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DO AUTOR

Porque literatura, Petrópolis, Vozes, 1966. Luiz Costa Lima


Lira e antilira (Mário, Drummond, Cabral), Rio, Civilização
Brasileira, 1968; 2- ed. revista: Rio, Topbooks, 1995.
Estruturalismo e teoria da literatura, Petrópolis, Vozes, 1973.
A metamorfose do silêncio, Rio, Eldorado, 1974.
A perversão do trapezista (O romance em Cornélio Penna), Rio,
Imago, 1976.
Mimesis e modernidade (Formas das sombras), Rio, Graal, 1980.
Dispersa demanda, Rio, Francisco Alves, 1981.
O controle do imaginário (Razão e imaginação nos tempos
modernos), São Paulo, Brasiliense, 1984; 2- ed. revista: Rio,
Forense, 1989.
Sociedade e discurso ficcional, Rio, Guanabara, 1986.
O fingidor e o censor, Rio, Forense, 1988.
Terra Ignota
A aguarrás do tempo (Estudos sobre a narrativa), Rio, Rocco, 1989.
Pensando nos trópicos (Dispersa demanda II), Rio, Rocco, 1991.
Limites da voz, 2 vols., Rio, Rocco, 1993.
A construção de Os Sertões
Vida e mimesis, Rio, 34 Letras, 1993.

TRADUÇÕES
Control ofthe hnaginary (Reason and Imagination in Modern Times),
Minnesota, University of Minnesota Press, 1988.
Die Kontrolle des Imagmüren (Vernunft und Imagination in der
Modeme), Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1990.
The Dark Side o f Reason. Fictionality and power, Califórnia,
Stanford University Press, 1992.
TheLimits ofVoice. Montaigne, Schlegel, Kafka, Califórnia, Stanford
University Press, 1996.

C IV IL IZ A Ç Ã O B R A S I L E I R A

Rio de Janeiro
CO PYRIGHT © 1997 L u iz Co sta Lim a

CAPA
Evelyti Grumach

PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach
João de Souza Leite

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
Milton Alves “Difficulty is our plougk.”
W B. YEATS
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Imagem Virtual Editoração Ltda.

C IP -B R A SIL C A T A L O G A Ç Ã O -N A -F O N T E
S IN D IC A T O N A C IO N A L D O S E D IT O R E S D E L IV R O S, RJ.

Lim a, Luiz C o sta (1 9 3 7 - )


L698t T erra ign ota : a c on stru ção d e O s Se rtõ e s / Luiz C o sta
Lim a. — R io d e Ja n e iro : C iv ilização B rasileira, 1997.

304p.

Inclui bibliog rafia e apên dice

ISB N : 8 5 -2 0 0 -0 4 5 7 -1

1. C u n h a, E u clid es d a, 1 8 6 6 -1 9 0 9 . O s sertõ es. 2 . Li­


teratu ra e história. 3. C aracte rísticas n acio n ais brasileiras.
I. T ítu lo . II. T ítu lo : A c on stru ção d e O s Sertões.
C D D — 8 6 9 .9 0 9
97-1572 C D U — 8 6 9 .0 ( 8 1)-09

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Im presso no Brasil
1997
apên d ice ii O Pai e o Trickster
(In d ivíd u o e cu ltu ra n o s c a m p o s m e tro p o litan o
e m arg in al)

1. Parta-se de uma caracterização banal. Entendida com o term o geral e


abstrato, abrangente dos processos de transform ação socialmente ope­
rados, que afetam tanto, materialmente, o m eio externo, o “m undo”,
como, simbolicamente, o meio interno, a psique, a cultura tem, por
certo, uma extensão universal. E daí que parte nossa questão: tal exten-
sionalidade global significa que um conceito seu, fundado no traço
‘transformação dos meios externo e interno ao hom em ’, é suficiente?
Não seria o caso de indagar-se se ele não faria tabula rasa então de
diferenças, tem poralm ente engendradas, de continentes, Estados, na­
ções e m esmo de unidades menores?
Seria justo o reparo: descobrim os a pólvora. Q ualquer pessoa ra­
zoavelmente inform ada costum a explicar a disparidade de produ ção
cultural pela diferença de oportunidades que cercam os indivíduos.
Contudo, a explicação causalista a que então recorre, no limite deter­
minista, term ina por criar outros problem as. O s im ensos espaços fora
dos centros desenvolvidos estariam fadados a prim eiro progredir m a­
terialmente para que só então fosse legítim o investir na cultura? Ou a
esperar, a exem plo do que se deu no início do século com a “ arte
africana” ou, em décadas mais recentes, com o rom ance hispano-am e-
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r O PAI E O TRICKSTER

ricano, que artistas e ensaístas de ponta reconhecessem , em seus p a­


côm odo instrum ento de laboratório. O usem os m ais: o conceito de
drões expressivos, m otivos revigoradores de sua própria tradição? E s­
cam po não se confunde com “ a totalidade dos fenôm enos construí­
sa própria dinâm ica inovadora de artistas pertencentes a áreas m argi­
veis” porque ele próprio não é pura construção. C om o o entendem os,
nais já estaria suficientemente explicada por seu “ prim itivism o” , que
‘cam po’ supõe um a certa im anência, i.e., algo que não se confunde
abriria seus criadores a um tipo de exploração que teria estado inter­
nem com o pensam ento nem com um a discrim inação m aterial — um
dito aos criadores do prim eiro m undo por efeito m esm o do refina­
cam po não é um território geográfico. N em pura construção, nem
m ento de sua educação? Ou ainda: estariam as áreas m arginais con­
pura m aterialidade, o cam po se localiza por seus efeitos: um a relativa
denadas a se dedicar a produções culturais tradicionais, o quanto
coesão sim bólica que agrupa coletividades (porque não se identifica
possível não contam inadas pelos padrões dos “bran cos” ? As questões
necessariam ente com um a com unidade, ‘cam p o’ não é sinônim o de
poderiam ser m ultiplicadas. Teriam elas com o denom inador com um
nação); (b) supõe o lugar em que o sujeito se experim enta, em que se
a desconfiança ante as explicações causalistas habituais, que, ao se
opera “ a constituição do sujeito” , não à m edida que ele internaliza
associarem à definição antropológica de cultura, parecem afirm ar que certa form a ou privilegia certo conteúdo, m as, m uito ao contrário, a
nela não há problem a, bastando-lhe apenas ligar-se a um a causalidade
partir da ausência de conteúdos ou form as “ transcendentais” (cf. G o d ­
m otivadora. M as seria isso verdade?
zich, W.: op. cit., 283). Poder-se-ia assim com parar o cam po a um a
Universalista, a concepção antropológica de cultura tanto se opuse­ mola que não remete a um corpo (m áquina) preciso; (c) dos apon ta­
ra — e esse não é um de seus menores feitos — à explicação por uma mentos anteriores, parte sua caracterização operacional:
cadeia evolutiva que separaria as raças e daria à raça branca o lugar de
privilégio, que, por excelência no X IX , justificava os im périos político- É em um cam po concretamente delim itado que se elaboram tanto a com u­
econôm icos de que dispunha, com o, do ponto de vista de construção nidade com o a sociedade; a prim eira pelo estabelecimento de um a relação
do argum ento, se contentava com seu caráter descritivo. Caráter descri­ entre tod os que são constituídos sujeitos em e pelo cam po, e a segunda por
tivo, acrescente-se, que facilitava sua articulação com explicações cau­ meio das relações que se estabelecem com respeito ao caráter de dado (gi-
salistas. venness) que deu origem ao cam po (idem, ibident).
A questão que irem os aqui esboçar se prende a esses dois pontos:
o universalism o da cultura, a descrição com o m aneira de form ulá-lo. Por conseguinte, o caráter de dado do cam po faz com que ele seja
N ã o se cogitará de negar o prim eiro ou de afirm ar a dispensabilidade anterior à consciência que o sujeito dele tenha e que não se “ esgote” nas
do segundo, mas sim de, articulando-os, verificar o que eles tornariam relações que objetiva. D aí que não se o descubra ao apontar-se a tradição
im possível de ser visto. Essa forçosa cegueira obscureceria o papel do vigente em certo lugar. Implícito na tradição que se engendra em certo
cam po ou lugar de sua produção. Em pregam os o term o ‘cam po’ no lugar, o cam po é ainda condição para a invenção que se processa. Um
sentido precisado por W lad Godzich. Em bora o próprio term o exigis­ mínimo exem plo: há muitos anos, Paulo Rónai identificou, nas inova­
se m aior refinam ento — em que seria desenvolvido que ele deriva de ções da linguagem de Guim arães Rosa, a presença da estrutura do hún­
um diálogo com a questão do sujeito na terceira crítica kantiana —, garo, idiom a “ cuja estrutura Guim arães Rosa conhece intimamente [...]”
contentem o-nos em assinalar (a) que ele não se confunde com “ a to­ (Rónai, R: 1962, XLIX-1). O ra, as práticas do idiom a estrangeiro não
talidade dos fenôm enos construíveis sob o objeto da abordagem ” Passariam se não fossem adaptáveis ao falar de vasta extensão do interior
(G odzich, W.: 1994, 2 7 7 ), caso em que, pensam os, seria apenas um mineiro, baiano e sertanejo.

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Parciais, esses esclarecimentos são suficientes para que se entenda do cientista porque se acreditava que ele possuísse um a alm a imortal (K roe­
que não se trata de, sob uma nova designação, reintroduzir um meca­ ber, A. L.: 1917, 180).
nism o causalista ou, para usar os term os de Godzich, de ceder à “tenta­
ção de hegelianismo dentro do kantism o” (idem, 280). A ssociando-se à luta em preendida por Boas, no âm bito da antro­
Cientes do estado de esboço do que se apresenta, esforcemo-nos em pologia norte-am ericana, para Kroeber nenhum com prom isso seria
trazer o leitor para o que se debate. Para tanto, comece-se por uma breve possível com a tradição étnico-evolucionista que necessariam ente se
reconsideração do estado teórico da questão da cultura. movia dentro de parâm etros biológicos ou orgânicos: “ O aparecim en­
to do social não é assim um elo de qualquer cadeia, não é um passo
1.1. Em 1917, um pouco antes da prim eira grande onda de difusão em um a trilha m as sim um salto para outro plan o” {idem, 20 9 ). A
do conceito de cultura, Alfred Louis Kroeber, o m ais destacado aluno cultura supõe esse outro horizonte.
de Franz Boas, publicava, na prestigiosa American anthropologist, o O caráter polêm ico do artigo obscurecia contudo os problem as que
artigo “ The Super-organic” . Kroeber opta pelo term o ‘civilização’, continha. Talvez m esmo porque a antropologia não estava “consciente
q ue, sinônim o de cultura na definição pioneira de Tylor — “ Cultura dos problem as de teoria e lógica da ciência” (Kroeber, A. L. e Kluckhohn,
ou civilização [...] é aquele com plexo que inclui conhecim ento, cren­ C.: 1952, 69-70), na busca de m ostrar a utilidade do conceito o autor
ça, arte, direito, m oral, costum e e quaisquer outras capacidades e há­ exibia as dificuldades que irão melhor marcá-lo, depois de sua plena
bitos adquiridos pelo homem com o m em bro da sociedade” (apud adoção. Dificuldades oriundas de sua imprecisão. N ão sublinhada, esta
Kroeber, A. L. e C. Kluckhohn: 1952, 81) — , era de m aior aceitação imprecisão facilitava que ele se impusesse a conceitos rivais. O em bara­
pelo leitor de língua inglesa do que o germ anism o de seu par (‘culture' ço, de que o autor esteve longe de se dar conta, transparece em sua crítica
< — ‘K ultur’). O ensaio pertence ao m om ento “ heróico” de im planta­ a L a psychologie des foules, de Le Bon. A tentativa do historiador francês
ção d o conceito (cf. Stocking, Jr., G. W : 1968, espec. caps 9 e 11): “ de explicar a civilização com base na raça” o leva a estabelecer a equi­
com o o próprio K roeber assinalará em obra posterior (Krober, A. L. valência entre indivíduo e raça, tom ada com o hom óloga à existente en­
e Kluckhohn: 1952, 2 9 2 ), da definição de Tylor, em 1871, até 1920, tre célula e corpo (Kroeber, A. L.: 1917, 184 e 185). Aí estaria a vanta­
q uan do W issler retom a o critério enum erativo de Tylor, apenas sete gem do novo conceito:
definições são propostas. Sua excepcionalidade resultava da luta acir­
rada que ela mantinha contra os conceitos de raça e evolução, ainda Se, ao invés de alma da raça, o distinto francês houvesse dito espírito da
largam ente dom inantes. civilização ou tendência ou caráter da cultura, seus pronunciamentos seriam
Teoricam ente sim ples, a virulência do conceito por Kroeber resul­ menos em polgantes porque na aparência mais vagos mas não teria sido obri­
tava da taxativa oposição à m anipulação do conceito de hereditarie­ gado a fazer todo seu pensamento depender de uma idéia supranatural, an­
dade, assim com o do contexto orgânico, considerados em pecilhos pa­ tagônica ao corpo de ciência a que procurava prender sua obra (idem, 185).
ra o desenvolvim ento da disciplina:
Aparentemente, Kroeber estava certo; a substituição era possível e
A tentativa atual de tratar o social com o orgânico, de com preender a civi­ asseguradas todas as vantagens. M as por que só na aparência? Porque
lização com o hereditariedade, é essencialmente tão estreita com o a suposta não considerava que a validez da substituição dependia da presença de
inclinação medieval de retirar o homem do reino da natureza e do âmbito um terceiro termo, a nação, em cujas fronteiras atuaria quer a raça, quer

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a cultura. Só dentro de parâm etros nacionais relativa ou completamente décadas. “ O utrora, não há muito tem po, quando o Ocidente estava m ui­
estáveis, era possível substituir ‘raça’, cuja cientificidade era então ne­ to mais seguro de si do que era e não era, o conceito de cultura tinha
gada, por ‘cultura’ (ou ‘civilização’). Pois, embora raça e cultura ocupem uma meta firme e um limite definido” (Geertz, C .: 1995, 42). M eta e
planos diversos, ambas rebatem sobre um m esm o espaço. Contudo, em ­ limite que supunham tomá-la com o “ um a força causai maciça, modela-
bora se possa dizer, usando argumento posterior do próprio Kroeber, dora da crença e da conduta e capaz de caber em um padrão passível de
que seu artigo padecia da falta de um prévio ou concomitante investi­ se fazer abstrato (abstractable pattern)” (idem, 44). Essa concepção hoje
mento teórico, a razão mais imediata para a falha dependia do curso parece contestável porque tal causalidade maciça, tal integração expli­
descritivo em que era m oldado o argumento. O ra, com o m ostraria cativa, agora parece mais dependente “ da descrição” do que “ daquilo
exaustivamente seu livro com Kluckhohn, o descritivismo era, desde que a descrição descreve” (ibidem, 62). N outras palavras, o descritivis­
Tylor, recurso absoluto na definição da cultura. Com efeito, das 164 mo tornava o conceito de cultura dem asiado harm ônico e epigonica-
definições coletadas entre 1871 e 1950, nenhuma deixa de recorrer ao mente romântico. Por isso, em vez do equilíbrio dependente da descri­
m esm o procedimento. ção, os estudos de cultura passam a ressaltar seus vazios, seus pontos de
A essa estabilidade de seu meio de formulação corresponde a pe­ tensão e indeterminação. Em suma, a segunda objeção ao descritivismo
quena variedade dos elementos enfatizados. Assim, se a primeira carac­ assim se form ula: com o N arciso, o descritivismo se encanta com sua
terização da cultura com o coleção de “costumes raros” cede progressi­ própria imagem e empresta ao objeto a plena determinabilidade que
vamente lugar ao realce da adaptação, da m odelagem de norm as ou pertence à sua própria construção.
valores, da aquisição por aprendizagem, do desenvolvimento da capa­ N ão sendo a auto-imagem de um Ocidente menos seguro de si m es­
cidade de sim bolização, as mudanças não abalam a “ m aior constância m o antídoto bastante contra a permanência do descritivismo, caberia
do que a variação nas noções centrais ligadas ao conceito de cultura” perguntar com o poderia ser ela evitada. Uma resposta razoavelmente
(Kroeber, A. L. e Kluckhohn, C .: op. cit., 302). A posição dos próprios óbvia consiste em enfatizar a im portância da sensibilidade teórica e epis-
autores — “ [...] Pensamos que a cultura é um produto: que é histórico; tem ológica, na construção do argumento analítico. Que se poderia
que inclui idéias, padrões e valores; que é seletiva: que é aprendida; que acrescentar a respeito?
é baseada em sím bolos; e que é uma abstração da conduta e dos produtos E conhecida a distinção anteriormente estabelecida por Geertz:
da conduta” (idem, 308) — apenas condensa as várias tem atizações e de
todas mantém o papel concedido à descrição. [...] A tarefa essencial da construção de teoria aqui (i.e., no âm bito da
Cabe então perguntar: qual o problem a que vem os no descritivis­ interpretação cultural) não é codificar regularidades abstratas m as sim
m o? É ele de dupla ordem. A primeira já foi assinalada a propósito do torn ar possível um a descrição densa (thick description)-, não generalizar
com entário de Kroeber sobre Le Bon. O descritivismo tende, por sua através de casos m as dentro deles. — G eneralizar dentro de casos é u su al­
neutralização do questionam ento teórico, a não ver a presença, no ob­ mente ch am ado, ao m enos na m edicina e na psicologia p rofun da, infe­
jeto que focaliza, de categorias cujo próprio êxito dificulta a percepção rência clínica. Em vez de com eçar com um conjunto de observações, de
delas. Era o que, no exem plo analisado, sucedia com a categoria ‘nação’. tentar subsum i-las a um a lei geral (a governing law ), essas inferências
A segunda razão está a um passo da primeira. Em After the fact, livro com eçam com um conjunto de significantes (presum íveis) e com a ten ta­
que é um a espécie de acerto de contas com o credo em que se educara, tiva de dispô-los em um a com posição (fram e) inteligível. As m edidas são
Clifford Geertz assinala a distância que medeia entre as últimas quatro ad ap tad as a predições teóricas, m as o s sin tom as (m esm o que sejam m e­

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didos) são analisados p or suas peculiaridades teóricas, i.e,, são diagn os­ parando o m étodo dedutivo-matemático vitorioso na tradição ocidental
ticados. (...) (G eertz, C .: 1 9 7 3 , 26). com o mais m odesto e pouco reconhecido m étodo indiciário — restos
e sinais, que, aparentemente ociosos, levam à pista desvendadora — ,
Se, nas ciências “ duras” , a teorização tem por meta “ codificar regu- Ginzburg opta pelo segundo, com o o m odelo próprio à escrita da his­
laridades abstratas” , condição para a previsibilidade, na interpretação tória. Os restos e sinais, com o um pouco de cinza de cachimbo que o
da cultura a teorização não pode ter esse caráter porque seus objetos, detetive perspicaz relaciona com certa marca de bota, funcionam com o
quer interna quer relacionalmente, não têm o m esm o grau de hom oge­ sintomas a serem diagnosticados, meios para uma “ descrição densa” ,
neidade. D aí a proxim idade que Geertz assinala com o diagnóstico. indicam a “peculiaridade teórica” do caso e não a possibilidade de ge­
A retificação proposta por Geertz em 1973 era autonom am ente neralizar-se acerca de atos semelhantes.
reforçada um ano depois, por an trópologo doutra form ação. Em bora E claro que essas advertências e retificações poderão alcançar um
reconheça o débito à abordagem levi-straussiana do m ito, Dan Sperber enorme avanço pela reconsideração da teoria das próprias ciências
não se im pede de criticar sua form ulação teórica. Ela prejudicaria seu físicas, em preendida por um Ilya Prigogine (cf. seu debate com René
avanço analítico por considerá-lo efetuado sob a égide da sem iologia. Thom in Pomian, K: 1990, 102-112 e 247-265). M as, não nos aven­
A tualizando-se sobre os códigos form ados pelas im pressões dos cinco turando onde som os com pletam ente leigos, o rendim ento a retirar do
sentidos, a linguagem do m ito se expandiria sob o m odelo da langue, retrospecto de linhas atrás será menor. Dele se extrai que, no âm bito
cuja estrutura reduplicaria. Sperber contesta o pressuposto: da cultura, a procura de generalizações hom ogeneizantes prejudica a
identificação de seu objeto. A solução ingênua e incabível consistiria
[...] O s dad o s lingüísticos que servem de base para a construção de um a em restabelecer a desconfiança ou m esm o ignorância, clássica nas ciên­
gram ática são definidos por sua pertença a um a língua dad a, com exclu­ cias sociais, na historiografia e nos estudos de literatura, do estatuto
são de to d as as outras. Em troca, os dad os sm bólicos não são defin idos teórico das análises praticadas. C om o notam os, essa era a paralela que
p or su a pertença a um conjunto exclusivo d outros conjuntos (Sperber, acom panhava o descritivism o não m enos clássico.Enfatiza-se ao invés
D .: 1974, 102). a necessidade de um a prática teórica capaz de estim ular as “ thick des-
criptions" e de ser por elas estim ulada. Até que ponto, cabe então
Por não levar em conta a diferença, justificando ao contrário a perguntar, essa teorização particularizadora reage contra as descrições
estrutura do m ito com o captura de um m odo de operação do espírito hoje freqüentes da cultura? N ão pretendem os que algo assegure seu
hum ano, concretizado seja sob a form a com o se dá no pensam ento êxito. N o fundo, o universo da cultura é tão am plo que se confunde
indígena, seja sob aquela assum ida no próprio analista (cf. Lévi- com o universo hum ano. A corrupção, a violência, a fetichização, as
Strauss, C .: 1964, 2 1 ), Lévi-Strauss teria estabelecido um a heurística, form as de crença, de sedução de exaltação ou de hum ilhação não são
em lugar da desejável teorização: “ N a m edida em que o objeto da menos afetadas por padrões culturais do que as m anifestações do
teoria a fazer é precisam ente um a outra heurística, a — inconsciente egoísm o, que o niilism o ou as form as de exploração doutros homens.
— do indígena, o an tropólogo é levado a se perguntar se um a não Sendo assim tão genérica, toda caracterização da cultura é descritiva.
constitui o m odelo im perfeito da outra” (Sperber, D .: 1974, 71). Mas render-se à descrição e, portanto, im plicitam ente à generalização
Fora da disciplina antropológica m as refletindo a explícita influên­ deixa escapar algo sem pre particularizado: o papel do aqui e agora,
cia de Lévi-Strauss, Cario Ginzburg trará mais lenha à fogueira. Com ­ do lugar onde se produz. C om o já se disse, essa relevância não se há

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de confundir com um causalism o, m uito m enos com um determ inis­ correlação direta entre as condições existenciais constitutivas do homem e
m o, um e outro traduzíveis na fórm ula ‘se x então y \ Ao contrário de sua carência crônica (Gehlen, A.: 1950, 357).
um a p roposição desse tipo, x é uma fonte de m otivações variáveis, não
com parável a um a gram ática, que, a partir de um núm ero restrito de Pela falta, pois, de um aparato instintivo forte e dos meios de des­
regras, produz um infinito de enunciados; é um a inform idade que carga adequados, ao contrário do que sucede com os outros animais, o
produz form as que, não sendo aleatórias, não são tam pouco previsí­ homem não dispõe de um território delim itado, nem da possibilidade
veis. Trata-se em sum a de esboçar um a teorização que, explicando a de saciar de maneira constante suas necessidades. Se sem pre se m ostra
superposição extensiva entre os universos hum ano e da cultura, dê desejoso de descobrir razões para sua existência, é m esm o porque pre­
condições de entender-se a diferença intensiva das produções, i.e., cisa inventar um sentido para si. D aí sua marca básica: o homem é um-
que, generalizante, não se contente com a generalização; que, inde- weltfrei oder weltoffen, livre para o que o cerca ou aberto ao m undo;
term inista, não se contente com o vago. R ecorrerem os para isso a portanto um “ser cultural por natureza” (idem, 122).
algum as idéias de A rnold Gehlen. Em bora, do ponto de vista da caracterização de Gehlen, este seja
um quadro parcial, ele aqui nos basta, pois já nos permite repensar a
função da cultura.
2. Para o pensador alem ão, em vez de o hom em ser tom ado com o Podemo-nos perguntar: se não dispõe de um território dem arcado
o anim al superior a to d os, fadado a dom iná-los — ou a extingui-los, por suas necessidades instintivas, se a amplitude do mundo lhe está aber­
sem excluir a si próprio —•, é ele, m esm o do ponto de vista de uma ta, com o, a cada instante, não cai o homem nas armadilhas arm adas pela
estrita ótica biológica, a criatura problem ática; aquele que Prometeu própria natureza ou criadas por seus semelhantes? Com o, ante am bigüi­
encontrara “ nu, sem calçados, sem vestes, sem arm as, ao contrário dos dades permanentes, não se torna ele a infalível presa? D aí parte nossa
outros “ anim ais(,) corretam ente equipados de tudo que convém ” (Pla­ hipótese preliminar: antes de ser instrumento de criação, a cultura é a
tão: Protágoras, 321c). Se, em todas as épocas de sua história, o ho­ ferramenta humana de redução e, idealmente, de neutralização das am ­
mem se m ostra necessitado de uma interpretação que ponha em jogo bigüidades. Pode-se supor que para os outros animais, dotados pela es­
sua razão de ser e proponha um sentido para sua existência, isso se lhe pécie de “garras” adequadas às necessidades instintivas, as situações não
im põe não por luxo inexplicável m as por efeito do próprio lugar que mostram ambigüidades. Embora, eventualmente, o gato erre o salto e
ocupa na escala biológica: o homem é “ o anim al ainda não determ i­ se estatele no chão e o costume de encontrar abrigo e salvaguarda na
n ad o” (Nietzsche), o “ não firmemente estabelecido” , o anim al sem estrebaria faça o cavalo procurá-la m esmo quando ela se incendeia, cada
especialização biológica, aquele que sofre da redução dos instintos, situação traz consigo uma resposta codificada, em princípio suficiente.
um prem aturo (Frühgeburt). O estoque de respostas do animal é um estoque de descargas. M as, se
É a partir destas carências, não apesar delas, que o homem conquista os instintos não demarcam áreas privilegiadas para sua satisfação, então
sua posição: as próprias necessidades são apenas parcialmente determinadas pela na­
tureza da espécie. Em conseqüência, com o evitar, a cada instante, o sur­
Mesmo esta redução do instinto e a ausência de meios de descarga (Auslô- gimento de novas ambigüidades? Por mais rudimentar e diminuta que
serwerten) firmemente coordenados e específicos à espécie, m o s t r a m - s e Seja a comunidade a que corresponde, a cultura é o conjunto de respostas
agora, vistos por outro ângulo, como uma pressão crônica. [...] Há uma Padronizadas a cada situação previsível do cotidiano. O term o ‘respos­

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tas’ talvez não seja o mais oportuno, porque acentua em dem asia a m ar­ ou mais fortemente que nosso sotaque, sem que, entretanto, se dissolva
gem pessoal de decisão. Ora, para que, idealmente, se neutralizem as a socialização primeira. (Os conhecedores do polonês têm sabido reco­
am bigüidades, será preciso que o ato se imponha ao indivíduo, que seja nhecê-lo no inglês tão fino de Conrad.) Antes de ser privado, o incons­
para ele um a descarga quase instintiva. Ao cumprimentado, por exem ­ ciente pertence às respostas grupais ao cam po. C om o os fram es, por
plo, se exige que manifeste certo gesto ou articule certas palavras. Cha­ maior que seja sua autom atização, nunca se convertem em instintos,
m ar essa im posição de “resposta” , ainda que se acrescente padronizada, nada há de problem ático em aceitar-se que estão sujeitos a m odificações,
implica admitir que haja uma certa margem de escolhas. M as, fora uma até mesmo a m etam orfoses consideráveis. O decisivo é sim entender que
mínima variação, que escolha aí haveria salvo a de explicitação da hos­ os diversos fram es que se aglutinam em uma cultura oferecem a seus
tilidade? membros um m odo adequado contra a am eaça da ambigüidade.
É preferível evitar-se a peça frouxa e usar-se o conceito de fram e Que ambigüidade ainda resta quando deixo de responder ao apa­
rentemente anódino ‘bom dia’ ? Talvez a única defesa contra a afirm ação
(G offm an).1 De im ediato, a cultura então é descrita com o o conjunto
então explícita de hostilidade seja alegar com veemência que estava dis­
de fram es pelo qual um agrupam ento social se identifica e, sim ultanea­
traído ou que os anos já me tornaram míope. Que ambigüidade resta a
mente, se diferencia, em seu enfrentamento de situações cotidianas. Tais
alguém, se não a de se confessar estrangeiro, que, diante da expectativa
fram es são por certo, dentro da própria unidade social considerada,
de uma resposta padronizada, utiliza com binação ligeiramente diversa?
extrem am ente variáveis. Q uanto mais am pla ela seja, tantos m enos de-
Isso entretanto não justificaria que se descurasse a existência de fram es,
termináveis são os fram es esperáveis. Partir-se ao invés do pressuposto
cuja função é justamente oferecer “ respostas” ambíguas. Seria aí capital
de que, se alem ão, então louro e grosseiro, se russo, então louco por
o exam e das situações de sedução. Será fácil entender-se que os fram es
vodca, se brasileiro, hábil em manhas m olecagens, não passaria de re­
que têm a sedução erótica com o o elemento-alvo são os de apreensão
m atada idiotice. D aí entretanto não se chega a negar que há um estilo
mais difícil para o estranho ao m eio; e estranho não necessariamente no
m ínim o que, em certa ocasião, revela de onde som os. Admitido esse
sentido de estrangeiro. Que resposta convincente darão os pais ao pré-
m ínim o conquanto minimalista, a identificável se torna mais certeira se adolescente que lhes pergunta com o poderá estar certo que ela (ou ele)
souberm os diferenciar os nacionais por traços de região, classe e posição o (ou a) está cantando? E óbvio que a dificuldade aumenta se o estranho
de classe. O fato é que o lugar onde nos aculturam os nos m arca tanto é um estrangeiro. Ao menos para este, m esm o que habituado ao “ puri-
tanismo” norte-am ericano, parecerá apenas ridículo o manual de uni­
1 Eduardo Viveiros de Castro observa-me que os conceitos de campo e frame não têm versidade norte-americana, que, pretendendo defender seus alunos
aqui sua conexão bem estabelecida. O reparo é justo. Esta nota só muito parcialmente
contra os riscos da acusação de “sexual abuse” , propõe que o agente
lhe responde. Entendendo-se que os frames supõem o emprego, por um lado, e a
decodificaçáo, por outro, de um conjunto de traços verbais e/ou não verbais que se mostra anteceda cada iniciativa com a pergunta: “ posso fazer isso?” e, a seguir,
“fundamental para a organização da atividade” (Goffman, E.: 1974,305), que, múltiplos, posso fazer aquilo?” , etc. Imaginando, contudo, que, para um certo
povoam o cotidiano de cada comunidade e assim constituem uma espécie de móvel grupo, nada haja de raro na instrução, devem os concluir que a eficácia
carapaça simbólica com que interagimos, são eles os veículos pelos quais um campo se
do manual está em neutralizar a am bigüidade, m esm o em um fram e onde
manifesta. Numa analogia arriscada, o campo seria comparável à langue saussuriana, dela
Pareceria indispensável.
se distinguindo por não ser codificável e, portanto, passível de uma gramática Do mesmo
modo, os frames se pareceriam a seus móveis fonemas, com a diferença de que não seriam Um frame é tanto mais eficiente quanto menos dependente de inter­
finitos. pretação pessoal. Se cada frame é tanto mais eficaz quanto mais impes­

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soalmente manipulado, isso não significa que cada um forçosamente en­ Contudo, acrescenta Gehlen, ela apresenta um outro lado. Tal diferimento
caminhe para a automatização. Contento-me em anotar: tendo por meta não impede que, ao se realizar, estabeleça uma relação do sujeito com o
descomplexificar situações comuns e previsíveis de ambigüidade, tanto mundo. Para Gehlen, essa é a condição, do ponto de vista da sociedade,
mais previsíveis porque seu agente não dispõe de descargas fixas para suas de sua positividade. Ela, entretanto, se acompanha de “um grande perigo” ,
necessidades invariáveis, a cultura se atualiza pela internalização sociali­ de um “perigo constitucional” (Gehlen, A.: 1950, 315), o de que “essas
zada de formas de conduta padronizadas. M esmo por serem instrumentos ações que se tornam cada vez mais indiretas assim se convertam em neces­
da cultura e não manifestações da natureza, os frames são não só variáveis sidades de ações ainda mais indiretas e refinadas. Os apetites mais refina­
m as flexíveis. Propriedade que lhes é indispensável para que o analista dos, os interesses funcionalizados, ramificados e altamente condicionados,
possa dar conta da possibilidade de metamorfose de sua função primeira, como a ambição de poder, a cobiça e as manias, nos mostram quanto os
a função de defesa contra a ambigüidade. Com efeito, os instrumentos de complexos de impulsos podem alcançar independência” (idem, ibidem).
atualização da cultura podem assumir a função inversa de exploração das Desse risco não estão isentas as mais altas funções intelectuais, então con­
ambigüidades-, em seu limite, mesmo de invenção de resposta à ambigüi­ vertidas em intelectualismo ou esnobismo artístico. A única maneira de
dade. O que vale dizer, se, em sua base, a cultura visa permitir a sobrevi­ evitá-lo consiste na imposição pela sociedade da “ disciplina como educa­
vência de seus membros, a cada instante biologicamente ameaçados pela ção e autodisciplina, subordinação e direção” que, permitindo aos impul­
morte, em seu curso, na dependência das condições materiais da socieda­ sos continuarem a responder às demandas da vida, os impeça de deixarem
de, pode-se metamorfosear, oferecendo também a possibilidade de com- de remeter ao mundo. Ora, mediante que critério a sociedade definiria o
plexificação da própria vida. Ela agora se torna também ferramenta de momento em que os impulsos deixariam de ser louváveis? Se, portanto,
descoberta e invenção. Dito doutro modo: se sempre, e mesmo nos frames chamamos a capacidade de inibição e diferimento dos impulsos de con­
mais rudimentares, a cultura é um produto da poiesis — i.e., não o reco­ trole positivo, devemos entender que a todo instante ele é capaz de assumir
nhecimento de um substrato naturalmente dado mas postulação de um outra deriva, i.e., de em nome da sociedade justificar um controle também
sentido de antemão inexistente — , essa poiesis visa, em sua dimensão mais negativo. Em suma, o aspecto por último destacado supõe que, pela pró­
generalizada, à preservação de seu agente. A insistência sobre esse ponto pria precariedade biológica do ser humano, sua sociedade é levada à prá­
tem uma dupla razão: (a) desligar-nos de uma explicação identitária, que tica do controle da produção cultural; que, dentro desta, distinguem-se
termina por tornar ociosa a indagação da cultura, (b) sem, por isso, recair- um aspecto positivo — a aprendizagem da inibição necessária — e um
se no culto individualista do criador. Ou, formulando-o pela afirmativa: aspecto negativo — a condenação de práticas ou formas — , sob a alegação
trata-se de enfatizar que a cultura, embora por certo esteja articulada à de que não remetem ao mundo (para maiores detalhes, cf. LC L: 1995:
razão político-econômica, tem sua problemática constituída por traços não 293-299 ).
decodificáveis por aquela razão. Em Gehlen, portanto, buscam os um a base para nos oporm os ao
Com pletemos esse esboço pelo destaque de uma das conseqüências império do recurso da descrição, na concepção antropológica da cultura.
da teorização de Gehlen. M esmo porque o homem não tem um território N ão nos referimos sequer à concepção humanista, que identifica a cul­
próprio para suas descargas instintivas, seus impulsos são plásticos e pas­ tura com o produto superior de pessoas excepcionais, porque ela não
síveis de ser diferidos. Ou seja, com a própria vida ele aprende a inibi-los pode ser levada a sério. De todo m odo, considere-se, antes do salto para
e a adiar o momento de sua satisfação. A essa capacidade temos chamado 0 item seguinte, que não se cogita de recuperar nem o descritivismo,
o aspecto constitucionalmente positivo do controle (cf. LCL: 1995, 295). °em o humanismo, nem tam pouco de identificar a cultura com uma

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invenção imperialista (cf. Sahlins, M .: 1996). N osso propósito é repen­ baber llegado a ningún apogeo industrial, sin baber ingresado plenam ente
sá-la, a partir de uma situação particularizada. en la sociedad de consumo, sin estar invadidos por la producción en serie ni
coartados por un exceso de funcionalism o; hemos tenido angustia existen­
cial sin Varsovia ni H irosbim a (Yurkievich, S.: 1974, 179).
3. A situação da América Latina aumenta a necessidade desta refle­
xão. A partir da metade dos anos 60, a consciência de seu caráter de O que vale dizer: imitaram-se, no sentido forte do termo, tendências
continente periférico, alheio às decisões mundiais, apêndice dos blocos e direções que nada “refletiam” da realidade local. Em conseqüência, pro-
de poder, substituiu a euforia desenvolvimentista. Sua marginalidade, pagaram-se sentimentos completamente falsos: “angustia existencial sin
adem ais agravada, a partir dos anos 80, pela recessão econôm ica, só Varsovia ni Hirosbim a”. Se o ensaísta estivesse interessado em dar um
parece compatível com estritas análises político-econômicas. Assim su­ toque erudito à sua conclusão-denúncia, poderia haver recorrido a exem ­
cede m enos pelo estado de atraso endêmico das nações do continente plos como o de Joaquim Nabuco, no Brasil, de que se diz haver chorado
do que com o efeito de uma característica cultural de sua intelligentsia:
ao saber da ocupação de Paris pelos alemães, em 1871. A aplicação da
desde a independência de seus países, os intelectuais latino-americanos
categoria do ‘reflexo’, que, entre nós, se costuma associar, seja para exe­
têm interpretado suas respectivas sociedades com um instrumental de
crá-lo como para exaltá-lo, com o marxismo, na verdade se entronizou
ordem sociológica, do qual afastavam com o suspeito de diletantismo
desde o positivismo e o evolucionismo. O marxismo latino-americano tem
qualquer questionam ento de tipo filosófico. O tratam ento filosófico das
sido apenas uma variante daquelas correntes já cientificistas.2 É verdade
questões era confundido com o ecletismo e o antiexperimentalism o da
que, na década de 90, tal tipo de economicismo se torna menos freqüente
época colonial, sendo então tom ado com o traço de letrados “ tradicio­
nos ensaístas e críticos de esquerda. M as não é menos verdade que deles
nais” e incapazes de contribuir para a solução prática dos problem as.
se afasta para que, em estilo mais burocrático do que empenhado, reapa­
O ra, qualquer que tenha sido o transtorno ao tradicional introduzido
reça sob os nomes dos encarregados de instituições culturais. Definir seus
pelos m odernism os hispano-americano e brasileiro, nenhum dos dois
atacou essa frente. Permanecendo intacta, essa alergia à reflexão filosó­ relatórios como economicismo identitário seria quase ridicularizar a ter­
fica se m ostra, na conjuntura atual, pela incapacidade de lidar com a minologia de Castoriadis. Seria, ademais, não levar em conta que seus
interpretação da cultura senão com o prolongam ento da conjuntura po- redatores não dispõem de alternativas e que, a menos que se dedicassem
lítico-econômica. E isso apesar do boom do romance hispano-america­
no, que, sobretudo nas décadas de 70 e 80, assegurou a circulação mun­ 2 Constatá-lo entretanto não nos deve impedir de reconhecer que o elo do marxismo com
o cientificismo oitocentista não é exclusividade de um continente sem tradição de reflexão
dial de uma meia dúzia de escritores nossos. Em bora pareça estranho e
filosófica. Veja-se a respeito o que, a propósito de personagem marcante do relato “In
intrigante, esse reconhecimento não afetou em profundidade o tipo de extremis", anotava o escritor croata Miroslav KrleZa (1893-1981) — assinale-se que
reflexão produzida no continente. Assim, por exem plo, tratando da pro­ Krle2a era amigo e colaborador de Ti to, sob cujo governo foi vice-presidente da Academia
pagação pela América Latina das direções vanguardistas das primeiras Iugoslava das Ciências e das Artes): “Ele considerava o materialismo como uma espécie
de movimento protestante luterano, em que era preciso se engajar submetendo-se
décadas do século, escrevia um conhecido ensaísta argentino:
estritamente à disciplina intelectual obrigatória. Era para ele um manual genial de
matemática e pensava que, desde o século XIX, era preciso crer nestas fórmulas, do mesmo
N osotros hemos practicado todas estas tendencias en la m ism a sucesión que modo que, do século IX ao XII, se havia acreditado na Sagrada Escritura. Era uma
en Europa, sitt baber entrado casi a l ‘reino m ecânico’ de los futuristas, sin concepção da vida sistemática” (KrleZa, M.: 1957,200-1).

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a pensar sobre a especificidade do que escrevem, estão condenados a re­


aspirou ao prêm io de humorismo, seria o parodista insuperável de toda
petir esse estilo. Em comum, latino-americanos ou não (a respeito do uso
uma tradição que mantém suas galas e prestígio.)
de meios estatísticos como aferidor de produção cultural, cf. Readings, B.:
Seria, pois, essa falta de disposição de pensar, esse satisfazer-se
1995, 465-492), esses relatórios descrevem o estado das instituições por
com a palavra eficaz, seja sob a form a de causalism o linear e determ i­
tabelas e projeções. N os que se referem às universidades, tornou-se um
nista, seja sob a de conjuro retórico, político-econom icam ente expli­
topos, até há pouco desconhecido, a correlação entre número de profes­
cável? Sem dúvida que sim. N o m om ento em que os estados latino-
sores, ademais discriminados em termos de “com/sem pós-graduação”, e
am ericanos se autonom izavam , cabia à sua rala intelligentsia ocupar
número de alunos por classe, entre número de alunos e profissões, etc.,
os lugares e pôr em m ovim ento a m áquina estatal, com recursos e
etc. Com o semelhantes gráficos captariam o que se ensina ou deixa de
experiência escassos e m uita pressa. N ão se duvida tam pouco que haja
ensinar, o (pouco) que se publica ou o (muito) que não circula, o (pouco)
uma explicação semelhante para a perm anência, m esm o agora, de n os­
que se integra ao acervo das bibliotecas ou o (muito) que nem sequer se
sa falta de inquietação filosófica. N ão se trata de negar a validade de
sabe que existe? Exceto pela última questão, melhores programas com pu­
tal tipo de explicação mas sim de enfatizar sua insuficiência em lidar
tadorizados podem incluí-las. M as a questão continua a mesma: como
com objetos da cultura. Que significa a “ explicação” de Yurkievich se
através da homogeneização numérica entrar em e não simplesmente medir
tentarm os superpô-la à obra de autores com o Vallejo, Carpentier, M á­
o universo de um produto de cultura? Outra vez nos deparamos com a
rio e O sw ald de Andrade e O ctavio Paz, que dialogaram com as van­
inércia da tradição.
guardas contem porâneas? Por acaso que são obras falsas ou que têm
Se consultarm os um adversário ilustre da tradição cientificista, en­
qualidade, em bora hajam nascido de sentim entos alienados? M as se o
contrarem os a obsessão numérica substituída por outro vazio, estilisti-
intérprete não optar pelo prim eiro cam inho, com o justificará o segun­
camente mais refinado, porém não menos catastrófico. N o discurso de
do? Em contraposição, que dim ensão se alcança invocando-se a santa
recepção do prêm io N obel de literatura para o ano de 1990, escrevia o
palavra do “ espírito” ? Que seria ele capaz de dizer sobre um ensaio
poeta e ensaísta premiado:
notável com o o Sor Ju a n a o las tram pas da fé, do próprio Paz? Tanto
o funcionalism o e o econom icism o quanto o culto do gênio e do espí­
Los espanoles encontraron en México no sólo una geografia sino una historia.
rito se m ostram incapazes de entender a produção da cultura. N o caso
E sa historia está viva todavia: no es un pasado sino un presente. E l México
latino-am ericano, o reexam e do cam po da cultura se im põe ao m enos
precolombino, con sus templos y sus dioses, es un montón de ruinas, pero el
para que depois não se diga que só o com eçam os quando os centros
espíritu que animó ese mundo no ha muerto (Paz, O.: 1990-1991, 13).
legitim ados já haviam dado o sinal de partida.

Se a história, por continuar viva, incorpora o passado ao presente,


pode-se supor que a moraleja implícita à passagem consiste em que, para
4. Entendida como o conjunto múltiplo e não limitável de fram es
continuar-se a vida, se há de manter o passado. Afirmação que ou seria
que tem por função inicial reduzir e, idealmente, neutralizar as am bi­
óbvia ou serviria de justificação não muito sub-reptícia para a política
güidades, por função mediana, explorá-las e, por limite, inventar com ­
da continuidade. N ão é entretanto o endosso ao conservadorism o o que
binações de ambigüidades, a cultura não tem, entretanto, um perfil igual
m ais incom oda no discurso do consagrado escritor, senão seu contenta­
em qualquer latitude. Pois o cuidado que tem os tido em não a reduzir à
mento em manter a palavra separada do pensar. (Cantinflas, que nunca
incidência doutra força, seja o meio natural, seja a instância econôm ica,

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não deve tam pouco insinuar que ela seja livre de interferências. Sua simplesmente por pertencerem a áreas diferentes senão pela diferença
razão de arranque — a descom plexificação de situações cotidianas — já sócio-econômica que pesa sobre elas. Embora aos defensores de um des-
é m odelada sob a pressão dos outros elementos co-presentes à sua fei­ construcionismo absolutista e sim plificador isso pareça uma concessão
tura. N este sentido, muito embora um Caillois estivesse pontualmente suspeita ao “hors texte” , assim evitamos a necessidade de retificações
certo ao distinguir a “resposta” das culturas norte-americana e mexicana posteriores.
perante a morte — “ [...] Em nenhum país, sem dúvida, (a morte) tem C om o exem plo de área hoje não estabilizada, tom o a área de Qué-
tão pouco lugar na im aginação coletiva com o nos Estados Unidos, assim bec. Em bora dezenas doutros exem plos pudessem ser aludidos — a si­
com o há poucos países onde ela o tenha mais que no M éxico” (Caillois, tuação balcânica ou palestina, a recente revolta na região de Chiapas,
R .: 1964, 122) — , será, em princípio, sujeitar-se a erro grosseiro gene­ há poucos anos o conflito do governo revolucionário nicaragüense com
ralizar a identificação da cultura com um país. A superposição entre as sua população indígena — , o de Québec é escolhido porque nos remete
unidades política e cultural seria tida por implícita, o que, reiterando o a docum ento que respalda a hipótese aqui exposta. N a longa entrevista
pressuposto de estudos das primeiras décadas do século, obrigaria o que a ex-com panheira do romancista e dram aturgo Hubert Aquin con­
analista a não concretizar as questões e a desprezar diferenças. Se sempre cedeu a G ordon Sheppard, é transcrita carta que ela endereçara a Aquin,
podem os aprender com falhas anteriores, se há de levar em conta que, pouco antes de seu suicídio. Transcreve-se a passagem decisiva:
hoje em dia, na m aioria dos casos, os estados nacionais são menos uni­
dades que um aglom erado de zonas prósperas — se as tiverem — , ver­ N ã o se vive em Q uébec com o se pode viver noutra parte, tu o sabes
dadeiras ilhas de riqueza, cercadas de estagnação ou recesso. Ao dizê-lo, m elhor do que eu. N o s países “ estabilizad os” (França, Inglaterra, E stad os
autom aticam ente se alerta para que não se cogita, em nome do autono- U n id o s...) cada um pode ser para si m esm o seu próprio fim. Aqui, o
mism o da cultura, de considerá-la fora do quadro político-econômico. individual e o coletivo se confundem com freqüência: o que se faz a título
Também este é cultural. pessoal tem um a im portância, um a significação coletiva e isso tanto m ais
Feitos esses esclarecimentos, é legítimo pensar-se que o estado da qu ando se é um a “ p erson alidade” (Sh eppard, G.-A ndrée Y anacopoulo:
cultura sofre como interferência básica o caráter de estabilidade ou ins­ 1 9 8 5 ,4 1 ).
tabilidade sócio-econômica da área em que incide3. E isso quer dizer: os
indivíduos socializados dentro de áreas estáveis ou instáveis internalizam Ao lê-la, tive a estranha sensação de que já a conhecia. Para descobrir
m odos de conduta bastante diferenciados. Dito doutro m odo, são in­ a fonte coincidente não seria preciso recorrer à minha experiência pessoal,
com paráveis suas respectivas constituições do tem po interno e de seu no caso muito menos confiável: qualquer leitor dos diários de Kafka saberá
ajuste com o tem po dos relógios. Suas dessemelhanças não se explicam vê-la seja em sua alusão a Praga, “essa mãezinha tem garras” , seja em trecho
de sua reflexão sobre o caráter da “ literatura menor” :
’ Hesitamos em definir a estabilidade ou instabilidade em função de fatores sócio-econô-
micos. Isso não significaria retornar ao causalismo identitário que tínhamos repudiado? A vivacidade de tal literatura é mesm o m aior do que a de um a rica em
Embora o risco seja real, era preciso corrê-lo. Se fatores sócio-econômicos não explicam
talentos, pois, com o não há um escritor cujo talento impusesse silêncio ao
um estado de cultura, não os considerar seria estupidez. Interferindo basicamente no
estado da cultura, o sócio-econômico se defronta com o grau de coesão interna, com a m enos à m aioria dos céticos, o debate literário adquire, na m aior escala
valência que suas práticas culturais mantenha para o grupo em estudo. possível, um a justificação real (Kafka, F.: 1911, 152).

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N o instante de análise mais refinada, talvez venha a ser necessário clopedismo — com o negativa — a capacitação cada vez mais reduzida
distinguirem-se as áreas instáveis investidas de longa tradição, semelhan­ a uma área cada vez menor, impossibilitando ao especializado conexões
tes à que servia de objeto para a reflexão do escritor, daquelas cuja amplas e inesperadas — , se torna provável apenas quanto às áreas de
história é recente, m esmo porque nascida sobre os escom bros de culturas que o poder político-econôm ico tem absoluta necessidade. N ão é exa­
arrasadas, fossem elas ricas, a exem plo da asteca, inca ou maia, ou não. tamente esse fator o que motiva a permanente carência de inquietação
N o m om ento em que nos encontramos, porém , a distinção pode ser filosófica do intelectual latino-americano? Pois a que necessidade do
abandonada. Em troca, é forçoso pensar-se com o as duas passagens ci­ poder ela responderia? Ou aumentaria ela a penetração popular de certa
tadas se combinam. orientação política? Com o a história das nações latino-americanas coin­
C om o se explicaria, dentro das áreas não estáveis, como formulava cide com a legitimação suprema reservada à ciência enquanto instru­
Yanocopoulo, a menor possibilidade de decisões exclusivamente indivi­ mento de dom ínio da natureza (e da sociedade), nelas a filosofia reco­
duais senão porque a insegurança coletiva provoca um forte sentimento nhecida tem sido ou aquela que dá título de nobreza à prática científica
gregário? Podemos do m esmo m odo entender que as aglom erações aí ou aquela que justifica um causalismo determinista. Com o, por outro
situadas prendem com o garras, a exem plo de Praga para Kafka, por certo lado, não há, da parte da sociedade, nenhuma tradição cultural arraiga­
não a partir da massa indiscriminada de seus habitantes mas de seu grupo da, tam pouco há possibilidade de negociar-se sobre os critérios de legi­
de referência afetivo e/ou profissional, cujo abandono seria sentido co­ timação. M as o aprofundam ento dessa discussão só seria cabível em um
m o uma quase traição cometida pelo que escapara. Por outro lado, esse m omento posterior. Por enquanto, devemos dar firmeza aos prim eiros
gregarism o poderoso teria um efeito intelectual — Kafka aludia, mais
passos.
restritamente, ao literário — porque não há concentração em torno de
Adianta-se pois a hipótese de que se partia, agora se acrescentando
um talento que não se contesta — o caso de Goethe, dentro da cultura
que a diferença entre os modos de socialização dos membros das áreas
alemã — , a discussão de idéias adquire “uma justificação real” . A de­
culturalmente estáveis ou instáveis poderá ser assim formulada: para os
pendência de uns em relação aos outros, em suma, tanto criaria um
primeiros, a socialização se caracteriza pela confiança na eficácia das nor­
sentimento gregário com o estimularia o próprio debate; ao m esmo tem ­
mas existentes e, em conseqüência, na internalização dos frames em vigên­
po que diminuiria a margem de decisões individuais, aum entaria a di-
cia. Note-se que, pelos termos com que se procura descrever a situação
namicidade das trocas. Esse segundo ponto, entretanto, obriga à ressal­
estável, já se visualiza a cultura como existente, como possuidora de nor­
va: podem os tê-lo por correto apenas se, na área considerada, um
mas e frames que despertam em seus membros uma determinada “respos­
sistem a enquanto intelectual já se houver imposto. D o contrário, como
ta” . Ora, é essa mesma “resposta” que assume direção oposta no caso dos
sucede no Brasil, se não em toda a América Latina, o gregarism o tende
pertencentes a uma área instável. Nesta, a eficácia das normas está sempre
a agir com o m ero espírito corporativista, i.e., com o simples instrumento
de defesa em face da sociedade. (M esmo pois que tenhamos optado por em questão, a lei não é internalizada, se há de decidir diante de cada caso
não tratar no momento da diferença entre instáveis com tradição e de concreto; como se diz no Brasil, a lei “ pega ou não pega” . Se é ridículo
história recente, fom os obrigados a mencioná-la.) Deve-se ainda acres­ ainda pensar-se que há povos dóceis e povos rebeldes, se é inconcebível,
centar: esse gregarism o, corporativista ou não, parece explicar a menor a não ser para os racistas, que há diferenças naturais, i.e., étnicas, entre os
autonom ização do cam po intelectual. Dito de m odo mais preciso: a povos, então as diferenças só podem ser culturalmente motivadas, portan­
especialização, tanto em sua acepção positiva — o abandono do enci- to historicamente localizadas e modificáveis.

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Se tal descrição for aceitável, alguns passos se mostram de im ediato choque entre sociedades “ frias” e “quentes” , esquecendo o atrito entre
possíveis. áreas bem mais próxim as, entre “cam po” e “ cidade” . Ora, se com para­
mos o subtítulo deste ensaio com o que até agora tem-se dito, pode-se
verificar que ele estabelece uma hom ologia entre ‘m etropolitano : está­
5. Se cada área cultural vivesse em estado de isolam ento ou se os vel :: m arg in al: instável’, a qual parece absurda diante do par opositivo
vizinhos com que se inter-relacionasse tivessem um nível semelhante de mais usual ‘cidade : cam po’, pois, neste, a correlação correta é a oposta:
satisfação de necessidades, as quais, de sua parte, fossem entre si sem e­ ‘cidade : instável :: cam po : estável’. A objeção derivaria do equívoco
lhantes, podem os supor que as marcas de coesão de cada uma perm a­ de hom ogeneizar tem pos históricos incomparáveis. A oposição ‘cidade
neceria por uma longue durée, sem cataclismos ou descontinuidades ou : cam po’ supõe um tem po em que as m udanças tecnológicas e os con­
tam pouco imobilismo. Foi essa pequena afecção à passagem do tem po tatos internos entre as áreas eram lentas, perm itindo ao pólo digam os
que permitiu a Lévi-Strauss indagar a unidade sob transform ação de um receptor internalizar a mudança aos poucos. Dentro desse m arco, que
universo mítico tão am plo quanto o que abarca o Mythologies. M as que podem os supor genericamente vigente até aos anos próxim os ao fim da
sucede quando essas áreas são invadidas por conquistadores cuja eficácia Segunda Grande Guerra, os costumes e norm as rurais eram estáveis e a
tecnológica provoca a aceleração constante de mudanças? O que se cos­ área não seria tom ada com o marginal, ao passo que a cidade era dinâ­
tum a chamar bom senso — com freqüência, apenas um eufem ismo para mica, não necessariamente m arcada pela instabilidade. N a situação
a apreciação grosseira — estabeleceu que o resultado seria inevitavel­ atual, ao invés, área rural e cidade se tornam ou centros economicamente
mente desastroso: do laborioso universo sim bólico de identidades e di­ dinâmicos ou áreas estagnadas, e, assim, ou culturalmente estáveis ou
ferenças restariam os sinais de saque e ruínas. M ais recentemente, co- instáveis. Note-se ainda que se im põe a distinção entre dinam icidade e
meçou-se a considerar a resistência dos vencidos, a mescla dos universos. instabilidade cultural. A primeira sem dúvida provoca a mudança de
Destaque-se aí a pesquisa de M . Taussig a propósito dos Cuna, da Ilha hábitos e m esmo de valores, a qual, entretanto, se cumpre por assim
de St. Blas, cujo imaginário apresenta o traço de incorporar sem limites dizer dentro dos sulcos estabelecidos, sem a insegurança crônica e a
as figuras mais heteróclitas dos vários brancos conquistadores e de tirar experiência de iminência de caos que acom panham a segunda. Em suma,
partido de suas divergências para manter sua coesão grupai (Taussig, M .: pois, se, genericamente, dentro do marco tem poral da segunda metade
1993). Tais reparos, contudo, não têm aqui outro papel senão o de acen­ do século atual, a hom ologia entre m etropolitano e estável, marginal e
tuar que, na questão do confronto das culturas, dotadas de potenciais instável parece legítima, se há de ter o cuidado de verificar se, no caso
tecnológicos desiguais, já não podem os manter uma visão determinista: empírico em consideração, pode ou não ser mantida. A hom ologia entre
ao vencido, não resta mais do que pactar ou encarar a morte. O exame ‘estável’ e ‘m etropolitano’, ‘instável’ e ‘m arginal’ é apenas a mais ampla.
do choque de culturas revela uma realidade mais com plicada: o vencido As restrições a seu uso não abalariam a diferença entre áreas ‘estável’ e
não é só aquele que, quando não o matam, sobrevive ou com ruínas ou ‘instável’.
sob o com pleto desam paro de seu universo simbólico, mas, outras tantas Essas considerações se impuseram para que melhor se entendesse
vezes, aquele que submete as ruínas a uma torção que, combinada aos por que a diferença entre áreas estáveis e instáveis não é passível de ser
signos heteróclitos dos dominantes, o ajuda a manter a relação diferen­ tratada com os conceitos clássicos de cultura. Se o conceito humanista
cial frente aos outros. é inadequado porque, enfatizando o m om ento individual de criação, dá
Pode-se entretanto alegar que nosso raciocínio se baseia no clássico Por pressuposta uma coesão passiva do grupo que, cedo ou tarde, reco­

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nhecerá a qualidade do criador, o antropológico não é menos inválido bem estabelecidas. Em suma, a confiança em suas próprias norm as se
porque, descritivo, dá por pressuposta a mesma qualidade indiscrimina­ atualiza, no contato com os outros, sob a form a, mais ou m enos intensa,
da por todos os grupos que observe. Em ambos os casos, não há instru­ da autom atização. A procura do exótico passa a fazer parte das regras
m entos para que se apreenda esse jogo com plexo de semelhanças e di­ internalizadas; as férias, a viagem, a priori pasteurizadas, significam a
ferenças, de redundância e ruído, de circulação e mudança; jogo, abertura, com data fixa, de um espaço normalmente interditado.
adem ais, cumprido sob ambiências assimétricas; precipitador, portanto, E possível que essa tendência seja pouco visível no contato do auto­
de resultados não superponíveis. Vejamos pois que inteligência se pode m atizado com seus próprios pares, tornando-se então menos notada a
retirar do exam e de cada uma das duas situações. perda de flexibilidade que implica e, portanto, seu caráter negativo. N ão
será preciso que a análise tenha um objetivo acadêm ico para que essa
5.1. A partir da socialização cumprida em uma área culturalmente tendência seja percebida: qualquer estada mais prolongada do estran­
estável, dois m odos de atualização são imediatamente prováveis. O pri­ geiro em área sujeita ao m odo de vida norte-americano obrigará o via­
m eiro, de uso m ajoritário, se tipifica pela tendência à autom atização dos jante a ajustar sua conduta ao uso autom atizado dos frames. N ão será
fram es estabelecidos. Assim, por exem plo, o que até há pouco parecia assim aconselhável que, diante de um desconhecido, em um trajeto de
privilégio dos franceses hoje se torna propriedade dos norte-americanos m etrô, os olhos sejam nele fixados ou que, na relação pessoalizada, as
(e não só de seus turistas): a suposição de que, em qualquer parte do palavras se prolonguem em alguma forma de contato corporal.
m undo, lhes será suficiente o uso de sua língua, com o, o que é mais Ao lado dessa primeira, ocorre atualização diversa. Seja por efeito
grave, a de que os padrões de conduta e qualidade serão os mesmos. As do ethos da atividade intelectual, seja por opção pessoal, seja por vicis-
redes de turismo respondem à presunção de seus clientes e oferecem situdes de sua biografia, o “ estabilizado” se m ostra sensível às “ respos­
resorts a tal ponto duplicadores do critério de excelência, que, se tudo tas” habituais a seu meio e se faz consciente do significado da autom a­
funcionar bem, no final de suas férias o cliente terá a sensação de que tização. Se sensibilidade e consciência crescem, tendem a se sistematizar,
viajou sem viajar. D o local visitado, restará o exótico dom esticado: a sem que, por isso, seu agente rom pa o vínculo com sua socialização
diferença do que se comeu e bebeu, o emocionante da paisagem, o ex- básica, i.e., se torne um estranho a seu próprio meio. Isso não supõe que
celso da história sob visita. A autom atização traz o curioso resultado de seu m odo de atuação seja o de um áureo meio-termo, entre M eca e
controlar-se a diferença; de experimentar-se a mesmidade do diferente. Roma. Ele não se caracteriza menos que o prim eiro m odo, muito embora
Com o tal duplicação ideal não padroniza apenas o turista, torna-se a direção seja agora a contrária: em vez de autom atização, exploração
freqüente ouvirem-se conferências e intervenções de scholars norte- dos limites dos valores internalizados.
am ericanos que antes pareceriam destinadas a seu auditório nativo, em Tome-se um pequeno exem plo. Em M orte em Veneza (D er Tod in
dia com as preocupações e os m odism os de alguma área norte-americana Venedig, 1912), Gustav Aschenbach é um escritor de m eia-idade, fa ­
intelectualmente legitimada. (A feminista falando das conquistas das m oso e à beira da esterilidade. Sua escolha de Veneza já parece conter
mulheres em N ova York; o comparatista, das vantagens do “cultural mais do que a mera decisão de férias em um hotel de luxo. Além do
studies” de sua universidade.) A variante não é menos freqüente, nem que a viagem à Itália tem significado, desde Goethe, para o intelectual
tam pouco inventada pelos autom atizados de agora: o falante parte do alem ão, Veneza se singulariza por sua m escla de potência do p assado
suposto de que o auditório apenas conhece o inglês e que, portanto, seu e fausto corrom pido pela passagem dos séculos e a proxim idade de
papel será diluir da maneira mais corriqueira algum as proposições já águas insalubres. A princípio, de seu processo de sedução pelo fascínio

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que nele inspira o jovem Tadzio, Aschenbach ainda im agina que, tin­ na primeira situação. O fato de terem, dois a dois, o m esmo sentido de
gindo os cabelos, se põe a seu alcance. M as a m áscara do pretenso direção não significa que sejam superponíveis; essa im possibilidade é
rejuvenescim ento não é capaz de resolver a luta entre o fascínio ho­ resultante m esmo do caráter dos cam pos, estável e instável, a que per­
m ossexual e o rígido código ético. Inform ado da peste que grassa, tencem.
Aschenbach opta por perm anecer. Fugir seria recair na esterilidade Caracterizando-se a situação de instabilidade pela constituição de uma
que já o consum ia. Aceitar o desafio da peste — que então assum e um a vivência básica de insegurança quanto a normas e valores, seu primeiro
dupla direção: erótica e vital — era m ostrar-se em vida. Se a ordem m odo de atualização se manifesta, no contato com o estrangeiro “estável” ,
que o elevara, a que a narrativa aponta seja enum erando as distinções pela tendência à imitação de suas formas de conduta ou mesmo pela assi­
que recebera, seja assinalando sua residência no centro principal das milação de seus frames. Em Minima moralia, Adorno observava a decep­
tradições bávaras, a PrinzregentstraEe, não tinha m eios contra a im ­ ção dos intelectuais marxistas com os estudantes vindos dos países colo­
potência que o assediava, que m elhor podia fazer senão lançar-se con­ nizados, que, em vez de terem a atitude de rebeldia esperada, eram os mais
tra os fram es que neutralizavam a com plexidade relativa à identidade dóceis às direções mais conformistas da cultura metropolitana.
sexual? A atração dionisíaca que Aschenbach persegue, sem tam pouco Essa tendência imitativa só tende a crescer ante a crise econômica
renunciar à interdição ética de m aior proxim idade, não se lê adequa­ prolongada desde a década de 80. Ao passo que, durante a última onda
dam ente quando se a interpreta com o m arca do esteticism o do escri­ de ditaduras que dom inou grande parte das nações latino-americanas
tor. M uito m enos o decisivo estaria na obsessão de T hom as M ann pelo entre m eados de 60 até os anos 80, a resistência de parcelas da população
tem a, presente seja na M ontanha M ágica (Der Zauberberg, 1924), seja era estim ulada pelo sentimento de que lutávam os por um destino não
de m aneira ainda m ais elaborada no D oktor Faustus (1947), m as sim m arginalizado, o m odo com o se tem dado a redem ocratização, tornando
em sua decisão de, através do protagonista, refletir ficcionalm ente outra vez nítida a separação entre o país real e sua representação política,
sobre um fascínio que sua socialização neutralizava; i.e., de explorar com binado aos efeitos da recessão econômica mundial, à falência do
seus limites. Esse gesto contudo não convertia Aschenbach em um bloco socialista e ao questionam ento das correntes derivadas do racio-
prófugo. A m orte com que a novela se encerra — e o m esm o valeria nalismo iluminista, tem criado um clima de desânim o, cinismo e deses­
para o D oktor Faustus — tanto diz da ousadia do tratam ento quanto pero. Se algum a coisa tem, entre nós, ultimamente prosperado é a ten­
da vitória do fram e contra que se lançara. A m orte corrobora seu en­ dência assimilacionista. Ela já não se limita à mitificação das nações que
lace com eros ao m esm o tem po que im pede que eros contam ine a vida; “deram certo” com o à tentativa de, por qualquer m odo, para aí emigrar.
explora os limites do valor relativo à identidade sexual ao m esm o Pareceria um absurdo negar que esse desesperado frenesi é econom ica­
tem po que o resguarda; há exploração e não transtorno. mente explicável. Enquanto os media abrem espaço para a falência da
Em suma, a socialização sob condições de estabilidade apresenta previdência social sueca, para o número crescente de desem pregados na
dois m odos de operação antitéticos. Obviamente, não se diz que eles são França e no Canadá, em quase todos os países latino-americanos o des­
os únicos; sua antítese, ela mesma, é de limites. A situação é o campo taque desses dados ainda seria um eufemismo. H á de se reconhecer,
que se atualiza por aqueles modos-limite. contudo, que o quadro é agravado pela consonância entre o descalabro
econômico e a tendência assimilacionista das áreas culturalmente instá­
5.2 A situação oposta também admite dois m odos de atualização. veis. E seria erro injustificável limitá-la às últimas décadas. N ão menos
C ada um deles tem o m esmo sentido de direção do m odo correspondente grosseiro seria o erro daqueles que opusessem ao culto basbaque do

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trário, sua conversão por Diderot em uma comédia engenhosa, em Jac-


estrangeiro a idolatria do nacional. Esta, tanto sob a form a do populism o
ques le fataliste.
com o do regionalism o, é um a atitude reativa, tão imitativa com o o mais
evidente assimilacionismo. Da mesma maneira, seria oportuno lembrar-se a im portância que
Por mais forte que seja esse m odo de atualização da insegurança, desem penhará em Borges a apropriação ficcional da alternativa gnóstica
será preciso considerar, dentro da segunda situação, o m odo de direção com o explicação do caráter do mundo O gnosticism o e, em parte, o
contrária. Se, em contraposição ao autom atism o, o agente “ estável” se próprio Kafka4 foram instrumentos para que a ficção borgiana fizesse
lança à aventura da exploração de limites, em reação à vontade de assi­ explodir a tradição racionalista presente no romance ocidental, com seu
respeito ao fato “histórico” e sua concepção naturalista do tem po. Inte­
m ilação, o agente “ instável” se entrega à explosão dos limites. Assim,
por exem plo, partindo da mesma marca do “romance de form ação” ressa-nos contudo menos acumular exem plos do que apresentar os ca­
minhos passíveis de ser abertos pela hipótese aqui exposta. M esm o por­
goethiano, estimulante da identificação do leitor com o protagonista,
Kafka viria a explorar ironicamente essa confluência e, instituindo o que ela se encontra em estágio inicial, convém discutir uma dúvida que
provoca sua formulação.
paradoxo com o seu procedim ento de base, faria explodir a tradição
ficcional fundada na crença no substrato natural da lei. M uito menos Que significa propriamente dizer-se que o segundo m odo à segunda
que um cenarista do absurdo — que é a idéia comum que se faz sobre situação se caracteriza pela explosão de limites, enquanto o correspon­
Kafka — , sua obra joga com as expectativas iluministas do receptor, dente à primeira situação se definia pela exploração de limites? Estaría-
reduzidas à não correspondência com o mundo vivido pelos persona­ mos por acaso insinuando que aquela é mais extrem a? Escrevíamos, com
gens (cf. L C L: 1993). efeito, que a exploração de limites sempre oferece ao agente “estável”
Pode-se por certo contestar que a linhagem dominante no romance a possibilidade de dispor de uma margem de segurança, de manter um
já fora contrariada, no momento m esmo em que se estabelecia, pelo pé em terra firme, enquanto, sob a situação instável, a explosão de limi­
Tristram Shandy. É óbvio que sim, nem apresentaria dificuldade adm i­ tes estabelece a descontinuidade. [E a respeito preciosa a observação de
ti-lo. Fazê-lo terá m esm o a vantagem de nos permitir dizer que a relação Sérgio Buarque de H olanda, em artigo de 1940, de que “ nossa literatura
entre situações e m odos não é determinista. (Se Morte em Veneza nos (...) até aqui tem evoluído menos por progressão contínua do que por
serviu de exem plo para a situação de exploração de limites, o Voyage au meio de revoluções periódicas” (H olanda, S. B.: 1996, 1, 274).] Tería­
bout de la nuit (1932) nos m ostraria um niilismo próxim o da explosão mos, pois, um a espécie de com pensação para os obstáculos que conhece
de limites. M as tão-só próxim o: o nazismo a que o autor aderirá m os­ o criador em um cam po instável: não só escaparia da voracidade assi-
traria o limite a que se agarra contra a destruição que obseda seus per­ milativa em que sua sociedade se esteriliza, com o desmistificaria a con­
sonagens.) M as não ser determinista não significa que seja aleatória. Ê tinuidade preservada pelos dominantes. Por virtude de sua própria pe­
sim historicamente m otivada. E o que nos faz ver com m aior clareza o quenez, o anão m ostraria ao m undo a desnudez do rei.
destino do romance de Sterne. Por que, afinal, sua côm ica agressão à Se essa for a leitura desejável, é tão ridiculamente ingênua que com ­
narrativa linear e envolvente terminou posta no ostracism o com a vitória promete todo o percurso. Contudo, não é nem a intencionada, nem a
do romance realista senão porque não era historicamente apropriada a
um gênero que em polgaria a literatura da burguesia estabelecida? Den­ 4 Emir Rodríguez Monegal assinalava que, no final dos anos 30, “Borges studied and
tro dessa ordem de raciocínio, seria fecundo que se refletisse sobre a discussed Kafka when he was about to begin a new career as a storytellef' (Monegal, E.
R.: 1978,313).
radicalidade que M achado de Assis daria à matriz sterniana e, ao con­

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que se im põe. M anter um pé em terra firme ou jogar-se sem proteção sobre a própria possibilidade positiva: a liberdade de movim entos é tan­
no abism o são tendências que contêm, cada uma, dupla orientação. N o to m aior quanto menor sua eficácia.
caso da primeira, o risco negativo é por certo que seu salto de algum Isso posto, podem os ainda nos acercar da caracterização dos m odos
m odo perm aneça com prom etido e engendre um neoclassicismo. M as alternativos aos dois cam pos por outro caminho. Propom o-nos ver nas
esse risco é com pensado, e aí está sua orientação positiva, por a própria figuras m itológicas do pai hierático e do trickster as encarnações emble­
exploração ser estimulada pela sensação que ela tem limites, que a busca máticas das direções alternativas. Tom ar a figura do pai hierático com o
não é um delírio, pois, sendo capaz de questionar a carga de sentido até o emblema orientador da exploração de limites implica que sua viagem
então afirm ado, conta entretanto com um a base. se cumpre sob a imagem de alguém cuja lição, embora repudiada, per­
Tome-se com o exem plo o princípio das correspondências em manece com o indicação de lugar. Para Ulisses, há sem pre ítaca. A viagem
Proust. Sabe-se que, de acordo com a postulação do N arrador em L a não é um m ero enfrentamento do desconhecido porque sua orientação
recherche, indo além do que permite a inteligência, a “ m emória invo­ é cíclica. (O “ eterno retorno” nietzschiano não é o retorno ao m esm o
luntária” é capaz, a partir de um acidente casual — a degustação da ponto.) O trickster, ao invés, é aquele cujo êxito depende da astúcia em
madeleine ou o contato redivivo com a irregularidade das pedras de vencer as regras de um jogo que, em princípio, lhe são desfavoráveis.
Veneza — , de escapar da linearidade do tem po e recuperar o tem po Para o trickster, o pai é aquele cujo poder há de ser destruído. Sua vitória
abolido. O que porém retorna — se retorna, pois outras tantas passagens será a da astúcia contra a lei internalizada. Assim, no relato “ Sim ão, o
seriam enumeráveis de fracasso — retorna noutro registro: o registro das m ago” do escritor sérvio Danilo Kis, o protagonista é um trickster, cujos
palavras. O ra, essa mudança do ponto de chegada do que entretanto milagres ameaçam a segurança dos apóstolos. Porém o trickster m aior é
retorna significa, com o admiravelmente expuseram Deleuze e Guattari, Deus. Ante a ameaça do milagre da subida aos céus de Sim ão, Pedro
que a essência proustiana não é a Idéia platônica, pois ao contrário se invoca a ajuda do Pai, cuja voz não se faz esperar:
assemelha com um Kern de múltiplas cam adas, cujo desdobrar-se não se
com pleta. O acesso ao passado, o tem po redivivo, tanto se define com o Segue meus conselhos, oh fiel. Diz ao povo que a fé é mais poderosa que a
instantâneo, fugitivo e incom pleto, quanto pelo acesso a um núcleo duro ilusão dos sentidos (...). E diz-lhe, com um a voz forte para que tod os te
que o curso do tem po não desfaz. O que vale dizer: o explorador de escutem: D eus é uno e seu nome é Eloim , e o Filho de D eus é uno e seu
limites inconscientemente se assegura contra o desespero do nada por nome é Jesu s e a fé é una e é a fé cristã. E aquele que sob vossos olhos subiu
sentir que sua busca, oposta à descrição realista, conta com a possibili­ ao céu até às nuvens, Sim ão dito o m ago, é um desertor da fé e um profa-
dade de encontro de algo que, tem poral, não se submete à linha do nador dos Preceitos divinos; ele realm ente voou pela força de sua vontade
tem po. Em vez de prendê-la, a exploração de limites a dimensiona. E e pela força de seus pensam entos e agora voa, invisível, rum o às estrelas,
condição para sua profundidade. O agente “estável” pode falar de um levado por sua dúvida e pela força de sua curiosidade humana que, entre­
“grau zero” porque, inconscientemente, sente que parte de algum lugar. tanto, tem seus limites. E diz-lhes, com um a voz forte para que tod os se
A sensação referida não se propaga ao agente criador da área instável. escutem, que fui igualmente eu que lhe dei essa força de tentação, que seu
As possibilidades negativa e positiva que então se lhe mostram não são poder e sua potência lhe vêm igualmente de mim, pois lhe concedi p or seus
superponíveis às da primeira. A possibilidade negativa se torna iminente: m ilagres e pôr à prova a alm a dos cristãos (...) (Kis, D .: 1983, 25).
explodir os limites significa não só a sensação de partir de um a terra de
ninguém, com o alcançar um a conquista restrita. Essa caracterização pesa A escolha do exem plo é proposital para que se evidencie a comple-

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xidade que se arma. Do ponto de vista do apóstolo, o princípio seria o


recurso freqüente da emblemática figura, também aqui a farsa, a burla
de que só ao filho de Deus e a seus fiéis fora concedido o direito de
a paródia são os princípios de estilização dominantes. M acunaím a, o
rom per com as leis naturais. Se um herético o usurpa, a doutrina está
que sai em busca de aventuras e da conquista da grande cidade, trapaceia
desacreditada. O Pai intervém e, m ostrando que também ele pode ser
e desmistifica a superioridade branca, para, afinal, saudoso das origens,
um trickster, destrói o limite do princípio, que estabelecia que nenhum
empreender o retorno. Sua morte emblematiza o limite da explosão dos
“ infiel” poderá fazer o que Sim ão fará, e, explicando a anom alia, restitui
limites. Com o se ela dissesse: a assimetria das duas posições não é anu­
os limites da lei, i.e., salva a ortodoxia. Sim ão de fato subirá ao céu, mas
lada, por m aior que seja a astúcia do herói trapaceiro. Sua conversão em
apenas para que volte à terra, contra a qual seu corpo se estraçalhará.
estrela m aximiza a ironia: para o estrangeiro ao cam po que o herói
Pois o Pai poderá ser um trickter, mas o trickster não poderá ser com o
emblematiza, ela parecerá a eternização do brilho e da glória.
o Pai. Só Ele enfeixa o poder de, hierático, manter a lei.
Ao contrário do que afirma a visão funcional-economicista, as áreas
A lgo semelhante é pensável quanto a Kafka. Com o Adorno escrevia:
marginais ou instáveis não estão fadadas a produzir obras imitativas.
“ Em Sade e em Kafka [...] a razão opera (ist Vernunft am Werk) para
Tam pouco é aceitável a posição daqueles que estão prontos a reconhecer
que m arque, pelo principium stilisationis da ilusão (Wahn), o lado obje­
a qualidade igual de obras concebidas nas mais distintas latitudes. Todas
tivo desta” (Adorno, T. W : 1953, 280). Assim, em O processo (Der
elas, afirmam, trazem a marca da criação contemporânea e são, em co­
Prozefí, 1925), Joseph K. vive sob a ilusão de que está em um Estado de
mum, exploração de limites. Ao invés da filantrópica afirm ação, é ade­
direito; portanto, de que o processo que movem contra ele devia estar
quado repetir-se com Danilo Kis: “ [...] Tudo que parece à primeira vista
de acordo com uma norma de conhecimento público, a todos visível.
idêntico é apenas semelhante” (Kis, D.: 1983, 54).
M as sua crença é exclusiva a ele (e ao leitor que não perceba a ironia
A retificação que propom os, consistente em alertar para a diversi­
kafkiana). O submeter a ilusão ao estilo, no sentido literal do termo,
dade de duas situações e dos dois m odos imediatamente apreensíveis de
significa m ostrar seu aspecto objetivo, i.e., sua proveniência do raciona-
atualização, não termina por estabelecer uma perfeita simetria de p os­
lismo iluminista. Ainda que Adorno não explicite a dedução que faze­
sibilidades (o negativo e o positivo de uma situação correspondendo ao
m os, ela não lhe seria arbitrária, pois logo acrescenta: “Ambos perten­
negativo e positivo da outra). M uito ao contrário, a assimetria se m an­
cem, em graus diversos, ao Iluminismo. Em Kafka, seu m odo de
tém tanto nos m odos que chamam os negativos — o assim ilacionism o
desencantamento (Entzauberungsschlag) é ‘assim é’” (idem, ibidem). O
dos “ inseguros” corrobora a força dos autôm atos — com o nos positivos:
trickster, no caso o narrador, que, inconfiável, não “alerta” o leitor para
a explosão dos limites afinal se revela vitória conjuntural — tenha-se
a armadilha que o relato lhe arma, responsável pois pelo principium
com o exem plo o cinema de Glauber Rocha. Dizer que o trickster só
stilisationis, destrói a ilusão da continuidade dos princípios iluministas
supera seu raio de façanhas quando assume forma de atuação do pai
do Estado constitucional, mas é obrigado ao conform ism o final. Sob a
hierático significa que a plasticidade, a rapidez de aprendizagem e im­
ilusão, delírio, alucinação, sentidos que cabem de igual em Wahn, a lei
provisação do agente “ instável” só se tornam duradouras quando o con­
subsiste. Ou, form ulando de outra maneira: se a lei em que o protago­
texto que as contém se dinamiza e, ao m esmo tem po, adquire estabili­
nista acredita é ilusória, embora imperscrutável uma lei ronda o mundo
dade. A dinamicidade, embora não se consiga sem um “ em purrão” social
humano. O trickster apenas trickster apenas explode os limites de uma
e sem meios concretos de levá-la adiante, não se confunde com a exis­
lei, digam os, de força menor.
tência de um positivo lastro sócio-econômico.
Lem bremos um terceiro exem plo: o do trickster M acunaím a. Com o
A necessidade de rebelarmo-nos contra os determinismos, que sem ­

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pre nos condenaram a nós, membros das culturas menores e marginais, Referências bibliográficas
a necessidade então de m ostrar que, quando criadores, nossas criações
explicitam um outro horizonte, não nos deve contudo levar a supor que
nossos tricksters podem ser demiurgos. Essa possibilidade nos é negada.
O cam po a que pertencemos nos marca. Ele é nosso umbigo. Outros
ares precisam soprar para que ele assuma outra configuração. Que não
há de ser necessariamente a do demiurgo. O trickster mais fecundo será
aquele que abra a possibilidade para a paródia do dem iurgo; aquele cuja
prática da marginalidade o ensine a rejeitar, m esmo quando pudesse As datas entre colchetes indicam a data da edição original da obra,
quando diferente da edição citada.
assumi-la, a postura do pai hierático.

CAPÍTULO I. NO COM EÇO DE OS SERTÕES

Acízelo, R. O Império da eloqüência: estudos de retórica e poética


no Brasil oitocentista [1995]. Texto mimeografado.
Andrade, M. de. O turista aprendiz [1927], Estabelecimento do
texto, introdução e notas deTelê Porto Ancona Lopez. São Paulo
: Duas Cidades, 1976.
Araripe Júnior. “Os sertões” (Campanha de Canudos). Jornal do
comércio, Rio de Janeiro, 6 e 18 mar. 1903. Republicado em:
Juízos críticos. Rio de Janeiro : Laemmert Editores, 1904, e em:
Obra crítica de Araripe Júnior. Rio de Janeiro : Casa de Rui
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Barreto, D. Última expedição a Canudos [1898], Porto Alegre. Na
edição que citamos, o próprio título se modifica, passando a se
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— Editor, 1912.
Bonfim, M. A América latina: males de origem [1905]. Rio de J a ­
neiro : Topbooks, 1995.
Cardoso, V L. Euclides o descobridor. In: Figuras e conceitos. Rio
de Janeiro : Anuário do Brasil, 1925.
Cunha, E. da. Os sertões [ 1902], Edição crítica de Walnice Nogueira
Galvão. São Paulo : Brasiliense, 1985.
Cunha, E. da. Obra completa. A. Coutinho (ed.). 2 v. Rio de Janeiro
: Companhia Aguilar, 1966. V II: Epistolário: Carta a Manoel
R. Pimenta da Cunha, de 19 de fevereiro [1902a].
. op. cit. V II: Epistolário: Carta a Manoel R. Pimenta da Cu­
nha, de 12 de junho [1902b],
. op. cit. V II: Epistolário: Carta a José Veríssimo, de 3 de
dezembro [1902c].

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TERRA IGNOTA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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