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ssINTELECTUAIS Provavelmente nunca houve outro pe- riodo na histéria no qual os intelectuais tenham desempenhado um papel tao ex- tenso na sociedade. Quando aqueles que sdo responsveis pela geracao de ideias, os intelectuais propriamente falando, es- tao cercados por uma espessa penumbra de auxiliares - jornalistas, professores, funcionarios ptiblicos, burocratas -, os quais disseminarao suas ideias, podemos, entdo, esperar que a influéncia dos inte- lectuais possa tomar, no curso da evolu- g4o social, proporgdes considerdveis, ou mesmo cruciais. Essa influéncia depende, é claro, das cir- cunstncias adjacentes, incluindo os niveis de liberdade para a propagacao de suas ideias, em vez de se tornarem meros ins- trumentos de propaganda, como acontece nos paises totalitdarios. Certamente, nado haveria muito valor em se estudar as ideias expressas por proeminentes escritores du- rante regimes ditatoriais e totalitdrios, uma vez que suas ideias, em geral — apesar da existéncia de diversas excecdes -, eram simplesmente as ideias permitidas ou de- fendidas pelo sistema. Portanto, o estudo sobre a influéncia dos intelectuais é, aqui, um estudo centrado nos lugares onde os intelectuais gozam (ou gozaram) de gran- de liberdade para exercer seu prestigio, ou seja, nas modernas nagdes democraticas. Thomas Sowell é professor de Economia em Cornell, UCLA, Amherst e outras instituigdes universitarias, e é atualmen- te um académico e estudioso do Institu- to Hoover, da Universidade Stanford. Thomas Sowell tem publicado artigos e ensaios tanto em periddicos académicos quanto nos veiculos de midia mais popu- lares, como o Wall Street Journal, a Forbes e a revista Fortune, além de escrever uma coluna independente que é publicada em jornais de varios lugares dos Estados Uni- dos. De sua autoria a Editora E também publicara Conflito de Visdes. Imagem da capa: Figures Walking Through Book © Images.com/Corbis/Corbis (DC)/Latinstock one) Cle Pa TT Este é um estudo sobre 0 grande peso que tém os intelectuais, rare Rt oe Comes ene CORCe NSM cre ent thn eee Comer ome eMr Ment Meee mee rer erect Siew ea once decisiva, sob cuja influéncia sio desenvolvidas as politicas oficiais RO KOC RETO ECE OMe eo ceeMe ua rne Reece merece En RRUcreme tre mere eee A tese de Os Intelectuais e a Sociedade é de que a influéncia hoje cern cima ccrnen nc rants reentrant) passado, mas assume, também, uma forma diferente do modelo Reontcc ih Oh ole enter Orcr co VEC Te Menta atc ety A Meena reste cee ener MeN CS Tem ot ear ee Comoe eerie creer a tere nc que os intelectuais modernos tém atuado e alterado mais 0 curso Rererec Men ome nee ent n ce CRC) condugao de uma opinido ptiblica. Mesmo os lideres de governo que PUM em Monin ec mena eet) inn Connie cm as eM cenet et eek it tee OMe eee ee ee eae Ree neko ety a agenda ¢ o histérico dos intelectuais, mas também analisa os eee er eee cereus Mer ieminR Gee escent tr cet eaten eccarentt Peon eon oe enamine ees taee reer rarer a Ratitass ese Cans Ons ocean tenes ence ont) absolutamente desastrosos para a sociedade, em suas falsas prescrigdes acur ‘ar os males do mundo. No entanto, essas visGes equivocadas POO cn an aRt accent Maca ner rent corer ISBN 978 empiricas que tém atestado os desastres provocados por elas, Paces | | | 9 MN 5801330182 COLEGAO ABERLURA CULGURAL Impresso no Brasil, dezembro de 2011 Titulo original: Intellectuals and Society Copyright © 2009 by Thomas Sowell. Traducao publicada a partir de acordo com Basic Books, membro do Perseus Books Group. Os direitos desta edigao pertencem a E Realizagées Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 - 04010 970 - Sao Paulo SP Telefax: (5511) 5572 5363 €@erealizacoes.com.br - wwwerealizacocs.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Gabriela Trevisan Revisao técnica Prof. Galo Lopez Noriega Preparagao Luciane Gomide Revisao Amandina Morbeck Liliana Cruz Capa e projeto grdfico Mauricio Nisi Goncalves / Estiidio £ Pré-impressao e impressao Cromosete Grafica e Editora Reservados todos 0s direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodugao desta edigao por qualquer meio ou forma, seja ela eletrénica ou mecénica, fotocépia, gravaco ou qualquer outro meio de reprodugao, sem permissao expressa do editor. OS INTELECTUAIS E A SOCIEDADE Thomas Sowell TRADUGAO DE MAURICIO G. RIGHI ME Realizacées me (Editora Prefaci Agradecimentos. Capitulo 1 | Capitulo 2 | Capitulo 3 | Capitulo 4 | Capitulo 5 | Capitulo 6 | Capitulo 7 | Capitulo 8 | Capitulo 9 indice ... SUMARIO O Intelecto e os Intelectuais. Conhecimento e Nose Os Intelectuais e a Ciéncia Econémica... Os Intelectuais e as VisGes de Sociedade... sin 425, Realidade Paralela na Midia e no Mundo Académico ...... 189 Os Intelectuais ¢ a Justica 247 Os Intelectuais e a Guerra .. ee 317, Os Intelectuais e a Guerra: Repetindo a Histéria... Os Intelectuais e a Sociedade Prefacio Provavelmente, nunca houve outro periodo na histéria no qual os intelectuais tenham desempenhado um papel tao extenso na socie- dade. Quando aqueles que sdo responsdveis pela geracao de ideias, os intelectuais propriamente falando, estao cercados por uma espessa penumbra de auxiliares, os quais disseminarao suas ideias — falo de jornalistas, professores, funciondrios puiblicos, burocratas e outros membros que compéem a intelligentsia -, podemos, entao, esperar que a influéncia dos intelectuais possa tomar, no curso da evolugao social, proporgdes considerdveis ou mesmo cruciais. Essa influéncia depende, é claro, das circunstancias adjacentes, incluindo os niveis de liberdade para a propagacao de suas ideias, em vez de se tornarem meros instrumentos de propaganda, como acontece nos paises tota- litarios. Certamente, nao haveria muito valor em se estudar as ideias expressas por proeminentes escritores como Ilya Ehrenburg, durante a época da Unido Soviética, uma vez que suas ideias eram simples- mente as permitidas ou defendidas pela ditadura soviética. Portanto, o estudo sobre a influéncia dos intelectuais é, aqui, centrado nos luga- res onde os intelectuais gozam de grande liberdade para exercer sua influéncia, ou seja, nas modernas nagées democriticas. Por diferentes razGes, este estudo sobre os padrées da atividade dos intelectuais dara pouca atenco a gigantes intelectuais, como Mil- ton Friedman, assim como a outros excelentes intelectuais de menor eminéncia, simplesmente porque o professor Friedman foi, para sua Os Intelectuais e a Sociedade | Prefacio época e de diversas formas, um intelectual muito atipico, tanto do ponto de vista da erudicao de sua obra, que o levou a receber um prémio Nobel, quanto pelo seu trabalho como analista popular das questdes de sua época. Uma histéria intelectual geral “equilibrada” de nossa época teria que dar ao professor Friedman muito mais aten- 40 do que o estudo aqui proposto, o qual se foca, contudo, em pa- drdes gerais, em relacao aos quais ele se fazia uma excecdo notavel. Aleksandr Solzhenitsyn foi outra figura notavel na hist6ria intelectual, moral e politica de seu periodo, o qual também se apresentava como uma figura muito atipica aos padrées intelectuais de nossa época, para que fosse incluido neste estudo sobre os padrées gerais da profissao. Muitos livros j4 foram escritos sobre os intelectuais. Alguns fa- zem anilises profundas sobre algumas figuras proeminentes, ¢ 0 livro Intellectuals [Os Intelectuais], de Paul Johnson, é um classico nesse tipo de abordagem. Outros livros sobre os intelectuais tém o foco nas ideias dominantes de cada época em particular. O livro de Ri- chard A. Posner, Public Intelectuals [Intelectuais Publicos] trata dos intelectuais que se dirigem diretamente ao ptiblico, como formadores de opiniao, a0 passo que em Os Intelectuais e a Sociedade veremos a influéncia que eles exercem sobre as atitudes e crencas da sociedade em geral — moldando-as, mesmo quando nao sao amplamente lidos e reconhecidos pelo grande ptblico. Como disse J. A. Schumpeter, “ha muitos keynesianos e marxistas que nunca leram uma sé linha de Keynes e Marx”.' Eles retiram suas ideias e seus posicionamentos de segunda ou de terceira mao, a partir da influéncia da intelligentsia. Dentre as muitas observag6es ditas por aqueles que estudaram os intelectuais, um comentario feito pelo professor Mark Lilla da Co- lumbia University, em seu livro The Reckless Mind [A Mente Levia- na] é especialmente revelador: "JA. Schumpeter, History of Economic Analysis. Nova York, Oxford Univer- sity Press, 1954, p. 475. 819 Professores distintos, poetas talentosos e jornalistas influentes reuni- ram suas habilidades a fim de convencer, a todos seus ouvintes e admi- radores, que os tiranos modernos eram libertadores e que seus crimes hediondos eram nobres, bastava vé-los na perspectiva correta, Quem quer que se dedique a escrever, honestamente, sobre a histéria intelec- tual do século XX na Europa tem que ter estomago forte. Mas ele precisard de algo mais. Precisar4 superar seu nojo para que co- mece a ponderar sobre as causas desse intrigante e estranho fenémeno.* Embora Os Intelectuais e a Sociedade nao seja uma hist6ria in- telectual do século XX na Europa — isso levaria a um projeto muito maior a ser realizado por alguém muito mais jovem -, 0 livro esforga- se por descortinar alguns fenédmenos intrigantes que formam o mun- do dos intelectuais, na medida em que esse mundo afeta o funciona- mento da sociedade em geral. Em vez de simplesmente generalizar a partir dos escritos ou comportamentos de determinados intelectuais, este livro se propée a analisar tanto a visdo quanto os incentivos e as restrigdes que estao por tras dos padrées gerais encontrados nos membros atuais da intelligentsia, assim como o que eles dizem e 0 impacto que isso tem sobre a sociedade. Embora jé saibamos muita coisa sobre as biografias ¢ ideolo- telectuais de destaque, andlises sistematicas como grupo social so gias de determinados i sobre a natureza e o papel dos intelectu: muito menos comuns. Este livro busca desenvolver uma anilise des- se tipo, explorando suas implicagdes e mostrando a diregdo para a qual a intelligentsia esté conduzindo nossa sociedade e a civilizagio ocidental em geral. Embora este livro fale sobre os intelectuais, ele nao foi escrito para os intelectuais. Seu propésito é alcangar a compreensao sobre um importante fenémeno social e compartilhd-la com aqueles que 2 Mark Lilla, The Reckless Mind: Intellectuals in Politics. Nova York, New York Review Books, 2001, p. 198. Os Intelectuais e a Sociedade | Prefacio buscam compreendé-la, sejam 14 quais forem as atividades de cada um. Aqueles membros da intelligentsia que buscam autopromogao ou motivos para melindres serao deixados a agir conforme sua propria consciéncia. Este livro foi escrito para aqueles leitores que estao dis- postos a me acompanhar na busca de compreensao de um segmento distinto da populagao, cujas atividades podem ter e tém grande peso sobre as nagées e as civilizacdes. Thomas Sowell Hoover Institution Stanford University 10111 Agradecimentos Assim como aconteceu com meus outros livros, este livro deve muito ao dedicado trabalho de minhas extraordindrias assistentes de pesquisa, Na Liu e Elizabeth Costa. A senhora Liu jé trabalha comigo hA vinte anos e nao apenas extraiu muitos fatos, mas também contri- buiu com muitos insights na elaboragao desta obra, como fizera com as outras. Ela também criou os arquivos digitais a partir dos quais meus livros podem ser impressos diretamente. Minha outra assisten- te, a senhora Costa realiza o trabalho de edigdo e checagem dos fatos para mim, e raramente um lapso de minha parte escapa de seu escru- tinio. Também sou beneficidrio das informagGes e dos comentarios fornecidos pelo dr. Gerald, P. O’Driscoll, do Cato Institute, professor Lino A. Graglia da Universidade do Texas em Austin, e do dr. Victor Davis Hanson, do Hoover Institute. Quaisquer erros ou deficiéncias que possam ter permanecido apesar de seus esforgos sé podem ser de minha responsabilidade. OS INTELECTUAIS E A SOCIEDADE 115 Capitulo 1 | O Intelecto e os Intelectuais Inteligencia é a rapidez com que se apreendem as coisas e que se distingue de outra habilidade, a qual se verifica na capacidade de agir com sabedoria sobre o que foi apreendido. Alffed North Whitehead’ Intelecto nao se confunde com sabedoria. Podemos ter, portanto, o caso de “intelectos insensatos”, como bem colocou Thomas Carlyle ao caracterizar o pensamento de Harriet Taylor,? amiga e posterior- mente esposa de John Stuart Mill. Puro poder mental, o intelecto é a capacidade de apreensio e manipulagio de conceitos e ideias com- plexas, e pode estar a servico de conceitos e ideias que desembocam, por sua vez, tanto em conclusées equivocadas quanto em acées insen- satas, tendo-se em vista todos os fatores envolvidos, incluindo aque- les que sao deixados de lado durante as engenhosas construgdes do intelecto imaturo. O Capital, de Karl Marx, é um exemplo classico de elaboracao intelectual primorosa, mas que se encontra, no entanto, fundamentada num equivoco conceitual — no caso, a nogdo de que o “trabalho”, a ma- nipulagdo fisica de materiais e ferramentas de producao, apresenta-se " Alfred North Whitehead, “December 15, 1939”. In: Dialogues of Alfred North Whitehead as Recorded by Lucien Price. Boston, Little, Brown and Company, 1954, p. 135. ? Michael St. John Packe, The Life of Jobn Stuart Mill. Nova York, The Mac- millan Company, 1954, p. 315. Os Intelectuais e a Sociedade | O Intelecto e os Intelectuais como a real fonte de riqueza econdmica. Caso isso fosse verdade, cer- tamente que os paises com grande quantidade de trabalho, mas que gozassem de baixa tecnologia ou apresentassem baixos niveis de em- preendedorismo, seriam mais présperos do que os paises na situagao inversa, quando, na verdade, é estrondosamente Sbvio que temos exa- tamente o contrério. O mesmo acontece com o elaborado e intrincado A Theory of Justice [A Teoria da Justiga] de John Rawls, no qual a jus- tiga se torna, categoricamente, mais importante do que qualquer outra consideragao social. No entanto, é certo que se duas coisas tém algum valor, nenhuma delas pode ser, indiscutivelmente, mais valiosa que a outra. Um diamante pode valer muito mais que um centavo, mas uma quantidade suficiente de centavos valera mais que qualquer diamante. INTELIGENCIA VERSUS INTELECTO ‘A capacidade para apreensio e manipulacao de ideias comple- xas é suficiente para definirmos o intelecto, mas nao é suficiente para darmos conta da inteligéncia, cuja realidade envolve a combinacao do intelecto com capacidade de julgamento e acuidade na selecao de fatores explicativos relevantes; assim como envolve a capacidade de, ao fazer uso das teorias que surgem, promover testes empiricos. In- teligéncia menos julgamento é igual a intelecto. Temos também a sa- bedoria, que é a qualidade mais rara de todas — a qual se verifica na habilidade de combinar intelecto, conhecimento, experiéncia e julga- mento, de forma a produzir uma compreensao ou avaliacdo coerente. A sabedoria é a realizacao da antiga adverténcia: “Em posse do que tens, tenhas compreensio”. E algo que exige disciplina e compreens30 acurada sobre as realidades do mundo, incluindo a devida apreciagao sobre os limites de nossas experiéncias e de nossa raz4o. O contrario do intelecto é 0 estado obtuso e a lerdeza mental, mas 0 contrario da sabedoria é a estupidez, cuja manifestacdo é muito mais perigosa. 16117 George Orwell chegou a dizer que algumas ideias sao tao estu- pidas que apenas um intelectual poderia acreditar nelas, j4 que o ho- mem comum nunca se faz tao tolo. Nesse sentido, o histérico dos intelectuais do século XX foi especialmente assombroso. Nesse sé- culo, raramente tivemos 0 caso de um ditador sanguindrio que nao dispusesse de um grupo de intelectuais militantes, e nao estou falando apenas de compatriotas, mas também de admiradores estrangeiros, muito dos quais viviam em verdadeiras democracias, nas quais as pessoas sdo livres e podem opinar abertamente. Lénin, Stalin, Mao e Hitler, todos tiveram, nas democracias do Ocidente, seus admirado- res, defensores e apologistas espalhados pela intelligentsia, apesar de tais ditadores terem, cada um deles, assassinado seus préprios com- patriotas em escala maciga e sem precedentes, adotando praticas de violéncia até ent3o desconhecidas mesmo para os regimes despéticos anteriores aos seus. DEFININDO OS INTELECTUAIS, Devemos ser claros sobre 0 que queremos dizer com intelec- tuais. Aqui, neste nosso caso, “intelectuais” sera entendido como uma categoria ocupacional, composta por pessoas cujas ocupacdes profissionais operam fundamentalmente em fungao de ideias — falo de escritores, académicos e afins.? A maioria de nés nao atribui o papel de intelectuais para neurocirurgides e engenheiros, apesar do exigente treino mental que sao obrigados a trilhar. Na pratica, nin- guém considera intelectual mesmo o mais brilhante e bem-sucedido génio das financas. No amago do exercicio da atividade intelectual encontramos a nogao do operador de ideias como tal — nao falo da aplicacao pratica + Para aquele pequeno nimero de pessoas cuja riqueza permite que persigam uma carreira que ndo representa fonte de sustento, “ocupagio” nao precisa significar uma ocupagao remunerada. Os Intelectuais e a Sociedade | 0 intelecto e os Intelectuais das ideias, como fazem os engenheiros, ao aplicarem principios cien- tificos complexos na criagao de estruturas fisicas e mecanismos. Um bitolado cientista social cujo trabalho pode ser descrito como “enge- nharia social”, raramente administrar4 os esquemas que ele ou ela criam ou defendem. Tal trabalho é deixado a cargo de burocratas, po- liticos, assistentes sociais, a policia, dentre outros, ou seja, de pessoas diretamente responsaveis pela implantagao das ideias do cientista so- cial. Rétulos como “ciéncia social aplicada” podem ser inseridos no trabalho desse cientista social, mas o seu trabalho esta essencialmente baseado na manipulacao de ideias gerais, as quais podem ser usadas na produgao de ideias mais especificas na gestao de politicas sociais que serao aplicadas, por sua vez, por terceiros. Nosso cientista social nao executar4, pessoalmente, essas ideias especificas, diferentemente de um médico que aplica os conhecimen- tos da ciéncia médica em seres humanos de carne e osso, ou mesmo de um engenheiro, calgando suas longas botas e que estar presente no palco de operagées, participando da constru¢ao de uma ponte ou de um prédio. O resultado — 0 produto final - do trabalho de um in- telectual é constituido de ideias. O produto final do trabalho de Jonas Salk foi uma vacina, assim como 0 resultado do trabalho de Bill Gates foi um sistema operacional para computadores. Apesar de todo o poder mental, insights e talen- tos envolvidos nessas e em outras grandes realizagoes, tais individuos nao sao intelectuais. O trabalho de um intelectual comega e termina com ideias, sem levar em conta a influéncia que essas ideias possam ou nao exercer sobre a vida concreta — nas maos de terceiros. Adam Smith nunca administrou um negécio e Karl Marx nunca gerenciou um Gulag (*). Os dois eram meros intelectuais. As ideias, como tais, nao constituem apenas a matéria-prima da vida intelectual, mas tam- r as realizac6es intelectuais, bém funcionam como critério para aval apresentando-se como fonte de frequentes e perigosas seducdes para os participantes dessa ocupacao. 18119 No universo académico, a nata dos intelectuais é composta, por exemplo, por aqueles individuos cujos campos de estudo estao mais impregnados pelas ideias. As faculdades de administracao, de enge- nharia, de medicina ou o departamento de atletismo de uma univer- sidade qualquer no representam as disciplinas que primeiro vém & nossa mente toda vez que pensamos em intelectuais académicos. Além do mais, as ideologias e atitudes predominantes entre académicos in- telectuais sio, nos departamentos citados, bem menos visiveis. Con- tudo, os departamentos de sociologia sao, geralmente, notados como muito mais inclinados politicamente 4 esquerda, se os compararmos com a escola de medicina, assim como os departamentos de psico- logia também sao notoriamente mais esquerdistas que os departa- mentos de engenharia, o mesmo acontecendo com o departamento de letras, que € mais esquerdista que o de economia, e assim por diante.* “Os con- * Por exemplo, de acordo com 0 Chronicle of Higher Educatio servadores s4o mais raros na area de humanidades (3,6%) ¢ nas ciéncias so- ciais (4,9%) € mais comuns em administrago (24,5 %) e nas ciéncias médicas (20,5%)”. Entre o corpo docente nas ciéncias humanas, nas humanidades € nas universidades de elite que oferecem pés-doutorado, “nenhum instrutor foi contado como tendo votado para o presidente Bush em 2004”, quando o pre- sidente recebeu maioria dos votos populares pelo pais. Ver David Glenn, “Pou- cos Conservadores, mas Muitos Centristas Ensinam na Academia”. Chronicle of Higher Education, 19/10/2007, p. A10. Nas ciéncias médicas, um estudo mostrou que a proporgiio de membros docentes que se autodesignavam con- servadores compreendia o mesmo percentual dos que se reconheciam como liberais (20,5 %), com o restante de moderados. Nas cadeiras de administragao havia um pequeno percentual maior de conservadores confessos do que de libe- rais (24,5% contra 21,3%). Ver 0 ensaio de Neil Gross e Solon Simmons, “As Visdes Politico-Sociais dos Académicos Americanos”, 24/09/2007, p. 28. Mas nas ciéncias sociais e nas humanidades, as pessoas que se identificam como liberais formam absoluta maioria, e no restante os moderados superam os con- servadores em larga escala. Ver também Howard Kurtz, “College Faculties a ‘Most Liberal Lot, Study Finds”. Washington Post, 29/03/2005, p. C1; Stanley Rothman, S. Robert Lichter e Neil Nevitte, “Politics and Professional Advance- ment among College Faculty”. The Forum, v. 3, 1. ed., 2005, p. 6; Christopher F Cardiff e Daniel B. Klein, “Faculty Partisan Affiliations in All Disciplines: A Voter-Registration Study”. Critical Review, v. 17,n. 3-4, p. 237-55. Os Intelectuais e a Sociedade | O Intelecto e os Intelectuais Otermo “pseudointelectual” é por vezes usado para identificar os membros menos inteligentes ou menos preparados da profissao. Mas da mesma forma que um péssimo policial continua sendo um poli- cial — desconsiderando-se todo o problema que a situag4o gera -, um intelectual superficial, desonesto e confuso continuard sendo membro de sua ocupac¢ao, tanto quanto o seu modelo maximo. Uma vez que a realidade da qual estamos tratando fique clara, toda vez que falamos de intelectuais — a descrigdo de uma ocupagao profissional, em vez de um rétulo qualitativo ou um titulo honorifico -, entao podemos olhar para as caracteristicas dessa ocupagdo, observando os incentivos e as restrigdes que ela comporta e identificando como esses elementos afetam aqueles que seguem esse campo, para, entao, podermos cons- tatar como essas caracteristicas se relacionam ao comportamento dos intelectuais. A questo maior é, certamente, como 0 comportamento dos intelectuais afeta a sociedade na qual eles vivem. Em geral, o impacto gerado pela atividade intelectual indepen- de do fato de os intelectuais serem reconhecidos como “intelectuais publicos” — aqueles que se dirigem ao grande publico, comparando- se aos intelectuais cujas ideias estao confinadas ao ambiente estrita- mente especializado de suas 4reas ou mesmo ao universo puramente intelectual. Alguns dos livros que causaram mais impacto no século XX foram lidos por poucos e compreendidos por um publico ainda mais exiguo. Estou falando dos trabalhos de Karl Marx e Sigmund Freud escritos no século XIX. Porém, as conclusdes desses escritores — distinguindo-as da complexidade de suas andlises — inspiraram um vastissimo contingente de intelectuais por todo o mundo e, por inter- médio dos tiltimos, alcangaram o grande piiblico. A alta reputaco que esses trabalhos alcancaram inflamou a confianga de muitos segui- dores, os quais nao chegaram, em grande parte, a dominar as obras nem sequer se esforgaram para tal. Mesmo intelectuais cujos nomes sao praticamente desconhecidos do piiblico em geral tiveram um impacto de repercussio mundial. 20121 Friedrich Hayek, cujos trabalhos - notadamente The Road to Serfdom [O Caminho da Servidao] - deram inicio a uma contrarre- volucao, mais tarde aderida por Milton Friedman, alcangando seu cli- max politico com a ascensao de Margaret Thatcher na Gra-Bretanha e de Ronald Reagan nos Estados Unidos. Essa obra era pouco co- nhecida e pouco lida até mesmo entre os circulos intelectuais, no en- tanto, inspirou muitos formadores de opinido e ativistas politicos, os quais, por sua vez, tornaram essas ideias tema para amplos projetos € discusses que influenciaram politicas e decisdes de governo. Hayek foi um exemplo classico do tipo de intelectual descrito pelo juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes como um pensador que “mes- mo um século depois de sua morte e seu esquecimento, homens que nunca ouviram falar dele estardo, no entanto, se movendo na medida ditada por seu pensamento”.* A INTELLIGENTSIA Cercando um nticleo mais ou menos sélido de criadores de no- vas ideias existe outra esfera de atuagdo composta por aqueles cujo papel se restringe ao uso e 4 disseminacao dessas ideias. Estes tlti- mos respondem, em grande parte, pelo corpo de professores, jorna- listas, ativistas sociais, adidos politicos, funciondrios do judicidrio e outros que fundamentam suas crengas ou agées a partir das ideias produzidas pelos intelectuais do primeiro escalao. Os jornalistas, no papel de editores ou colunistas, so, além de grandes consumido- res das ideias dos intelectuais de grande porte, produtores de ideias préprias e, dessa forma, podem ser considerados — em tais circuns- tancias — intelectuais. A originalidade nao se apresenta como um atributo essen | para definir um intelectual desde que as ideias $ Oliver Wendell Holmes, “The Profession of The Law”. In: Collected Legal Papers. Nova York, Peter Smith, 1952, p. 32. Os Intelectuais e a Sociedade | O Intelecto e os Intelectuais sejam o produto final. Contudo, no papel de meros repérteres, os jornalistas estariam encarregados de simplesmente reportar os fatos. No entanto, 4 medida que os fatos sao filtrados e modificados para que se alinhem as nogdes preponderantes do universo intelectual dominante, esses repérteres acabam desempenhando um novo pa- pel, formando uma penumbra ideol6gica cuja sombra reflete o nii- cleo intelectual central. Eles se constituem, entao, como membros de uma intelligentsia, a qual inclui, mas no se limita aos intelectuais. Finalmente, temos aqueles cujas profissées nao estao sob grande in- fluéncia das ideias provenientes dos intelectuais, mas estao, no en- tanto, interessados em participar e se inteirar das ideias, mesmo que seja apenas para us4-las socialmente, sentindo-se lisonjeados ao ser considerados membros da intelligentsia. IDEIAS E PRESTACAO DE CONTAS Tendo-se em vista 0 enorme impacto social que intelectuais po- dem causar, sendo ou nao publicamente conhecidos, é de fundamental importancia tentar compreender os padrdes de seu comportamento e os incentivos e as restrigdes que afetam esses padrées. E certo que o universo das ideias nao esta sob a propriedade exclusiva dos intelectuais, assim como a potencial complexidade, a dificuldade ou o nivel qualitativo que certas ideias implicam nao determinam, necessariamente, se os produtores das ideias sao ou no considerados intelectuais. Engenheiros e financistas lidam com ideias que sdo, no minimo, tao complexas quanto as que perten- cem ao universo dos socidlogos e professores de letras. Ainda as- sim, sao estes Ultimos que mais nos ocorrem lembrar sempre que falamos de intelectuais. Além do mais, sao também os tltimos que mais exibem as atitudes, as crengas e os comportamentos associa- dos aos intelectuais. 22123 VERIFICAGAO EMPIRICA Sao externos os padrées pelos quais engenheiros e financistas sao julgados, pois a verificaco se encontra para fora do reino das ideias e para além do controle de seus pares. Um engenheiro cujas pontes ou cujos prédios desabam estar certamente arruinado, assim como um fi- nan ‘a que pede faléncia. Pouco importa quao plausiveis ou admiraveis leias possam, porventura, ter parecido aos seus colegas engenhei- ros e financistas, pois a qualidade do pudim seré atestada, fundamental- mente, quando 0 comermos. O fracasso, nesse caso, pode ser observado sua: no declinio de prestigio profissional, o que se d4 como efeito e nao como causa. Por outro lado, ideias que num primeiro momento pareciam desa- creditadas por seus colegas engenheiros e financistas podem vir a ser ple- namente aceitas entre os profissionais caso seu sucesso empirico se torne patente. O mesmo vale para cientistas e técnicos esportivos. No entanto, © teste fundamental para as ideias de um desconstrucionista realiza-se na opiniao de outros desconstrucionistas, os quais irdo dizer se acham ou nao acham as ideias interessantes, originais, persuasivas, elegantes ou engenhosas o suficiente. Nao existe um teste externo. Em resumo, dentre todos os que exercem ocupagées mentalmente exigentes, a linha demarcatéria que separa os mais propensos a se- rem vistos como intelectuais de outros menos propensos a receberem © titulo divide aqueles cujas ideias estao fundamentalmente sujeitas a critérios internos de verificagdo de outros cujas ideias estao fundamen- talmente sujeitas ao crivo externo da verificagao empirica. Entre os in- telectuais, os préprios termos que expressam admiragao ou reptidio re- fletem uma total falta de critério empirico. Ideias que sio “complexas”, “excitantes”, “inovadoras”, “cheias de nuance” ou “progressistas” sao admiradas, ao passo que outras ideias sao prontamente rejeitadas por serem “simplistas”, “ultrapassadas” ou “reacionrias”. Todavia, nin- guém julgaria as ideias de Vince Lombardi sobre o futebol americano por sua plausibilidade a priori, ou pelo fato de serem mais ou menos Os Intelectuais e a Sociedade | O Intelecto e os Intelectuais complexas do que as ideias de outros treinadores de futebol, ou se elas representam novas ou antigas concepgdes de como o jogo deveria ser jogado. Vince Lombardi foi julgado pelo que aconteceu quando suas ideias foram colocadas a prova no campo de futebol. De maneira semelhante, no campo completamente distinto da fisica, a teoria de Einstein sobre a relatividade nao conquistou acei- tagdo em fungao de sua plausibilidade, elegancia, complexidade ou novidade. Nesse caso, nao obstante o fato de outros fisicos terem sido nicialmente céticos, o proprio Einstein declarou que suas teorias nao deveriam ser aceitas até que pudessem ser verificadas empiricamente. O teste crucial ocorreu quando cientistas em todo o mundo observa- ram um eclipse solar, confirmando que a luz se comportara de acordo coma teoria de Einstein, descartando-se 0 quao implausivel a teoria possa ter parecido quando fora formulada. O grande problema —e o grande perigo social — de um critério pu- ramente interno é que ele pode facilmente blindar as ideias, protegen- do-as das verificacées e dos feedbacks do mundo externo, instituindo, assim, a permanéncia de métodos de validacdo meramente circulares. A plausibilidade ou nao que uma nova ideia incita depende do que cada um ja tem incorporado como crenga. Quando o tnico critério de validagdo externa se assenta no que outros individuos acreditam ou deixam de acreditar, tudo passa a depender da posigao que esses outros individuos ocupam, ou seja, quem eles sio. Caso sejam pessoas simples, as quais tém, em geral, um pensamento similar, entao 0 con- senso do grupo sobre uma nova ideia em particular dependera do que © grupo jé acredita em linhas gerais, porém nao teremos nada a dizer sobre a validade empirica a respeito dessa ideia no mundo externo. Ideias que se encontram blindadas no mundo externo em relagao 4 sua origem ou validagdo, podem, no entanto, exercer grande im- pacto no mundo no qual milhées de seres humanos vivem. As ideias de Lénin, Hitler e Mao exerceram um enorme - e geralmente letal — impacto na vida de milhGes de pessoas, mesmo ao saber da diminuta 24125 validade que tais dos que se encontravam fora dos circulos formados por seguidores s tinham em si mesmas, pelo menos aos olhos ideolégicos e subordinados ambiciosos. O impacto das ideias sobre o mundo real é bastante evidente. O oposto, todavia, nao se faz tao evidente assim, apesar de dizerem 0 contrério certas nogdes da moda, as quais nos querem fazer crer que grandes mudangas nas ideias sao geradas por grandes eventos. O re- cém-ganhador do Prémio Nobel, 0 economista George J. Stigler, des- tacou: “Uma guerra pode devastar um continente inteiro ou mesmo. destruir toda uma geragao sem, contudo, apresentar quaisquer novas questées teéricas”.* As guerras tém feito, com frequéncia, as duas coi- sas ao longo de muitos séculos, portanto essa questao nao representa um novo fenémeno para o qual uma nova explicagao seja necessaria. Alguém pode, por exemplo, considerar a economia keynesiana um sistema de ideias particularmente relevante aos eventos da épo- ca em que foi publicada — especificamente, a Grande Depressio da década de 1930 -, mas o que se faz notavel € 0 quanto isso se torna insignificante diante de outros sistemas intelectuais marcantes. Os objetos em queda livre se verificavam em maior ou em menor abun- dancia quando a leis da gravidade de Newton foram desenvolvidas? Novas espécies apareciam e velhas espécies desapareciam mais rapida € constantemente quando do lancamento de A Origem das Espécies de Darwin? O que produziu a teoria da relatividade de Einstein a nao ser seu proprio pensamento? PRESTAGAO DE CONTAS Os intelectuais s4o, no senso estrito que estamos vendo, fun- damentalmente inconsequentes as exigéncias do mundo externo. * George J. Stigler, Essays in the History of Economics. Chicago, University of Chicago Press, 1965, p. 21. Os Intelectuais e a Sociedade | O Intelecto e os Intelectuais A predominancia e a presumida conveniéncia dessa situagdo é confir- mada por coisas como estabilidade de cargos e privilégios académi- cos, além de conceitos cada vez mais expandidos de “liberdade aca- démica” e “autogeréncia académica”. Na midia, nogées expandidas de liberdade de expressao e de imprensa desempenham papéis seme- Ihantes. Tal irresponsabilidade diante do mundo real e concreto nao se apresenta como simples acaso, mas se coloca como principio. John Stuart Mill alegava que os intelectuais deveriam estar desimpedidos até mesmo dos padrées sociais — ao passo que ele mesmo determinava padrées sociais para os outros seguirem.’ Os intelectuais nao foram apenas isolados das consequéncias materiais, mas tém, com frequén- cia, gozado de imunidade contra, até mesmo, a perda de reputagdo, mesmo quando se comprova que estavam completamente errados. Como bem coloca Eric Hoffer: Um dos privilégios surpreendentes dos intelectuais é o fato de se en- contrarem livres para serem escandalosamente estdpidos sem, contu- do, sofrerem qualquer abalo em suas reputacdes. Os intelectuais que idolatravam Stalin, enquanto este purgava milhées e sufocava o menor sinal de liberdade nao foram, contudo, desacreditados. Eles ainda go- zam de ampla voz piiblica e avaliam cada novo tpico que aparece, sendo ouvidos com grande deferéncia, Sartre voltou da Alemanha em 1939, onde estudara filosofia, dizendo ao mundo que havia pouca di- ferenga entre a Alemanha de Hitler e a Franca. Ainda assim, Sartre acabou se tornando um papa intelectual, reverenciado pela classe culta em todos os lugares.* 7 Ver Thomas Sowell, On Classical Economics. New Haven, Yale University Press, 2006, p. 143-46. * Erci Hoffer, Before de Sabbath. Nova York, Harper & Row, 1979, p. 3. Richard Posner também disse que os intelectuais formadores de opiniao “os quais no esperam se submeter a0 minucioso escrutinio de um bidgrafo pou- co sofrem em suas reputagdes, mesmo que seja provado pelos eventos, ¢ de forma repetitiva, que estio equivocados”. Richard A. Posner, Public Intel- lectuals: A Study of Decline. Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 2001, p. 63. 26127 Todavia, Sartre nao estava sozinho. O ambientalista Paul Ehrlich disse em 1968: “A batalha para alimentar toda a humanidade est4 encerrada. Durante a década de 1970 o mundo passara por grandes surtos de fome - centenas de milhdes de pessoas morrerao de fome e ja € muito tarde para que qualquer programa de contengao tenha efeito”.? No entanto, depois que aquela década chegou e se foi, assim como aconteceu as décadas subsequentes, nao apenas a previsdo nao ocorreu, mas nos deparamos com o real problema de uma obesidade disseminada em nossa sociedade, assim como em um bom numero de outros paises, acompanhada pelo problema da superprodugao agri- cola. Todavia, o professor Ehrlich nao sé continuou a receber aplau- sos por todos os lados, mas também titulos e honras de prestigiadas instituigdes académicas. Em outro exemplo, Ralph Nader também se tornou publicamen- te conhecido apés 0 langamento de seu livro Unsafe at Any Speed [Perigoso em Qualquer Velocidade], 0 qual tratava dos carros ame- ricanos em geral e do modelo Corvair em particular, como veiculos extremamente inseguros e perigosos. Entretanto, estudos empiricos mostraram que o Corvair era, no minimo, tao seguro quanto os ou- tros carros de seu tempo,’ e Nader nao sé continuou a gozar de credibilidade, mas adquiriu uma reputacio de idealista e homem de insights, tornando-o uma espécie de guru tecnoldgico. Inumeraveis outros casos de previsdes equivocadas, abrangendo todos os campos, desde o prego da gasolina até o resultado das politicas da Guerra Fria, revelaram incontaveis falsos profetas, os quais acabaram recebendo, nao obstante, a mesma honra que teriam conquistado caso tivessem sido verdadeiramente proféticos. » Paul R. Ehrlich, The Population Bomb. Nova York, Ballantine Books, 1968, p. xi. 19 Os resultados do estudo do governo sobre a seguranga do Corvair foram relatados no Congressional Record: Senate (27/03/1973, p. 9.748-74). Os Intelectuais e a Sociedade | O intelecto e os Intelectuais Resumindo, as restrigées que se aplicam as pessoas na maioria dos outros campos profissionais nao se aplicam nem de forma apro- ximada aos intelectuais. Seria, portanto, surpreendente se tamanho desregramento nado levasse a um comportamento diferente. Dentre essas diferencas, destaca-se a maneira tinica que avaliam o mundo e a si mesmos em relacdo tanto aos seus irmdos seres humanos quanto em relagao as sociedades nas quais vivem. 28129 Capitulo 2 | Conhecimento e Nogées Desde cedo, quando ainda s30 muito jovens, as pessoas notadamente inteli- gentes sdo reconhecidas como tal e separadas em classes especiais, diferen- ciando-se de seus pares. Assim, s80 presenteadas com oportunidades indis- poniveis para outros, Por esses e por outros motivos, intelectuais tendem a ter um senso infiado de sua propria sabedoria Daniel J. Flynn’ Assim como acontece com todo mundo, os intelectuais compor- tam uma mistura de conhecimentos precisos e vagas nogées sobre as coisas. Para alguns intelectuais em determinadas 4reas, esse conheci- mento inclui informagées sobre procedimentos sistemAticos, cuja fun- Gao é testar a veracidade das nogées e determinar sua validade como conhecimento real. Uma vez que as ideias respondem pela vida pro- fissional dos intelectuais, é esperado que estes sejam mais minuciosos € sistematicos na afericdo dessas nogées, sujeitando-as aos devidos testes. Até que ponto eles realmente seguem essas normas é, também, uma nogdo que precisa ser testada. Afinal de contas, existem outras habilidades nas quais os intelectuais tendem a se.esmerar, incluindo habilidades retoricas que podem ser facilmente usadas para se furtar aos testes que avaliardo, de fato, a veracidade de suas nogGes favoritas. Portanto, as muitas habilidades de que os intelectuais disp6em po- dem ser usadas tanto para promogao dos padrées intelectuais quanto, ' Daniel J. Flynn, Intellectual Morons: How Ideology Makes Smart People Fall for Stupid Ideas. Nova York, Crown Forum, 2004, p. 4. Os Intelectuais e a Sociedade | Conhecimento e Nocdes ao contrario, para contornar esses mesmos padrées e promover pra- ticas nao intelectuais ou, até mesmo, anti-intelectuais. Em outras pa- lavras, intelectuais — definidos como categoria ocupacional — podem ou nao adotar os processos e as técnicas de aferi¢ao intelectual. De fato, € possivel que pessoas do identificadas como intelectuais puros, como é 0 caso de engenheiros, financistas, médicos, dentre outros, acabem aderindo aos procedimentos rigorosamente intelectuais com muito mais frequéncia do que a maior parte dos intelectuais. Até que ponto isso é verdade parece, aqui, mais uma quest4o empirica. O que é importante, nesse nosso caso, é 0 fato de nado permitirmos que a mera palavra “intelectual”, aplicada a uma categoria ocupacional, insinue a aplicagdo estrita de principios ou padrées intelectuais os quais, como estamos vendo, podem estar ou nao presentes. Embora existam importantes e rigorosos principios intelectuais, os quais compreendem alguns campos particulares em que alguns intelec- tuais se fazem especialistas, o fato € que ao se apresentarem como “in- telectuais publicos”, divulgando ideias e agendas para um publico que ultrapassa o circulo profissional restrito de seus colegas intelectuais, 0 rigor pode ser afetado, podendo acarretar discussdes mais genéricas, mais ideologicamente carregadas e mais politicamente orientadas. Bertrand Russell, por exemplo, era, ao mesmo tempo, um inte- lectual formador de opiniao e uma autoridade impar dentro de seu campo. Todavia, o Bertrand Russell que, em nosso caso, é relevante nao € o autor de tratados capitais em matematica, mas o Bertrand Russell que defendeu o “desarmamento unilateral” da Gra-Bretanha durante a década de 1930, enquanto Hitler reerguia 0 poderio bélico alemao. A defesa que Russell fez de uma politica de desarmamento para a Gra-Bretanha estendeu-se a um completo “desmantelamento do exército, da marinha e da forga aérea”= — destacando-se, mais 2 Bertrand Russel, Which Way to Peace?. Londres, Michael Joseph, Ltd., 1937, p- 146. 30131 uma vez, que, nao muito longe dali, Hitler se rearmava até os den- tes. Da mesma forma, o Noam Chomsky que nos importa nao é 0 académico especializado em linguistica, mas o Noam Chomsky que faz pronunciamentos de ordem politica similarmente extravagantes. O Edmund Wilson que nos é relevante nao é 0 critico literdrio alta- mente conceituado, mas aquele que exortou os americanos para que yotassem nos comunistas nas eleigdes de 1932. Em tal empreitada ele foi acompanhado de outros luminares da época, como John Dos Pas- sos, Sherwood Anderson, Langston Hughes, Lincoln Steffens e muitos outros escritores conhecidos da época.} Em 1933, durante uma visita aos Estados Unidos, George Bernard Shaw disse: “Vocés, norte-americanos, tém tanto medo de ditadores. A ditadura é a Gnica maneira que o governo tem para realizar as coisas. Vejam a bagunga que a democracia nos deixou. Por que vocés temema ditadura?”.* Ao sair de Londres para passar as férias na Africa do Sul, em 1935, Shaw declarou: “E bom sair de férias sabendo que Hitler dei- xou as coisas na Europa tao bem estabelecidas”.’ Embora, no final, as politicas antissemitas de Hitler tenham indisposto Shaw com o nazis- mo, o famoso dramaturgo permaneceu ao lado da ditadura soviética. Em 1939, depois do pacto germano-soviético, Shaw disse: “Hitler est sob a poderosa influéncia de Stalin, cuja predisposicio para a paz é impressionante. E a todos, menos a mim, assusta a sagacidade deles!”.* Uma semana depois, comegava a Segunda Guerra Mundial, com Hitler invadindo a Polénia em sua fronteira ocidental, prontamente seguido por Stalin, que invadiu o mesmo pais em sua porcio oriental. + League of Professional Groups for Foster and Ford, Culture and the Cri- sis: An Open Letter to the Writers, Artists, Teachers, Physicians, Engineers, Scientists and Other Professional Workers of America. Nova York, Workers Library Publishers, 1932, p. 32. + “Shaw Bests Army of Interviewers”. New York Times, 25/03/1933, p. 17. **G. B. Shaw ‘Praises’ Hitler”. New York Times, 22/03/1935, p. 21. * Carta a0 The Times de Londres, 28/08/1939, p. 11. Os Intelectuais e a Sociedade | Conhecimento e Nocdes A lista de intelectuais pres' afirmages absolutamente irresponsaveis e também defenderam po- sigdes desesperadamente perigosas, irreais e precipitadas poderia se estender quase indefinidamente. Muitos intelectuais formadores de opiniao sao devidamente reconhecidos dentro de seus campos de dos que dispararam as mesmas estudo, mas a questao, no caso, é que muitos deles nao se limitam aos seus respectivos campos. Como George J. Stigler disse a respeito de alguns de seus colegas agraciados com o Nobel, “mensalmente, e muitas vezes sem qualquer fundamento, eles lancam severos ultima- tos ao piiblico”.’ O equivoco fatal que tais intelectuais cometem é supor que uma habilidade intelectual impar, dentro de um segmento em parti- cular, deriva sabedoria e moralidade universal superiores. Mestres de xadrez, prodigios musicais, dentre muitos outros talentos que sio igualmente extraordindrios dentro de suas especialidades, as- sim como certos intelectuais, raramente cometem o mesmo erro. Tal constatagao € suficiente para que fagamos uma aguda distin- go entre a ocupacao intelectual e os padrées intelectuais. Esses padrées estado sujeitos aos desvios e as violagdes perpetrados pelos membros da ocupacao intelectual, especialmente quando os inte- lectuais se dedicam a exercer seu papel de formadores de opiniao, emitindo pronunciamentos sobre a sociedade e exortando essa ou aquela politica governamental. O que foi dito sobre John Maynard Keynes por seu bidgrafo e colega economista Roy Harrod valeria para muitos outros intelectuais: Ele falava sobre uma grande variedade de tépicos, alguns dos quais, ele revelava ser um profundo conhecedor, mas em relacdo a outros ” George J. Stigler, Memoirs of an Unregulated Economist. Nova York, Basic Books, 1988, p. 178. “Uma colegdo completa de declaracées puiblicas assina- das por notaveis, cujo préprio trabalho nao Ihes dava sequer reconhecimento profissional para tratar dos problemas referidos pelas declaragdes, seria uma coletanea um tanto quanto extensa e deprimente” (p. 89). 32133 ele apenas adaptava sua visdo a partir de algumas paginas de livros que ele folheara rapidamente. Em ambos os casos, porém, o ar de autoridade era o mesmo! CONCEITOS DE CONHECIMENTO CONCORRENTES Frequentemente e de forma arbitrdria, a forma como o conheci- mento é usado por muitos intelectuais limita que tipo de informagao ve cada e analisada sera considerada conhecimento. Essa limitagao arbitréria, em relacao ao significado do termo, foi expressa numa pa- rédia sobre Benjamin Jowett, mestre da Faculdade Balliol, na Univer- sidade de Oxford: Meu nome é Benjamin Jowett. Se for o caso de conhecimento, eu conheco. Sou o mestre desta faculdade. Aquilo que nao sei, no é conhecimento. Uma pessoa considerada “entendida” possui geralmente um tipo especial de conhecimento. Talvez possua conhecimento acadé- mico ou de outro tipo qualquer, mas que nao é amplamente encon- trado entre a populacgdo em geral. Alguém que tenha muito mais conhecimento sobre coisas mundanas, como encanamento, carpin- taria e beisebol, por exemplo, estara muito menos propenso a ser reconhecido, pelos intelectuais, como “entendido ou Versado”, pois, para eles, tudo o que desconhecem nao pode ser considerado co- nhecimento. Embora o tipo especial de conhecimento associado aos intelectuais seja geralmente mais valorizado e receba mais prestigio social, nao é certo, de forma alguma, que seja, necessariamente, mais significativo em seus efeitos no mundo real. © mesmo vale para 0 * Roy Harrod, The Life of John Maynard Keynes. Nova York, Augustus M. Kelley, 1969, p. 468. Os Intelectuais e a Sociedade | Conhecimento e Nogdes conhecimento associado ao universo dos especialistas. Sem duvida, os profissionais encarregados de conduzir o Titanic tinham muito mais qualificagao nos varios aspectos da navegacao em compara¢ao com a maioria das pessoas comuns, mas o que revelou ser crucial, em suas consequéncias, foi o conhecimento mundano sobre onde estariam localizados os icebergs da regido naquela noite. De forma semelhante, muitas decis6es econdmicas se encontram crucialmente dependentes do tipo de conhecimento mundano que os intelectuais talvez desdenhem, nao o considerando um conhecimento genuino no sentido que geralmente atribuem ao termo. A localizaco das coisas é apenas um dos tipos de conhecimento mundano e sua importancia nio se restringe, de forma alguma, a lo- calizagdo de icebergs. Por exemplo, o conhecimento mundano sobre a localizagao do cruzamento da Avenida Broadway com a Rua 23, em Manhattan, pode ser considerado irrelevante para determinar se um sujeito qualquer deve ser visto como uma pessoa entendida das coisas. Todavia, para um negociante procurando abrir uma loja, tal conhecimento pode representar a diferenga entre a faléncia e a capa- cidade de fazer milhdes de délares. As empresas investem grande soma de tempo e dinheiro para determinar a exata localizacdo de suas operacées, e essas decisdes nao sao, de forma alguma, aleatorias. Nao é mera coincidéncia que postos de gasolina sejam sempre encontrados nas esquinas e geral- mente préximos de outros postos, da mesma forma que concessio- narias de veiculos esto com frequéncia localizadas umas perto das outras, ao passo que papelarias raramente se encontram préximas umas das outras. Pessoas bem: formadas sobre o mundo dos negé- cios comentam que um dos fatores que respondeu pelo espetacular crescimento da rede Starbucks foi provocado pela atenco que seus gestores e executivos deram 4 escolha dos pontos para o estabeleci- mento das lojas, e um dos fatores que explica o fechamento de cen- tenas de lojas Starbucks, em 2008, foi justamente o abandono de tal 34135 pratica.’ Ja se tornou cliché, entre os corretores, que os trés fatores m determinantes sobre o valor dos iméveis sao a localizagao, a localizagao e a localizagao. A localizagao € apenas mais um, dentre muitos outros fatores mundanos que, nao obstante, impdem consequéncias significativas e, em geral, decisivas. O conhecimento mundano de uma enfermeira sobre se determinado paciente é alérgico a penicilina pode representa a diferenca entre a vida e a morte. Quando um avido se aproxima do aeroporto em procedimento de aterrissagem, a observag4o da torre de controle de que o piloto se esqueceu de abaixar o trem de pouso é 0 tipo de informagao cuja transmissao imediata para 0 piloto se faz crucial, apesar de tal conhecimento nao exigir nenhuma capacidade intelectual maior que a visdo. Um conhecimento antecipado sobre 0 local do desembarque das tropas aliadas no Dia D, o qual previsse que aquele desembarque ocorreria nas praias da Normandia e nao em Calais, como esperava Hitler, teria levado a uma completa alteracao tribuigao das forgas nazistas, o que acarretaria baixas muito mais altas, ceifando a vida de um numero muito maior de soldados, talvez de uma forma tao aguda que condenasse toda a operacdo, mu- dando, assim, o curso da guerra. Dessa maneira, boa parte desse conhecimento especial que se con- centra no universo dominado pelos intelectuais pode, contudo, nao ter © mesmo peso € as mesmas consequéncias que tem o conhecimento na muito mais mundano e singelo que esta espalhado entre a populacdo em geral. Em seu conjunto, o conhecimento mundano pode sobrepu- jar em muito o conhecimento especial das elites tanto em quantidade quanto em consequéncias. Se, por um lado, o conhecimento especial » Brad Stone, “The Empire of Excess”. New York Times, 04/07/2008, p. C1. A rede Wal-Mart, da mesma forma, colocou muita énfase na escolha do local para implantacao de seus supermercados. Richard Vedder e Wendell Cox, The Wall-Mart Revolution: How Big-Box Stores Benefit Consumers, Work- ers, and the Economy. Washington, AEI Press, 2006, p. 53-54. Os Intelectuais e a Sociedade | Conhecimento e Nocées dos intelectuais se estrutura quase invariavelmente como conheci- mento articulado, por outro lado outros tipos de conhecimento nao precisam estar articulados entre si nem mesmo precisam estar cons- cientemente articulados. Friedrich Hayek incluia como conhecimento “todas as adaptagdes humanas ao meio ambiente, nas quais a expe- riéncia pretérita foi incorporada”. Ele complementa: Nesse sentido, nem todo 0 conhecimento faz parte de nosso intelecto nem nosso intelecto responde pelo todo do conhecimento. Nossos hé- bitos ¢ habilidades, nossas atitudes emocionais, nossas ferramentas, € nossas instituigdes — so todos, nesse sentido, adaptagies a experiéncia passada que se desenvolveu por meio de uma seletiva eliminagao de modos menos apropriados. Assim como nosso conhecimento conscien- te, eles formam parte da mesma fundacao indispensdvel para o sucesso das ages humanas."® CONCENTRAGAO E DISPERSAO DE CONHECIMENTO Quando tanto o conhecimento especial quanto o conhecimento mundano sao contemplados e tidos como conhecimento genuino, tor- na-se duvidoso se mesmo a pessoa mais culta do planeta tem sequer uma pequena fragao de todo o conhecimento acumulado do mundo ou mesmo uma pequena fragdo do conhecimento mais significativo de uma sociedade qualquer. Tal constatacdo traz sérias implicacdes, as quais podem, den- tre outras coisas, ajudar-nos a explicar o motivo pelo qual tantos intelectuais proeminentes tém defendido, tantas vezes, nogdes que provam ser absolutamente desastrosas. Nao é apenas com o apoio dado as politicas e agendas particularmente desastrosas que os in- telectuais revelam os perigos embutidos em suas decisdes e seus fa- vorecimentos. Toda a abordagem sobre a condugao da sociedade — 10 FA. Hayek, The Constitution of Liberty. Chicago, University of Chicago Press, 1960, p. 26.

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