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CIENCIA E POLITICA: DUAS VOCACOES Max Weber A obra de Max Weber 6, ao lado das de Marx, Comte « Durkheim, um dos fundamentos da metodologia da Sociologia contempovinea. Dai o especial interesse que este livro teré para os leitores desejosos de informar-se acerca do pensamento sociolé: gico moderno, Pela leitura dos dois ensaios aqui reunidos, pode- rio eles iniciar-se no conhecimento da contribuigao metodolégica tweberiana, ao mesmo tempo que apreciar brilbantes andlises subs- tantivas daquilo que, no entender dos seus exegetas mais auto- ritados, € 0 niicleo des preocupagdes de Weber: a racionalidade. Nesses dois ensaios, o grande socidlogo alemao estuda a mancira pela qual a pritica cientifica contribui para o desenvolvimento da raciondlidade bumana e analisa com percuciéncia as con- digdes de funcionamento do Estado moderno, focalizando assim 4 oposigao bésica entre a “‘ética de condigéo” do cientista e a “‘Gtica de responsabilidade” do politica, dois fuleros polarizadores das opgées bumanas. CIENCIA POLITICA duas vocacdes MAX WEBER CIENCIA E POLITICA Duas Vocagdes Preficio de ‘Manoa T. Berane (Professor-Adjunto de Sociologia da Escola de Administragio de Empresas de S. Paulo, da Fundagio Getdlio Vargas) Tradustio de Leownpas Hucenneno e Octany Su.vetsa pa Mora Os dois textos incluidos neste volumne inttulam-se, no original alemlo, Wussenschaft Als Berufe PolitikAls Beruf. Copyright © 1967 ¢ 1968 Dunkeré Hunblot, Berlim, ‘Todos 0s direitos reservados. Neohumna parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de quelquer forma ou por qualquer meio, eletrénico ou mectnica, inclusive fotocdpias, gravagdes ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem ppermissao por eserito, exceto nos casos de trechos curtos citedos em resenhas eriticas ou artigos denevistas, (© primeira nimero a esqurda inden aed, ou recip, desta obs, primeira deze ‘ieit index o uno em que esa eli, ou roeigto fo publiada Edigao Ano 14-15-16-17-18-19-20 07-08-09-10-11-12-13 INDICE Norfcra Sonne Max WEBER A Cifcta Como Vocacko ‘A Poxitica Como Vocagio 17 55 t NOTICIA SOBRE MAX WEBER Max Weber nasceu em Erfurt, Turingia, Alemanha, em 21 de abril de 1864. Seu pai, Max Weber Sr., cra advogado ¢ po- litico; sua mie, Helene Fallenstein Weber, era mulher culta ¢ liberal que manifestava profundos tracos pietistas de 48 pro- testante. O ambiente erudito e intelectual do lar contribuin decisi- vamente para a precocidade do joven: Weber, Basta dizer que aos 13 anos de idade jé escrevia ele ensaios bistbricos penetrantes. Weber terminou os estudos pré-universitarios na primave- ra de 1882 ¢ foi para Heidelberg, onde se matriculou no curso de Direito, Estudou também diversas outras matérias, como His- téria, Economia e Filosofia, que, em Heidelberg, eram ensina- das por entinentes professores. Depois de trés semestres 14, Weber mudow-se para Estras- burgo a fim de servir o exército por um ano. Quando dew baixa, retomou seus estudos universitérios em Berlin ¢ Goettin- igen onde, em 1886, submeten-se a0 primeiro exame de Direito, Escreven ent 1889 sua tese de doutoramento sobre a histbria das companhias comerciais da Idade Média; para isso, teve de con- sultar centenas de documentos espanbéis e italianos, 0 que Ibe ‘exigin o aprendizado desses idiomas, No ano seguinte, estabele- ceu-se como advogado em Berlim; escreveu, por essa época, um tratado intitulado Histéria das Instituigges Agrarias; 0 modesto Htulo encobre, na verdade, uma anilise sociolégica e econdmi- ca do Inpério Romano. Em 1893, Weber casow-se com Marianne Schnitger, sua pa- rente longingua. Depois de casado, passou a levar uma vida de académico bem-sucedido em Berlim. No ontono de 1894 acei tou a cadeira de Economia da Universidade de Friburgo e, dois 7 anos mais tarde, passava a substituir 0 eminente Knies em Hei- delberg. Em 1898, Weber apresentou sintomas de esgotamento ner- voso e de neurose; até o fim de sua vida, iria sofrer depresses agudas intermitentes, entremeadas de periodos de trabalho in- telectual extraordinariamente intenso. A doenca o manteve afas- tado das atividades académicas durante mais de trés anos; resta- belecido, volton para Heidelberg e reassumiu parcialmente as atividades docentes. Seu estado de saide néo, lbe permitia, en- tretanto que se dedicasse inteiramente ao magistério, Em decor- réncia disso, solicitou afastamento das atividades didéticas e pro- mosio para o cargo de professor titular, 0 que lhe foi concedi- do pela Universidade, Apesar das crises nervosas, Weber, juntamente com Som- bart, assumin em 1903 a diregao do Archiv fiir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, gue se transformou em uma das mais impor- tantes revistas de ciéncias sociais da Alemanba, até seu fecha- mento pelos nazistas, No ano seguinte, a produtividade intelectual de Weber re- cebeu novo impulso; ele publicou enti diversos ensaios além da primeira parte de A ¥itica Protestante e o Espirito do Capi- mo. Em meados de 1904, Weber viajou para os Estados Uni- dos, que causaram profunda impressio sobre seu esplrito anali- tico. O foco central do seu interesse na América foi o papel da burocracia na democracia. De volta @ Alemanba, retomou suas atividades de escritor em Heidelberg, concluindo entéo A Etica Protestante e 0 Espirito do Capitalismo, No pertodo que medeia entre 1906 e 1910, Weber parti- cipou intensamente da vida intelectual de Heidelberg, mantendo longas discusses com eminentes académicos, como seu irmio Al- fred, Otto Klebs, Eberhard Gotheim, Wilhelm Windelband, Georg Jellinek, Ernst Troeltsch, Karl Neumann, Emil Lask, Friedrich Gundolf, Arthur Salz. Nas férias, muitos amigos vi- nham a Heidelberg visitélo; entre eles, Robert Michels, Werner Sombart, o fildsofo Paul Hensel, Hugo Miinsterberg, Ferdinand Toennies, Karl Vossler , sobretudo, Georg Simmel. Entre os jovens niversitérios que procuravam o estimulo de Weber con- tavam-se Paul Honigsheira, Karl Lowenstein e Georg Lukacs. & Apés @ Primeira Guerra Mundial, na qual participou ativa- mente, Weber mudowse para Viena, Durante o verdo de 1918, ‘ministrou seu primeiro curso, depois de dezenove anos de afas- famento da cétedra, Nesse curso, apresentou sua sociologia das religides e da politica sob o titulo de Uma Critica Positive da ‘Concepsio Materialista da Histéria. Em 1919, tendo abandonado 0 monarquismo pelo republi- canismo, Weber substituiu Brentano na Universidade de Muni- que. Suas tltinas aulas, feitas a pedidos de alunos, foram pu. Slicadas sob 0 titulo Histéria Econdmica Geral. Eve meados de 1920, adoeceu de pneumonia. Morreu em junho de 1920, dei- xando inacabado um livro de revisio e sintese de toda a sua obra, intitulado Wirtschaft und Gesellschaft, que & de importincia jandamental para a compreensio de seu pensamento. Os numerosos trabalbos de Weber foram, sem exagero, fun- damentais para o desenvolvimento da sociologia contempordnea. ‘Pode-se dizer que sua obra, juntamente com a de Marx, de Comte e de Durkheim, é um dos fundamentos da metodolo- gia da sociologia moderna, Nos dois ensaios apresentados neste volume, o leitor se poderd familiarizar nao 36 com ama amostra da contribuigzo me- todoldgica de Weber como também com uma de suas mais bri- Uhantes. andlises substantivas. Tanto a vida como a obra de Weber tém sido objeto de amplas andlises, realizadas por sociélogos fanrosos como Ray- mond Aron, Hans Gerth, C. Wrigth Mills e Reinhard Bendix. Este prefdcio nao pretende, portanto, fornecer subsidios originais ‘para a compreensao do pensamento weberiano. O leitor que desejar aprofundar-se no assunto deveré reportar-se aos traba- Thos interpretativos escritos pelos socidlogos acima mencionados, além, naturalmente, de compulsar as obras do proprio Weber. E certo, entretanto, que a compreensio dos ensaios apresentados neste volume poderd ser facilitada por meio de algumas suges- tes interpretativas, que 0 leitor euidard de desenvolver na me- dida em que se interesse pela obra de Weber. Alvin Gouldner, em penetrante ensaio, sugere que tanto as virtudes como os defeitos do pensamento de Weber podem ser explicados a partir das relagdes estruturais que cle mante- ve durante sua vida. Mais especificamente, 0 pensamento de Weber teria sido influenciado principalmente pelas relacoes qie manteve com seus parentes (especialmente com a mie), pelo clima universitirio existente na Alemanba, pelas viagens que rea lizou (especialmente aos Estados Unidos) e pelo clima politico da Alemanba, Esse conjunto de influéncias acabou por produsir, em We- ber, aguilo que muitos consideram a preocupacao central de sua obra: a racionalidade. A impressio que se tem é a de que seus estudos sobre religides, a andlise do surgimento do capitalismo, os estudos sobre poder e burocracia, os escritos metodoldgicos ¢ sua sociologia do Direito sto tentativas de resposta a pergun- tas tais como: quais as condigbes necessérias para o aparecimen- to da racionalidede?; qual a natureza da racionalidade?; quais as consegiiéncias sécio-econémicas da racionalidade? Se tal im- pressio for verdadeira, os dois ensaios que sao apresentados em seguida constituem verdadeiros marcos do pensamento de Weber pois ambos se referem especificamente 2 racionalidade. Para Weber, a racionalidade diz respeito a uma equagio di- namica entre meios e fins. Nesse particular, ele acreditava (e essa crenca permeou o pensamento dos sociélogos funcionalistas contempordneos, tais como Parsons, Williams, Homans, etc.) que toda acao humana 6 realizada visando a determinadas metas — concepedes afetivas do desejivel — ou valores. Tais valo- res sto fenémenos culturais ¢ possuem bases extracientificas. Em outras palavras, as definicoes do que & bom e do que'é mau, do que é bonito e do que feio, do que é agradével e do que é desagradével constituem proposigées extraempiricas, Nio se pode provar empiricamente que uma coisa seja bela ou feia, etc. Semelbantes proposigies constituem, nas palavras de Hempel, “julgamentos categoricos de valor”. Para atingir tais metas ou obter tais valores, 0 bomen: pre- cisa agir. A ago bumana pode, entretanto, ser mais ou menos eficaz para a consecucao de valores. A eficécia do comportanten- to € relativa porque (a) existem sempre diferentes formas de acho, isto &, a acto humana nao é determinada ow limitada por 10 em apenas um curso, mas bd sempre alternativas do curso de agio ao dispor do bomem e (b) 0 homem possui uma série de va lores que precisam ser selecionados, bierarquizados ¢ visados. Por outro lado, a cada momento e espaco, 0 bomem nio con- segue fazer duas coisas ao mesmo terapo.. Ere linguagert so- fisticada, pode-se dizer que o Princkpio da Complementarida- de descoberto por Bobr (segundo o qual o eléctron pode ser considerado como onda e como particula, dependendo do con- texto) aplicase também ao comportamento bumiano. Como afir- ma um fisico, Von Pauli: “Posso escolber a observagao de um experimento A e arruiner B ou escolher a observacao de B e ar- ruinar A. Nao posso, entretanto, deixar de escolber a ruina de um deles”, Ene vista dessa situagio, 0 homem esta constante- mente enfrentando e sendo obrigado a realizar opedes. O pro- blema da opcio, como sugere Raymond Aron, confere & obra de Weber um sentido existencialista. Que este problema tem in- tenso significado € coisa que se verifica pela oposigio entre “Gtica de condicio” (imperativo categdrico para o cientista) @ 4 “ética de responsabilidad (moral de Maguiavel — neces- sdria para a politica). Os critérios de opsio da agao humana variam. Segunda Weber, hi quatro tipos de orientacao para a agio: (a) trad nal, baseada em habitos de longa pritica; (b) affektueel, basea- da nas afeigBes e nos estados sensorios do agente (c) wertra- tional, baseada em crenca no valor absoluto de um comporta- mento ético, estético, religioso, ou outra forma, exclusivamente or sew valor independentemente de qualquer experanca quar 10 ao sucesso externo; e (d) zwectational, baseada na expecta- tiva de comportamento e objetos da situacao externa e de outros individuos usando tais expectativas como “condicées” ou “meios” para a consecucio bem-sucedida dos fins racionalmente escolbi- dos pelo préprio agente. F Iégico que Weber sabia que cada uma dessas orientagoes é“racionat” quando se leva em conta a equagao meios-fins, Mas 0 seu interesse estava voltado para as condigbes necessérias, para as manifestagdes e consegiiéncias da orientacto zwectational. En: A Politica Como Vocagio, tal interesse se volta para as condigies necessérias ao funcionamento do Estado moderno, para a burocracia como organizagéo social baseada numa orien- it tapio rwrecrational de agées e nas consegiiéncias da burocratiza- yo do Estado moderno para a sociedade em que se encontra in- serido. Para Weber, diferentes tipos de sociedades apresentant diferentes formas de lideranga politica. Entretanto, a manuten- sao dessas liderancas depende de organizagdes administrativas que realizam a “expropriagio” politica, Sao tais organizagoes que irao, afinal de contas, determinar a “racionalidade” do sis- tema politico; sto elas que irdo exercer, com maior ou menor sucesso, 0 monopolio do poder de uma sociedade. A “racionali- dade” de semethantes organizagies depende, em primeiro lugar, de uma distingao entre "viver para a polltica’”'e "viver da po- tia". Ainda que Weber nio 0 firme categoricamente, essa distingio ajuda a compreender as motivacées da agio politica ¢, Por sua vez, gera o problema da corrupgio, na organizacao poli- tica. Em segundo lugar, a racionalidede do sistema politico au- menta na medida em que ocorrem uma diferenciagio de status- -papéis ¢ una especializagio funcional dentro das organizagoes administrativas. A brithante e erudita anélise de Weber sugere que a diferenciacio ocorre quando bé uma especializacto entre 4 administragio, que deve ser exercida sine ita et studio, ¢ a li- deranca politica, cuja ago 6, por natureza, fundamentada na iva et studium. Essa especializacao, por sua vez, tende a mudar os critérios de alocagio de status-papéis na organizacao politica. Os critérios deixam de ser plutocréticos e passam a basear-se no de- sempenbo e no conhecimento especializado. Néo hé portanto, nessa nova organizacio, lugar para o dilettante, pois 0 seu “ste. cesso” depende, cada vex mais, da agio especializada, Em A Ciéncia Como Vocagio, o interesse de Weber pela orientagdo 2wecrational se manifesta no exame da propria pré- tica da racionalidade, Segundo ele, a Ciéncia ou a pritica da Ciéncia contribui para o desenvolvimento da tecnologia, que con- trola a vida Contribui, também, para o desenvolvimenta de métodos de pensamento, para a construcéo de instrumentos e adestramento do pensar. Finalmente, a Ciéncia contribui para o “ganbo da clareza’”. O que Weber quer dizer com isso? Quer dizer que a Ciéncia indica os meios necessdrios para atingit determinadas metas. E que tais metas devers, portanto, ser cla- ramente formuladas, a fim de se identificarem ox meios de atingi- -las, Por via desse processo, entretanto, os homens ficam saben- do 0 que querer ¢ 0 que devem fazer para obter 0 que querem. 12 E isso possibilita a opcio nto 6 de meios mas de metas de com. portamento. E eis, segundo Weber, « grande contribuigio da Ciéncia. Em tiltima anilise, portanto, a contribuicio da prética cientifica é, para o pensador alemio, o desenvolvimento da ra- cionalidade. ; Tense a impressio de que 0 problema da racionalidede as- sume, por vezes, em Weber, wm caréter formalise, que se tre iduz na adequacao entre meios e fins e nio no exame critica dos fins. As experiéncias de Hiroxima e Nagasiqui, a “guerra fria doutras manifestacoes “racionalistas” do pds-guerra sugerizam dios cientistas contempordneos os perigos existentes numa atitu. de formalista com relagio & “racionalidade”. Weber, entretanto, era um bomem de seu tempo e s6 uma andlise da esirutura emt que estava inserido nos pode ajudar a compreender sua preocupagao com a racionalidade ¢ a mancira como a define. Ele teve a grande virtude de perceber que, na Alemanha de Weimar, as Universidades estavam sendo impregnadas por ideo- logias estranhas 2 educagto. Mais precisamente, que o fascismo da nascente politica nacional socialista estava comecando a amea- {gar o espirito critico e a liberdade de pensamento. Os cargos fcadémicos eram, muitas veres, preenchidos por individuos que iutilizavam as cétedras para discursos politicos demagégicos de inspiracao fascista, A educagio racionalista e juridica de Weber contribuiu para que ele pudesse perceber o perigo que tal prética ‘trazia nao 56 para a educagao como para o préprio futuro da ‘Alemanha, Dai a sua preocupagio com a racionalidade e com a objetividade. ; ‘Ainda, entretanto, que se descubram as causas estrutarais do pensamento weberiano e suas limitagdes epistemoldgicas, sua contribuigéo @ Sociologia permanece central nao sb por suas ani ses comparativas, por seu método da compreensio (verstchen), ou pela descoberta das conexdes entre orientacdes valorativas ¢ omportamentos estruturai. O pensamento de Weber persists também porque muitas das caracteristicas da estrutura social da Republica de Weimar basicantente se repetem em outras socie- dades, em outros tempos. Manoet T. Bertincx, Ph. D. 3 A CIENCIA COMO VOCACAO PEDIRAM-ME 05 SENHORES que Ihes falasse da ciéncia como wocagio, Ora, nds economistas temos o habito pedante, a que me agradaria permanecer fiel, de partir sempre do exame das condigdes externas do problema. No caso presente, parto da seguinte indagacio; quais sio, no sentido material do termo, as condigées de que se rodeia a'ciéncia como vocagio? Hoje em dia, essa pergunta equivale, praticamente ¢ em csséncia, a esta outta: quais sdo as perspectivas de slguém que, tendo coneluido seus estudos supetiores, decida dedicar-se profissionalmente & cieneia, no ambito da vida universitéria? Para compreender a peculiatidade que, sob esse ponto de vista, apresenta a situacio alema, convém recotrer a0 processo da comparagéo € conhecet as condigées que vigem no estrangeiro. Quanto a esse aspecto, sio os Estados Unidos da América que apresentam. os contrastes mais violentos com a Alemanhe, razo por que ditigiremos nos- sa atencio para aquele pais. Sabemos todos que, na Alemanha, a catreisa do jovem que se consagta a ciéncia tem, normalmente, como primeito passa, a posigao de Privatdozent, Apés longo trato com especialistas da matéria escolhida, e apés haverhes obtido o consentimento, 0 candidato se habilita ao.ensino superior redigindo uma tese submetendo-se a um exame que €, as mais das vezes, formal, pe- rante uma comissio integrada por docentes de sua Universidade. Ser-lhe-&, entio, permitido ministrar cursos a propésito de as- suntos por le préprio selecionados dentro do quadro de sua venia legendi, sem receber qualquer remuneragio, a n%0 set_as taxas pagas pelos estudantes, Nos Estados Unidos da América, inicia-se a carreira académica de maneita inteiramente diversa: parte-se do desempenho da funcio de “assistente”. Trata-se de modo de proceder muito préximo, por exemplo, ao dos grandes 7 Institutos alemies das Faculdades de Ciéncias e de Medicina, ‘onde « habilitaco formal & posigio de Privatdozent s6 € tenta da por pequena fracio de assistentes e, com freqiiéncia, em fase avangada das respectivas catteiras, A’ diferenga que nosso sis- tema apresenta em relagdo ao americano significa que, na Ale- manhs, a carteita de um homem de ciéncia se apéia em alicer- ces plutocriticos. Para um jovem cientista sem fortuna pessoal é com efeito, extremamente atriscado enfrentar os azares da catreira universitéria. Deve ele ter condigdes para subsistir com seus préprios recursos, 0 menos durante certo nimero de anos, sem ter, de maneira alguma, a certeza de que um dia Ihe serd aberta a possibilidade de ocupar uma posi¢do que lhe dard meios de viver decentemente. Nos Estados Unidos da América reina, em oposicéo 20 nosso, 0 sistema butoctdtico. Desde que inicia 2 carreira, o jovern cientista recebe um pagamento, Tratase de salésio modesto que, freqiientemente, € apenas igual a0 de um trabalhador semi-especializado. No obstante, o jovem parte de uma situaglo aparentemente estével, pois recebe ordenado fix. E de regra, entretanto, que se possa despedi-lo, tal como séo afastados os assistentes alemaes, quando nio correspondem is cexpectativas. E que expectativas so essas? Pura ¢ simples- mente que cle consiga “‘sala cheia”. Isso & algo que no afeta © Privatdozent, Uma vez admitido, ele no pode ser desalojado. Nap lhe permitem, por certo, quaisquer reivindicagdes, mas ele adquite o sentimento, humanamente compreensivel, de que, apés anos de trabalhos, tem o direito moral de esperar alguma consi- deragio, A situacdo adquiida é levada em conta — e isso é, com freqiiéncia, de grande importincia — no momento de even tual “habilitagio” de outros Privatdozenten.. Surge, a pattit daf, um problema: deve-se conceder a “‘habilitacio" a todo jovem cientista que haja dado provas de sua capacidade, ou deve-se tet em conta as “necessidades do ensino”, dando aos Dozenten jd qualificados 0 monopélio do lecionar?’ Essa indagagio faz sut- gir um dilema penoso, que s¢ liga a0 duplo aspecto da vocacéo universitéria ¢ que seré, dentro em pouco, objeto de considera. des. Na generalidade dos casos, as opinides se inclinam em fa- vor da segunda solucdo. Mas ela nfo faz senfo com que se acen- tuem certos perigos. Em verdade, a despeito de sua probidade pessoal, 0 professor titular da disciplina que se ache em causa se verd, apesar de tudo, inclinado a dar preferéncia a seus pré- 18 prios alunos. Se posso falar de minha atitude pessoal, adotei a diretriz seguinte: pedia ao estudante que havia elaborado sua tese sob minha orientagdo que se candidatasse © “habilitasse” perante outro professor, em outra universidade, Desse proced mento resultou que um de meus alunos, ¢ dos mais capazes, ndo foi aceito por colegas meus, porque nenhum destes acreditou no motivo que o levava a procurélos. Existe outta diferenga entre o sistema alemio © 0 ameri- cano. Na Alemanha, 0 Privatdozent dé, em geral, menos cursos do que desejaria, Tem ele, por certo, 0 direito de oferecer to- dos 0s cursos que estejam dentro de sua especialidade, Mas, agir assim, setia considerado indelicadeza grande para com os Dozenten mais antigos; em conseqiiéncia, os “grandes” cursos ficam reser- vados pata os professores ¢ os Dozenten devem limitar-se 40s cursos de importincia secundaria. Em tal sistema encontram os Dozenten a vantagem, talvez involuntétia, de, durante a juven- tude, dispor de lazeres que podem ser consagrados aos trabalhos cientificos. Nos Estados Unidos da América, a organizagio ¢ funda- mentalmente diversa, E precisamente durante os anos de juven- tude que o assistente se vé literalmente sobrecarregado de tra- balho, exatamente porque é remunerado. Num departamento de estudes germinicos, o professor titular dé cerca de trés horas de cutso sobre Goethe ¢ isso € tudo — enquanto que o jovem as- rente deve considerar-se feliz se, ao longo de suas doze horas de trabalho semanal, a par dos exercicios priticos de alemio, for avtotizado a dat algumas ligSes sobre escritores de métito maior que, digamos, Ubland. Instincias superiores elaboram 0 programa ¢ a ele o assistente se deve curvat, tal como ocozre, na Alemanha, com 0 assistente de um Instituto. Nos limos tempos, podemos observar claramente que, ‘em numerosos dominios da ciéncia, desenvolvimentos recentes do sistema universitério alem#o orientam-se de acordo com padrées, do sistema norte-americano. Os grandes institutos de ciéncia e de medicina se tzansformaram em empresas de “‘capitalismo esta- tal”, Jé nfo € possivel geri-las sem dispor de recursos financei- ros considerdveis, E nota-se 0 surgimento, como aliés em to- dos os lugares em que se implanta uma empresa capitalista, do fendmeno especifico do capitalismo, que é 0 de “privar 0 tra 19 balhador dos meios de produsio”. O trabalhador — o assisten- te — nio dispée de outros recursos que nfo 0s instrumentos de trabalho que o Estado coloca a seu alcance; conseqiiente- mente, ele depende do diretor do instituto tanto’ quanto o em- pregado de uma fébrica depende de sew patrio — pois o diretor de um instituto imagina, com inteira boa-fé, que aquele é sew Instituto: ditige-o a scu belprazer. Assim, a posigfo do assis- tente €, com freqiiéncia, nesses institutos, to precéria quanto a de qualquer outra existéncia “proletardide” ou quanto a dos assistentes das universidades norte-americanas. Tal como se dé com outros setores de nossa vida, a univer-" sidade alemi se americaniza, sob importantes aspectos. Estou convencido de que essa evolugio chegaré mesmo a atingir as disciplinas em que o trabalhador € proprietério pessoal de seus meios de trabalho (essencialmente, de sua biblioteca). No mo- mento, o trabalhador de minha especialidade continua a ser, em larga medida, seu proprio patrio, a semelhanga do artesio de outtora, no quadro de seu mister préprio, A evolugio se pro- cessa, contudo, a grandes passos. Nao se podem negar as incontestéveis vantagens técnicas dessa evolugio, que se manifestam em quaisquer empresas que tenham, ao mesmo tempo, caracteristicas burocréticas e capit listas, "“Todavia, 0 novo “espirito” & bem diferente da velha atmosfera histérica das universidades alemis. Hé um abismo, tanto visto de fora quanto visto de dentro, entre essa espécie de grande empresa universitéria capitalista e o professor titular ¢o- mum, de velho estilo. Isto se traduz até na maneita fatima de set. Nio quero, entretanto, descer a pormenores. A antiga o ginizagio univetsitéria tornou-se uma ficgio, tanto no que se refere 20 espirito, como no que diz respeito A estrutura. Hi, no obstante, um aspecto préprio da carreira universitétia que se manteve ¢ se vem manifestando de maneita ainda mais sens(vel: © papel do acaso. E a ele que o Privatdozent e, em patticulat, © assistente deverio atribuir o fato de, eventualmente, passa- rem a ocupar uma posicio de professor titular ou de diretor de um instituto, Claro esté que o atbitrério néo reina sozinho em tais dominios, mas apesar disso, exerce influéncia fora do comum, Nao me’consta existir, em todo o mundo, carreira em relagio & qual o seu papel seja mais importante. Estou & vonta- 20 de para falar do assunto, pois, pessoalmente, devo a um con- curso de circunstincias particularmente felizes o fato de havet sido convocado, ainda muito jovem, para ocupat uma posi¢éo de professor titular dentro de um campo de especialidade em que colegas de minha idade jd haviam produzido muito mais do que eu mesmo. Com base em tal experiéncia, creio possuir visio penetrante para compreender 0 imerecido’ fado de numerosos colegas para os quais a fortuna nfo sorria, ¢ ainda nio sotti, € que, devido aos processos de selecio, jamais puderam ocupar, a despeito do talento de que sio dotados, as posigdes que mere- ceriam. Se 0 acaso ¢ nao apenas o valor desempenha papel tio re levante, culpa nio cabe exclusivamente, nem principalmente, as fraquezas humanas que se manifestam, evidentemente, na sele- gio a que me refiro e em qualquer outta, Seria injusto imputar a deficiéncias pessoais que se manifestam no quadro de faculdades ou de ministérios responsabilidade por uma situagio que leva tio grande mimero de mediocridades a desempenharem fungdes importantes nas carreiras universitérias, A razio deve set bus- cada, antes, nas Jeis que regem a cooperacéo humana, especial- mente a cooperacéo entre organizagdes diversas, e, em nosso caso particular, a colaboracio entre as faculdades que ptopdem 0s candidatos ¢ o ministério que os nomeia. Podemos tecorrer a um patalelo com a eleicéo dos papas que, 20 longo de séculos mumerosos, nos vem fornecendo 0 mais importante exemplo concreto desse tipo de selegio. O cardeal que se indicava como “favorito” raramente vinha a ser eleito. Regta getal, elegiase © candidato mimero dois ou mimero trés. Ocorre fendmeno idéntico nas eleigGes presidenciais dos Estados Unidos da Amé- rica, $6 excepcionalmente 0 candidato mémero um ¢ mais proe- minente é “‘escolhido” pelas convengdes nacionais dos partidos: na maioria das vezes, escolhe-se 0 candidato mimero dois e, com freqiiéncia, 0 nimero tres. Os norteamericanos j4 chegaram mesmo a criar expresses técnicas e socioldgicas para caracterizar essas categorias de candidatos, Seria, é claro, interessante exa- minar, a partir de tais exemplos, as leis de uma selegio que se faz pot ato de vontade coletiva, mas esse no 0 nosso propé- sito de hoje. Essas mesmas leis se aplicam também as cleigbes nas assembléias universitérias. E devemos espantar-nos nfo com 05 erros que, nessas condigées, so freqiientemente come- 21 tidos, mes sim com o fato de que, guardadas todas as propor- goes, constata-se, apesar de tudo, que hé nimero igualmente con- siderdvel de nomeagoes justificadas. Sé em alguns paises em que 0 Parlamento tem iafluéncia no caso ou em nagdes em que os monarcas intervém pot motivos politicos (0 resultado € 0 mesmo em ambas as situacdes), tal como acontecia na Alemanha até poca recente e, de novo, em nossos dias, com os detentores do poder revolucionério, é que podemos estar certos de que os medioctes e 08 attivistas s40 05 tnicos a terem possibilidade de ser nomeados. Nenhum professor universitério gosta de relembrar as dis- cusses que se travaram quando de sua nomeacio, porque elas raramente sio agraddveis. Posso, entretanto, declarar que, nos umerosos casos que sfo de meu conhecimento, constatei, sem excegio, a existéncia de uma boa vontade preocupada com evi- tar que na decisio interviessem razSes outras que nfo as pura- mente objerivas. & preciso, por outro lado, compreender clatamente que as deficiéncias observadas na selesio que se opeta por vontade co- letiva no explicam, por si mesmas, 0 fato de que a decisio re- Jativa aos destinos universitétios é em grande porcio, deixada a0 “acaso”, “Todo jovem que actedite possuir a vocagio de cien- tista deve dar-se conta de que a tarefa que 0 espera reveste du- plo aspecto. Deve ele possuit nio apenas as qualificagdes do ientista, mas também as do professor. Ora, essas duas cai terfsticas nio sio absolutamente coincidentes, & possivel ser, a0 ‘mesmo tempo, eminente cientista e péssimo professor. Penso na atividade docente de homens tais como Helmholtz ou Ran- ke que, por certo, no sio excegées, Em verdade, as coisas se passam da seguinte maneira: as universidades alemas, parti- culatmente as pequenas, entregamse, entre si, 2 mais ridicula concorréncia para atrait estudantes. Os locadores de quartos para estudantes, primétios como camponeses, organizam festas em honra do milésimo aluno e apreciariam organizar marchas & Juz de tochas, para saudar o milésimo seguinte. A renda que advém da contribuigdo dos estudantes é, importa confessé-lo, condicionada pelo fato de outtos professores que “‘atraem grande niimero de alunos” sministearem cursos de disciplinas afins. Ainda que se faca abstragio de tal circunstancia, continuard a 22 set verdade que o mimero de estudantes matticulados. constitui tum critério tangivel de valor, enquanto que o mérito do cientis ta pertence a0 domfnio do imponderdvel. Dé-se freqiientemente (e é natural) que se utilize exatamente esse argumento para res- ponder aos inovadores audaciosos. Eis por que tudo quase sein- pre se subordina a obsessio da sala cheia ¢ dos frutos que daf decorrem. Quando de um Dozent se diz que é mau professor, {sso equivale, na meioria das vezes, a pronunciar uma sentenca de morte universitéria, embora seja ele 0 primeiro dos cientistas do mundo. Avalia-se, portanto, 0 bom € o mau professor .pela assiduidade com que os Senhores Estudantes se disponham a hon- rélo. Ora, 6 indiscutivel que os estudantes procuram um deter- minado professor por motivos que sio em grande parte — parte to grande que é dificil acreditarmos em sua extensio — alheios A ciéncia, motives que dizem respeito, por exemplo, ao tempera- mento ou A inflexdo da voz. Experiéncia pessoal j4 bastante am- pla ¢ reflexio isenta de qualquer fantasia condaziram-me a des- confiar fortemente dos cursos procurados por grande massa de estudantes, embora o fato pareca inevitdvel, A democracia deve set praticada onde convém. A educacao cientifica, tal como, por tradigao, deve ser ministrada nas universidades alemis consti- tuise numa tarefa de aristoctacis espiritual. 1 initil querer dissimulé-lo, Ora, € também verdade, por outro lado, que den- tre todas as tatefas pedagégicas, a mais diffcil € a que consiste em expot problemas cientificos de maneira tal que um espirito nao preparado, mas bem-dotado, possa compreendé-lo ¢ formar ‘uma opiniéo propria — o que, para nés, cottesponde ao tinico éxito decisivo. Ninguém o contestard, mas nio é, de maneira al- guma, o nimero de ouvintes que dard a solugdo do problema. ‘Aquela capacidade depende — para voltar a nosso tema — de um dom pessoal e de maneira alguma se confunde com os conhe- cimentos cientificos de que seja possuidora uma pessoa. Contra- riamente ao que se dé na Franga, a Alemanha nao tem uma cor porasio de imortais da ciéncia, mas sio as universidades que de- vem, por tradigio, responder as exigéncias da pesquisa ¢ do ensi- no. Sera mera coincidéncia o fato de essas duas aptidées se en- contrarem no mesmo homem, A vida universitéria est4, portanto, entregue a um acaso cego. Quando um jovem cientista nos procura para pedir con- selho, com vistas A sua habilitagdo, énos quase imposstvel as- 23 sumir a responsabilidade de Ihe aprovar o desfgnio, Se se trata de um judeu, a ele se diz com naturalidade: lasciate ogni sperar za, Impoe-se, porém, que-a todos os outros candidatos também se pergunte. “‘Vocd se acredita capaz de vet, sem desespeto em amargor, ano apés ano, passar & sua frente mediocridede apés mediocridade?” Claro esté que sempre se recebe a mesma resposta: “Por certo que sim! Vivo apenas para minha voca- io”. Nao obstante, eu, pelo menos, s6 conheci muito poucos candidatos que tenham suportado aquela situacéo sem grande prejuizo para suas vidas interiores. Eis al o que era necessério dizer acesca das condigies exte- riores da ocupagio de cientista. Creio que, em verdade, os senhores esperam que eu Ihes fale de outro assunto, ou seja, da vocagao cientifica propriamente dita, Em nossos dias e referida & organizagio cientifica, essa vo- cago € determinada, antes de tudo, pelo fato de que a ciéncia atingiu um estégio de especializacio que ela outrora no conhe- cia e no qual, ao que nos € dado julgar, se manterd para sempre. A afirmagio tem sentido no apenas em relacio as condigées externas do trabalho cientifico, mas também em relagéo as dis- posigées interiores do prdprio cientista, pois jamais um indivi duo poderd ter a certeza de alcancar qualquer coisa de verdadei- ramente valioso no dominio da ciéncia, sem possuir uma rigoto- sa especializacio. Todos os trabalhos que se estendem para 0 campo de especialidades vizinhas — é experiéneia que nés, eco- omistas, temos de tempos em tempos e que os sociélogos tém constante ¢ necessariamente — levam a marca de um resignado reconhecimento: podemos propor aos especialistas de discipli- nas afins perguntas ‘iteis, que eles nio se tetiam formuilado tao facilmente, se partissem de seu proprio ponto de vista, mas, em contrapartida, nosso trabalho pessoal petmanecerd inevits- velmente incompleto. $6 a especializacio estrita permitiré que © trabalhador cientifico experimente por uma vez, e certamen- te no mais que por uma vez, a satisfacio de dizer a si mesmo: desta vez, consegui algo que permaneceré, Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva ¢ importante € sempte obra de espe- ialista, Conseqiientemente, todo aquele que se julgne incapaz de, por assim dizer, usar antolhos ou de se apegat a idgia de que 0 destino de sua alma depende de ele formular determinada con- jetura e precisamente essa, a tal altura de tal manuscrito, far 24 melhor em permanecer alheio ao trabalho cientifico. Ele jamais sentiré o que se pode chamar a “experiéncia” viva da ciéncia. Sem essa embriaguez singular, de que zombam todos os que se mantém afastados da ciéncia, ‘sem essa paixio, sem essa certeza de que ‘‘milhares de anos se escoaram antes de voc ter acesso a vida e milhares se escoario em siléncio” se voc nao for ca- paz de formular aquela conjetura; sem isso, vocé nio possuird jamais a vocagio de cientista e melhor seté que se dedique outra atividade. Com efeito, para 0 homem, enquanto homem, nada tem valor a menos que ele possa fazé-lo com paixio, Outra coisa, entretanto, é igualmente certa: por mais inten- sa que seja essa paixio, por ‘mais sincera e mais profunda, ela nfo bastard, absolutamente, para assegurar que se alcance éxito. Em verdade, essa paixiio ndo passa de requisito da “inspiragio”, que € 0 tinico fator decisivo. Hoje em dia, acha-se largamente disseminada, nos meios da juventude, a idéia de que a ciéncia se teria transformado numa operacao de célculo, que se realizaria em laborat6rios e esctitérios de estatistica, ndo com toda “glma”, porém apenas com o auxilio do entendimento frio, 4 semelhanga do trabalho em uma fabrica. Ao que se deve desde Jogo responder que os que assim se manifestam nao tém, fre- qiientemente, nenhuma idéia clara acerca do que se passa numa fabrica ou num labotatério, Com efeito, tanto sum caso como no outro, € preciso que algo ocorra ao espirito do trabalhador —e precisamente a idéia exata — pois, de outra forma, ele nun- ca seré capaz de produzit algo que encetre valor. Essa inspira- gio nfo pode set forcada. Ela nada tem em comum com o célculo fri. Claro esté que, por si mesma, ela no passa tam- bém de um requisite. Neshum socidlogo pode, por exemplo, acteditar-se desobtigado de executar, mesmo em scus anos mais avangados ¢, talvez, duranté meses a fio, operagdes trivials. ‘Quando se quer atingir um resultado, nfo se pode impunemente, fazer com que 0 trabalho seja executado por meios mecanicos — ainda que esse resultado seja, freqtientes vezes, de significa- fo reduzida, Contudo, se nfo nas acudir ao espitito uma “dgia” precisa, que oriente a fotmulacio de hipéteses, e se, en- quanto nos entregamos 2 nossas conjeturas, nao nos corre uma “idéia’” relativa ao alcance dos resultados ‘patciais obtidos, no chegaremos nem mesmo a alcangar aquele mfnimo. Normelmen- te, a inspiragio s6 ocorte apés esforgo profundo. Nao hé divi 25 da de que nem sempre é assim. No campo das ciéncias, a intui- do do diletante pode ter significado tao grande quanto a do especialista ¢, por vezes, maior. Devemos, alids, muitas das hi- péteses mais frutiferas ¢ dos conhecimentos de maior aleance a diletantes, Estes nao se distinguem dos especialistas — con- forme 0 julzo de Helmholtz a respeito de Robert Mayer — se- nio por auséncia de seguranga no método de trabalho e, amiuda- damente, em conseqiiéncia, pela incepacidade de verificar, apre- cia ¢ explotat o significado da propria intuigao. Se a inspirago no substitui 0 trabalho, este, por seu lado, nfo pode substituir, nem forcar 0 surgimento da intuigéo, o que a paixio também no pode fazer. Mas o trabalho e a paixio fazem com que sur- ja a intuigio, especialmente quando ambos atuam ao mesmo tem- po. Apesar disso, a intuigio ndo se manifesta quando és 0 queremos, mas quando ela o quer. Certo € que as melhores idéias nos ocorrem, segundo a observacio de thering, quando ros encontramos sentados em uma poltrona e fumando um cha- rato ou, ainda, segundo o que Helmholtz observa a respeito de si mesmo, com preciséo quase cientifica, quando passeamos por uma estrada que apresente ligeiro aclive ou quando ocorram circunstincias semelhantes. Seja como for, as idéias nos acodem quando nio as esperamos € nZo quando, sentados @ nossa mesa de trabalho, fatigamos 0 cérebro a procurélas. E verdade en- tretanto, que elas no nos ocotreriam se, antetiormente, nfo hou- vvéssemos refletido longamente em nossa mesa de estudos ¢ no houvéssemos, com devocéo apaixonada, buscado uma resposta, De qualquer modo, 0 estudioso esta compelido a contar com 0 caso, sempre presente em todo trabalho cientifico: ocorreré ou no ocorreré a inspiracio? Pode dat-se que alguém seja traba- Ihador notével, sem que jamais Ihe ocorra uma inspiraco. Co- meter-se-ia, alids, etto grave, se se imaginasse que téo-somente no campo das ciéncias € que as coisas se passam de tal modo € que num escritério comercial elas se apresentam de maneira inteiramente diversa do modo como se apfesentam em um labo- ratério. Um comerciante ou um grande industrial que no te- nham “imaginacgo comercial”, isto é, que nfo tenham inspira- gio, que nfo tenham intuigées geniais, no passarao nunca de homens que tetiam feito melhor se houvessem permanecido na condicéo de funcionérios ou de técnicos: jamais criatio for- mas novas de organizacéo. A intuigio, ao contrério do que jul- 26 gam os pedantes, desempenhe, em ciéncia, papel mais im- portante do que o papel que the toca no campo dos problemas da vida prdtica, que 0 empreendedor moderno se empenha em resolver, De outra patte — e é ponto também freqiientemente esquecido — 0 papel da intuigéo nfo ¢ menos importante em ciéncia do que em arte. ¥ pueril acreditar que um matemético, preso a sua mesa de trabalho, pudesse atingir resultado cienti- ficamente titil através do simples manejo de uma régua ou de um instrumento mecinico, tal como a méquina de calcular. A imaginago matemdtica de um Weierstrass é, quanto a seu sen- tido ¢ resultado, orientada de maneita inteitamente diversa da maneira como se orienta a imaginacio de um artista, da qual se distingue também, e radicalmente, do ponto de vista da quali- dade; mas 0 proceso psicolégico idéntico em ambos os casos. Ambos equivalem a embriaguez (“mania”, no sentido de Pla- tio) € “inspiracio”. ‘As intuigdes cientificas que nos podem ocorrer dependem, portanto, de fatores ¢ “dons” que sfo por nés ignorados. Essa verdade incontestével serve de pretexto, aos olhos de certa men- talidade popular (disseminads, 0 que ¢ compreensivel, especial- mente entre os jovens), para levar & devogio {dolos, cujo culto, hoje em dia, se faz ostensivamente, em todas as esquinas e em todos os jornais, Esses {dolos sfo os da ‘“personalidade” ¢ da “experiéncia pessoal”, Hé, entre esses {dolos, ligagdes estreitas, pois, um pouco por toda a parte, ptedomina a idéia de que « experiéncia pessoal constituitia a personalidade e se incluitia em sua esséncia, Tortura-se o espirito para fabricar “experién- cias pessoais”, na conviegio de que isso constitui atitude digna de uma personalidade e, quando nfo se aleanca resultado, pode-se, 40 menos, assumir o ar de possuir essa graca. Outrora, em Iin- gua alemd, a “experiéncia pessoal” era chamada “sensacio”, E ereio que, naquela época, tinha-se idéia mais clara do que seja a personalidade e do que ela significa, Senhoras ¢ senhores! 6 aquele que se coloca pura e sim- plesmente ao servico de sua causa possui, no mundo da ciéncia, “personalidade”, E nfo € somente nessa esfera que assim acon- tece. No conheco grande artista que haja feito outra coisa que no 0 colocar-se 20 servigo da causa da arte e dela apenas. Mes- mo uma personalidade da estatura de Goethe, na medida em que 27 sua arte osté em pauta, teve de expiar a liberdade que tomou de fazer de sva “vida” uma obra de arte. Os que ponham em ddvida essa afirmativa admitirfio, nfo obstante, que era neces- sétio ser um Goethe para poder permitir-se tentativa semelhan- te ¢ ninguém contestard que mesmo uma personalidade de seu tipo, que s6 aparece uma vez cada mil anos, nao teve condigio de assumir essa atitude impunemente. Coisa diversa nfo acon- tece no dominio da politica, mas hoje, no abordaremos esse tema, No mundo da ci€ncia, é absolutamente impossfvel consi- derat como uma “personalidade” 0 individuo que nfo passa de empresirio da causa a que deveria dedicar-se, que se langa Ai cena com a esperanga de se justificar por uma “experiencia pessoal” ¢ que s6 6 capaz de indagar: “Como poderia eu pro- ‘var que sou coisa diversa de um simples especialista? Como po- deria eu proceder para afirmar, na forma e no fundo, algo ja- mais dito por pessoa alguma?” Trata-se de fenémeno que, em rnossos dias, assume proporgdes desmesuradas, embora s6 produ- za resultados despreziveis, para nfo mencionat que diminuii quem propSe aquele género de pergunta, Em oposigio a isso, aquele que poe todo 0 coracio em sua obta, ¢ s6 nela, elevase a al tura e A dignidade da causa que deseja servir. E para o artis- tao problema se coloca de maneira perfeitamente idéntica, A despeito dessas condigées prévias, que so comuns a ci- éncia € & atte, outras existem que fazem com que nosso trabalho seja profundamente diverso do trabalho do artista. O trabalho cientitico esté ligado ao curso do progresso. No dominio da arte, a0 contrério, nfo existe progresso no mesmo sentido. Nao é verdade que uma obra de arte de época determinada, por em- pregar recursos técnicos novos ou novas leis, como a da pets- pectiva, seja, por tais razées, artisticamente superiot a uma ou- tra obra de atte elaborada com ignorncia daqueles meios e leis, com a condigéo, evidentemente, de que sua matétia e forma tes- peitem as leis mesmas da arte, que vale dizer com a condicio de que seu objeto haja sido escolhido'e trabalhado segundo a esséncia mesma da arte, ainda que nao recorrendo aos meios que vyém de ser evocados, Uma obra de arte verdadeiramente “aca- bada” no seré ultrapassada jamais, nem jamais envelhecerd. Cada um dos que a contemplem apreciaré, talvez diversamente, a sua significacio, mas nunca poderé alguém dizer de uma obra 28 verdadeiramente “acabada” que ela foi “ultrapassada”” por uma outta igualmente “‘acabada”. No dominic da ciéncia, entretanto, todos sabem que a obra construida ter envelhecido dentro de dez, vinte ou cingtienta anos. Qual é, em verdade, o destino ou, melhor, a significaczo, em sentido muito especial, de que estd revestido todo trabalho cientifico, tal como, aliés, todos os ou- tros elementos da civilizagéo sujeitos A mesma lei? Eo de que toda obra cientifica “acabada” no tem outto sentido senio 0 de fazer surgirem novas “indagagdes”: cla pede, portanto, que seja “ultrapassada” e envelheca. Quem pretenda servir a cién- cia deve resignarse a tal destino, E indubitével que trabalhos cientificos podem conservar importincia duradoura, a titulo de “fruigio”, em virtude de quelidade estética ou como insttumen- to pedagégico de iniciagdo & pesquisa. Repito, entretanto, que na esfera da ciéncia, nao sé nosso destino, mas também nosso objetivo € 0 de nos vermos, um dia, ultrapassados. Nao nos € possfvel concluit um trabalho sem esperar, ao mesmo tempo, que outros avancem ainda mais, E, em principio, esse progresso se prolongard so infinito, Podemos, agora, abordar © problema da significagao da ci- éncia, Com eleito, nao €, de modo algum, evidente que um fe- _némeno sujeito a Jei do progresso albergue sentido ¢ razéo. Por que motivo, entdo, nos entregamos a uma tarefa que jamais en- contra fim € nfo pode encontré-lo? Assim se age, zesponde-se, ‘em fungao de propésitos puramente priticos ou, no sentido mais amplo do termo, em fungio de objetivos técnicos; em outras palavras, para orientar a atividade prética de conformidade com a8 perspectivas que a experiéncia clentifica nos oferega. Muito bem, ‘Tudo isso, entretanto, s6 se reveste de significado pata © “homem pritico”. A pergunta a que devemos dat tesposta € a seguinte: qual a posicio pessoal do homem de ciéncia pe- rante sua vocasio? —- sob condicio, naturalmente, de que ele a procute como tal, Ele nos diz que se dedica a ciéncia “pela ci éncia” e@ nfo apenas para que da ciéncia possam outros retirar vantagens comerciais ou técnicas ou pata que os homens possam melhor nutrirse, vestinse, iluminar-se ou dirigir-se. Que obras significativas espeta o homem de ciéncia realizar gragas a desco- bertas invariavelmente destinadas ao envelhecimento, deixando-se aptisionar por esse cometimento que se divide em especislida- 29 des e se perde no infinito? Resposta a essa pergunta exige que facamos previamente algumas consideragSes de ordem geral. * progresso cientifico € um fragmento, 0 mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualizagio a que esta- mos submetidos desde milénios e relativamente ao qual algumas pessoas adotam, em nossos dias, posicao estranhamente negativa. Tentemos, de inicio, perceber claramente o que significa, cna pritica, essa racionalizagio intelectualista que devemos 3 ci- éncia e A técnica cientifica. Significard, por acaso, que todos os que estio reunidos nesta sala possuem, a respeito das respecti- vas condigdes de vida, conhecimento de nivel superior ao que um hinda ou um hotentote poderiam alcancar acerca de suas proprias condigdes de vida? 1 pouco provével. Aquele, den- tre nds, que entra num trem néo tem nogéo alguma do mecanis- mo que permite ao vefculo pérse em marcha — exceto se for um fisico de profissio, Alids, nfo temos necessidade de conhe- cet aquele mecanismo. Basta-nos poder “contar” com o trem ¢ orientar, conseqiientemente, nosso comportamento; mas nfo sa- bemos como se constréi aquela méquina que tem’ condigées de deslizar. O selvagem, ao contrério, conhece, de maneita incom- paravelmente melhor, os instrumentos de que se utiliza, Eu se- tia capaz de garantir que todos ou quase todos os meus colegas economistas, acaso presentes nesta sala, dariam respostas dife- rentes & pergunta: como explicar que, utilizando a mesma soma de dinheiro, ora se possa adquirir grande,soma de coisas ora uma quantidade minima? © selvagem, contudo, sabe perfeita- mente como agit para obter o alimento quotidiano e conhece os meios capazes de favorecé-lo em seu propésito. A intelectua- Tizago e a tacionalizagio crescentes no equivalem, portanto, a um conhecimento geral ctescente acerca das condicdes em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, podertamos, bastando que o quiséssemos, ptovar que nio existe, em principio, nenhum poder misterioso ¢ imprevistvel que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da_previsio. Equivale isso a despojar de magia o mundo. Para nés nao mais se trata, como para o selvagem que acredita na existéncia da 30 queles poderes, de apelar a meios mégicos pata dominar os es- pititos ou exorcizé-los, mas de recorrer a técnica ¢ & pteviséo. ‘Tal € a significacio essencial da intelectualizaao. Surge dat uma pergunta nova: esse processo de desencanta- mento, realizado a0 longo dos milénios da civilizacéo ocidental ¢, em termos mais gerais, esse “progresso” do qual participa a ciéncia, como elemento e motor, tem significagio que werapasse essa pura prdtica e essa pura técnica? Esse problema mereceu cexposicéo vigorosa na obra de Leon Tolst6i, Tolstdi a ele che- gou por via que Ihe & propria, © conjunto de suas meditagses cristalizou-se crescentemente ao tedor do tema seguinte: a mor- te € ou no € um acontecimento que encerra sentido? Sua res- posta € a de que, para um homem civilizado, aquele sentido nao existe, E no pode existir porque a vida individual do civiliza- do esté imersa no “progresso” ¢ no infinito e, segundo seu sen- tido imanente, essa vide no deveria ter fim. Com efeito, ha sempre possibilidade de novo progresso para aquele que vive no progtesso; nenhum dos que morrem chega jamais a atingir o ico, pois que o pico se pe no infinito. Abrio ou os campone- ses de outrora mozreram "velhos e plenos de vida”, pois que estavam instalados no ciclo orginico da vida, porque esta thes havia ofertado, ao fim de seus dias, todo o sentido que podia proporcionarlhes ¢ porque no subsistia enigma que eles ainda teriam desejado xesolver. Podiam, portanto, considerar-se sa- tisfeitos com a vida. O homem civilizado, 20 contrério, coloca- do em meio a0 caminhar de uma civilizagdo que se entiquece continuamente de pensamentos, de experiéncias e de problemas, pode sentir-se “‘cansado” da vida, mas no “'pleno” dela. Com efeito, ele no pode jamais apossar-se senfo de uma parte infi ma do que a vida do esplrito incessantemente produz, ele nio pode captar senfo o provisério ¢ nunca o definitive. “Por esse motivo, a morte é, a seus olhos, um acontecimento que nfo tem sentido, E porque a morte nfo tem sentido, a vida do civi zado também nfo o tem, pois a “progressividade” despojada de significago faz da vida um acontecimento igualmente sem signi- ficagio, “Nes ultimas obras de Tolstéi, encontra-se, por toda a parte, esse pensamento, que dé tom 4 sua arte, Qual a posigio possivel de adotar a esse respeito? Tem o “progtesso”, como tal, um sentido discernivel, que se estende it pata além da técnica, de maneira tal que porse a seu servigo equivaleria a uma vocagio penetrada de sentido? indispen- sivel levantar esse problema. A questiio que se coloca nio é mais a que se tefere téo-somente A vocacao cientifica, ou seja a de saber o que significa a ciéncia, enquanto vocagio, para aque- Je que a ela se consagra; a pergunta é inteiramente diversas qual © significado da ciéncia no contexto da vida humana ¢ qual o seu valor? Ora, a esse respeito, enorme é 0 contraste entre o passado co presente. Lembremos a maravilhosa alegoria que se contém 420 inicio do livro sétimo da Republica de Platéo, a dos ptisio- rcitos confinados & caverna. Os rostos desses prisioneitos esto voltados para a parede rochosa que se levanta diante deles; as costas, 0 foco de Iuz que eles mio podem ver, condenados que estéo 2 s6 se ocuparem das sombras que se projetam sobre a patede, sem outra possibilidade que a de examinar as relagies que se estabelecem entre tais sombras. Ocorre, porém, que um dos prisioneiros consegue romper suas cadeias; voltase ¢ en- cata 0 sol, Deslumbrado, ele hesita, caminha em sentidos dife- rentes ¢, diante do que vé 36 sabe balbuciar. Seus companhei- ros 0 tomam por louco. Aos poucos, ele se habitua a encarar a luz, Feita essa experiéncia, 0 dever que lhe incumbe ¢ 0 de totnar ao meio dos prisioneiros da caverna, a fim de conduzi-los para a luz. Ele € 0 filésofo, e 0 sol reptesenta a verdade da ci- ancia, cujo objetivo é 0 de conhecer nfo apenas as apaténcias as sombras, mas também 0 ser vetdadeiro, Quem continua, entretanto, a adotar, em nossos dias, essa mesma atitude diante da ciéncia? A juventude, em particular, esté possuida do sentimento inverso: a seus olhos, as constru- es inteleceuais da ciéncia constituem um reino itreal de abs- tragdes artificiais e ela se esforca, sem éxito, por colher, em suas mos insensfveis, o sangue ¢ a seiva da vida real, Actedita-se, atualinente, que a tealidade verdadeita palpita justamente nessa vida que, aos olhos de Platio, nfo passava de um jogo de som- bras projetadas contra a parede da caverna; entende-se que todo 6 testo sfo fantasmas inanimados, afastados da realidade, e nada mais. Como ocorreu essa transformacio? O apaixonado entu- siasmo de Platio, em sua Repsiblica, explica-se, em iltima andlise, pelo fato de, naquela época, haver sido descoberto o sentido de 32 uum dos maiores instrumentos de conhecimento cientifico: 0 con- teito. O mérito cabe a Sécrates que compreende, de imedia- to, a importincia do conceito. Mas néo foi o winico a percebé- ‘Ig. Em esctitos hindus, € possivel encontrar os elementos de lume légica andloga & de Aristételes. Contudo, em nenhum outto lugar que aio a Grécia percebe-se a consciéncia da importincia do conceito, Foram os gregos os ptimeiros a saberem utilizar esse instrumento que permitia prender qualquer pessoa aos gri- Thdes da l6gica, de maneiza tal que ela nfo se podia Hibertar se- io reconhecendo ou que nada sabia ou gue esta e nao aquela afitmagGo correspondia & verdade, uma verdade everna que nun- ca se desvaneceria como se desvanevem a agio e agitacdo cegas dos homens, Fol uma experiéncia extraordindria, que encon- trou expansio entre os discipulos de Sécrates. Acreditouse pos- sivel concluir que bastava descobrit 0 verdadeiro conceito do Belo, do Bem ou, por exemplo, 0 da Coragem ou da Alma — on de qualquer outto objeto — pata ter condigio de compte- enderihe o set verdadeito. Conhecimento que, por sua vez, per mitizia saber ¢ ensinar a forma de agir cotteramente na vida e, antes de tudo, como cidadio. Com efeito, entre os gregos, que 86 pensavam com referéncia 4 categoria da politica, tudo con- duzia a essa questo, Tais as razdes que os levaram a ocupar-se da ciéncia ‘A. essa descoberta do espitito helénico associou-se, depois, 0 segundo grande instrumento do trabalho cientifico, engendrado pelo Renascimento: a experimentagio racional, Tornou-se ela meio seguro de controlar a experiéncia, sem o qual a ciéncia em- pitiea moderna néo teria sido possivel. Por certo que m0 se haviam feito experimentos muito antes dessa época. | Haviam tido Inger, por exemplo, experiéncias fisiolégicas, realizadas na India, no interesse de técnica ascética da Toga, assim como expe- rigncias matematicas na antiguidade helenica, visando fins mili- tates e, ainda, experiéncias na Idade Média, com vistas & explo- racdo de minas. Foi, porém, o Renascimento que elevow a ex: petimentacio 20 nivel de um principio da pesquisa como tal. Os precursores fotam, incontestavelmente, os grandes inovadores no Yominio da arte: Leonardo da Vinci ¢ seu compankeiros ¢, pat ticularmente e de maneira caracteristica no dominio da misica, fos que se dedicaram & experimentacdo com o cravo, no século XVI. Daf, a experimentagio passou para o campo das ciéncias, 33 devido, sobretudo, a Galileu ¢ alcangou o domfnio da teoria, gracas a Bacon; foi, a seguit, perfilhada pelas diferentes univer. sidades do continente europeu, de inicio e principalmente pelas da Itélia e da ‘Holanda, estendendo-se a esfera das ciéncias exatas. Qual foi pata esses homens, na aurora dos tempos moder. nos, @ significagao da ciéncia? Aos olhos dos. experimentadores do tipo de Leonardo da Vinci e dos inovadores no campo da miisica, a expetimentagdo era o caminho capaz de conduzir A arte verdadeira, 0 que equivalia dizer o caminho capaz de con- duzit & verdadeira natureza, A arte deveria set elevada 20 nivel de uma ciéncia, o que significava, a0 mesmo tempo e antes de tudo, que o artista deveria ser elevado, socialmente e por seus proptios méritos, eo nivel de um doutor. Essa ambigio serve de fundamento a0 Tratado da Pintura, de Leonardo da Vinci. E que se diz hoje em dia? “A ciéncia vista como caminho capaz de conduzit: & natureza” —~ seria frase que haveria de soar aos ouvidos da juventude como uma blastémia. Nao, é exatamente © oposto que aparece hoje como verdadeiro, Libertando-nos do intelectualismo da cifneia € que poderemos aprender nossa pr6- pria natureza e, pot essa via, 2 natureza em geral. Quanto a di- zer que a ciéncia € também caminho que conduz 2 arte — eis opinigo que nfo merece gue nela nos detenhamos. Todavia, & época da formacio das ciéncias exatas, esperava-se ainda mais ‘da cigncia. Lembremos 0 aforismo de Swammerdam: “Apresento- clhes aqui, na anatomia de um piolho, a prova da providéncia divina” e’ compreenderemos qual foi, naquela época, a tarcfa propria do trabalho cientifico, sob influéncia (indireta) do pro- testantismo e do puritanismo: encontrar 0 caminho que conduz a Deus. Toda a teologia pietista daqucle tempo, sobretudo a de Spener, estava ciente de que jamais se chegatia a Deus pela via que tinha sido tomada por todos os pensadores da Idade Média — ¢ abandonon seus métodos filoséficos, suas concep- gSes e dedugdes. Deus estd oculto, seus caminhos nao so os ossos, nem seus pensamentos os nossos pensamentos. Esperava- se contudo, descobrir tragos de suas intengées através do exame da natureza, por intermédio das ciéncias exatas, que permitiriam apreender fisicamente suas obras, E em nossos dias? Quem continua ainda a acreditar — salvo algumas criangas grandes que encontramos justamente entre os especialistas — que os conhecimentos astrondmicos, biolégicos, fisicos ou quimicos po- 34 detiam ensinat-nos algo a propésito do sentido do mundo ou poderiam ajudar-nos a encontrar sinais de tal sentido, se € que dle existe? Se existem conhecimentos capazes de extixpar, até As rafzes, a crenga na existéncia de seja Id 0 que for que se pax zega a uma “significagio” do mundo, esses conhecimentos sio exatamente os que se traduzem pela ciéncias. Como poderia a ciéncia nos “conduzir a Deus”? Nao é ela a poténcia especifi- camente ateligiosa? Atvalmente, homem algum, em seu foro intimo — independentemente de admiti-lo de forma explicita — coloca em divida esse cardter da cigncia, O. pressuposto funda- mental de qualquer vida em comonhio com Deus impele 0 ho- mem ase emancipar do racionalismo e do intelectualismo da ci. éncia: essa aspiracio, ou outra do mesmo género, erigiv-se em ‘uma palavea de otdem essencial, que faz vibrar a juventude alema inclinada & emocio religiosa ou em busca de experién- cias religiosas. Alids, a juventude alema nfo corre & cata de ex- peritncia religiosa, mas de experiéncia da vida, em geral. S6 pi rece desconcertante, dentro desse género de aspiracées, o método escolhido, no sentido de que o dominio do irracional, tinico do- minio em que o intelectualismo ainda nfo havia tocado, tornow-se objeto de uma tomada de consciéneia e ¢ minuciosamente exa- minado, A isso conduz, na prética, 0 moderno romantismo in- telectualista do itracional. Contudo, esse método, que se pro- pée a livrar-nos do intelectualismo, se traduzité, indubitavel- mente, pot um resultado exatamente oposto ao que esperam atingir os que se empenham em sepuir essa via. Enfim, ainda {que um otimismo ingénuo haja podido celebrar a ciéncia — isto é, técnica do dominio da vida fundamentada na ciéncia — como ‘0 caminho que levaré a felicidade, creio ser posstvel deixar in- teiramente de parte esse problema, tendo em vista a critica de- vastadora que Nietzsche ‘dirigin contra “‘os tiltimos homens” que “descobriram « felicidade”. Quem continua a acreditar ni so — excetuadas certas criancas grandes que se encontram nas chtedras de faculdades on nas salas de tedacéo? Voltemos atr4s. Qual é, afinal, nesses termos, 0 sentido da cigncia enquanto vocacio, se estio destrufdas todas as ilu- sées que nela divisavam © caminho que conduz ao “ser verda- deiro”, & “verdadeita arte”, & ‘‘verdadeira_natureza”, a0 “ver~ dadeiro Deus”, a “verdadeita Felicidade”? Tolstéi dé a essa per- gunta a mais simples das respostas, dizendo: ela ne tem sent 35

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