amostra sto membros de familias pequenas (menos de 4 membros). Os nameros correspondentes de familias de tamanho médio (entre 5 e 7 membros) e grande, sa0 respectivamente 38 (31,7%)e 45 (37,5%). 20 (16,7%)estudantesda mostra fazem parte do grupo de baixa renda, enquanto os niimeros correspondentes para média e alta renda sto 64 (53,3%) ¢ 36 (30%) respectivamente. Dos 120 estudantes, 38 (31,66%) vio 8 escola de onibus, 30 (25%) vio de bicicleta e os restantes 52 (43,33%) vio a pé. Aescola comega a funcionar com uma oracéo (que dura cerca de 10 minutos), em geral feita por estudantes professores num espaco aberto, dentro da area da escola. Os alunos entoam uma cangio religiosa que contém alguns valores morais. Cada turma tem um professor titular que é primariamente responsavel pelo progresso educacional dos alunos. O professor titular habitualmente da a primeira aula ea inicia fazendoa chamada, Habitualmente os alunos tem Baulas por dia, cada uma com duracao de 40 minutos, com um intervalo de 10 minutos apéso terceiro tempo e outro de 30 minutos 162 pos o 5" tempo. A limpeza e a conservagao nas escolas da amostra’ sto deficientes, indo do higubre ao apenas toleravel. Nenhuma das escolas tem infra-estrutura apropriada. As instalacdes de agua nos banheirose bebedouros sto muito deficientes. Onntimero de criangas em cada turma € incomumente elevado. A relagio aluno/professor é também muito alta (1:25 no caso da DPS; 1;24 na KV; 1:33 na OPMBHS; 1:35 na OPMGHS). Essas escolas nao dispdem sequer do ‘mfnimo de material didatico. A DPS ¢ algo melhor em comparagao as outras escolas, quanto aos quesitos acima Os alunos acham macante ficar sentados continuamente numa mesma postura, sem conversar com os colegas, durante 6 Jongas horas. Ficar sentados numa sala de aula repleta com um unteo intervalo de cerca de 40 minutos € algo que os deixa sentindo-se intetramente exaustos. Além disso, uma alta percentagem dos estu« dantes nao gostam do ambiente ameacador da escola. Ha, em todasas escolas da amostra, uma tendéncia aabarrotar © programa de cada matéria com um excesso de fatos de pouca importancia para as vidas das riangas. Aqueles que fazem o curricue Jo no nivel da escola esto mais preocupados com exigencias cientificas e logicas do que com as necessidades, a psicologia e os interesses dos alunos. Os estudantes da amostra esto expostos a tratados extensos demais, matérias excessivamente complexas, for= mulagdes incompreenstveis, uma multidio de termos cientificos, conceitosabstratos, fatos de enciclopédiaem tratados, etc. O volume de matéria a ensinar € desproporcional a idade do aluno; o grau de dificuldade dos livros eleva-se irregular e desproporcionalmente (Kovarik, 1904, p. 112). Os problemas escolares stio numerosos. Segundo Kovarik (1994, p. 113) 0s aspectos mais criticados da educacao escolar sio: a submissio 20 controle governamental; a falta de individualizacao; 0 sistema rigido de distribuigdo dos alunos pelos lugares na sala de aula, © agrupamento ¢, a graduacio € a atribuigio de notas; e 0 papel autoritario do professor. A escola tem baixo grau de reconhecimento da satide fisica das criancas. As implicag6es do funcionamento escolar em tempo integral no que se refere a conservacio da satide, € questao de grave preocupacio. Algumas criangas se dio conta do aspecto de prejuizo a sande das rotinas escolares, do tédio e do aborrecimento, do 163 ruido, das relagdes sociais tensas com adultos € criangas, “de que e de quem elas nao podem escapar” (Mayall, 1994, p. 123) Outro problema importante nas escolas da amostra é a falta de lum forte relacionamento interpessoal entre professores € alunos. Os estudantes nao se sentem a vontade para discutirseus problemas, como ‘o-ensino na sala de aula, 0 contetido dos cursos ¢ as provas, ete., com os professores, Estes também habitualmente nao os estimulam a faze- lo. E signficativo mencionar que todos os professores das escolas da amostra seguer 0 método de ensino de nao-participacao. Uma *situa- ‘eo de mondlogo em sala de aula’, € uma visio corriqueita. Os professores sempre t@m expectativas elevadissimas em relacdo aos estudantes,eestesacham realmente dificil atingirtal nivel. Aatitude dos estudantes da amostra a proposito do contetido do curso, da disponi- bilidade de material didatico, do volume de deveres de casa, da maneira delidardos professorese do ambiente daescola,estaregistradanatabela 2. Cemo pode ser visto af, elevada percentagem dos estudantes da amostra expressam seu descontentamento com esses itens. Diversas técnicas sao utilizadas pelos professores para disci- plinar os estudantes. Estes nao crescem emocionalmente seguros. A revogacao de castigos levou alguns deles a se tornarem refratarios. 35% dos estudantes relataram que frequentemente recebiam casti- 80s, enquanto os 65% remanescentes declararam que eram castiga- dos ecasionalmente. No que se refere a natureza da punicio, 36 (30%) habitualmente recebem castigo pesaclo, 34 (28,33%) recebem castigo moderado, enquanto 50 (41,66%) receber castigos leves. A percentagem de estudantes que recebem castigos leves é maior entte as meninas do qe entre ag meninos (tabela 3), Ao declarar o direito legal e moral de infligit punigdes as criancas, a escola reforca a idéia da crianga como “precisando” de uma forma especial de disciplina, Em virtude de sua autoridade legal, a escola ¢ capaz de impor sua decisio aos estudantes. A maioria destes demonstra ma-vontade quanto a aceitar a “reconstrucdo” daquilo que eles deveriam ser. Classificagdes, notas, graus, quadros de honra, tomam-se questio de foco, nao de saber e certamente nao de sabedoria, As ctiancas vivenciam a escola antes como competitiva do que como cooperativa. Freqdentemente os professores fomentam a competi- So € 0 pensamento competitive, supondo que essa abordagem lot conduz ao sucesso. Numa das escolas da nossa amostra as criangas se sentam na sala de aula pela ordem de classificagio, e essa arrumagio € mudada bastante freqaentemente. Este é um procedi« ‘mento educacional inamistoso em relagdo a crianga e que a conduz para a derrota de si mesma. O tempo consumido pela escola ultrapassa o tempo de perma= néncia no prédio da escola, A escola penetra na vide familiar e com isso surge uma luta entre 2 arenas e 2 roteiros que procuram estruturar antecipadamente a vida, o espago e o tempo das criangas (Kovariky 1994, p. 113). Ea escola que determina quanto tempo vai sobrar para a crianga. A escola “intromete-se na vida da familia por meio dos deveres de casa, que com freqaéncia exigem a ajuda dos pais” (ibid., p-114). Se calcularmos que os estudantes das tltimas séries tem em média 2 horas dias de deveres de casa (¢ essa média pode ser ainda mais alta), descobriremos que a carga de trabalho dos escolares algumas vezes € maior do que a dos adultos. Matejcek (1985) calcula que um quinto a um quarto da populacao infantil acha-se sob tens8o crOnica em relagio a desempenho e realizacao escolar. Diversas atividades extracurriculares, por exemplo festividae des anuuais, jogos e esportes, feiras de ciencias, debates, puja Ganesh € pujas Saraswati? sao organizadas na escola sob a lideranca/supervi= sto do professor. Os programas de escotismo e NCC! também nao so excegio a isso. Pouca oportunidade é dada aos estudantes de participarem de atividades sem a intervencao do adulto. 0 Autor esclarece que Saraswati Puja é uma das muitas festividades celebradas pelos indianos. Sua data ¢ fixada no 5" dia da Iua cheia dos meses de janeir-fevereiro. A festividade €celebradaemonrade Saraswati, deusa da aprendizagem. Os escolares enfeitam a imagem de Saraswati e aadoram. Buscam as béngios da ceusa para se tomarem mais “sabidos". No dia de Saraswati ninguem faz trabalho de leitura eescrta Ganesh Puja€ outra festividade importante para os indianos. Ecelebrada no més de agosto-setembro, Nesse dia os devotos adoram o Senhor Ganesh, também conhecido como Deus da Sabedoria. Os estudantes enfeitam uma imagem do Senhor Ganesh e a adoram (N. do.) “N.C (National Cadet Crops — Grupos Nacionais de Cadetes) é um ‘movimento nacional que abrange muitos jovens, meninos e meninas dos quatro cantos do pais. Um dos abjetivos deste movimento ¢ alcangar um 165 A convencao sobre os direitos da crianga serve como instru- Iento de interesses nacionais internacionais quanto a redesenhar © cenhecimento acerca das criangas e com as criangas. E muito decepcionante observar que nas escolas da amostra nem os estudan- \esmem os professorestém conhecimento das diversas prescrigdes de Diteitos da convengao das Nacoes Unidas. As seguintes afirmagoes refletem a atitude e a percepgao dos estudantes da amostra em relacdo ao seu ambiente escolar: * Meus professores dificilmente interagem comigo fora da sala de aula, (Aluna da IX série, OPMGHS). + Realmente me chateia ter que ficar sentado durante 6 longas horas sem conversar com meus amigos dentro da sala de aula, (Aluno da VI série, DPS). + Sendo um aluno medianona minha sala, nao recebo atengao apropriada de meus professores. Eles sempre dao importan- ciaindevida a uns poucos alunos que sao excepcionalmente brilhantes. (Aluno da X serie, KV) + Eu nao gosto do ambiente ameacador/autoritério que pre- domina no espaco da minha escola. Eu gosto de liberdade. Eu detesto 0 controle dos adultos (os professores) sobre todas as atividades das criangas (os estudantes). (Aluno da X série, DPS). + Eu odeio 0 padrao de castigo do professor da minha turma. Ele nos castiga quase regularmente, mesmo que nao tenha- mos feito nada, Nao me lembro de uma tinica aula em que ele nao tenha batido num de nés. (Aluno da VI série, ‘opMbqis) grande namero de escolares de nivel secundario, O treinamento N.C.C € distribuido em exercciosfsicos,defesa civil titica de combate, eserta dle mensagense oratoria.E uma atividade extracurricular gratuita para os estudantes, aposohorério da escola, Cada estudante que adere ag N.C.C € conhecido como “eadete”e veste um traje marrom quando comparece asaulas do NCC. Ocasionalmente € oferecda aos estudantes uma refeicio leve apés © termino da aula de educagto fisica. Asaulas do N.C.C. acontecem uma ot das vezes por semana 166 +O volume de dever de casa algumas vezes ultrapassa as minhas capacidades fisicas ¢ mentais. O *medo de ser castigado por nao fazer o dever" me obriga a dar a este a ‘maxima prioridade quando volto para casa. (Aluno da IX série, OPMBHS). + Esperar que obedecamos ¢ uma tendéncia natural dos: professores e ser obediente ¢ obrigagao natural da nossa parte. Eu nunca me atrevo a protestar, mesmo quando meu. professor me impoe alguma coisa, (Aluna da VIII série, KV). + Acho a estrutura do curso muito pesada e muito chata. A Mamie me disse que lia essas coisas quando ela ja estava se formando. (Aluna da VI série, DPS). As criancas em casa s pais devem manter uma atitude sauclavel e um comporta- mento afetuoso em relagao a seus filhos. O efeito do comportamento parental depende da maneira pela qual a crianga percebe 0s pais, isto 6, nos casos em que a relacao basica entre pais filhos € boa, os filhos aprovam o comportamento dos pais, enquanto aqueles que tem uma alitude negativa em relacao a seus pais tendem a discordar de quase todo comportamento deles. Os pais tem mais expectativa de bons desempenhos nos exames escolares do que de obediéncia ou bom comportamento dos filhos. Habitualmente eles sustentam elevadas aspiragées acerca do desempenho académico de seus filhos. A aianga corresponde as expectativas deles porque tem alta conside- aco por eles e por suas atitudes. Sternberg et al, (1993, p. 44) € Stratus (1994, p. 76) explicam que o castigo ¢ degradante quando contribui para sentimentos de desamparo e humilhagao, quando privaacrianca deauto-estima eauto-respeito, evandodessa maneita ao distanciamento ou a agressio. Segundo Stratus, Sugarman e Giles Sims (1997, p. 761) as criancas que sio espicacadas regularmente com mais probabilidade vao enganar e mentir e vao mostrar menos remorso por terem se comportado mal. A medida que a crianca ceresce seu relacionamento com os pais se modifica. Elas sempre esperam ter com os pais um relacionamento amigavel. Neste caso, 167 ‘nao € ideal que os pais sejam muito rigidos na imposiggo de normas e regras, No presente estudo ve-se que 40 por cento dos pais sto muito rigidos a propésito da disciplina e do desempenho academico. Eles exigem de seus filhos corregao excessiva, a que a crianga niio consegue submeter-se. Na criagao dos filhos, os pais tendem a ser ambiciosos para tomiétlos vencedores. Ha pedido, persuasio, exortagio e mesmo ameaza para forcar a complacéncia da crianca para com as expecta- tivas parentais, Uma parcela surpreendentemente elevada da comu- nicacio dos pais aos filhos consiste de: * Instrugdes quanto ao que fazer, + Impelir os filhos ao desempenho por meio do oferecimento de prémios, ¢ + Ameaga de punicdo se o desempenho nao atingir 0 nivel esperado, A estratégia da operacao € a competicio. A crenga geral é que competicéo € 0 nico instrumento capaz de fazer as criancas atingirem o sucesso na educacio. Esse ponto de vista é tao largamen- te difundido que o ato de questioné-lo € considerado fora da realidade, excentrico e mesmo desviante. Aspirar ao primeiro lugar, desejar dinheiro, fama ¢ sucesso € a regra geral para as criancas. Assin:,a competicdo, comoa caridade, comegaem casa. Na épocaem que o bebe engatinha em directo a porta ou balbucia as primeiras silabas da linguagem, 0s pais estéo ansiosamente procurando algum sinal de que ali esta um futuro primeiro-da-classe. A crianca de hoje nao tem infancia. Ha sobre as criancas uma pressto para que se tornem realizadas ¢ bem-sucedidas, Uma mide juvein exibe urgulho- samente a medalha que seu filho ganhou no jardim-da-infancia, tratando-a também como reconhecimento de seu talento como mie. ‘Seactianca no ganha uma medalha semelhante no perfodo seguin- te, elaacha que culpa sua. O circulo social proximo também oferece interazao € a consequente competicio entre criangas, Sejaem sua forma comparativa ousuperlativa, osadjetivossao utilizados diversas vezes por dia pelos pais: “Quem terminat o dever de casa primeito pode vir comigo para o shopping”. O mundo da linguagem e da construgao conceitual da crianga expande-se por meio da comparacdo ¢ do contraste. A comparacio de objetos 168 ‘materiaise fendmenosse estendeaseres humanos, violando inadver= tidamente o sentido de singularidade e individualidade, E quandoa comparacao torna-se um litego emocional nas maos de um adulto poderoso, o mundo da crianga desmorona, Unmfilho, quando cresce, nao é mais uma crianga dependente, (Os pais solicitam que ele atue conforme sua idade e tente adaptar-se a0 comportamento adulto. Esperam que os filhos venham arcar com a responsabilidade por alguns dos encargos do lar, junto com eles. Na érea da nossa amostra em que o trabalho custa caro, esta fora do. alcance dos pais ter empregados em tempo integral para o trabalho: doméstico rotineiro. A divisio do trabalho entre 0s membros da familia € a tinica solucdo para esse problema, Assim, os pais encar- regam os filhos do trabalho doméstico. Em geral os pais fazem 0 trabalho de responsabilidade e os filhos os ajudam nas tarefas. Os ‘meninos em geral fazem o trabalho externo eas meninasajudam suas. ries nas tarefas domésticas. Os estudantes de sexo masculino da. nossa amostra desempenham atividades tais como ir as compras € cuidardo jardim. As meninas afirmam que se veem empenhadas em atividades como cozinhar, servira comida, varrer, lavar pratos, lavar ‘a roupa suja, servir os convidados, preparar as camas, cutdar das criangas menores, buscar agua potavel, por e tirar a mesa ‘Apesar de suas agendas chelas, os estudantes da amostta mantémalgumashoras de estudoemasa. 46 (38,33%) dos estudan= tes declararam que estudam menos de 3 horas por dia; 50 (41,66%) disseram que suas horas de estudo vao de 3 a 5 horas por dia, e 03 restantes 24 (20%) estudam mais de 5 horas por dia. A maioria dos estudantes do curso CBSE eatudam mais de 5 horas por dia, seguida pelosestudantes do curso ICSE (tabela 4). Eclaro que a fim de terum ambiente apropriado de estudo, ¢ essencial ter uma sala de estudos. Isto da a crianca oportunidade de concentrar-se em seu estudo, Entretanto, 86 (71,67%) dos estudantes da amostra nao tem sala de estudos separada. O espaco utilizado por eles durante suas horas de estudo é usado simultaneamente por outros membros da familia paral realizarem suas atividades rotineiras. Apenas 34 (28,33%) estudan- tes tém a sala de estudos separada, Os estudantes sentem-se sobre- carregados, uma vez que o volume de deveres de casa ¢ grande, Terminar regularmente os deveres de casa tarefa diffcil para muitos. 169 estudantes da amostra, De um niimero total de 120 estudantes da amostra, 60 (50%) consideram pesado o volume de deveres de casa, cenquanto 38 (31,66%) consideram-no moderado e os restantes 22 (18,33%) acham que isso é leve por natureza. s pais tentam criar interesse em seus filhos e assim motiva- los a alcangar a educagao conforme suas proprias aspiragées. No nosso estudo encontramos que 52 (43,33%) estudantes recebem ajuda de sua mae em seus estudos em casa. Apenas 28 (23,33%) estudantes recebem essa ajuda de seu pai. A percentagem de estu- antes que recebem ajuda de ambos, pai e mae, é muito baixa. Em 52 (43,339) casos pai e mae sto instruidos, em 53 (44,17%) casos apenas um dos dois ¢ instruido e somente em 15 (12,5%) casos nenkum dos dois tem instrugao. No caso de 44 (36,66%) dos estudantes da amostra ambos os pais esto empregados enquanto nos remanescentes 76 (63,33%) apenas um dos dois esta empregado (abela 5), Nas familias em que pai e mae estdo empregados, as criangas so as que mais sofrem. Nesses casos os pais deixam de dar atengao apropriada ao progresso educacional de seus filhos, Eles se sentem cansados quando voltam do trabalho para casa, e com isso sobra-lhes pouca energia para supervisionar as questdes educacio- nais dos filhos. Numa situagao como esta, acrianca se sentealienada Nao tem mais prazer em seu estudo e consequentemente desenvolve um sentimento de alienagao (distanciamento). O tempo que pais € filhos passam juntos est ficando cada vez mais curto. O café-da- manha em conjunto esta desaparecendo, assim como, em certa medida, o jantar a volta da mesa da fama, Afora estudar 0 curriculo do curso, alguns dos estudantes da amostra recebem treinamento em outros campos, por exemplo canto, danca, computadores, caraté, datilografia, etc. Embora seja bom aprender algo extra, isso aumentaa carga de trabalho da crianca Ji sobrecarregada, Essas criancas acham realmente dificil combinar seus estuclos, deveres de casa e treinamentos extra simultaneamente ecom sucesso. E visto também que algumas criancas percorrem uma longs distancia para ira escola e ficam fisicamente exaustas depois que voltam para casa. Olazer€ to importante quanto o trabalho. © homem se sente cansedo apés o trabalho e quer recuperar energia de modo a ganhar 170 eficiencia, © lazer € o tempo livre apés tratar das necessidades Priticas € o lazer significa estar desocupado dessas necessidades Praticas: aplicado a empreendimentos lentos, deliberados, despreo- Cupados. © emprego desse tempo € caracterizado por um alto grau de liberdade pessoal e escolha. As criangas escolates em sua maioria gostam de passar seu tempo de lazer com seu grupo de colegas ow com irmaos e irmas. Algumas brincam com jogos dentro de casa, como bilhar, xadrez e ludo, enquanto outras brincam com jogos externos como criquete, futebol, esconde-esconde e badminton, Ver televisdo € também outta atividade do tempo de lazer comumente observada, Algumas das meninas se dedicam a costura e bordado, Poucos passam seu tempo de lazer em atividades criativas como desenho e pintura. As criancas escolares se divertem ao maximo durante as feias. E um pertodo de descanso apés o longo tempo de pressio dos estudos escolates, treinamentos extra, etc. Entretanto, ve-se que algumas das criangas da nossa amostra nao sao poupadas de atividades académicas nem durante as férias, Os professores atribuem a elas um pesado dever de casa para as férias, A televisto € uma das invengdes mais revolucionarias do século XX, Seu enorme potencial como poderoso veiculo de comu- nhicacdo de massa nfo pode ser subestimado. As criancas aprendem. muita coisa de programas de televisio. Entretanto, isso forcou-as a Pasar muitas horas inativas, sentadas a frente da televisio, Isto recebeu dosamericanos 0 apelido de “idiot box" (caixa idiota). Tempo passado com a televisfo € tempo tirado de outras atividades, tais como brincar, estudar, mantere renovar ocontratosocial. A televisdo também empurra obscenidade e violencia em larga medida, Os poucos programas bonsnatela pequena tambem estéo de tal maneira encurralados por propaganda que prende a atencdo, que assistir a esses programas torna-se um esforco para as criancas As seguintes declaragées refletem a percepgao e a atitude de estudantes da amostra em relagdo ao seu ambiente no lar: * Meus pais trabalham, de modo que eles nao tem tempo bastante para acompanhar o progresso da minha educacio. Algumas vezes minha mae me ajuda nos meus estudos, (Aluna da VII série, DPS), 71 *+ Minha familia vive unida, Minha mde tem uma quantidade de obrigacdes e compromissos domeésticos, Ela espera que eu ajude nas tarefas domésticas, quando volto da escola. Portanto, nao tenho tempo bastante para brincar com meus amigos. (Aluna da X série, OPMGHS), + Ha sempre uma porcao de visitas na minha casa 4 noite, € isso me perturba, (Aluno da IX série, KV) + Sou sempre repreendido/espancado por meu pai por pe- quenos erros. Portanto, nunca me sinto seguro para expor minhas mas agoes, (Aluno da VI série, OPMBHS), + Eu me sinto deprimido quando nao consigo corresponder as expectativas dos meus pais. (Alune da VI série, DPS) + Meus pais sto conscientes e cuidadosos quanto ao meu desempenho educacional. Eles contrataram 3 explicadores paraajudar-me nos meusestudos. Fico tao ocupado cuidan- do dessas aulas particulares que dificilmente tenho tempo de lazer. Eu me sinto cansado e chateado por manter esse tipo de agenda cheia. (Aluno da X série, DPS), Observacoes finais A infancia é universalmente reconhecida como o perfodo em que a crianga esta desamparada, indefesa e dependente dos adultos, especialmente de seus pas, para seubem-estar.Espera-se que os pais a sociedade sirvam as criangas incondicionalmente para desenvol- ver seus potenciais e apronta-las para assumirem sas responsabili dadesda vidaadulta. Entretanto, uma questio de grave preocupacao que nio Ihes ¢ dada a devida liberdade de exprimir seus pontos de vista em assuntos que dizem respeito a suas proprias vidas, Escola nao significa apenas educagio e trabalho escolar. O. fator mais importante para muitas criangas, pelo menos por algum tempe, € que a escola é antes de tudo o lugar onde se encontram os pares, onde se fazem as amizadese onde se vivenciaalguma diversao, E um lugar para aprender nao somente de adultos, mas também dos seus semelhantes, pessoas da mesma idade ou pouco mais velhas (Kovarik, 1994, p. 113). O professor deveria proporcionar a cada 172, estudante individual igual oportunidade de encontrar crescimentoe satisfagdo seguindo diregdes mais ajustadas a suas capacidades ea seus interesses individuais. A menos que, por um lado seja aliviado deixando-se de lado assuntos desinteressantes e inites e, por outro lado seja entiquecido pela inclusao de material interessante e signi- ficativo que vai dar alegria e compreensio interna aos estudantes, 0 programa de cada matéria nao ira tornar-se um veiculo verdadeira- mente educativo, A competicao implacavel é destrutiva nao apenas na sala de aula, mas pela vida toda. Muitos grandes professores consideraram co aspecto do medo e da angustia gerados pela competicio na sala de aula, A fungfo mais elevada do educador € nao somente produzit exceléncia académica, mas mais importante do que isso, é produzir a Independencia psicologica do proprio aluno. A competicéo sé existe onde houver comparacio, ¢ a comparacao nao produz exce- lencia, Estando em constante emulagio, as criangas dificilmente conseguirdo desenvolver a excelencia de espirito. O excesso de rivalidade nos exames desperta angustia nos estudantes. (Os professores na escola e os pais em casa forcam a crianga a concentrar-se em questdes académicas, sob a alegacéo de que 0 fazem “no interesse da crianga”. Embora trabalhem muito na escola em casa, ainda assim seu trabalho ndo é reconhecido. As criangas no deveriam ser colocadas sob pressio para atingirem a excelencia mental, Impeli-las a que crescam mais depressa intelectual, social e psicologicamente vai paralisi-las em seu desenvolvimento e espolia- las de sua infancia, O verdadeito xis da questao € avaliar se pais e professores querem envolver as criancas na tomada de decisoes a propésito de assuntos que afetam suas vidas. Coma € que as experiéncias e as respostas dos estudantes a suas circunstancias sociais funcionam, tendo em vista as politicas dirigidas para eles? E quais s20 as consequencias que funcionam em relacao as politicas dirigidas para cles? Por que osestudantes de escolasindianas tem que estar expostos a um sistema educacional inventado ha cem anos, nos tempos coloniais vitorianos e que é completamente autoritario? E preciso inventar métodos pedagégicos em que osentimento de competicio nao seja o principal acicate a conduzir a realizacao, E possivel afirmar com seguranca que se uma crianca ¢ criada num 173 ambiente néo-competitivo, € maior sua probabilidade de aleangar 0 sucesso mesmo no mundo competitive ld fora. O fato de nao atingir © primeiro lugar nao a esmaga emocionalmente. Portanto, ela tende a ser mais bem-sucedida, Se ela € bem-sucedida, f4-lo caminhando no seu préprio passo, com uma saudavel compreensio dos demais aspirantes. Nao se deixa devorar interiormente pela angustia da ‘comparacao e da competicao. Lutar competitivamente torna-se um ‘modo de pensar e leva a um peso maior na mente, com a passagem dos anos. A compreensio e a aceitacdo dos diversos talentos em si ‘mesmo e nos outros € algo que € preciso cultivar. A cooperagao com 6 otros vai contribuir para a harmonia dentro de si mesmo e no relacionamento com 0s outros. Referencias bibliogrdficas ALANEN, L. “Rethinking socialization, the family and childhood,"(pp. 12- 28) In P.A. ADLER, P. ADLER, N. MANDELL and S. CAHILL (eds.), Sociological studies of child development: A research anual. Vol. 3. Greenwich, Connecticut/London: JAl Press, 1990. ARIES, P. Centuries of childhood. A social history of family life. New York: Vintage Books, 1962. BARDY, M. “The manuscript ofthe 100-years project: Towards a revision,” (pp-299-317) in J. QVORTRUP, M. BARDY, G. SGRITTA and H. WINTERSBERGER (eds ), Childhood matters. Social theory, practice and, polities. Aldershot: Avebury, 1994. CASTRO, LR. “The time of childhood: Or when ‘now’ becomes ‘not yet,” 19, PFEFFER and D.K. BEHERA (eds ), Contemporary soviety: Childhood and complex order. 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CORTES, O.RRIPUN and F-LAREY. “Elect of domestic violence on children’s behaviour problems and depression", Developmental Psychology, 29, 1993, pp 44-52. 175 Tabela 1: Dados dos antecedentes dos estudantes da amostra (N = 120] Aliliagio Genero Tipo de ‘Tamanho da acurso familia familia economica Mac. Fem NE PM GB M A IcsE 20 20 20 20 16 13 11 2 2 16 50% 50% 50% 50% 40% 32,5% 27.5% 5% 55% 40% Cee 20. 2018 ati2 1s shi 74s 50% 50% 45% 55% 30% 37,5% 32,5% 10% 60% 30% Hsc 20 20 14 26 9 10 21.14 18 8 50% 50% |35% 65% 22,5% 25% 52.5% 35% 45% 20% Tol 60 60/52 68 37 38 451 20 6F 36 50% 50% 43,3%56,7%30,8% 31,7% 37.5% 16,7%53,3% 30% P—Pequena B—Baixa renda M—Media M— Média renda G—Grande A—Allta renda Tabela 2: Nivel de satisfacao dos estudantes da amostra quanto a diversos tens (N= 120) Nivel de satisfagao Nem Muito Algo contente tens descon- descon- nem Algo, Mult Total tente tentedescon- coMlentecontente tente Conteido 6 32 26 46 10 120 do curso 5% 26,66% 21,66% _38,33% _8,33% Recursosde 4 44 25, 39) 8 120 diditica __3,33% _ 36,66% 20.83% 325% _ 6,66% Volunede 20 7 29 n 120 deverde 16,66% 30,83% 19.16% 24,16% 9.16% casa 176 Procedi- 5 14 31 34 16 120 mentos dos 4,16% 11,66% 42,5% 28,33% | 13,33% Professores Ambiente 17 2335 31 R10 escolar 14,16% _20,83% 29,16% 25.86% _10,1% Tabela 3: Natureza dos castigos recebidos na escola pelos entrevistados IN= 120] Genero __Natureza do castigo que voce recebe Total Pesaclo___ Moderadlo Leve Masculino 26 18 16 0 333% 30% 26,66% Feminino 10 16 34 60 16.66% 26.66% 56.66% a Total 36 34 30 120 30% 28,33% —_41,66% Tabela 4: Duragto das horas de estudo dos entrevistados da amostra IN =120] Afllag80.4 —_Duragto das horas de estudo* Tol = 3h 3th 35h a IGE 18 1% 45% 35% CBSE 19 70 ar 415% HSC 17 7 6 0 25% 25% 15% Toul 46 30 24 20 3833% 41.66% 20% *Afora domingos e feriados ur Tabela 5: Afiliagdo dos estudantes a cursos, dante do status ‘educacional e de emprego de seus pais (N= 120] Afliagio Status educacional dos pals Status de emprego Acurso PMI SUI PMS \SE 23 15 2 575% 375% 5% csE 18 17 7 45% 25% 125% 42.5% HSC 2 8 8 52.5% 20% 20% 52 33 15 4 76 43.33% 417% 12.5% 36.66% 63.33% Legenda PMI— Paie mae instrufdos PME — Pai e mae empregados SUI—Somente um é instrufdo SUE — Somente um esta empregado PMS — Pai e mae sem instrugéo Infancia, imagindrio e subjetividade: representacdo da morte dos “Mamonas Assassinas” Elza Dias Pacheco Helena Tassara “E preciso devolver a razdo humana sua fungdo de turbulencia e de agtessividade e ir 0 mais répido possivel nas regioes da imprudéncia intelectual (..). A imaginagao criadora pertence essa fungio do irteal, que € psiquicamente tio util quanto a “fungio real’, tio frequentemente citada pelos socislogos para caracterizar a adaptacio de um espirito a uma realidade marcada pelos valores sociais.” G. Bachelard Introducao O presente trabalho poe em cena uma pesquisa realizada pelo LAPIC — (Laboratorio de Pesquisas sobre Infancia, Imaginario e Comunicacao) da ECA/USP, tres meses apds o acidente aéreo que vitimou todos os integrantes do conjunto musical “Mamonas Assas- sinas*, em margo de 1996. Os sujeitos foram 40 criangas, entre 4 a 6 anos de idade de ambos os sexos, freqnentadores do Nuicleo de Recteagio Infantil (NURI) do Centro Poliesportivo da Universidade de Sto Paulo (CEPEUSP), cujas entrevistas foram gravadas em video Super-VHS. O objetivo da pesquisa foi captar o imaginario infantil, partir das relagoes das criangas como grupo musical, antese depois 180 de seu precoce e tragico acidente, a fim de avaliar a influéncia da televisdo enquanto mediadora na criagao de fdolos e, neste caso, na construcao subjetiva da idéia de morte Um dos resultados complementares dessa pesquisa, foi a edigao de um video intitulado “As criangas do NURI e a morte dos Mamonas Assassinas”,' de 35 minutos de duragio, sintese dos conteddosapresentados pelascriangas sobre os temas levantados nas entrevistas, versando sobre a carreira, as musicas ¢ a morte tragica e stbita dos "Mamonas Assassinas”. Para exemplificar nossa andlise e dar vida & nossa argumentag2o, ao longo deste artigo, selecionamos e transcrevemos alguns trechos dessas entrevistas. Entrevistadora: Qual dos Mamonas vocé gostava mais Juliana? Juliana; Do Dinho. Entrevistadora: Por que? Juliana: Porque ele é 0 cantor. Paola: Eu também gostava daquele de trancinha (passa a mao no proprio cabelo), Entrevistadora: Ah, o Bento, Juliana: Eu também gostava daquele que tinha o cabelo vermelho, Entrevistadora: Sei, o Samuel Paola: Eu gostava na hora... quando ele fazia assim (levanta e pula algumas vezes, rebolando) Ele ficava muito gostosinho! Entrevistadora: E onde vocés viam os Mamonas cantarem? Paola: Eu s6 via eles na TV. Juliana: Eu também, Paola: Quando apresentava eles, eu ficava louguinha. Entrevistadora: E agora, eles nao se apresentam mais? Juliana: Nao, porque eles morreram. Ai ficou chato. Ah, mas se voltar mais Mamonas sem ser eles, dat nao vai ter graca. Hoje, apesar de termos um vasto e diversificado conhecimen- totedricosobreainfancia,o olharadultocentrico impede atéas novas "Panticiparam da equipe de realizagio do video: Elza Dias Pacheco (coor- denacio gerale entrevistas), Helena Tassara (direcio geral eentrevistas), Newton G. Gannito (camera e edigio), Claudemir Edson Viana (assistén- cia geral), Eduvaldo Mathias ce Oliveira (apoio técrico). 181 _geragoes de aceitarem alguns pressupostos elaborados por autores coma Walter Benjamim ao longo de sua trajetéria intelectual e que constam de pequenos artigos da década de 20 e 30, sobre a crianga, © brinquedo ea educacao, redigidos sob uma concepeao materialis- ta-dialética da producao cultural. Destes citaremos apenas algumas reflexdes e referencias como: “(..) a erianga € 0 pai do homem (..); roda do destino comeca a girar muito cedo, e num estao fixa as chaves-mestras da nossa eexistencia e o ser humano de pouca idade constr6i seu proprio ‘universo; a crianca nao ¢ um Robinson solitério esoberano, uma vez que sett comportamento global éfungao da luta de classes; a burguesia educa e reforga em sua prole o futuro cidadao stil e cconsciente de sua classe,"= Tal desconhecimento da infancia e, na contemporaneidade, da sua relacio com a televisio, nos leva aalertar, através de algumas questies, a sociedade civil sobre o que a infancia ‘€ enquanto rodutora de cultura e que os adultos ‘desconhecem’: a crianca & capaz de relacionar questoes internas com a realidade externa? Ela é ativa ou passiva diante do que vé, ouve ou faz? O brincar é fonte de crescimento, sade e aprendizagem? A vivencia do coletivo leva @ percepcao da diferenca entre o que € pessoal e 0 que é do grupo? O brincar propicia a visto do OUTRO como semelhante ao EU, ou comodiferente? Os contetdos televisivos proporcionam a oportuni- dade de questionamento, ou passividade e conformidade? A agressividade que assola as sociedades tem, como fonte principal, a televisio? A televisio ¢ responsavel pela privatizacao da vida social? O Jogar e 0 Brincar como didlogo simbolico na experiencia de crescimento Brincar é fonte de satide e de crescimento pois através do ldico, da fantasia a crianca participa de relacdes grupais de seu contexto e € capaz de perceber-se como um ‘ser’ no mundo relacio- 2 W. Benjamin. Reflexoes: a crianca, o brinquedo e a educagao, Sao Paulo, Summus, 1984, p. 11 182 nando questdes internas com a realidade externa. A rua era o espago para os folguedos infantis onde as criangas se enriqueciam com a diversidade cultural dos freqentadores das pracas, parques e jar= dins. Era uma verdadeira cultura das ruas onde a crianga exercitava aarte de ser livre das limitagoes impostas pelos adultos nos espacos. domeésticos ou privados. Mas, a partir da década de 60, com o desenvolvimento das: Novas Tecnologias da Informagao, o éxodo rural, a constructo de mini e grandes apartamentos, de escolas, creches, dos shoppings centers — verdadeiros templos do consumo que ocuparam todas as areas de lazer, a rua tomnou-se impeditiva enquanto espaco de convivencia ludica e prazerosa. As criancas adentraram os muros € passaram a viver confinadas nos espacos domésticos. Tal mudanga nos espagos puiblicos se refletiu nos espacos privados nao sé escolares, mas também residenciais, que passaram a ser cada vez menotes nas grandes metropoles. Os pais passaram a trabalharo dia todo eas criancastrocaram os folguedos infantis pelos desenhos animados, revivendo de forma virtual o pega-pega € 0 esconde-esconde com o Tom & Jerry, Pernalonga, o Pica-Pau ¢ outros. Mas a TV nao é a ‘madrasta’ to condenada pelos pais. Os jogos de videogames e outras atividades levam as criangas precoce- mente a problemas fisicos ¢ estresses, além de acelerarem 0 curto perfodo da infancia, muitas vezes ocupadas também por outros compromissos. O cotidiano do ator de o Zequinha do “Castelo Ra- Tim-Bum”, Fredy Allan, talvez ilustre tal situagao, “Ele acorda &s 6 da manha para ira escola e mal tem tempo de almogar. tarde, ensaia uma pega de teatro durante quatro horas, sem interrupcio, Depois do ensaio, Allan segue para aaula dria de danga flamenca. Quando chega em casa, por volta das 9 horas, assiste um pouco de televisio antes de dormir. Livre da escola, nas férias de verdo, ele ocupou os finais de semana trabalhando como ator nos shoppings de Sao Paulo.”* s trabalhos do LAPIC nos indicam que apesar da maior » sPequenos demais para a fama". Veja, 19 de fevereiro de 1997. Apud. 1 S.¥. Sampaio."Televisio, publicidade e Infancia". Sto Paulo, Annablum, 2000, p. 163, 183 fascinagdo das criancas pelos desenhos animados da década de 40, 0s desenhos japoneses, quando chegaram ao Brasil também, em menor porcentagem, comegararn @ atuar no imagindrio infantil incentivando através de gadgets’ o consumo do supérfluo que logo é substituido por outroconformeo marketing publicitario, Pelo que sabemos o Pica-Pau nao vendeu nada eaté hoje, ha mais de vinte anos, continua no ranking, das preferéncias infantis. Para Jung,“o pica-pau verde é um simbolo de volta infanciae, pelo fato de ele fazer seus ninhos nos buracos de um carvalho, significa um retomno a mae”* Mas voltando aos desenhos japoneses, podemos citar o Yu-Yu Hakusho levado ao ar pelo Rede Manchete diariamente 2s 19:30 horas, quando da realizacao da pesquisa “O Desenho Animado na TV: Mitos, Simbolos e Metaforas’, financiada pela Fapesp e pelo CNPe. As preferencias de algumas criangas nos levaram a uma ‘questo que merece um novo trabalho para ser respondida: como as representagoes culturais de origem japonesa satisfazem o acervo subjetivo a que recorre a crianga em seu jogo ludo-imagetico? Por enquento, deixemos a cargo de Philippe Quéau a explicacao: “0 fascinio pelos mundos virtuais de sintese toca particularmen- te as novas geracdes. Este fascinio provém do fato de que nao somente podemos criar‘pequenos mundos’ do nada, mas pode- mos ‘habitat’ realmente esses mundos contentando-nos com estes simulacros da realidade. Nao ha dtvida de que o virtual vertha orar-se ent3o um 6pio do povo(..).Eisarazao pela qual devemos acompanhar os seus desenvolvimentos, conter seus ‘usos eticamente questionaveis e pensarmos seus fundamentos.”” Tal fala nos alerta para a necessidade de conhecero que éuma crianga enquanto ser histérico, um ser de relagoes e criador de cultura. Conhecera crianga exige amor e muita observacao das suas, atividades livres quando ela esté s6 ou em grupo; como ela se relaciona com os objetos na hora de brincar? Para a crianga um brinquedo quebrado continua sendo um brinquedo para o seu * J. Chevalier tll. Diciondriode Simbols. Rio de Janeiro, José Olympio, 6 edigdo, pp. 16-17. > P, Quéau. “O tempo virtual”. In: A. Parente (org). Imagem-maquina: a era das tzcnologias do virtual. Rio de Janeiro, Editora 34, 1993, p. 99. 184 mundo lidico ainda que tenha perdido a sua caracteristica original: no € por acaso que nas sessdes de ludoterapia os bonecos sto simplificados para que nao induza a identificagao facil em termos da dade, do sexo, da classe social (... pois € a crianga que Ihe dard a identidade que ela precisar para servir-Ihe no proceso de identifica- Gao-projecio. Desta forma se compreende como o imagindrio infantil levaa crianga a transformar qualquer coisa que ela possa embrulhar num. pedago de pano em uma boneca, assim como 0 cabo de vassoura lhe servir de cavalo, Por outro lado, para ela o mesmo objeto tera varios significados pois se transformam em simbolos polivalentes como 0 barbante que ora sera uma corda para pular, uma fita para o seu gatinho de pelicia, um cordel para puxar o seu carrinho e até para aquele brinquedo que se faz em dupla amarrando o barbante nos dedos. © mesmo acontece com os desenhos de figuras que quase nunca tém cabelos, orelhas ou outros segmentos do corpo, e af fica sem respostaa pergunta: como utilizara figura humana numa bateria de testes de Qu, quando nao ignoramos que tais auséncias no desenho significam apenas que a crianca s6 se preocupa com detalhes que para ela sao mais importantes e o que Ihe interessa é apenas 0 ato de sugerir e nao de representar. Para Leontiev: (.) oalvo da brincadeira est na propria ago ¢ nao no resultado daacio. O importante éo fazer por isso a motivacio nos jogos esta ‘em ‘competir e nao vencer’. Eno brinear através das ages reais € sociais que a crianca assimila a realidade humana e passa a compreender omundoem que vive. O bringueda assim nfo sige como pensar alguns tedricos, de uma fantasia arbitrariamente construida no imaginario, mas ¢ a fantasia que decorre do jogo, pportanto, fantasia € jogo se associam por relagdes reciprocas.”* Falar do brincar da crianga ¢ tao ludico € prazeroso que precisariamos de uma antologia onde desfilariam nomes como: Gross, Arist6teles, Spencer, Arfouilloux, Goldman, Erikson, Piaget, Klein, Aberastury e Freud, apenas para citar alguns, porém, como é © A. Leontiev. desenvolvimento do psiquismo, Sao Paulo, Moraes, 1959, p.380, 185 impossivel esgotar o tema, diremos que nao € apenas o prazer, © sonhar, o fantasiar, o recriar, o consumir (...) que constitui o ato de brincar, mas outros significados devem ser também considerados Istonos remete a Freud que em “Alem do Princfpio do Prazer” nos aoresenta uma interpretacao classica sobre as razoes do brincar, quando relata o tao conhecido ‘jogo do carretel’, repetido continua- mente por uma crianca de 18 meses na auséncia da mde simbolizada pelo objeto amarrado a um barbante. “O jogo completo: consiste no desaparecer e reaparecer, repeti- das varias vezes na tentativa de dominar com tal jogoa ansiedade que Ihe causa a auséncia da mae, simbolizada pelo objeto que ‘manipula, Mas como pode estar de acordo com o ‘principio do prazer’ 0 fato de o menino repetir, como um jogo, evento t80 penoso para cle? E que o desaparecimento do carretel caracteriza a 'perda’, ou seja, o contato como real — a auséncia prolongada dame; o reaparecimento caracterizaa ‘reparagao',ocontatocom © imaginario — a posse do objeto (mae) perdido"? Tais jogos segundo Aberastury,* como por exemplo o de “esconder o rosto’ ocorre em todasas criangas e se iniciam aos quatro meses de idade com a manipulagdo do proprio corpo e de objetos simbolicos. No caso do jogo do lenco!’ha um sistemitico desapare- cer/aparecer cujo sentido €0 de perda'e‘reparacao’ do objeto amado que tanto pode sera mde como outras coisas que Ihe sio necessarias. Tal jogo representa um preparo para a elaboracio da anguistia que futuramente vira a sofrer com a perda dos objetos amados; € precursor dos futuros jogos de ‘esconde-esconde’ e ‘pega-pega’ que vem sendo ha mais de oitenta anos (dadios recentes das LAPIC), os que se colocam sempre em primeiro lugar nas preferén- cias justificando uma relagio com a maturacio, alertando-nos para anecessidade de se observar o paralelismo entre o desenvolvimento fisico e emocional com o desenvolvimento do ludico. 7 E,D. Pacheco. “Infancia, cotidiano e imaginrio no terceiro milénio: dos folguedos infantis diversao digitalizada’, In: E. D. Pacheco (org). Televisao, Crianca, Imagindrio e Educacdo: Dilemas ¢ Debates. Campinas, Papirus, 1999, p. 33, © A, Aberastury. A crianga e seus jogos. Petropolis, Vozes, 1972. 186 A significacao de tais jogos nos lembra Calvino quando assim se expressa: “cada vez que o reino humano me parece condenado a0 peso, digo para mim mesmo que a maneira de Perseu eu devia voar para outro espaco. Nao se trata absolutamente de fuga para o sonho 0 0 irracional (..)."° Para encerrat podemos dizer que a ‘repetigao’ é uma lei fundamental na brincadeira e em todos os jogos das criancas. E $6 observar quea cada histéria ouvidaacrianga, jquase dormindo, diz ‘de novo’. Para Walter Benjamin este ‘de novo' rege a totalidade do mundo do brinquedo: € a lei da repeticao pois para a crianca "(..) nfo basta duas vezes, mas sim, sempre, de novo, centenas. e milhares de vezes. Nao se trata apenas de um caminho para ornar-se senhor de terriveis experiéncias primordiais (..) mas também de saborear, sempre com renovada intensidade, os tiunfos eas vitorias. A esséncia do brincar nao € um ‘fazer como. se’, mas um ‘fazer sempre de novo’ transformacio da experiencia mais comovente em habito."® O confronto EU-OUTRO na construcao da consciéncia do sujeito social No item anterior, quando nos referimos aos jogos brincadei- ras tivemos a intencio de deixar claro que a crianga, através deles, ‘fala’ muito cedo e expressa seus sentimentos com todo 0 seu corpo. Assim, a palavta falada ou nao, € como diz Bakhtin, o material mais importante da vida cotidiana pois é a primeira manifesta consciéneia individual, ao da “Embora a realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulte do consenso entre individuos (..) €, ao mesmo tempo, produzida pelos proprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma aparelhagem qualquer owaalguma outra ° 1. Calvino. Seis propostas para o praximo milenio, Sao Paulo, Cia das Letras, 1990, p. 19. "°W. Benjamin, Op.cit, p. 75. 187 espécie de material extracorporal. Isso determinou papel da palavra como material semiotico’da vida interior, daconsciencia (discurso interior). Na verdade, a consciencia nao poderia se desenvolver se ndo dispusesse de um material flexivel, veiculavel pelo corpo." Assim, a palavra esta sempre presente em todas as relacoes, interpessoais sendo o sinalizador de todas as transformacoes Retomando 0 inicio deste item, nao nos passa despercebido que ocotidiano infantil mudou em termos de qualidade pois o pega- pega e esconde-esconde nao foram substituidos apenas pela TV mas pelo videogame e outros jogos programados para o computador, onde a crianga ¢ treinada para a competicao e o sucesso pois até hoje cla ainda é considerada um ‘vir-a-ser’. As tarefas que se exigem dela € a preparacio para o ingresso no mercado de trabalho. Alem dos jogos eletronicos ha as aulas de ingles, informatica, judo, natacao, sempre ‘de olho no futuro’. E necessirio nao esquecer que 0 imaginario infantil é um dos elementos do desenvolvimento infantil dai o prejuizo da preparacao precoce para um mundo reacionario do status quo. Por que nio ler La Fontaine, Andersen e outros que embora tenkam contetido cruel ao lidar com a morte, inveja € corrup¢ao, refletem 0 cotidiano de forma alegérica embora nao digam diretamente ‘como ‘como deveria ser’ a vida. Como 0 “penso logo existo” de Descartes ¢ frase bastante conhecida dos adultos, que deveriam deixar que a crianga descobrisse o mundo através da liberdade do ‘ser’, do ‘pensar’ e € aqui que entram os tao {questionados e amados *Mamonas Assassinas". Por qué? E que eles refletiam a crianca livre dos preconceitos sociais imposto pelos adultos. Gostarfamos de terminar com Walter G. Durst, que precoce- mente nos deixou “Liberdade ¢ o que peco, Nem que a liberdade seja mentira. A. mentira do faz-de-conta que é capaz do estruturar a realidade, ™M. Bakhtin (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Sa0 Paulo, Hucitee, 1994, p. 37 188 Nada é mais fantastico do que o cotidiano, (..) Respeitem @ crianga, ela tem o seu mundo proprio. Nao a tratem como umn. adulto conservador e consumidor de modismos. Ela¢ viva e tem. pressa, porque a infancia dura pouco."* O apelo de Durst nos remete a aula inaugural de Roland Barthes, pronunciada em 7 de janeiro de 1977, descrita no livro “Aula”, quando apés uma velada ironia denuncia a linguagem humana com um lugar fechado onde se inscreve o poder. Gostaria pois que a falae a escuta que aqui se trangario fossem_ semelhantes as idas e vinda de uma crianga que brinca em tomo da mae, dela se afasta e depois volta, para trazet-lhe uma pedrinha, um fiozinho de li, desenhando assim ao redor de um. centro calmo toda uma area de jogo, no interior da qual a pedrinha oua ltimportam finalmente menos doque odomcheio dezelo que deles se faz. Quando a crianga age assim, ndo faz mais do que desenrolar as idas e vindas de um desejo, que ela presenta e representa sem fim, Na mesma obra ao encerrar 0 texto, falando da sua doenga, lembra-se da “Montanha Magica’ de Thomas Mann remetendo o leitor para as trés idades do ensinar dizendo, ao referir-se ultima: sapientia: nenhum poder, uum pouco de saber, um pouco de sabedoria, eo maximo de sabor possivel.”!? As falas de Darst e de Barthes nos tentam dizer que, desde muito cedo, © ser humano € movido por seus desejos, paixdes emogoes que entram em interlocugao através de um “discurso Interior’, protéico e com regras préprias e que embora nao se ‘mostre’ € fundamentalmente ‘semantico’ e que continua na vida adulta, como nos diz Vygotsky, como base para o discurso exteriorizado quando o BU se constr6i na relagao com 0 outro, ou seja, “por isso se funda ata solucao do enigma do ‘eu’ alheio, do conhecimento da psique dos demais. © mecanismo da conscigncia de si mesmo (autoconhecimento) edo reconhecimento dos demais ¢idéntico (..) "= W. G. Darst. “Especializacao da TV/Espacializagzo do sentido’. In: E. D. Pacheco (org) Televisao, Crianga, Imaginario¢ Educagdo: Dilemas e Debae tes. Campinas, Papirus, 1998, p. 123, OR. Barthes. Aula, Sto Paulo, Cultrix, 1996, 7* edigto, p.47. 189) Reconhecemo-nosa nés mesmos somente na medida em que somos ‘outros para nos mesmos.."* Vygotsky ao falar sobre a génese e natureza social da consciencia utilizou-se, quando da sua primeira vinda a Moscou, de uma citagio de Marx sobre a analogia do trabalho de um arquiteto e de uma aranha para concluir que as formas superiores de comportamento consciente se originavam nas relagdes do individuo com o ambiente externo, onde o Homem ao mesmo tempo em que € produto do seu meio modifica-o a partir de um planejamento mental prévio. A partir disso conceituou o compor- tamento humano em tres aspectos: a experiencia hist6rica, a social € 2 duplicada. Estava assim esbocada a sua teoria s6cio-historica dos processos psicolégicos superiores aplicaveis ao desenvolvi- ‘mento das criancas em constante interagao com os adultos, ressal- tando assim a importancia da linguagem. Para ele, “uma palavra ndo se refere a um objeto isolado, mas a um grupo ou classe de objetos; portanto, cada palavra ja é uma generalizacao (..) um ato verbal do pensamento e reflete a realidade de um modo bem diverso daquele da sensacao e percepcao." Mas voltando® rela EU-OUTRO, éneste confronto dialégico «que surgem os sujeitos sociais, historicamente determinados, e € desta forma, neste sentido, que para Vygotsky 0 sujeito ¢ a subjetividade sto compreendidos na vida social historica cuja dinamica ocorre nas priticas sociais onde se processa a dialética das relacdes, sendo cada sujeito singular e diferente, mas reconhe- cido pelo outro. ‘Quando na solidao, sonhando mais longamente, vamos para longe do presente reviver os tempos da primeira vida, varios rostos de crianga vem a0 nosso encontro. Fomos muitos na vida ensaiada, na nossa vida primitiva. Somente pela narracio dos outros € que conhecemos a nossa unidade, No fio de nossa LS. Vygotsky. "Os métodos de investigacto reflexologicos e psicol6gicos (1927)*. In: Teoria ¢ metodo em psicologia, Sao Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 17-18, ®L. S. Vygotsky. Pensamento e a Linguagem. Sao Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 4 190 historia contada pelos outros, acabamos, ano apés ano, por parecermos com nds mesmos.""* Para terminareste item e iniciar a exposicio e analise das falas das criancas do NURI sobre a morte dos “Mamonas Assassinas”, passemos a palavra a Benard Doray: “O campo da subjetividade engloba o conjunto dos processos pelos quais o individuo em estreito contato com as estruturas simbolicas da cultura humana tenta assumir e abrir um acesso a forma genérica do seu ser(p.85).(..) Eum processo de filtragem, de recalque ¢ de representagao do que existe de alteridade no individuo; resulta de uma contradigéo dinamica entre 0 sef singular e o ser genérico (p. 103) ..) Ha incontestavelmente no que prececle uma posicao tedricae ética que aproxima o marxise mo € a psicandlise, ja que ela também nos ensinow a ler os movimentos do real sob a aparéncia dos discursos manilestos, ¢ arecaptura do seu sentido. E claro que (..) todas as tentativas de suatese freudo-marxistas (..)revelaram-se estaveis; no entanto, (.) © marxismo por levar em conta os homens reais, deve aprender a assimilar de maneira critica o que a psicandlise nos ensina sobre subjetividade (p. 108)."" Antecedentes A realizacio das entrevistas com criangas falando sobre a vida eamorte dos “Mamonas Assassinas", foi proposta em decorrencia da avaliagao positiva de resultados obtidos anteriormente em trabalho de investigagio no qual se realizavam entrevistas com ctiayas falando sobre tematica semelhante.'* '"G. Bachelard. A podtica do devanco, io Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 93. "'B. Doray, “Da producao da subjetividade: referencia para uma dialétca das formas”. In: Paulo Silveira e Bernard Doray (orgs). Elementos para uma ‘eoriamarxistadasubjetividade. Sto Paulo, Vertice, 1989, pp. 85, 103,108. "“H, Tassara. Era uma veg, 0 Brasil. histria da construgao de um ensaio documenta cinematografco sobre a vida de criancas na cidade de Sao Paulo, Tese de doutoramento apresentada a Escola de Comunicagdes e Artes da Universidade de Sao Paulo (2v), Sao Paulo, junho de 2000. 191 Apenas para situar o leitor, 0 trabalho a que nos referimos acimafoi realizado trés semanas apés o acidente que vitimou o piloto brasileiro Ayrton Senna, em maio de 1994, Apesar deste tema nao estar diretamente presente no roteiro de perguntas pré-determinado para aquela investigacdo, foram freqiientes e bastante contundentes as referencias trazidas espontaneamente pelas criangas sobre a da morte prematura e chocante do piloto, um idolo das criangas e do Brasil, rapidamente transformado em hersi pela midia."” Dois anos depois, novamente vitimas de uma fatalidade, as criancas do Brasil foram mais uma vez alijadas de seus tdolos, dessa vez sefrendo com o desaparecimento do grupo musical *Mamonas Assassinas”, cujo sucesso metedrico e explosio na midia foram devidos, principalmente, ao interesse imediato manifestado pelas proptias criangas pequenas e pelos adolescentes. Apesar do sucesso entre ascriancas, em virtude dos conteudos desbacados de suas miisicas € de seu comportamento divertido porém exageradamente debochado, os cinco integrantes do grupo “Mamonas Assassinas’ estiveram muito longe de constituir uma ‘unanimidade, como Senna; ao contrério, as mesmas qualidades que alegravam as criangas, levou-os a se tornarem motivo de muita polémica, contrapondo os pseudo-moralistas defensores dos bons costumes e aqueles que conseguiram ‘ver além das aparencias’ gerando também situagdes de conflito € desentendimentos entre criangas ¢ adultos, Em plena decolada para 0 sucesso, ainda perplexos com 0 estouro de vendas de seu disco, quando apenas comegavam a uusufruir das maravilhas que o dinheito c a fama podem oferecer ea preparar estratégias para dar inicio a uma fase de consolidacao da carteira, 0 sonho acabou, Um acidente aéreo com 0 jatinho fretado especialmente para transporta-los de Brasilia de volta para casa apos ‘um show, fol fatal para os cinco integrantes dos "Mamonas Assai as", ovens rapazes recém sa(dos da adolescencia, vizinhos e amigos HH, Tassara, “Ascriancas,atelevisto ea morte de um fdolo: Ayrton Senna’. In: E. D, Pacheco (org.) Televisao, crianca, imaginario ¢ educacao:dilemas ¢ diclogos. Campinas, Papirus, 1998, pp. 51-64. 192 de infancia, gente simples de Guarulhos, uma cidade periférica da Grande Sao Paulo. No entanto, por varias semanas e talvez meses, o fendmeno permaneceu vivo e as lojas especializadas viram a procura pelo disco dda banda aumentar bastante. Isto porque as criancas fizeram 0 seu Tuto como tinha que ser: continuaram imitando os idolos mortos, ouvindo € cantando suas miisicas, ensinando aos adultos que 0 preconceito nao ¢ inato 4 natureza humana Nesse sentido, foram muitas as manilestacdes repletas de ‘mea culpa, de adultos que conseguiram se deixar levar pela influ- encia do gosto infantil, mesmo que apenas depois de sua morte. Citamos aqui um exemplo, numa carta publicada no jornal Folha de Sao Paulo, logo na semana do acidente, que reflete essa questao, reafirmando nossa conviegao de que € preciso ouvir as criangas — sempre! — ¢ que para isso basta estar atento, disponivel e livre como elas proprias. “Ficava inritada quando ouvia um dos meus dez sobrinhos cantarolar um trecho qualquer ‘desse negécio que chamam de Iniisica’. Me encontrava bem perto de um descontrole emocional quando ouvia um toquinho de gente alternando seu restrito vocabulirio entre ‘mama’ ¢Mamonas. (..) Pior que ter tapado os ouvidos para os mamonas mirins'foiter fechado os olhos para seus sorrisos que vinham alegres decorar as letras das misicas. Resta-me, agora, acompanhar com maiscarinhoe menos precon- ceito a reagto de tantas criangas (e tantos outros adultos!) que hoje se deparam pela primeira vez com conceitos bem mais complexos que os tempos verbais, a morte." Assim, aproveitando a atualidade e a forca daquele aconteci- mento, considerando que, mesmo apés o desaparecimento do grupo, as criangas continuaram a demonstrar grande interesse por suas miisicas, decidimos fazer uma incursio pontual e direta junto um grupo de criangas pequenas, buscando, especificamente, seus conhecimentos ¢ opinides sobre os fatos que cercaram a morte dos inisicos. Nosso objetivo era avaliar, como ja foi dito, a influencia das A. Albuquerque. “Mamonas", Folha de Sa0 Paulo, Opinido, Painel do Leitor, 05 de margo de 1996, p.1-3. 193 mnidias, prineipalmente eletronicas, na constfucao da idéia de morte no itraginario infantil, As entrevistas: porque € como escutar as criancas Paola: Na hora que foi... que eu vi os parentes deles, da que eu comecei a chorar. Juliana: O pai dele chorou inte vale! Entrevistadora: E, todo mundo chorou, né? Paola: Eu chorei bastante... mas ele ainda continua com a gente. Entrevistadora: E? Como € que ele continua com a gente? Paola: No nosso coragao. Juliana: Ele ta vendo nis. Quando néis canta as musicas deles, eles venois. (As duas meninas cantam em coro “Pelados em Santos” ou “Brasilia Amarela”) Por que se preocupar com o que pensam e com o que dizem as criancas? Por que escutar e 0 que apreender de suas falas, aparentemente tao desarticuladas, talvez engracadas? Por que pres- lar atengio aos contedidos dessas falas? Estamos tratando de e com ctiangas capazes de atuat socialmente ede influenciardefinitivamen- te no rumo das transformagoes das sociedades em que vivem, enquento aprendem a aprender o mundo. As falas das criangas oferecem informagoes preciosas e tnicas para nos auxiliar na inter- pretayao dos fatos do mundo na medida de sua esportaneidade e capacidade criativa natural Ouvindo criancas de qualquer idade com atengio fica facil perceber que elas s40 como antenas ligadas, captando as novidades, atentes aos movimentos do mundo e extremamente suscetiveis a tudo 0 que € novo e bom. A expressio de seus conhecimentos e idéias sobre esse mun- do, analisadasa partirde um conjunto de falasrelativasa uma mesma tematica permite, privilegiadamente, a historicizacao da infancia e 0 conhecimento do momento histérico contemporaneo a essas mes- mas falas, 194 Além disso, costumamos lembrar Bakhtin para quem “a palavra sera sempre o indicador mais sensivel de todas as transfor= ‘magoes sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda nao tomaram forma, que ainda nao abriram caminho para sistemas ideologicos estruturados e bem formados.” Ele diz ainda que: “A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulacoes quantitativas de mudancas que ainda nao tiveram tempo de adquirit uma nova qualidade ideol6gica, que ainda nao tiveram tempo de engendrar uma forma ideologica nova ¢ acabada A palavra é capaz de registar as fases transitorias mais intimas, mais efémeras das mudangas sociais."" Seguindo a trilha metodologica tragada no trabalho de pesquisa citado anteriormente, decidimos gravar as entrevistas das ctiangas sempreem duplas, coma intengao de facilitaras interagdesea troca de informagdes entre elas, alm de proporcionar-|hes uma situagao mais confortavel e menos intimidante. Sentadas em suas cadeirinhas colo- cadas lado a lado, muitas vezes levantando-se para interpretar as -ntisicas, as cancas e os gestos de seus idolos, as criancas ficavam frente a frente com a camera de video, que se mantinha apoiada num tripe Optamos por realizar entrevisias abertas, em que as criancas podiam falar livemente, sendo questionadas apenas conforme o andamento da conversa, Nao obstante, definimos algumas estratégi- as de comportamento e preparamos uum roteiro de perguntas pré- definidas, cuja funcao era nos guiar em prol de nossos objetivos, nao sendo obrigatorio que as mesmas fossem seguidas em sequencia. Assim, para dar inicio as entrevistas, procuramos sempre intro- duziroassunto"Mamonas” mostrandoaosnassnsentrevistados mirins tum grande poster da banda, para perguntar: vocés sabem quem sto cles? E continuavamos com perguntas do tipo: Voce gosta deles? Por qué? Eles sempre vestiam essas roupas estranhas? Qual fantasia voc aacha mais legal? Qual a muisica deles vocé mais gosta? Voce sabe cantar essa mnisica? O que voce acha que eles esto querendo dizer nessa musica? Voce sabe outras mtisicas? O que aconteceu com eles? Como foi que eles morreram? Como foi o acidente? Como é que voce ficou sabendo essa historia? Onde voce estava quando ficou sabendo? O que ?'M.M. Bakthin, op.cit. p. 41. 195 voce ‘ez depois? Voct viu na televisio? Conta 0 que voce viu e ouviu Voce vit o resgate do avito? Como foi? Voce viu 0 enterro? Como foi? E agora, onde é que 0s “Mamonas”estao? Para onde ¢ que eles foram? E agora, como € que vai ser sem eles? Qual deles voce gosta mais? Por que? E o mais engragado? Faz de conta, quem € que voce gostaria de ser? Voce sabe imita-lo? “Mamonas Assassinas”: sucesso ¢ tragédia Entrevistadora (mostrando um poster da banda): Vocés conhecem esses caras aqui? Yuri: E 05 Mamonas, Sara: E, Mamonas...€o'assassina’ é que mata, assim 6: papapad! (az _gesto de arma apontando e atirando para o Yuri) Entrevistadora: E porque sera que eles tem esse nome? Sara: Eles inventaram... pela frutinha, com um revélver, e ficou Mamonas Assassinas. Entrevistadora: E agora, nao tem mais Mamonas? Sarae Yuri (falam juntos): Nao! Sara: A tinica lembranga ficou as fitas, o CD € os discos e as mtisicas, (e comeca a cantar a musica do “Vira’) “Os Mamonas Assassinas foram sem duivida nenhuma um dos maiores sucessos de toda a historia do pop brasileiro. Suas letras sacarase escrachadas, seus arranjos criatives ea presenca brincalho- na do vocalista Dinho, garantiram ao grupo espaco junto ao publico adolescente e, para a propria surpresa deles, infantil Assim comeca a pagina de abertura de um site sobre 0 grupo, que entrou ?Retiradoda pagina de abertura wwww,ica.com br/mamonas. Osi uilizou materiais de diversas fontes (tais como as revistas Veja, Isto-E, Atrevida, Capricho, General, Show-Bizz, e os jomais Zero-Hora e Folha de Si0 Paulo, além de material de posters, eartazes € do proprio CD dos Mamonas) faz parte do Projeto KidBIT, que € uma revista on-line onde criangas, pais e professores participam, criando artigos, mandando opi- niges e comentirios. 196 no ar na Internet poucos dias antes de sua morte, e que foi construido, justamente, a pedido de criangas que buscavam infor- ‘mages a respeito dos “Mamonas” na rede. Sao seus autores que nos informam: “Esta pagina surgiu gracas a uma aula de Intemet. Apos 03 professores explicarem para a criangada como ela funcionava e ‘como se podia encontrar de tudo dentro dela, foi perguntado 0 que elas queriam ver. Era esperado Xuxa, novela, Cavaleiros do Zodtaco, historia em quadrinhos, enfim... Mas eis que a crianga- da solta um: — Queremos ver os Mamonas. Os professores se olham, ja que por essa nao esperavam. (...) Mais uma vez 08 “Mamonas Assassinas” fizeram a alegria da garotada e deixaram. 08 adultos embaragados."? Este € apenas mais um indicador da dimensio da popularida- de que o grupo alcangou entre as criangas naquela ocasio e da sua penetracio fulminante em todas as midias e que agora, depois de passado tanto tempo, € conveniente relembrar para podermos compor um quadroaproximado do contextoem que se deram nossas entrevistas. Bastaria dizer que 0 Unico disco da banda vendeu cerca de 1,75 milhao de copias, desde seu lancamento, emagosto de 1995, até o acidente, no inicio de margo de 1996, tomando-se o primeiro grupo brasileiro a atingir tais cifras em seu primeito trabalho. Muitos tentaram compreender o porqué daquele sucesso todo, especialmente entre a criancada. Cabe aos adultos, agora que (08"Mamonas Assassinas" nao mais existem, pensar nas specificidades do fendmeno do qual eles foram os protagonistas. Mais que tudo, ocaso dos “Mamonas” foi um claroexemplo de inversio, quando a midia foi tomada de assalto pela exigencia e pelo gosto das criangas, tendo que adaptar seus padroes pseudo moralizantes para recebere transmitir para todo o pais asimagens do grupo “Mamonas Assassinas" cantando suas bobagens divertidas € — por que nao? — carregadas de ironia social. Isto tudo, sem dizer que os contetidos das letras das cangoes do disco, se levadas a sério, so absoluta e completamente estruturadas na contramao dos dita. > Idem. 197 mes, etiquetas ¢ convengées politicamente correntes estabelecidas pelo mundo da midia nesta virada de milenio, (Juliana e Paola cantam e dangam imitando os miisicos) Entrevistadora: Ele faz assim, com a mao na cintura ¢ rebolando? Quem ele imitava? Juliana: A Gretchen, Paola: Ele poe a peruca e fica rebolando. Juliana: Ele poe a peruca eo vestidinho ¢ fica assim, rebolandb. Entrevistadora: Eas fantasias dos Mamonas? Qual era a mais legal? Juliana: Eu achei mais a do Chapolin... nao... nao. Paola: Eu achei aquela do preso. Juliana: Eu achei aquela que pega foguinho aqui atras Entrevistadora: Essa é a do RoboCop? Juliana: Nao. Paola A do RoboCop Gay ¢ a do Dinho... Piripiripii. (imitaa danga e canta a mésica) Nao estamos querendo dizer, com isso, quea programacio dos canaisabertos de televisio no Brasil, de maneira geral, nao esteja— ela também —repleta de excessos, tals como a exposicto de situacdes de violencia extrema e super exposigio de pernas, seios, médegas © reboledos sensuais, a exibigao de comportamentos moralmente duvi- dosos e sexualmente orientados, tanto em programas jornalisticos, com de auditério, ou nos filmes e nas telenovelas. Apenas vale notar {que as letras das tmisicas dos “Mamonas”, com seu discurso direto € linguagem explicta,ironizam exatamente esses excessos, subvertendo e criticando as ideologias consumistas ¢ de dominagao social que as ‘mfdias sabem muito bem defender e manter resguardadas. Talvez as criancas nao tenham sido atraidas exatamente pelos conteddas das letras das miisicas, mas tenham se sentido tocadas pela simplicidade, espontancidade e retidao do discurso a elas subjacente. Talvee, também, tenham se sentido atrafdas pelo fato de que, cantando ce reproduzindo as cancdes e o gestual dos masicos, elas podiam fazer —emaltoe bom som, sem repressio imediata — coisas que sempre Ihes foram proibidas pelos adultos — pais e professores. 198 Palavras e gestos, inclusive, que noutra circunstancia dificil: ‘mente poderiam imaginar ver e ouvir nas televisdes e radios instala- dos no seio de seus lares sagrados. Quem poderia imaginar que, algum dia, o publico veria a apresentadora Hebe Camargo dangando cantando junto com os"Mamonas”? E ainda por cima cancoes cujas letras narram as aventuras sexuais pouco ortodoxas de um casal de Portugueses que, em ritmo de “Vira”, sto convidados a participar de uma ‘suruba? Ou entao, que as venturas e desventuras de um travesti, exaltando o transformismo e a cirurgia plastica como forma de atingir a felicidade, poderiam ser conselhos para aqueles que se ‘identificam com o “Robocop Gay"? Ou ainda, reproduzir o destum- bree oencantamento de um pedo de obras — com um inconfundivel sotaque nordestino— ao conhecer um shopping center, concluindo que a “felicidade é um ctedidrio nas Casa Bahia’? Assim, por tudo isso, através de suas imitagdes do grupo, as criangas se viram livres para falar bobagens, palavrdes e escatologias, fazer gestos obscenos, representar cenas de contesido sexual explicito, imitare fazer caricaturas de travestis ou de tipos socialmente excluidos Tudo isso sem qualquer auto-censura ou repressdo externa etalvez, até mesmo, sem nem se darem conta dos sentidos intrinsecos das palavras que proferiam. Este fato nao passou desapercebido pelo esctitor e roteirista W. G. Darst que, sabiamente, afirmou: “Quando aparecem fenomenos como odos Mamonas Assassinas, logo sto assimilados pelas criancas, pois permitem que elas fiquem livres para falar palavrdes, etc, coisa que a crianca irreal (aquela que aparece na TV), aquela boazinha, que nao fala Palavrdo, que obedece aos pais, nao faz. Nao ¢ que as criangas tenham sempre maus pensamentos, mas ¢ a crianga real que se expressa, € 0 garoto de verdade, sem a camisa de forca que a sociedade impo..." Parece que as criancas souberam reconhecer essa oportunidae de unica que os “Mamonas” Ihes estavam oferecendo, e tomaram posse dela, sem cerimonia, Podemos concluir que, além de permitirem as criangas a possi- bilidade de uma transgressto institucionalizada e televisionada em W. G. Darst. Opecit. p.121 199) horitionobre—o que nos parece ser uma das principaisrazoes de seu sucesso — 0s talentosos musicos talvez tenham, também, conseguido atrairacriangada pela simplicidade desuasmelodiasasquais, seguindo a linha da parédia, podem seridentificadasimediatamente com alguns dosestilos musicais mais populares no Brasil, executados denorteasul em todas as rédios e programas de auditor. © resultado dessa mistura magica den certo: melodias € géneros musicais populares (sertanejo, pagode, rock pesado, MPB nordestina, musica brega e musica portuguesa), combinados com letras irOnicas e recheadas de sentidos diibios, interpretadas na base da imitagao explicita e exagerada dos gestos, vozes ¢ sotaques de cantores jé consagrados e admiradas pelo pulblico (Falcio, Genival Lacerda, Gretchen, Roberto Leal, Sidney Magal, Belchior, Fagner, entre outros). Isto tudo sem mencionar que, para divertirascriancas, bastariam as brincadeitas, palhacadas e fantasias (que incluiam desde roupas de presidisrios até personagens de programas humo- risticos infantis como o Chapolin) apresentados nos paleos de seus shows, em tudo semelhantes & diversio e ao riso sem compromisso provocados — ha séculos — pelos palhagos, clowns e similares. O jomalistae socislogo Marcelo Coelho, no calor dos aconte- cimentos, tentando empreender uma explicagdo para sucesso tio fulminante, conclu atirando: “Mas por que o sucesso? Fora o espirito de pura palhacada dos shows, imagino outras razées.(..) Mas os Mamonas eram mais do queisso.(..)A cada faixa, estamos num subgrupo social diferente, que os Mamonas fotografavam com requintes de perversidade claieta. Nao ¢ 66 imitando sotaques sociais e regionsis que os Mamonas revelavam extremo poder de observagio. As letras S40 baihantes na ona.) crea iaem doclassisnaodiozo(-) Havia algo de pungente nessa imitagio perfeita dos ideais popula res, que se ofientam apaixonadamente rumo 20 universo da integragao econdmica. Como se todos nés fssemos nordestinos hipnoizados com os shoppings de Sto Paulo. Os Mamonas encenaram, com tom de farsa, 0 destino do Brasil Uf, Coelho, “Os Mamonas encenaram o destino do Brasil" Fotha de Sao Paulo, Ilustrada, de 06 de margo de 1996, p49, 200 Assim, com a morte dos “Mamonas”, todos nés fomos obriga- dos a dar um basta nas polémicas, ouvir o disco e parar para refletir, mesmo aqueles que estavam evitando pensar no significado do surgimento de um grupo musical com aquelas caracteristicas naque- Je momento, no Brasil. Para nossa reflexao, agora, o mais elevanteem tudoisso é que, foram os adolescentes e as criancas — inclusive as muito pequenas — quem primeiro perceberam, compreenderam e absorveram, tapidamente, seu potencial critico e sarcéstico, Rapidamente e bem antes que os proprios adultos ¢ as midias pudessem se dar conta. E fato que a maioria dos adultos entrou em contato com as musicas dos *“Mamonas” através das proprias criancas que viviam ao seu redor e, Por sua insistencia, foram levados a escutar, entender e levar a sério a brincadeira, Como por exemplo, foi também 0 caso do miisico Guga Stroeter: ‘meu pequeno sobrinho, um nené de apenas dois anos, que ainda nao consegue sequer balbuciar, cantou.com aénfase de um Pavarotti a miisica dos Mamonas que trata da suruba do portu- gués.(..) © Pequerrucho prosseguiuaaudicio, orgulhoso, agora com a“mel6 do sabao cra-cra”, aquele que nao deixa 0s cabelos do “sapo" enrolar, (...)Aconclusdo desse artigo sucinta. Nossas criangas, que eram filhas da Xuxa, hoje sio mamonetes. Eu, Pessoalmente gosto dos Mamonas, Sao alegres, sto alto astral ** Argumentando sobre 0 mesmo assunto de outro ponto de a, continua M. Coelho: “Os Mamonas faziam sucesso com as criangas, ¢ veio dat uma ‘enormecondade eceandlo cde antipatia por parte doulultus. Ouvi finalmente o CD. Gostet. Tento entender o escandalo e 0 sucesso. ‘Claro que ha letras de grande baixaria, ecom referénciassexuaisdas mais cruas, (..) Mas minha experiéncia € que piadas sujas ndo corrompem a mente infantil. (.). A crianga di risada, repete 0 chiste. Eda? (..), Para a crianga, tudo parece vagamente ‘impr prio’, sem que se saiba por que; sem ‘dolo’, por assim dizer.” *G, Stroeter. * Filhos' da Xuxa viraram ‘mamonetes'*, Folha de Sao Paulo, llustrada, de 06 de marco de 1996, p.4-7 *M. Coelho. Op cit, p49. 201 Tambem ¢ bom lembrar que, em oposicio a aceitagao das criangas e rendicio que se seguiu ao acidente— seria culpa por nao terem levado a sério as preferencias infantis? — muitos adultos se sentiram atingidos intimamente com os contetidos das musicas do grupo. Por pouco, o Brasil nao reviveu os momentos obscurantistas do perfodo da censura quando, em fevereiro daquele ano, houve ‘uma tentativa de proibira execucio das musicas dos *Mamonas” nas emissoras ligadas & Radiobras (agencia estatal de comunicagao). © responsavel pelo veto teria se indignado quando ouviu sua neta — uuma crianga de 7 anos — cantando a misica “Vira-vira” e pronun- ciando a palavra ‘suruba’. Exemplificando bem o espirito irreverente que marcava todas as apresentagdes e declaragoes da banda, na mesma ocasiao, um dos integrantes dos “Mamonas”, 0 tecladista Jalio Rasec, afirmou: “Agora torgo para que profbam também nosso show em Brasilia. Seissoacontecer, agente vai vender mais umas 500 mil e6pias do disco." Entrevistadora: E onde eles esto agora, Camila? Camila: Eles tio lé (aponta 0 céu) com Papai Noel! Daniela: Que com Papai Noel o que! Eles tao... sabe com quem? Camila: Com quem? Com Jesus? Daniela: Nana nina nao! Camila: Com quem? Daniela: Com o pai do meu primo Bruno! Entrevistadora: Por que? Ele morreu, o pai do teu primo? Dantela: (diz que sim com a cabeys) Camila: Sabia que o meu pai vai morrer? Entrevistadora: Afinal de contas, com quem eles estao ld no céu? Camila: Com Jesus ¢ Papai Noel Emrrevistadora: E 0 que eles estao fazendo la? Camila: Eles tao brincando! Daniela: Que brincando, o que! Eles tio mottos... téo mortos! > Radiobras quis censura. Folha de Sao Paulo, Brasil, da Sucursal de Brasilia OF de marco de 1996, p.1-9. 202 Camila: Mas quem ta morto fica brincando assim 6... (faz uns gestos com os dedos, rindo) (As duas comecam a cantar as musicas dos "Mamonas Assassinas”) As falas das criancas impacto de uma morte to violentae estpida, de um grupo de musicos tio jovens, com uma carreira promissora e no auge do sucesso, provocou um instantaneo processo de comosao nacional, especialmente em Sao Paulo ¢ em Guarulhos, cidade onde viviam os “Mamonas" e que se orgulhava de sua naturalidade Para Marcelo Coelho 0 fato era chocante porque nao surgia simplesmente como uma morte de idoles populares (como Ayrton ‘Senna, por exemplo), 0 que para ele, pessoalmente, ndo seria motivo de comosao; mas porque se parecia com a morte de criangas.® Para o também jomalistae crtico Carlos Callado, depois de virarem sucesso Por repetirem “sem criar nada de propriamente original (..) uma formula certa, no momento certo”, os Mamonas acabaram desapare- cendo de modo tragico “por estarem no lugar errado, no dia errado,” ‘Sem davidaalguma,amidia (impressa, televisivae radiofonica), surpreendida pela tragédia, fomentou essa comogio. Eascriancas de todas as idades — muitas das quais estavam experimentando pela primeira vez a proximidade da morte — como sempre curiosas dos fatos, assistirama tudo e participaram ativamente de todoo processo. como espectaciores dos acontecimentos, tiveram acesso desde as Primeiras informagoes sobre o acidente até os intimeros programas retrospecitvos sobre a curta carreira do conjunto, especialmente através da televisio, sua fiel companheiranos momentosde lazer. Ou ainda, através dos jomais e revistas que produziram nimeros especiais. E, € logico, todas essas informagoes ficaram registradas em suas cabecinhas, sendo processadas e continuamente elaboradas, E © que observamos com clareza em nossas entrevista. *M. Coelho, Op.et, p. 49. *C.Callado, “Banda repetiu formula para publica certo." Fothade Sao Paulo, Brasil, de 04 de marco de 1996, p.1-9. 203 Tatiana: O Dinho telefonou pra namorada, O outro nao dirigiu, e at bateu num, Karina: Na pedra! Tatiana: Na pedra bem grande... ai entao caiu, Karina: Nao! Explodiu, caiu e bateu... ea roupa dele nao tava la... ele morreu pelado. Tatiana: Nao morreu pelado, nao, Morreu com a roupa, Af sait a roupa e a roupa ficou jogada! Karina: £, mas a mochila dele tava la, né? Tatiana: F, a mochila tava... tava... vijando! Karina: Eles tava vindo de Sao Paulo, depois, quando o aviao bateu na pedra grande, explodiu 0 avido... e a roupa deles...a mochila deles... tiraram a mochila deles... E,¢ tiraram eles, levaram eles trés enrolado numa corda. ‘Como a quantidade de material sobre a banda ainda eraescassa, as mesmas imagens de seu tinico video clipe (‘Brasilia Amarela"), das apresentagdes nos programas de auditorio, das cenas registradas em video amador, dle instantaneos engtacados de seu cotidiano de gente comume deseu ultimo show em Brasilia, foram reprisadas incontaveis vvezes ¢ eram alternadas com imagens ao vivo do resgate dos corpos na Serrada Cantareira, do vel6rioe doenterroem Guarulhos. Maisdo que tudo, falava-se do estado em que foram encontrados os corpos dos ‘ocupantes do avido (além dos cinco *Mamonas”, morreram noaciden- te, 9 piloto, oco-piloto e um técnico do grupo), das pecas de roupa e bagagens que tinham se espalhado pelo mato, daclareira que havia sido abertana loresta, enfim, descrigBes cruase taodiretas comoas préprias Tetras de suas musica, Daniela: Ai tinha um avido, o Dinho tava olhando pela janela Camila: Tinha uma montanha, dat eles fam... eles iam. Daniela: Bater! Deixa que eu falo, Camila: Nao deixa que eu falo! Daniela: Eles iam buscar 0 amigo deles. Camila: Nao! Eles iam li... onde que parava o “helic6pito’ Daniela: HELICOPTERO! Quer dizer: o aviao! Camila: Daf eles bateram na montanha, e morreu, 204 Entrevistadora: Quem morreu Daniela: O Dinho! Camila: © Dinko foi enterrado sem cabeca, s6 com o pé, sem mao, $6 com o pé! ; f Daniele Af acharam a roupa do Dinho, af acharam a camiseta do Camila: ... a calca do Dinko. Daniela: .. eo “jaco” (jaqueta) do Dinho. Ele ja foi vendido 0 *jaco” doDinho... Sabe o que jata saindo, tia? O Chiclete do*Mamonas"! Oacidente, seus motivos possiveis culpados foram assuntos inevitaveis, bem como entrevistas com aqueles que conseguiram, escapar da morte porque nao embarcaram no avi, lstagem de coincidenciase sais ce maus pressigios que ndo poderiam ter sido desprezados, descrigio das reagSes dos familiares, dos amigos © principalmente, das namoradas dos rapazes. ; Sara: Vinha vindo pro Brasil, assim... um avido, at ele perdeu 0 controle. ‘Yuri: Naol!!! Ele tinha que vim por aqui (faz 0 gesto coma mao para m ldo), mas veio por aqui (e faz 0 mesmo gesto para o outto ‘Sara: Ai perdeu o controle e... PA... na montanha! Af os Mamonas virou picadinho!!! Dai encontraram os dois bragos separado, Yuri: Ai, o meu ti, (conta rindo) ele tinha visto que tava um dedo fora do brago! Entrevistadora: E 0 que fizeram com os pedacos? Sara: Juntaram de novo e levaram para uma... e levaram eles para uma quadra, assim... de volei, e depois colocaram os pedacinhos em cada caixdo, Tinha cinco caixées, entio... eu vou parar e depoiseu conto....(interrompe a narracao para simular um choro € depois um berro; depois fala fingindo chorar)..e levaram para © cemitério!!t! Entrevistadora: No dia que eles morreram, vocé chorou? Sara: Nao... 6 fiquet assim, assim... depois a ligrima saiu. E que eu 205 assisti na casa da minha tia; depois eu voltei para a casa da minha mnie. E enti ela falou assim que ela s6 tem d6 dos pais dos Mamonas, Como sempre acontece nessas ocasides de desastres e tragedi- as, falou-se muito durante toda a semana que se seguiu ao acidente, c algum tempo depois. Era como se fosse possivel mudar o curso da historia, Era como se fosse possivel fazer o tempo voltar para tris, da ‘mesma forma como se faz voltar para trés uma fita de video. Eracomo se todos pudessem ter evitado o acidente e, no entanto, tivessem se calado, Era como se todos estivessem se sentindo culpados pelo que hava ocorrido. Mais uma vez, 2 morte em uma tragédia da vida real era tratada como um espetaculo Por outro lado, por serem personalidades pubblicas, naquele momento tdo presentes e to queridos, aqueles meninos miisicos jé& tinkam se transformado em pessoas muito proximas, quase parentes, especialmente das criancas: como se fossem tios ou primos mais velhos que chegam vestindo fantasias nas festas familiares para divertir a garotada. E os mais velhos também. Assim como seus parentes e amigos de verdade, o publico tinha necessidade de compreender os fatos para poderem elaborar o luto. Trata-se tam- bem da possibilidade — quase tinica e certamente a tiltima—dos fas peretrarem no mundo, ao mesmo tempo, real e virtual, de seus fdolos, mesmo que apenas no instante de sua morte. Tatiana: Eles morreu, mas eles tao gravados. Emirevistadora. Quem era mais legal? Tatiana: Tudo... .odasas muisicas, agente adorava, adorava. Gostava mesmo, Enirevistadora: Nao gosta mais? Tatiana; Gostoainda, né? S6 que quando nao tem, a gente fica triste E, como diz o jomalista Vaguinaldo Marinheiro — em sua coluna dominical de 11 de fevereito de 2001 na Folha Online, quando escreveu sobre a cobertura do acidente de ultraleve que levow ao coma o muisico Herbert Vianna da banda “Paralamas do Sucesso" ¢ vitimou sua mulher, Lucy — a propésito do comporta- 206 ‘mento da imprensa, nessas ocasides a midia “se transforma naquela {ia que fica o dia todo no hospital e liga para todo mundo para contar 1 detalhes. Nao sendo sensacionalista, essa tia é essencial."! Apenas como indicative de conclusao, apesar da re-elabora- Gio e cratividade pessoal de cada crianca, fica patente nas falas que registramosa relacio de verdade absoluta queas riancas, de maneira geral, costumam estabelecer com os contetides veiculados pela televisio, pela publicidade e pela propaganda, acirrada ainda mais em virtude das catactertsticas particulares da estrutura de seu pensamento infantil. O ensaista ¢ poeta José Paulo Paes sintetiza, precisamente, aspectos relevantes para a andlise das falas das criancas a esse respeito. °C.) 0 pensamento infantil € analégico. Em vez de utilizar 0 taciocinio ea observacio para descobriras causas dos fenomenos do mundo, recorte a imaginagao para explicar, por nexos de Parecenga e de participacio, aquilo que, por escapar-lhe ao entendimento, possa ser inquietante ou ameagador. Explicagao aque nao éde todo estranho o “wishful thinking, ou sea, um tipo de crenga que se baseia na logica do desejo e néo na da razio,""* Assim, maquiando as informagdes que receberam do mundo da midia e dos ambientes escolares e familiares, com as tintas da fantasia como rectiagoes de seu mundo imaginario ea servico de sua necessidade de resolver seus confitos intimos, s criangas reais que entrevistamos foram capazes de elaborag6es bastante complexas ¢ notiveis sobre o assunto “Mamonas Assassinas” e sua morte. Emesumo, entre outras coisas, aseriangas demonstraram ter: conhecimento de nomes de lugares distantes de sua realidade; capacidade de descrevera cena do acidente ede opinar precisamente sobre eventos que oantecederam; conhecimento de fatos variados da >'V. Marinheiro. “Herbert Vianna e a midia como tia.” Folha On Line, 11 de Fevereiro de 2001, * J.P Paes. “O poeta José Paulo Paes examina as similltudes entre o ensamento da crianga e construcao poética. Flha de Sao Paulo, Cademno MAIS!, de 9 de agosto de 1998, p.6. 207 vida dos musicos; capacidade de fazer referencia a acontecimentos apresentadosna televisao; refletir sobre os proprios sentimentose de outras pessoas; compreensao da importancia e do cariter excepcio- nal do acontecimento; compreensao da necessidade de se demons- trar consternagao frente a ele; opiniao sobre 0s fatos que levaram a0 acidente; capacidade de reproduzir os detalhes € as informagoes divulgadas na midia, Entrevistadora: E o que aconteceu depois que eles morreram? Juliana: Ai cairam no matagal... ala policia pegou o corpo delese pos num caixao... af levaram pro velorio, Entrevistadora: Sim, e dat. 4 liana: So! Ai ficaram enterrados. Deoieadied 56? Quem morre fica enterrado e acabou? Juliana: E, acabou a vidal Entrevistadora: Eles tio embaixo da terra ou em outro lugar? Juliana: Eles foram pro céu.... Nao: tdo kino vel6rio, dentro de uma caixinha. Entrevistadora: Ainda tao no velério? Paola: Nao! Eles viraram anjinhos. Juliana: Nao viraram! s : Entrevistadora: Por que voc® acha que eles nao viraram anjinhos Juliana: Porque sim: eles tao com 0 corpo quebrado! Mas 0 olho deles ta grudado. Paola: O que? Aonde? Juliana: Aqui! (aponta o olho). Nao vai mais abrir 0 olho. Paola: Mas eles viraram anjinho. Juliana: £, mas com o olho fechado, Paola? Paola: Como € que as pessoas morrem ¢ fica de olho aberto igual de anjo? ere Juliana: Ebhh, Paola! O anjo, ele morre porque ele € magico... af ele viveltt Paola: Mas Juliana: quem morte vira anjo! Ss Juliana: Mas eles nao virou anjo! Como € que vai abrir 0 caixto? Paola: E que s6 fol o espirito deles pro céu, ¢ por isso! Juliana: Mas s6 saiu a sombra deles pro céu! 208 Paola: Voc# nao sabe que que ¢ espirito? Juliana: Nao, ‘ Paola: Eu nao sei também, Juliana: E, entao porque falou. Oh, doida! Jovens pobres e a cidade: a construgao da subjetividade na desigualdade Maria Aparecida Tardin Cassab Esse texto € parte de uma pesquisa acerca da construgao da subjetividade de jovens urbanos oriundos de segmentos sociais subalternizados, Nessa pesquisa procurou-se conhecer comoa cida- desta presente nessa construgdo configurandoas escolhase omodo devida destes jovens. Sao vistas aqui, através das falas dos jovens, as varias faces que a cidade assume e como eles vio interagindo com ela ¢ se produzindo nessa relacdo. Sao examinadas, ainda que breve- mente, asalternativas que buscam para lutar cotidianamente por sua sobrevivencia, Foram entrevistados rapazes, selecionados a partir de suas diversas formas de moradia na cidade e de sua condicio familiar ‘moradores com suas familias em conjuntos habitacionais de um batrro popular da zona suburbana; em favelas no centro da cidade ¢ em boitros mais distantes do centro da cidade; ainda, rapazes que vive em instituicoes assistenciais para jovens, presos em estabelecimentos penaise, finalmente, jovens que estavam em instituigdes assistenciis, mas que estiveram durante um periodo vivendo nas ruas. ara a organizacao do material recolhido partiu-se do ponto devista de que a cidade é um outronaconstituicdoda subjetividadedestes Jjovens em processos de exclusdo. Mais do que 0 locus onde essa subjetividade se produz, a cidade se “personifica” e impoe a esses jovens determinadas restrigoes e/ou possibilidades que se confor- ‘mam como elementos importantes na configuragdo dessas subjetivi- dades, 210 Tratar a cidade como “outro”, presente na subjetividade dos sujeitos, pode apresentar alguns avancos em termos da recuperagao da singularidade dessa subjetividade produzida na experiencia do espaco urbano, na modemidade. Um deles € a possibilidade da apreensio da espacialidade no dominio do subjetivo. Isso pode ser feito, inicialmente, discutindo- se a producao ea circulagao das mercadorias, que no espaco urbano tem sua expresso mais ampliada. As dinamicas produzidas pelo urbano na reprodugao das mercadoriasestao funcionalizadasna vida dos individuos. Isto é, as exigencias materiais de producao e circu- lagao das mercadorias configuram uma organizacao ao cotidiano dos sujeitos a partir de suas formas de insergio como produtores ¢ consumidores. Esse cotidiano esta circunscrito em torno de alguns ¢lementos, dos quals sto destacados dois: as rotas na cidade, ou sea, a circulacio e a visibilidade dos sujeitos no espaco urbano e suas atividades rotineiras incluindo o uso de seu tempo livre, Milton Santos (1991) acentua que nas paisagens das cidades estdo inseritos os mados pelos quais se organizam a producéo, 0 Consumo ea circulagao dos sujeitos pelo espaco. Ele ressalta ainda ©corte temporal que as cidades aptesentam na superposicdo presen te nas paisagens. Ele afirma que: ..) “Uma paisagem é uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que tém idades diferentes, ¢ uma heranca de muitos diferentes momentos. Se juntos se mantém elementos de idades dliferentes, eles vao responder diferentemente as demandas soci ais. A cidade € essa heterogeneidade de formas, mas subordinada ‘um movimento global. O que se chama de desordem é apenas x vidlem do possivel, j4 que nada € desordenado.” (SANTOS, 1991, p.66) Osindividuos, em seu cotidiano, fazem percursos pela cidade, definidos previamente por suas fungdes de produtorese consumido- res. As paisagens que descortinam nos seus deslocamentos, as ofertas de prazeres, de consumo e lazer, que compoem este “vivido" dos Sujeitos, estdo presas a territ6rios bem delimitados. As experitneias de vida dos sujeitos os localizam na reprodugio da divisdo de sua vida como morador/consumidor € produtor. Como morador, seu lerritorio € desvalorizado; como produtor, ele proprio, por sua 2 insergao subalternizada no processo produtivo, € que se torna desvalorizado. Essa espacialidade impregna o cotidiano dos sujeitos sociais, delimita seus horizontes, circunscreve suas relagdes ¢ espa- 0s de identificacao e seus circuitos de inclusio e exclusio. E também na referencia espacial que o sujeito faz escolhas, objetivas e subjetivas, e estabelece todo um complexo de relacoes baseadas, igualmente, nessas escolhas. Os espacos configuram, também, um “que fazer” em cada lugar. Isto se refere tanto a formas dese comportar, de olhar, de assumir determinada postura corporal, como ao tipo de atividade que ele desenvolve em cada um desses espacos. Desse modo, ele esta em determinados lugares com visibi- lidades diferentes, P ‘Acidade ¢, ainda, como “outro”, espelho que “dialoga” com o sujeito na producio de si mesmo. Se cidade favorece identificacdes, cle permite ao sujeito reconhecer-se, também, através da imagem que devolve, Paranqueles que trzem em eu corpo os signos viel dedesvantagens no jogo de insercao social, a cidade é um espelho de alta reflexio. Quando fora de seus espagos, sAo identificados, porém, nndo como cidadaos, Paradoxalmente, tal identificagao se dé através doanonimato, Os sujeitos em seus espacos tornam-se, confortavel- ‘mente, invisiveis porque identificados com eles. Estdo reconhecidos como sujeitos passiveis de pertencerem aquele lugar, no causam esiranheza e no sfo objeto de vigilancia, Podem transitar pelas ruas estarei suspeigao. ° anoisgas ae pode serum recurso tedrico de fundamen- tal importancia para, na articulagdo da idéia de visibilidade, ser ppossfvel apreender e recuperar no plano te6rico a multiplicidade e complexidade dos processos de exclusto e inclusto sociais. ‘Assim, para esses jovens, a cidade aparece como outro, em anonimato e vigilancia: Um dos rapazes entrevistados fala, em determinado momen tc, sobre os varios riscos que ele enfrenta andando pelas ruas da cidade. Ele conta: *.. Tava com a minka namorada, eles me chamam: ok, fulano, ver. ca. At eu olhei assim pro cara que me chamou. — A‘ nao tem nada at nao? — tem ndo Sr. — Oh, se ew achar vou te dar um pau. Eu fle, 212 not levando minka namorada em casa. — Entao entra at que eu vou levar voces Ainda falei que eraperto, mas.a‘entramosnocarro ele levou a gente na casa del at ele lou, — vai para casa, Ai eu Siqueicom medo ne, eu vou entrar no carro oginko, esses poicias tudo. safado, — Deixa que a gente te leva em casa. Eu disse, — nao, ndo, vou dormir nacasadelahoje. Aiquando cles foram embora eufui para ‘minha casa, vou deixar eles me levarem em casa? Quatro policias, eu {a soainko, s6 eu de moleque, sem ninguém me conhecer, iam me massacrar dentro do carro dels...” Nessa situacdo, este jovem esta submetido a um tipo de vigi- lancia que 0 identifica a partir de certos esterestipos. Essa identifica. ‘sto nao o personaliza, nfo o recupera em sua singularidade, mas, a0 Contrario, toma-o mais andnimo. O “seqdestro” que o jovem relata 50 € possivel devido ao anonimato dele e dos policias, apesar de ser resultante de uma identificacao. Os policiaiso particularizam partir de sua aparencia, ¢ 20 faze-lo 0 tornam andnimo, pois seu olhar ndo €0 da singularidade, mas sim o do esterestipo. Seu temor esta loca- lizado em estar sozinho com os quatro policiais, sem defesa ante 0 arbitrio. Ele nao tem escolha, precisa entrar no carro mesmo contra sua vontade Pode-se argumentar que esta fragilidade do cidadito ante o arbitrio de uma autoridade, constituida supostamente para protege- lo, é uma caracteristica marcante de nossa formagéo social, histori. camente caracterizada pela baixa cidadania. Porém, acrescido a isso, € necessério considerar que 0 espaco urbano é particularmente po- ‘encializador do anonimato, Neleo policial pode exercer, quase que sem limites, seu poder e contraditoriamente o jovem fica sem defesa em espacos e limites Ainda nas entrevistas, um rapaz relata sua travessia pela Central do Brasil:! Igual outro dia na Central. Eu desgo do dnibus, at 0 cara (um policial) chega no meu ouvido, — Ei, tem alguma coisa at? — Nao senhor. — Entdo vamos sentar ali nds dois, vocé vai mostrando seu " Prineipal terminal rodo-ferrovidrio que liga o centro da cidade aos baitros Populares ¢ aos municipios da regiao metropolitana 213 documento devagarinho. (..) a, pum, tinha um dinheiro dentro da carteira. At cle, — Esta vindo de roubo, né? — Nao senor! — Ta vindode roubo. Oh, vamos fazerum negocio, paraeu ndo te levar para dura voce me da seu relogio, seu dinheiro e vai embora. — Que que isso, ew nao t0 vindo do roubo, 16 vindo do trabalho, — Para cima de mim?! Ai, pum, pegou meu reldgio, meu dinkeiro, me mandou embora. (..) Eomesmo policial da Central, ee ja me paroutrés vezes, eu pasando eel psu, psiu, de novo. Da outra vez levou met cordao, meu casaco, eu desesperado, toda vez, at ele me levou ali por Campo de Santana, at ele falou, eu vou contar até trés tu some, quando ele comecoueu yuummm, quando lhe pra tras ele estavacom o revolver na mao, Na terceira que ele me pegou, PO vamos entrar no Campo de Santana para ficar mais perto. At quando entra ja pede tudo, euja venho até tirando, eu jaseio que ele quer, ja venho tirando, Atle, — Nao t6dizendo que tu rouba. Jé vem tirando, — Nao ¢ isso nao, &s6 pranaodemorar aqui, nao vamos parar conversando, Ja pegou o meu primo assim, fez ele andar de mao dada aqui na Central. Agora so Passo la morto, dou a maior volta, quando t@ com grana entro no dnibus so para andar um pedacinho, mas ndo passo.” Outro relato conta: Mas na rua, parar o carro dé dura, igual uma vez ld em Botafogo, tum colega meu estava sem documento, eles levaram logo para a DPCA,"afoscaras deram uns tapasna orelhae mandaram ralar, dali mesmo Jonas voado embora. Eu quase nem saio muito mais. Saio agora rhais dia de domingo que tem um baile perto de casa Outro ainda diz: ‘depois me leva pro Mendanka® ai mata acabou, ninguém viu nada,” ‘Um rapaz falando sobre o que teme na cidade: Mas acontece mesmo ¢ de noite, mesmo. de pega vocéna rua, assim de noite, voltando de algum lugar, se cles véem que ndo tem ninguém vendo a gente eles fazem miséria, bate, ou entdo bota vocé dentro do carro e vao dar uma volta contigo.” * Delegacia de Protegto a Crianga e ao Adolescente. > Regito afastada 50 km do centro da cidade, razoavelmente erma, onde se encontra com freqdéncia corpos de rapazes executadas, 214 Um entrevistado diz que o que mais teme ¢ morrer: “Morrer de tiro mesmo... saindo de noite... eu acho que € a violencia ‘mesmo no Rio de Janeiro @ noite. essas coisas assim... é uma loteria sexta-feira de madrugada assim é um rsco forte morrer por engano ir no lugar onde voce nao tem conhecido, falar que a minha area ¢ inimiga da area deles, negocio de facgdo criminosa..” Outros relatos e situagdes poderiam ser transcritos, mostran- do 05 limites dentro dos quais esses jovens circulam na cidade. A Cidade esta mapeada. partir dos perigos que apresenta. E interessan- te observar que, na maior parte dos relatos de constrangimentos ¢ violencias, as situagdes se dio em momentos de transito. E quando esto nas ruas indo e vindo que estes limites, do pode ou nao passar, aparecem de forma mais explicita, Porém ha situagdes que ocorrem em lugares de exclusio na cidade; em suas falas, tais fatos, so particularmente ameacadores. Por exemplo: ‘Quando eles chegam (na favela onde mora) ja chega pegando ja, chega batendo... Tambem quando solta os fogos ninguém fica mais na rua... Tem que ficar onde tase ndo quer levar’ “Aqui mesmo o edifcio ¢ aqui no pé do morro, a gente via trés horas da tarde a policia dando tro, 0 pessoal respondendo, crianga na rua eles dando tro, Tres horas da madrugada a gente acorda com tio, policia passando por dentro dainstituicao. Um dia desses subiu sete policias a para cima, Na instituicao tem uma quadra em baixo todo ‘mundo jogando bola, chegaram dando tro em todo mundo, morrew tum moleque. Dé muito medo”, J@ os rapazes moradores de um conjunto habitacional do subdirbiv carloca relacam situagoes onde “morar perto” impede a violncia. Este relato mostra bem as diferengas entre os dois lugares: “Ah! Mas aqut é mole. Qualquer coisa éu moro ali etal. Porque aqui embaixo voce conhece.. Alguém td vendo voce, Eu conheco ele ¢ tl Aqut é mais facil, Agora area de morro é que é ruim de sair. Mesmo ‘quando diz que te conhece, tu explica que nao tem nada a ver era, Ja te bateram. Eles batem primeiro e perguntam depois. Ja chegam batendo com cassetetee coronhada." 215 Ha ainda relatos de violencias nao tao explicitas, mas sentidas como forma de coercdo € imposigéo de limites. Tais situagées ocorrem em locais mais ricos da cidade ‘Que ner uma vez fui eu e uns colegas la no shopping. At tava la Fomos a toa, sé para ndo ficar aqui em cima @ toa. Todo mundo teparando.. 6 olhando a gente... dat viemos logo embora” *...Criticam minha cor,omadode vsti, deandar. As vezes as pessoas Jalam assim, sé podia ser preto mesmo. Corta cabelo baixinho as pessoas pensam, € marginal. Teve uma vee que tava eu e um amigo ‘meu, aiasenhorafoie escondeu abolsa. Agente ficou puto. Atelefalou assim: Af minha senhora, ndo precisa esconder a bolsa ndo. Nos nao somos ladrao nao, Eu tenho pai, tenho mae e eles me do as coisas.” ".. Quando eu vou a praia é certo. Outro dia estava sem camisa no

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