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D. AFONSO HENRIQUES
Pai da pátria portuguesa: 1109 - 1185

Angela Dutra de Menezes

De História ela sabe, e muito. Mas a irreverência tropical toma-lhe o braço e a Angela começa a espanejar a poeira que
deixámos acumular sobre os vultos primeiros de Portugal. Já sacudido, aí vem o Fundador. Vamos lá aproveitar para
meter conversa...
FCS

QUANDO TUDO ACONTECEU...

1109: Provável ano de nascimento, em Coimbra, do


infante Afonso Henriques, filho do conde Henrique de
Borgonha e de dona Teresa, bastarda do rei Afonso VI de
Castela e Leão. No mesmo ano morre Afonso VI. Início
da disputa entre dona Urraca, a herdeira legítima, dona
Teresa e vários outros pretendentes ao trono. A briga
pelo poder dura anos. - 1122: Afonso Henriques antecipa
em sete séculos um gesto de Napoleão Bonaparte.
Ignorando o cardeal que presidia a cerimônia, arma-se
cavaleiro na catedral de Zamora. - 1128: Afonso
Henriques luta contra a mãe, dona Teresa, e seu aliado, o
conde galego Fernão Peres de Trava. As tropas de
Afonso Henriques e dona Teresa se enfrentam no campo
de São Mamede, junto ao castelo de Guimarães. O
exército galego é derrotado. Esta vitória leva dona Teresa
a desistir da idéia de anexar a região portucalense ao
reino da Galícia. - 1129: No dia 6 de abril, Afonso
Henriques dita uma carta em que se proclama soberano
das cidades portuguesas. - 1135: Afonso VII, filho de
IMPLACÁVEL, NOSSO REI APRONTA NOVIDADES...
dona Urraca, é coroado “imperador de toda a Espanha”
na catedral de Leão. Afonso Henriques se recusa a
prestar vassalagem ao primo. - 1137: Paz de Tui. Após
lutar com Afonso VII no Alto Minho, Afonso Henriques
promete ao imperador “fidelidade, segurança e auxílio
contra os inimigos”. - 1139: Batalha de Ourique. Afonso
Henriques vence cinco reis mouros. - 1140: Afonso
Henriques começa a usar o título de Rei. - 1143:
Provável Tratado de Zamora no qual estabelece a paz
com o primo Afonso VII. Primeiro passo para a
independência portuguesa. Afonso Henriques escreve ao
Papa Inocêncio II e se declara - e a todos os
descendentes - “censual” da Igreja de Roma. A palavra
“censual” significa que Afonso Henriques é obrigado a
prestar obediência apenas ao Papa. Na região que

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governa, portanto, nenhum outro poder é maior que o


dele. - 1147: Afonso Henriques expulsa os mouros de
Lisboa e várias outras cidades portuguesas. - 1169:
Afonso Henriques é feito prisioneiro pelo rei de Leão,
Fernando II. - 1179: A Igreja Católica reconhece,
formalmente, a realeza de Afonso Henriques. - 1180:
Final dos conflitos com Fernando II, de Leão, pela posse
de terras na região da fronteira e costa da Andaluzia. -
1185: Afonso Henriques morre na cidade em que nasceu.
Sua herança, além de imensa fortuna, é o Condado
Portucalense, primeiro território europeu que estabelece
sua identidade nacional.

“... não quero mais saber do lirismo que não é


libertação.”
(Manuel Bandeira, Poética)

Ninguém merece mais este título que o infante Afonso


Henriques, filho de dona Teresa, bastarda do rei Afonso VI
de Leão e Castela, e do conde Henrique de Borgonha.
Pouca gente sabe. Mas, graças à esperteza política de
Afonso Henriques, Portugal é a primeira nação européia a
se estabelecer como Estado independente. Antes do ano
1200, Portugal já é Portugal. Com direito, inclusive, a
língua própria: o galaico-português.

Gênio, estadista, raposa política, vitorioso, implacável,


espertíssimo: Afonso constrói uma história rocambolesca.
Tudo que pode manipular a seu favor, manipula sem
escrúpulos. Inicia a trajetória de vitórias fundando um
reino. Para tanto, manda mamãe para o espaço sem sequer
dizer adeus. Naquele tempo, porém, ninguém cogita a
possibilidade de Portugal ser conseqüência de um
Complexo de Édipo mal resolvido. Até porque, Freud ainda
não pensa em nascer.

O avô de Afonso Henriques destaca-se como um dos


homens mais poderosos de sua época. Amigo pessoal de
Santo Hugo - que não sabe que será santo, mas já constrói a
Abadia de Cluny, o maior templo que a cristandade jamais
erguera - , Afonso VI tira do bolso, ou dos cofres públicos,
grande parte dos recursos que financiam o sonho de Hugo.
Bem relacionado com os outros reis cristãos, influente,
excelente jogo de cintura, Afonso VI, entre uma e outra
doação a Cluny, consegue casar sua bastarda com um dos
condes de Borgonha - família finíssima, não é assim, toda

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hora, que um Borgonha se mistura à gente mal nascida.

Mas Afonso VI embrulha a oferta para presente: Henrique


leva Teresa e, de quebra, o Condado Portucalense, terras a
oeste de Castela que, há tempos ensaia a gracinha de viver
por conta própria. Afonso VI, sabendo das estrepolias
portucalenses, resolve matar dois coelhos com uma
cajadada só. Em 1092, reúne as duas unidades condais da
região – ao norte e ao sul do rio Douro – e determina que o
novo e único condado pertencerá à Teresa – e ao marido
dela, claro. Urraca, a filha legítima, sentará no trono de
Leão e Castela, como ensinam as regras da moral e dos
bons costumes.

Mais do que bom e preocupado papai, Afonso VI tenta


ampliar seu poder e garantir domínio sobre maior extensão
de terras. Tiro pela culatra. Tão logo o rei de Leão e Castela
mete o bedelho no Condado Portucalense, a nobreza local
inicia forte movimento separatista.

Coitado de Henrique de Borgonha, estrepa-se nesta história.


Além de gerar a genialidade de Afonso Henriques, pouco
lucra com o casamento. Fica zanzando em Portucale,
tentando ajudar ao filho. Mas o rebento é rebelde e
dispensa-lhe os palpites. Dom Henrique, francês
chiquérrimo, se aborrece. Assusta-o a idéia de passar para
a posteridade qual simples reprodutor. Mas a culpa é do
sogro. Afonso VI, ao engendrar a novela, comete um de
seus poucos erros políticos: não leva em conta nem o
bairrismo do Condado Portucalense, nem a possibilidade de
alguém armar uma falseta.

“...um poder mais alto se alevanta...”


(Camões, Os Lusíadas)

Arma – quem é avô de estadista, deve tomar precauções.


Afonso Henriques tem 20 anos quando Afonso VI morre.
Se famílias se estraçalham pela baixela de prata da vovó,
imaginem quando o motivo é o poder de uma coroa.
Desentendem-se todos. Urraca discute com o Bispo de
Compostela, atrita-se com rei de Aragão, cospe desaforos
para o conde da Galícia, faz e acontece. Acometida de olho-
grande, síndroma que costuma atacar herdeiros menos
favorecidos, Teresa desanda a arquitetar alianças
desastrosas – quem sai aos seus, não degenera.

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De repente, Teresa dá o passo fatal. Arquitetando anexar


Portucale à Galícia, alia-se aos galegos, tradicionais rivais
dos barões de Portucale.

É desconhecer o filho, menino que emite sinais de seu


gênio – no bom e no mau sentido - aos 13 anos. Nesta
idade, na cerimônia em que o sagram cavaleiro, na catedral
de Zamora, Afonso Henriques manda às favas o bispo e ele
mesmo sagra-se. Recusa a mediação divina. Igualzinho
Napoleão, alguns séculos mais tarde – pena o infante não
falar francês, língua dos sofisticados, nenhum compêndio
de história esqueceria tal feito.

Afonso Henriques, ele Dizem, não há provas documentais, que o avô fica
mesmo, sagra-se cavaleiro. orgulhosíssimo com a petulância do fedelho - é pena que
Entretanto, o que está a tanto talento evapore em Portugal, comenta Afonso VI.
acontecer no resto do Fofoca, naturalmente. Portugal e Espanha cultivam uma
mundo? Consulta a Tábua antipatia milenar, todo mundo sabe e não perde ocasião de
Cronológica. jogar lenha na fogueira.

Enfim, com tal filho nas mãos, dona Teresa, além de se


aliar aos galegos, aparece com outro conde debaixo de
braço, contando uma história trôpega de “apoio político”.
Arma-se o circo. Com 21 anos, Afonso Henriques cerca
Guimarães e declara uma briga de gafieira: quem está fora,
não entra; quem está dentro, não sai. Nem mamãe, suposta
rainha do condado.

É bom que se diga: igual ao avô, o infante não dá ponto


sem nó. Fareja que, com poucas chances na linha sucessória
de Leão e Castela, precisa descobrir o próprio espaço. Quer
o poder, seu lugar é no condado materno.

Tudo aponta para o fato de que o infante apenas capitaliza o


desagrado da nobreza portucalense. Desagrado que se
acentua quando Teresa enfia os galegos no caldeirão. O
esperto Afonso Henriques já andava observando que, além
do anseio de se libertar de Castela, as cidades de Portucale
identificam-se cultural e ideologicamente. Para ele, não
parece tarefa difícil transformá-las em uma só força
política. Teresa apenas fornece a justificativa para o infante
virar a mesa.

“Eu tenho apenas duas mãos,


E o sentimento do mundo...”
(Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo)

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Contando assim, parece fácil. Não é, senão qualquer


pessoa faria. Afonso Henriques tem enorme
sensibilidade. Age na hora certa, com as pessoas certas,
da maneira certa. Não falseia. Comporta-se como
perfeito animal político do início ao fim de sua história.
Faz a História, coloca o mundo nas mãos. Tolos são os
que o cercam, incapazes de observar a genialidade do
príncipe enquanto ele arma o bote.

Os habitantes de Guimarães, liderados pela nobreza e


pela burguesia, recebem o infante libertador de braços
abertos. Existe uma carta documentando este apoio.
Teresa ainda tenta combatê-lo. A batalha acontece em
1128, no campo de São Mamede, perto do castelo de
Guimarães. Primeira vitória do infante. Ele mesmo se
surpreende com a facilidade com que derrota o exército
galego e expulsa a rainha e seu conde. Em documento,
ditado a alguém de letras, declara: “Eu, o infante
Afonso, filho do conde Henrique, livre já de toda a
opressão,...., na posse pacífica de Coimbra e todas as
cidades de Portugal...”

“...Se governar fosse fácil,


não seriam necessários espíritos
iluminados...”
(Bertold Brecht, Dificuldade de governar)

Pronto, o Condado Portucalense começa a escorregar para


dentro de seu bolso. Daí para frente, cabe a ele segurar a
peteca e combater quem lhe atrapalhar os sonhos. Combate
e vence. Quando não vence pela força, moedas de ouro
resolvem a situação – ah, a corrupção, não é de hoje que
nos persegue.

Os inimigos principais são os mouros, aboletados na maior


parte do território português. Mas o primo Afonso VII e
Fernando II, ambos de Castela, também levam umas
cacetadas. Este último, prenderá Afonso Henriques em
Badajoz e se espantará com a riqueza do rei português. De
resgate, Afonso Henriques pagará quase duas toneladas e
meia de ouro. Na maior facilidade e sob os delirantes
aplausos dos conterrâneos que não queriam perdê-lo de
jeito nenhum.

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Para alcançar tal prestígio, Afonso Henriques sua. Passa a


vida combatendo e costurando acordos políticos. O
primeiro, com a Igreja Católica, pedra angular do qualquer
poder durante a baixa Idade Média. Quem não recebe a
benção episcopal que trate de procurar novo emprego. Logo
após a vitória de São Mamede, Afonso Henriques
estabelece suas relações com a Igreja: cede em tudo. Sabe
onde pisa, os clérigos têm força demais para serem
contrariados.
O infante custeia a
construção da catedral de Em troca de apoio amplo, geral e irrestrito, o arcebispo de
Braga. Entretanto, o que Braga recebe a garantia de seus privilégios: direito de
está a acontecer no resto do cunhar moedas e autoridade absoluta sobre a cidade. Não
mundo? Consulta a Tábua satisfeito, o infante custeia a construção da catedral de
Cronológica. Braga, abarrota os piedosos cofres, reconhece a autoridade
divina sobre a sua e prestigia os eventos da fé. Espanto: os
arcebispos de Braga cumprem sua parte. Durante os quase
60 anos de reinado, não abandonam Afonso Henriques.
Uma relação perfeita, se casamentos transcorressem assim,
advogados de família morreriam de fome.

A raia miúda conventual colabora da melhor maneira


possível. Em textos da época, monges do Mosteiro de Santa
Cruz, em Coimbra, não economizam elogios a Afonso
Henriques: “prudente, sábio, inteligente belo, gigante, leão
rugidor” – quase uma comissão de frente. Depois da batalha
de Ourique, então, os frades passam a delirar. Na opinião
deles, Afonso Henriques é o “eleito de Deus para provar a
autonomia de Portugal e dos portugueses”.

Antes da Batalha de Ourique, um divisor de águas na vida


de Afonso Henriques e na História lusitana, o infante
contorna outros problemas. O primeiro, mostra ao clã
castelhano que a conversa mudaria.

“Chegado tinha o prazo prometido,


Em que o rei castelhano já aguardava
Que o príncipe, a seu mando sometido,
Lhe desse a obediência que
esperava...”
(Camões, Os Lusíadas, canto terceiro)

Em 1135, sepultadas as controvérsias sobre a sucessão


de Afonso VI, o filho de dona Urraca sobe ao trono com

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o título de Afonso VII. A cerimônia na catedral de Leão


é apoteótica, o novo rei exibe luxo excessivo. Da
família, só Afonso Henriques não comparece. A
intenção parece clara: mostrar, de uma vez por todas,
que o Condado Portucalense não presta vassalagem ao
soberano de Leão e Castela e que Afonso Henriques
considera-se tão rei quanto o primo recém-coroado.

Afonso VII retalia a desfeita e os dois trocam sopapos.


Em 1137, porém, assinam a Paz de Tui, onde Afonso
Henriques promete a prestar a Afonso VII “fidelidade,
segurança e auxílio contra os inimigos”. Não existem
documentos claros sobre este período mas,
provavelmente, nosso infante levou uma corrida. Não
corresponde à personalidade dele assinar documentos
humilhantes. A sorte é que desrespeita o compromisso –
ou não seria Afonso Henriques. Em 1143, o papa
Inocêncio II precisa enviar um cardeal para apaziguar os
primos. Porém, antes, acontece Ourique. Milagre, juram
alguns. Tramóia de Afonso Henriques, aponta a lógica.
Afinal, convenhamos, Jesus Cristo não flana por aí,
batendo papo com infantes, na maior naturalidade.
“...Cinco escudos azuis esclarecidos,
em sinal destes cinco reis vencidos...”
(Camões, Os lusíadas, canto terceiro)

Tudo sobre Ourique são conjeturas. Mas a história é tão


importante que marca o imaginário português,
permanece no brasão do país - cinco escudos, cinco
quinas, cada qual com cinco bolas representando os
cinco reis mouros degolados na batalha – e, finalmente,
transforma Afonso Henriques em rei de fato e de direito.
Até hoje, historiadores portugueses discutem o episódio.

Alexandre Herculano encarrega-se de tornar a batalha


ainda mais célebre ao afirmar que “Ourique não passa de
uma lenda”. Deus nos acuda, Portugal vem abaixo.
Acusam-no de herege – é bom lembrar que último
herege lusitano tinha ido parar na fogueira apenas um
século antes, tempo historicamente insignificante - de
anti-clerical, de ateu, de agnóstico, de... Bem, deixa para
lá. Se gritam algo pior, a memória não registra.

Historiadores contemporâneos, entre eles José Hermano


Saraiva, tendem a colocar Ourique no devido lugar. De
concreto, sabe-se que ocorre uma batalha no dia 25 de

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julho de 1139, que o exército mouro é numericamente


superior e que a vitória cabe a Afonso Henriques.
Desconfia-se, também, que Afonso VII, naquela altura
sitiando Aurélia, cidade moura de enorme importância
estratégica, ajuda a meter o primo na enrascada. Ao
receber a notícia que o infante pratica uma razzia – tipo
de combate usado pelos portugueses, que gostam de se
infiltrar em território inimigo, surpreendê-los, destruí-los
e fugir correndo –, Afonso VII mexe seus pauzinhos,
desviando o exército islâmico que marchava em socorro
à Aurélia, para destruir o infante. Pode ser, a
participação de Afonso VII não passa de mais uma
D. Afonso Henriques e a hipótese.
batalha de Ourique.
Entretanto, o que está a Nem o local da batalha é preciso. A cidade de Ourique
acontecer no resto do mundo? fica tão ao sul de Lisboa, tão no interior dos territórios
Consulta a Tábua mouros, que parece impossível o infante ter se arriscado
Cronológica. tanto. No entanto, há registros de outras razzias ousadas.
Por outro lado, no início da Idade Média, chamava-se de
Ourique o Baixo-Alentejo. Lenda e História não
decifram estes mistérios.

A versão popular da batalha de Ourique conta que


Afonso Henriques combate imenso exército islâmico,
mata cinco reis mouros e coloca o resto da multidão para
correr. Tudo em um dia. Especial favor de Cristo Nosso
Senhor que, na véspera, aparece ao infante com quem
conversa amigavelmente. Apenas Afonso Henriques vê
Cristo - que, aliás, surge escoltado de anjos – e apenas
Afonso Henriques ouve-o garantir a próxima e
espetacular vitória portuguesa.

O moral da soldadesca alcança as nuvens quando eles


sabem quem lhes fizera uma visitinha. Além do mais, 25
de julho é dedicado a Santiago, o mata-mouros, santo
que jamais abandona cristãos em perigo. Especialista em
degolas, Santiago trabalha com eficiência invejável –
aparentemente, é o primeiro ser do planeta a conhecer o
lugar exato das carótidas, não perde uma. Hoje, parece,
aposentou-se. Como se vê, tudo colabora para o sucesso
do infante.

Batalha vencida, povo em delírio, igreja desvanecida. O


infante passa a se assinar “rei dos portugueses”. Neste
momento, define-se a identidade lusa. Afinal, Ourique
estabelece o importante diferencial: em que outro lugar
o rei conversa, ao vivo e em cores, com as hostes
celestiais?

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Em 1143, quando o Cardeal Guido de Vico, emissário


do papa, reúne o infante e Afonso VII em Zamora,
território de Leão, para tentar convencê-los que a
animosidade entre ambos favorece aos infiéis, Afonso
Henriques joga outra cartada genial. Alegando o milagre
de Ourique, escreve a Inocêncio II, reclamando para si e
seus descendentes, o status de “censual”. Ou seja,
dependente apenas de Roma. Dentro de seu território
manda ele e só ele – estamos conversados.

O Vaticano custa a responder. Na verdade, exatos 36


anos. E só responde depois que Afonso Henriques
acelera o processo com uma esmolinha de mil moedas
de ouro. Quando, em 1179, a Igreja de Roma,
finalmente, reconhece a realeza de Afonso Henriques, o
reconhecimento já não tem importância. A
independência se consumara, Portugal afirmara sua
soberania e o infante encerrava a vida como rei de
primeira grandeza.

Em Zamora, do encontro entre os primos e o cardeal,


Afonso Henriques colhe um lucro imediato. Afonso VII
tira o cavalinho da chuva e entende que o infante
português jamais lhe prestará vassalagem. Por conta
própria, começa a tratá-lo de igual para igual.

Engana-se quem pensa que a vida de Afonso Henriques


resume-se a trançar fofocas políticas, fazendo e
desfazendo aliados. O homem parece uma fera. Combate
ao lado dos soldados, comportando-se como igual, sem
frescuras de hierarquia. Sua tropa mais que o respeita:
venera-o . Obedece qualquer ordem.

“... sangue seco nas roupas, olhar duro,


na roupa o crime escrito...”
(Carlos Drummond de Andrade, Os assassinos)

Com a desculpa de empurrar infiéis de volta aos locais


de origem, Afonso Henriques amplia o território
português: Lisboa, Santarém, Almada, Óbidos, Palmela,
Sesimbra. Combate após combate, destruindo mouros
como quem destrói ratos, Afonso Henriques constrói seu
reino. Na reconquista, a política é de terra arrasada:
matar quem se movia, queimar o resto. Quase um
milênio antes de os americanos levarem uma corrida dos
subnutridos guerrilheiros vietcongs, Afonso Henriques

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adota táticas de guerrilha. Comandando um exército


pequeno, ele entende que sua vantagem mora no
elemento surpresa. Os generais da época pedem os sais
com tamanha ousadia - como se, para morrer, fosse
realmente necessário seguir um figurino.

Nosso rei apronta novidades. Quando prevê combates


longos, contrata mercenários. Geralmente cruzados, a
caminho da Terra Santa, que aproveitam a escala em
Portugal para degolar islâmicos e recolher o produto do
saque – promessa do rei. O cerco de Lisboa, em 1147,
segue este modelito. Entre portugueses e cruzados
ávidos por lucro fácil, Afonso Henriques reúne centenas
de milhares de homens e cerca de 150 navios.

A reconquista de Lisboa é um triste e belo episódio da


História portuguesa. Afonso Henriques exagera na
violência. Redime-se, mais tarde, com a Carta de
segurança de 1170 que proibirá cristãos e judeus de
maltratar os mouros da região de Lisboa.
Definitivamente, El Rei aprecia grandes e inesperados
gestos.

Sorrateiro, costuma agir por baixo dos panos, pré-estréia


do jeito luso-brasileiro de ser. O bandoleiro Geraldo
Sem Pavor, que saracoteia desenvolto em terras de
Castela, provavelmente trabalha para Afonso Henriques.
Se o infante não pode invadir propriedade alheia, um
preposto oficioso pode. Não há como provar. Mas os
cavaleiros de Geraldo Sem Pavor pertencem ao
Conselho de Coimbra, é difícil imaginar tais cidadãos
combatendo sem aprovação real.

O infante que pretende ser rei, vira um mito. É


impossível separar verdade e lenda na biografia de
Afonso Henriques. Ele antecede seu tempo, revela-se
um gênio de extraordinária visão política e indiscutível
coragem moral. Dele, restam poucos registros escritos
pelos monges de Santa Cruz - até porque, além dos
monges, ninguém mais sabe escrever, nem Afonso
Henriques.

“...Sapatos bordados a ouro,


Esmeraldas e rubis,
Ametistas para os dedos, vestidos de diamantes,
Escravas para servi-la...”
(Jorge Amado, Alegre Menina)

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Os relatos da época – descontados os elogios de praxe -


delineiam um perfil justo, generoso e irreverente.
Retratam o caráter corajoso, sujeito a crises de cólera,
capaz de atos de violência e de reconhecer seus erros.
Elogiam a frugalidade à mesa e ressaltam a tendência
conquistadora. Não apenas de poder e terras. De
mulheres, também. Ou principalmente.

Casado com a discreta Mafalda de Sabóia - com quem


tem sete filhos, entre eles, o herdeiro Sancho –, Afonso
Henriques abençoa quatro bastardos. Um documento de
1184, descortina o inesperado pai carinhoso. Quando
uma de suas filhas legítimas casa com o conde de
Flandres, Afonso Henriques não titubeia. Para alegrar a
noiva, enche vários navios com o que existe de mais
fino. As naus saem do porto de Lisboa abarrotadas de
vestidos bordado a ouro, jóias preciosas, sedas, mais
ouro, mais jóias, tudo que pudesse alegrar a menina
alegre, filha de pai poderoso.

“Que destino é o meu senão o de assistir


o meu destino...”
(Vinicius de Moraes, A vida vivida)
O testamento de Afonso Henriques, primeiro rei do
primeiro país europeu a adquirir consciência de
nacionalidade, revela que, até na morte, ele se comporta
como estadista. Sua imensa fortuna, amealhada em mais
de meio século de guerras e saques, confunde-se com o
próprio tesouro português. O rei a destina ao
fortalecimento da nação. Por ordem dele, centenas de
milhares de maravedis são entregues à defesa - El Rei
pressente que os mouros preparam um contra-ataque.
Outra centena de milhares constróem hospitais e
sustentam ordens religiosas e militares. Os mais pobres
recebem seu quinhão. Erguem-se igrejas e catedrais.
Conventos acolhem doações e sustentam-se anos.

Ao herdeiro, Sancho I, Afonso Henriques deixa a única


recomendação geopolítica: a construção de uma ponte
entre o norte e o sul do país para não se perder a
unificação que ele custara fazer e manter. Pena que não
existam registros se Sancho obedeceu, ou não, às ordens
paternas.

Afonso Henriques, o pai da pátria portuguesa, morre no

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dia 6 de dezembro de 1185, em Coimbra, mesma cidade


onde nasceu. Seu corpo é enterrado no Mosteiro de
Santa Cruz.

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