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LEVY PEP PITY DERE EY PLY YW IAL AEN YN pap 1 A ética na pesquisa social: da perspectiva prescritiva a interanimagao dialégica* MARY JANE P. SPINK** Y RESUMO, A reflexao sobre ética e pesquisa que seré aqui desenvolvida visa argumentar a favor de uma étioe da responsabilidade pautada na competéncia élica, Para isso, comecarei situando as contingéncias his- toricas que fazem da ética uma quesiao premente na modernidade tardia. Prosseguirei elaborando a distincao entre a ética prescritivn, decorrente da moral contratual, ca ética dialégica pautada na compe- tencia ética. Argumentarei, a seguir, a favor da necessidade de de- senvolver a competéncia ética de foro intimo de modo a criar as con- dicoes de sustentabilidade dos atuais cédiigos de ética em pesquisa Concluirei situando as caracteristicas da éticn dialégica Palavras-chave: Elica; Cédigos do ética; Posquisa social; Moder- nidade tardia, ABSTRACT Ethics in social research: from a prescriptive to a dialogical perspective ‘This paper argues in favour of an ethics of responsibility based on the development of an ethical compeience. It starts by describing some of the historical aspects that place ethics as a central question in late modernity. I will then attempt to differentiate between prescriptive ethics, based on contractual morality, and dialogical ethics, based on the development of ethical competence. | shall then argue that it is * Paper apresentadlo no Seminario sobre Hlica e Pesquisa em Saiide Coletive, Instituto de Saiide, Secretaria de Estado daSaiide de S20 Paulo, 10 de setembro de 1998. **Profesoora Titular do Programa de Estudos Pée-Gredundos em Psicclogia Social, Pontificia Universidade Catélica daSio Paulo. (E-mails mjspink@pucep-be) aco [ Pawacwe [vo [at | p7ae | pega ano newstary to strengthen one's ethical competence so as to create the conditions for the sustainability of the Codes of Ethics for reaearch, Te conclude, | will define what ans for me the main charactoristics of 1 dinlegical ethies Key words: Bthios Codes of ethics for msoarehy Social rossarchy Lae modernity, y INTRODUGAO A reflexao sobre ética e pesquisa que sera aqui desenvolvida visa mentar a favor de uma ética da responsabitidade pautada na com- preensao dos fatores sociais passiveis de dar sustentoa competénciaéti- isa social retine condicdes excepeio- nais para o exercicio da competincia ética em pesquisa, Este argumento esta preso a algumas reflexoes anteriores que Ihe dao sustento e factibilidade. Comecarei situando as contingéncias his- téricas que fazem da ética uma questio premente na modernidade Lardia. Prosseguirei olaborando uma distingio entre éiica prescrition, docorrente da moral contratual, ¢ étiea dialégica, de carster nio funda- «a. Visa, ainda, propor quea pes mentalists, pautada portanto na competéncia ética. Argumentarci, a seguir, a favor da nevessidade de desenvolver o competéncia ética de foro intimo de modo a criar as condigdes de sustentabilidade dos aluais codigos de ética, Isto seri feito a partir das propostas de Zigmunt Bauman (1995) para uma sociologia da moralidade e dos experimentos sobre obedi@ncia desenvolvidos por Stanley Milgram (1974) no Ambito da Psicologia Social. Finalmente, concluiret situando (© que estamos intilulando de ética dialdgica nas discussdes te6rico- metodol6gicas que vem sendo efetuadas no Nuicleo de Pesquisa em Psicologia Social e Satide por mim coordenado na PUCSP. 4) MODERNIDADE TARDIA, REFLEXIVIDADE E A ONIPRESENCA DA DISCUSSAO SOBRE ETICA ‘A modernidade tardia ¢, segundo Ulrich Beck (1993), 0 terceiro estigio no desenrolar da modernidade. A modemidade ¢ um longo proceso que nos leva da transigao da sociedade feudal, na pré- modernidade, & modernidade clissica, cristalizada na sociedade in- dustrial, ¢ as lransformacoes nese final de século que instituem uma nova composicao de forcas a que Beck denomina sociedade de risco, 8 A modernidade caracteriza-se sempre pela ruptura com a ‘tradi- ao’ consagrada no periodo que a antecede. A sociedad industrial, ou modemidade clissica, ma acepcdo de Beck, dissolveu a estrutura fox. dal. A modemidade reflexiva comeca a dissolver as ostruturas da s0- ciedade industrial. Assim, tal como na modernidade classiea o8 privi- légios de hiorarquia baseados em horanca ou em afiliagdes religiosas, tipicas da pré-modernidade, passaram a ser paulatinamente desmis. lificados, 0 mesmo vem ocorrendo hoje em relacdo a compreensao da iéncia ¢ tecnologia, prevalecente na sociedade industrial, ¢ & estru- turayio dos modos de ser no trabalho, no lazer, na familia ¢ na sexta. lidade, A desmistificacao das tradicoes fundantes da modernidade clissi- caleva ao colapso das grandes narrativas. E, como apontam os autos que buscam conceituar a pos-modemnidade, sm convite direto a con: vencia de varias pequenas narrativas: locais, culturais, étnicas. Trar no seu bojo a liberacao dos costumes, um movimento intensificado a par- tir dos anos sessenta e que leva 3 liboragio sexual, & liberacao nas rela- sbes de género, a desterritorializacio através do maior polencial de locomogio pelo mundo afora ¢ até mesmo a liberagao das contingen- cias genéticas por meio da engenharia genética. Mas traz, em con- trapartida, o imperative de definigio de limites numa sociedade em que a relativizacao dos costumes coloca ‘em risco’ a vida comunitiria pautada nos principios de solidariedade. Esta tensao entre liberacao ¢ desestruturacao pode ser melhor apreendida a partir da caracteriza- £20 da sociedade de risco que se configara no Ambito da modernidade ‘ardia, Sio fundamentalmente (18s as caracteristicas da sociedade de ris- co. Primeiramente, a globalizacio que, na definicao dada por Giddens (1998), refere-se a intersecao da presenca e da auséncia. Refere-se, so- bretudo, ao entrelacamento de eventos sociais © relacces sociais que estao “A distancia” de contextos locais. Esta articulagao de relages sociais que atravessam vastas fronteiras do tempo e copaco torna-se possivel porque o movimento - de pessoas, produtos ¢ informacco ~ passou aser facilitado pelos avancos nos meios de transporte. Mas nao sao 0s transportes 4 marca registrada da globalizacao, Sua vondicao sine qua non, 630 08 desenvolvimentos na midia cletrdnica. Asogunda caracteristica da sociedade de risco ¢ a individualizacao, Ou, melhor dizendo, uma forma singular de individualizacao, visto que a ética Eberal, ancorada numa forma especifica de utilitarismo, 6, por definicdo, pautada pelo individualismo. O processo de individa- 9 lizacao a que Beck se refere concerne & destradicionalizacao: a liberta- si0 dos grilhors da tradicao. Sav dois os aspectos centrais desse pro- ceaso de des-tradicfonalizacao: o paulatino enfraquecimento das estru- turas de classe decorrente das novas formas de inserao no mercado de trabalho, ¢ as transformacées dos lacos afetivos e familiares, A individualizacdo da existéncia implica na diversidade de estilos de vida opondo-se, assim, a estrutura de classes tipica da sociedade industrial. A ruptura da estrutura de classes ests intimamente associa- da as novas modalidades de insercio no mercado de trabalho: a flexibilizacaio exigida pola aceleracao da producdo e circulacao de co- nhecimentos ea mobilidade para os que estao empregados; 0 crescen- te desempregoe a predominancia do emprego informal. A cultura de classes, tipica da modernidade classica, ndo fornece as possibilidades de sentido para essa novas formas de insercao social. Como conse- qiiéncia, os problemas relacionados ao sistema perdem sua dimensio politica e transformam-se em fracassos pessoais. A libertacio da estratificacao social em dasses tem uma contrapartida na libertacao da estrutura de génere dando lugar as “fa- iilias negociadas’; este aspecto poe om evidéncia uma contradigao in- trinseca sociedade industrial: na esfera das relacoes de genero ela é ida em que a sociedade industrial trlunfa, ela promove a dissolugao de sua moralidade familiar, dos des- tins vinculacos aos posicionamentos estanques de género, aos tabus relacionados a sexualidade e até mesmo a crescente reunificacao da domesticidade e do trabalho remunerado. Tais contradicées emergem da divisdo dos principios indivisiveis da Iiberdade individual @ da igualdade, e sua inscrico em apenas um génoro, definido no momen- to do nascimento. Isso romete & caractoristica mais marcante do processo de indivi- dualizacao: A medida que os individuos se tornam as unidades reprodutivas do social no mundo vivido: as biografias se tornam um projeto reflexivo. Dito de outra forma, com 0 colapso das classes ¢ da familia como unidade estavel da sociedade, os individues se tornam agentes de sua subsisténcia, sendo responsaveis por seu planejamento © organizacao. A terceira caracte da sociedade de risco 6 a reflexividade. Isto rofere-se, na teorizacao feita por Giddens (1991: 20), “a suscetibilidade da maior parte dos aspectos da atividade social, revisio erOnica & luz de novas informacdes ou conhecimentos”. Nada mais caracteristico da reflexividade da sociedade de risco do que a atitude corrento frente a tanto industrial como feudal. A mes 10 ciéncia. A ciéncia, nos diz Beck, esté se tornando humana. Passou a ser sujeita a erros, © processo de reflexivizacao da ciéncia passa por dois estigios. Num primeiro momento ocorre uma modernizagao du tradicao, abrin- do-se a possibilidade de aplicagdo do método cientifico a natureza, as pessoas ¢ & sociedade, Num segundo momento, ocorre a moderniza- ao reflexiva, na medida em que a cieneia 6 confrontada com seus pré- Prios produtos, defeitos e problemas secunddrios. A transicao para a modemizacao reflexiva deu-se, inicialmente, dentro da propria cién- ia: os agentes da ruptura foram os discfpulos da aplicacao critica dos mélodos da cigncia a propria ciéncia. Mas, eventualmente, a reflexi- vidade saiu do ambito da critica pelos pares e tornou-se um movi- mento social voltado a andlise das aplicagées priticas da c E nessa perspectiva que a critica A ciéncia pauta-se pela reflexio Glica. 0 horror suscitado pelas experiéncias nazistas, os usos da lecno- logia para fins bélicos ¢ a crescente consci@ncia de que a bomba atomi- ca ndo é uma arma passivel de controle racional, levaram a acordos multilaterais para a regulaco da pesquisa, Nada mais ilustrativo do ‘que os cédigos de ética para pesquisa em seres humanos: 0 Codigo de Nuremberg em 1947, redigido durante o julgamento dos médicos na- istas, estabeleceu ser obrigatério obter o consentimento do partici- pante de pesquisa clinica (Vieira e Hossne, 1998). Seguiram-se outros cédigos: a Declaracao de Helsingue assinada om 1964, revista om 1996 €.com nova rovisio ora em curso!, « as Diretrizes Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos, elaboraday pelo Conselho para Organizagoes Internacionais de Ciencias Médicas/ ‘CIOMS, em colaboracao com a Organizacao Mundial da Satide (OMS), publicadas em 1982 revistas em 1993. Esses codigos, declaragoes e diretrizes, apesar de nao terem forca de lei, so importantes instrumentos de controle na medida em que influenciam a legislacao de cada pais, além de servirem como pardmetro para es politicas das agtncias financiadoras de pesquisa. No Brasil, a normatizacao para pesquisas envolvendo seres hamanos foi promulgada, pola primeira vez, pela Resolucio 1/88 do Conselho Nacional de Satide ¢ revisada em 1996. T Uma nova revisio da Declaragéo de Helingucesté em curso e fol discutida em Santi {g0,Chile,emabril de 1999 (Document: 17.C/ Rev /98~ Proposed revision of the World ‘Medical Association Declaratoin of Helsink!). u Entretanto, o que estou propondo é que estes codigos constituem elementos de uma ética prescritiva decorrente da moral contratual, Sem pretender menosprezar esses c6digos, que constituem, sem duivida, instrumentos importantes de garantia dos direitos das pessoas que participam de pesquisas, gostaria de propor que « moralidade em pes- quisa nocessita tamhém do forialecimento da ética da responsabilida- de - uma ética dialdgica pawtada na competdncia interacional que é con- dicao de possibilidade da vida em comunidade. Passarei, a seguir, a detalhar melhor essa diferenciacao. 2 AETICA PRESCRITIVA E A ETICA DIALOGICA Para fine desta discussao tomarei ética como a ciéncia que tm por objeto 03 julgamentos de apreciacae sobre os atos considerados bons ou maus. Definirei moral, seguindo Lallande (1951), come o conjunto de prescricies aceitas ¢/ou recon determinadas, assim como o esforgo de conformagao a estas prescri- cidas em uma época ¢ sociedade oes ¢ a exortacao a segui-las. Ainda no afa de situar os pressupostos do argumento que quero desenvolver, considero esclarecedora a diferenciacio feita por Michel Foucault (1998) dos trés sentidos da ‘moral’. Num primeiro sentido, moral refere-se ao cidigo: ao conjunto de valores e reggras de acdo pro- postas ao individuo por meio de aparelhos prescritivos diversos - en- {re outras, a familia, as instituicées educativas e as associacoes de clas- se dofinidoras dos cédigos de ética em pesquisa. Num segundo senti- do, ‘moral’ refere-se & moralidade dos comportamentos; a comporta- mento real dos individuos em relagio as regras ¢ aos valores que hes sio propostos: submissdo, resisténcia, respeito, negligencia. Em suma, as margens de variacao em referencia a um sistema prescritive impli- ilo e explicito de uma dada cultura ¢ sobre o qual os individuos po- dem ter consciéncia mais ou menos clara. Finalmente, num terceiro sentido, ‘moral’ remete constituicao de si mesmo como sujeito moral ¢, portanto, as diferentes maneiras de conduzir-se moralmente. Con- cornem as diferencas quanto a determinagio da substincia ética, aos modos de sujeicao, a elaboracao do trabalho ético ea teleologia do su- jeito moral. Considorando que toda ‘moral’ constitui-se dos dois aspectos ~ cédigos de comportamento ¢ modos de subjetivacio ~ ¢ possivel pro- por que esses elementos podem ler importincia diferente. Podem ha- R ver morais onde a importancia ¢ dada sobretudo ao cédigo e nesse caso a subjetivacdo se efetua de uma forma quase juridica. E podem cxistir morais cujo elemento forte e dindmico esté nos modos de subjetivacao e nas priticas de s,i sendo, portanto, orientadas para a ética. Nesse caso, a énfase 6 dada 6 formas das relacées consigo mes- tros, aos procedimentos @ ais léenicas pelas quais s30 claboradas, aos exerci joto a conhecer e as prit os pelos quais 0 préprio sujeito se dé como ob -as que permitem transformar seu modo de Penso que parte da discussao sobre ética em pesquisa que se trava na modernidade tardia prende-se a inter-relacao entre o primeiro e se- gundo aspectos distinguidos por Foucault. Chamarei esta perspectiva de moral prescritiva, J4 0 que estou aqui denominando de moral dialégica silua-se mais precisamente na perspectiva das pessoas tomadas a par- tir de sua competincia ética. A diferenca proposta fica mais clara quando focalizamos as teo- ras sociais sobre a moralidade. A moral prescritiva esta presa is oxpli- cacbos da moralidade, segundo as quais as normas morais derivam das condigdes sociais ¢ sio efetivadas por meio de processes sociais ‘em qualquer uma de duas versoes: da moralidade come fruto das ne- cessidades humanas essenciais ~ como na visao antropoldgica associa- da a Malinowsky - ou como fruto da necessidade de integracao social continuidade da existéncia dos sistemas sociais, como no tratamento do fendmeno moral dado por Durkheim. Nessa visdo, hoje predominante, a sociedade emerge como forca moralizadora. Ou seja, retirando-se a coercio social as pessoas regre- diriam ao barbarismo ¢ as paixGes animais. A conduta imoral seria pois o resultado da insuficiéncia do suprimento das normas morais ou do suprimento de normas inadequadas, conseqii@ncias da falha técni: ca ou gorencial da ‘fibrica social de moralidade’, No nivel do sistema, a conduta imoral seria um resultado de problemas gerencias; jf nos niveis mais locais, cla seria um indicador de falhas do sistema educa- cional ou da fragilizacao da familia. Em todos os casos, 0 surgimento de associais. Nesse tipo de modelo, a sociedade (ou 0 coletivo social) impoe sua versao substantiva do que ¢ comportamento moral etem a prerro- gativa do julgamento moral. Para todos os efeitos praticos, comporta- ‘mento moral torna-se sindnimo de conformidade social e de obedién- cia as normas definidas pela maioria, Entretanto, a explicacdéo do condutas imorais seria uma manifestagdo de drives pré-sociais ou 13 holocausto a partir desse modelo, como aponta Zigmunt Bauman (1995), coloca um problema irmpardvel ao modelo social de mora- lidade, visto que as pessoas envolvidas estavam soguindo as regras morais da ordem social especifica imposta pelo nacisme Bauman parte entaode outro pressupesto: que haveria uma habi- lidade inerente & humanidade de distinguir entre o

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