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A CONTRA- HISTÓRIA DA LUTA DAS RAÇAS

Gedeon José de Oliveira


UNISINOS
gjoliveira@zipmail.com.br

Resumo: No cenário atual, o debate em torno das cotas para negros, tem como pano de
fundo, o discurso sobre a igualdade das raças. Em tal discurso, se pressupõe a existência
de raças, e que a raça branca, encontra no Estado político, determinadas vantagens, em
detrimento da raça negra. Enquanto a Constituição Brasileira resguarda a igualdade de
direitos e deveres dos brasileiros, na prática, se evidencia a precariedade dos negros, cuja
maioria, se encontra em condições subumanas. Esse paradoxo nos permite colocar em
debate, a origem do termo raça, como condição para entender o grau de relação
epidérmica e suas conseqüências éticas.
Palavras-chave: raça, poder e governabilidade.

INTRODUÇÃO

Vivemos em um cenário histórico, em que o debate em torno das cotas para negros
nas universidades, tem como pano de fundo, o discurso sobre a igualdade das raças. Em tal
discurso, se pressupõe a existência de raças no processo civilizatório. No mesmo caminho,
a raça branca encontra, no Estado político, determinadas vantagens em detrimento da raça
negra. Enquanto a constituição Brasileira resguarda a igualdade de direitos e deveres dos
brasileiros, na prática se evidencia a precariedade dos negros, cuja maioria, se encontra em
condições subumanas. O que torna o termo raça um atenuante. Ou seja, é difícil ser negro
no dia a dia, mas quando se trata de adquirir bens intelectuais quanto materiais, se impõe a
raça como condição. Esse paradoxo nos permite colocar em debate, a origem do termo
raça, como condição necessária para entender o grau de relação epidérmica e suas
conseqüências éticas. Como foi possível fazer a passagem de uma dimensão biológica, que
é a tonalidade da pele, para um tipo de relação política de disparidade? Qual o uso ou
sentido político do termo raça?
Branco e negro são termos que, ao longo da história, se estabeleceu como forma de
relação entre os seres humanos, mas também de estigma. Ao termo “negro” estão
associados elementos simbólicos que de muitas formas impedem seu acesso aos bens de
consumo e a uma relação de qualidade. Em termos éticos, os problemas ficam cada vez
mais acirrados. Quando se vê uma pessoa, independentemente de sua cor epidérmica, se
vê, igualmente, seus parâmetros éticos? Como saber se uma pessoa é boa ou justa, a partir
da cor da pele? O que é mais importante nas relações pessoais e interpessoais, a cor da pele
ou sua prática?
Essas perguntas colocam o dilema entre os parâmetros éticos constitucionais e a
política “das raças”. No entanto, nosso principal propósito é analisar o surgimento do
discurso sobre as raças, justamente por entender que tal discurso está imbricado no poder e
na forma de como o estado nasceu e se organizou ao redor dos sujeitos. Este viés tem a
potencialidade de nos ajudar a entender a perpetuação do termo raça, como forma de
classificação da sociedade. Se, portanto, chegarmos a tal conclusão, logo poderemos, como
pessoas comprometidas na transformação da sociedade, do mesmo modo, mudar nossos
discursos, assim como nossas posturas. Para tanto, utilizaremos o livro em Defesa da
Sociedade, de Michel Foucault e Na Casa de Meu Pai, de Kwame Anthony Appiah, A
África na Filosofia da cultura, como livros básico da pesquisa.

VESTIGIOS DO TERMO RAÇA

A prática escravagista é muito antiga. Entretanto, a prática escravagista baseada na


dimensão epidérmica se estabeleceu durante a Idade Média. Raça e racialismo passaram a
ser parâmetro com os quais se sedimentou as sociedades modernas. De modo que tais
terminologias são fenômenos que tem pouco mais de quatrocentos anos. O termo raça foi
cunhado simultaneamente com a ciência antropológica na Europa.
Em maio de 2001, ouve um congresso internacional com o título “a invenção alemã
de raça”. A teoria por trás desta conferência de vários campos de estudo – história antiga,
lingüística, religião e a criação da nova disciplina de antropologia, que normalmente é
creditada a Johann Friedrich Blumenbach, - levou a invenção do conceito moderno de
raça. 1 Se foi, ou não, os alemães ou franceses que criaram o conceito de raça, o fato é que
ambos conspiraram para se tornarem o centro do mundo. Soma-se a esse detalhe, a
produção de uma biblioteca, onde o termo raça passa a estabelecer a forma política da
organização das sociedades. Não obstante, não devemos negligenciar o papel da igreja
católica na sua política de pureza de sangue. De modo a estabelecer a idéia entre o racismo
religioso e o racismo científico.
No século XV 2 , surge o supremo conselho da inquisição espanhola, para evitar que
“novos cristãos”, descendentes diretos de Judeus e muçulmanos recentemente convertidos,
entrassem nas áreas mais altas e sensíveis da sociedade e do governo cristão espanhol.
A existência de muitas culturas na Espanha, sempre dificultou a elaboração de uma
identidade nacional, de modo que a limpeza de sangue serviria para preservar suas raízes
góticas e romanas.
O padrão de sangue puro foi depois aplicado no Novo Mundo para lidar com
questões de identificações de pessoas indígenas e escravos africanos nas Américas, os
filhos e as filhas de espanhóis (crioullos) e os filhos e as filhas de uma união entre pessoa
espanhola e uma pessoa indígena ou africana (mestizos). 3 A necessidade de legitimar uma
hierarquia de civilizações, levou tanto o Estado quanto à igreja católica a criarem um
conceito de raça. E tal conceito ainda perdura como forma relação.
O racismo contemporâneo traz a marca incontestável da forma com que Igreja
tratou os africanos. O papa Nicolau V, em 1454 assinou a bula Romanus Pontifex, dando
exclusividade aos portugueses nos negócios da África. Este afirmava que em todo caso os
negros seriam batizados e sua captura e escravidão serviram por tanto, para salvar-lhes a
almas. Mais duas bulas foram destaques, emitidas em 1456 e 1481 pelos papas Calisto III e
Sixto IV, que afirmavam que o ouro e os escravos são os principais produtos da áfrica 4 .
Foi justamente com esta base moral que os portugueses começaram o assalto a África.
Em 4 de maio de 1493, o então Papa Alexandre VI, emitiu, com base no poder
jurídico, uma bula dando direito de conquista a Espanha e Portugal.
                                                            
1
 NASH, T. Peter. Relendo Raça, Bíblia e Religião. Centro de Estudos Bíblicos. São Leopoldo: Con‐Texto. 
2005. p. 18. 
2
 Ibidem. p. 19. 
3
 Ibidem. p. 19. 
4
JULIO. J. Chiavenato. O negro no Brasil da senzala a guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense. 1987 p. 46
Pela autoridade do Onipotente Deus, a Nós e a São Pedro concedida, e do
Vicário de Jesus Cristo que exercemos nesta terra, com todos os senhorios
dela, cidades, castelos, lugares e vilas, com todos os direitos e pertenças, os
concedemos e outorgamos perpetuamente a Vós e aos reis de Castela e Leão,
vossos herdeiros e sucessores, e fazemos e constituímos a Vós e aos ditos
vossos herdeiros e sucessores Senhores delas com livre, total e absoluto
poder, autoridade e direito. 5

Assim, o extermínio dos índios, se justificava pelo direito de posse das terras na
America Latina. O direito de guerra contra os indígenas estava estabelecido. O
colonialismo se tornou um sistema bem elaborado pela igreja, através do Estado. O
extermínio dos índios por parte da Espanha levantou o debate a cerca dos direitos das
vítimas. Entre os defensores dos direitos dos índios, estão Bartolomé de Las Casas,
Francisco de Vitoria 6 e outros intelectuais, que levaram o debate as salas de aulas. Mas a
questão principal levantada nos debates, era se o índio teria ou não autonomia. E se tal
autonomia dava direito ou não a perpetuação da colonização, no que diz respeito à posse da
terra, pois a dúvida que surge, portanto, é se os índios podiam ter algum outro senhor
superior, 7 assim como o papa foi para a Europa e America Latina.
Deste modo, Temos um discurso de verdade teológico, e outro político, cujo efeito
dessas verdades foi à invasão e o extermínio dos indígenas, como o apoio da maioria dos
europeus. Ambos os discursos constituem os mecanismos legitimadores, tanto do
massacre aos índios, quanto a escravatura, cujo principal interesse era obter as riquezas no
novo mundo para atender a demanda econômica da Europa em crise. Ora, para que o
Estado se torne hegemônico, ele primeiro gesta determinadas verdades, cujo interesse,
extrapola a condição dos sujeitos. O próprio fato de estigmatizar os nativos de indígenas, já
constitui os germes da dominação.
A escravidão, portanto, foi obra da “inteligência” da igreja e do estado, pois o
modelo de sociedade centrada na teoria da soberania, que foram modelos políticos que
precede o modelo escravocrata, a relação povo e soberano, tinha outros parâmetros.
Foucault elabora três teorias acerca da soberania, dentre as três uma se destaca no
que se pretende formular: a teoria da soberania se confere, no início, uma multiplicidade de
poderes que não são poderes no sentido político do termo, mas são capacidades,
possibilidades, potências, e que ela só pode constituí-los como poderes, no sentido político
do termo, com a condição de ter, entrementes, estabelecido, entre as possibilidades e os
poderes, um momento de unidade fundamental e fundadora, que é a unidade do poder. Que
essa unidade do poder assume a fisionomia do monarca ou do estado8 .
Foucault argumenta que a soberania do estado constitui-se não exatamente segundo
a lei, mas segundo certa legitimidade fundamental: o do sujeito que deve ser sujeitado, o da
unidade do poder que deve ser fundamentada, e o da legitimidade que deve ser respeitada 9 .
Em outras palavras, Foucault põe em circularidade o sujeito, o poder da unidade e a lei que
ostenta a estrutura política do estado, sua disseminação nas instituições e sua legitimação
na infra-estrutura. Como esses elementos se correlacionam é que vai ser o suporte que
sustenta o estado político como legítimo.
A teoria da soberania é vinculada a uma forma de poder que se exerce sobre a terra
e os produtos da terra, muito mais do que se exerce sobre os corpos e sobre o que eles
                                                            
5 CARRO, Venancio D. La teologia y los teólogos juristas españoles ante la conquista de América. Madri: BAC, 1944, p. 39.
6 VITÓRIA, Francisco de. Os índios e o direito de guerra. Rio Grande do Sul: Unijuí. 2006.
7 Ibidem. p. 60.
8
 FOUCAULT, Michael. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1999. P.50. 
9
 Ibidem. p. 50. 
fazem. 10 O poder soberano consiste em manter o povo ao redor do soberano, o tipo de
poder eclesiástico, vai ser de investir na eliminação dos corpos ou da conversão dos corpos
aos princípios religiosos. Aqui se materializa a inversão do poder na sociedade burguesa: O
poder de disciplinar. “Portanto, as disciplinas vão trazer um discurso que será o da regra;
não o da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra natural, isto é, da norma. Elas
definirão um código que será aquele, não da lei, mas da normatização, e elas se referirão
necessariamente a um horizonte teórico que não será o edifício do direito, mas no campo
das ciências humanas. E sua jurisprudência, para essas disciplinas, será de um saber
clinico”. 11
O poder soberano não vai ser anulado, mas vai coexistir com as mecânicas
disciplinares. Esse dois mecanismos vão constituir os artifícios pelos quais vão se
estabelecer como relação de dominação na fabricação dos sujeitos. Foucault vai dizer que
vai haver, também, a inversão forças de relação de poder. Aquele poder ao qual Hobbes,
teorizou de todos contra todos, aonde os discurso das guerras de fronteiras, vão se legitimar
pelas guerras entre os indivíduos, como forma de sustentação da soberania de um sobre os
demais.
No século XVI e inicio do século XVII, o discurso histórico não vai ser mais o
discurso da soberania, nem se quer de raça, mas serão os discursos das raças, do
enfrentamento das raças, das lutas das raças através das nações e das leis 12 , substituindo a
relação do povo com o monarca, assim como vem substituir a unidade do Estado soberano.
A história passa a ser a história do triunfo de uns, submissão de outros. Neste sentido, a
exploração de alguns sobre a maioria, ultrapassam os códigos de leis e normas, e se
constituem como técnica de normatização dos corpos.
A inferioridade do negro em relação ao branco constitui uma dessas técnicas. Ao
bloquear o acesso a universidade, o Estado perpetua a inferiorização do negro, para que
este não venha contaminar a elite branca. Como a maioria dos negros se encontra em
estado de pobreza e morando em favelas, o Estado se torna ausente. Torna-se ausente
porque não tem investimento em educação de qualidade, nem em infra-estrutura. Deste
modo a opção mais fácil chega por meio do tráfico de drogas. Daí decorre o inchaço nas
prisões, cuja presença é predominantemente de negros. Esses dados confirmam a tese de
que o negro, de fato é inferior ao branco. Quando na verdade a forma como estado está
organizado, impede o acesso dos negros tanto a escola quanto aos bens de consumo.
Tornando vicioso um círculo que já duram 131 anos, sem contar os quatrocentos anos
anteriores. Os negros por sua vez, assim como os brancos, não conseguem perceber que o
racismo, ou o preconceito baseado na pigmentação epidérmica, constitui técnicas, outrora
de subjetivação e hoje de normatização. Deste modo não é o Estado que vai trazer grandes
modificações, mas depende primeiro da pessoa, de se posicionar perante si mesmo, como
sujeito que pode ultrapassar as barreiras impostas pelas técnicas de normatização. Assim
fez Zumbi dos Palmares, que constituiu exemplo de subjetividade, ao extrapolar os
mecanismos de escravização. Assim como tantos outros que não estão limitados a cor da
pele.

A ARQUEOLOGIA DA RAÇA.

A palavra raça, designa uma certa clivagem histórica-política, ampla, mas


relativamente fixa. Dirão e nesse discurso dizem, que há duas raças quando se faz a
história de dois grupos que não têm a mesma origem local; dois grupos que não têm, pelo
                                                            
10
 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.1999. p. 43.  
11
 Ibidem. p. 45. 
12
 Ibidem. p. 80. 
menos na origem, a mesma língua e em geral a mesma religião; dois grupos que se
formaram uma unidade e um todo político a custa de guerras, de invasões, de conquistas,
de batalhas, de vitórias e derrotas, em suma, de violência da guerra. 13 Raça, neste sentido,
não traz, ainda, a conotação epidérmica, mas já contém implantadas suas as sementes.
No século XIX, a luta das raças, paulatinamente vai dando lugar a luta de classes.
Mas o que vai acontecer, é que vai se recodificar em termos, não em lutas de classe, mas
de luta de raças, das raças no sentido biológico e médico do termo: reciclando a forma, o
alvo e a própria função do discurso sobre a luta das raças, mas deturpando-os, esse racismo
se caracterizará pelo fato de que o tema da guerra histórica - com suas batalhas, suas
invasões, suas pilhagens, suas vitórias e suas derrotas - será substituído pelo tema
biológico, pós-guerreiro, mas luta no sentido biológico.14 assim nasce o racismo. Assim o
Estado vai se organizar, em torno de um grupo de sujeitos, biologicamente puros, como no
caso de Hitler. Deste modo as histórias dos heróis das guerras travadas pelos reis, vão
dando lugar a guerra das raças.
No fim do século XVI e o no inicio do século XVII, a nobreza francesa começou a
fazer sua genealogia não na forma da continuidade, mas ao contrário, na forma de
privilégios que ela teria tido outrora, e que depois teria perdido e que se trataria de
recuperar, todas as pesquisas que se fizeram a partir desse eixo vieram interferir na
historiografia da monarquia francesa 15 . Assim, se da à produção do saber, que venha dar
legitimidade aos que detém o poder. Poder e perpetuação do poder. Trata-se, pois, da
apropriação de uma racionalidade, que por sua vez, cria um saber, para que o poder se
perpetue como forma de dominação política.
A Igreja católica fez o mesmo processo. O papado se sustenta na crença de que
Pedro como primeiro papa, passou a chave da igreja para os seus predecessores. E utiliza a
bíblia como fonte de conhecimento, para dar legitimidade histórica ao poder de um
homem. Essa estória vai impedir que uma mulher venha ocupar um cargo de papisa. Assim
como Jesus só escolheu homens para segui-lo, por isso só homens podem ser padres. Esse
é o poder da história contada e escrita, que interfere e modifica, com base nos interesses
políticos, a forma de como deve se estabelecer as relações, para assim, perpetuar os
privilégios.
A busca por uma genealogia, com o passar dos tempos, foi entendida como a
prefiguração de uma única raça que deveria ocupar a nobreza. O que vai tornar o termo
“raça” não só a vitória de alguns sobre outros, mas, sobretudo, uma doutrina que vai ser
aplicada para caracterizar o continente africano.
O racialismo é um pressuposto de outras doutrinas que foram chamadas de
“racismo”. Uma dessas doutrinas é o que se poderia chamar de racismo extrínseco. Estes
fazem distinções morais entre os membros das diferentes raças. Acreditam que os
membros das diferentes raças diferem em aspectos que justificam o tratamento
diferencial. 16 Outra doutrina é o racismo intrínseco: pessoas que estabelecem diferenças
morais entre os membros de diferentes raças, por acreditarem que cada raça tem um status
moral diferente independentemente das características partilhadas por seus membros 17 . O
contraste entre racialismo e racismo e a identificação de dois tipos potencialmente
superpostos de racismo fornecem-nos o esqueleto de uma anatomia das atitudes raciais.

                                                            
13
 Ibidem. p. 90. 
14
 Ibidem. p. 94. 
15
 Ibidem. p. 91. 
16
 APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto. 1997. p.
35.
17
 Ibidem. p. 36. 
Falar de raça é particularmente desolador para aqueles de nós que levamos a cultura
a sério. É que, onde a raça atua, ela atua como uma espécie de metáfora da cultura; e só o
faz ao preço de biologizar aquilo que é cultura, a ideologia. 18 Mas o problema não são as
raças e nem nunca foram. A questão que se impõe, é como se constitui a relação de poder,
ao longo da história? O poder se constituiu na subjugação e na subjetivação dos sujeitos,
através de um discurso sobre o que é verdade é o que é falso, sobre o quem é branco e o
quem é negro. Para isso, paralelamente foi surgindo à ciência para a comprovação dos
fatos: quem tem sangue puro ou impuro; quem pode subir ao trono e quem não pode; quem
pode ser presidente e quem não pode; quem é saudável e quem é doente.
O estado não é o instrumento de uma raça contra uma outra, mas é, e deve ser, o
protetor da integridade, da superioridade e da pureza de raça. A idéia da pureza da raça,
com tudo o que comporta a uma só tempo de monísticos, de estatal e de biológico, será
aquela que vai substituir a idéia da luta das raças 19 .
O racismo foi o meio pelo qual se pensou e se organizou o estado e as instituições.
Essa não só foi a contra-história, mas também a contra-revolução. A natureza humana
passou a ser cada vez mais considerada em termos das ciências da biologia e da
antropologia. Inevitavelmente, a nação passou a ser mais e mais identificada com uma
unidade biológica, definida pela essência comum que decorreria de uma ascendência
comum. Cria-se um sistema em que estrangeiro é um inimigo que pode contaminar os
mecanismos de purificação de uma raça ou de uma classe que gesta e detém o poder.
O corpo social é resultado do desmembramento do estado e da descentralização do
poder, este ultimo, é distribuído nas instituições, que operando de forma individualizada,
resulta basicamente em dois aspectos fundamentais: de um lado o corpo social tem uma
dimensão universal do sujeito, de outro lado, as instituições têm uma dimensão particular
do mesmo sujeito. A espinha dorsal entre uma e outra, é a materialidade do poder que é
exercido sobre o próprio corpo do sujeito, que agora é socializado. Isso quer dizer que as
instituições, mesmo portando determinado poder, ela não é externa ao ser humano, ela não
oprime, não aliena simplesmente. Ela se sustenta enquanto identificação relacional com
individuo, como aspecto internalizado, absorvido, justamente pelo papel que as instituições
desempenham dentro da sociedade. Pelo peso econômico, educacional, hospitalar em que
as instituições se mostram, e como poder sobre a vida, sobre o destino do sujeito, sobre sua
utilidade social ou não. Quando o IBGE elabora as pesquisas anualmente, e classificam as
pessoas entre brancas ou negras, tal órgão não tem como objetivo respeitar a liberdade de
cor dos sujeitos, mas sedimentar tal classificação. Do mesmo modo o estatuto da igualdade
racial. Tal estatuto vem garantir que se perpetue na história uma relação de concorrência
baseada na tonalidade da pele. O preconceito existe, mas é uma construção cultural. Tais
projetos governamentais vêm fortalecer o que a cultura já cristalizou. Penso que seria
importante uma educação que venha desconstruir e desmitificar a relação negro/branco, e,
através de um processo educacional promover uma identidade nacional baseada na riqueza
da diferença e da pluralidade de expressões que formam a nação brasileira. Pois alimentar
uma relação de inferioridade é prejudicial tantos para os que se consideram negros quanto
para os que se consideram brancos.
Quando digo que o outro é inferior, o outro convertível, o outro a eliminar, são
modos de abordagem do material histórico concreto que é preciso utilizar a cada vez com
conhecimento de causa 20 . No caso dos judeus a solução para um estado de raça pura, foi à
eliminação dos mesmos. Para os negros, foi mais financeiramente econômico, escravizar
                                                            
18
 Ibidem. p. 75. 
19
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1999. p. 95.
20
CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007.
p. 270.
muitos, e exterminar, em relação à quantidade, alguns. Pois era impossível enriquecer,
explorando e exterminando ao mesmo tempo.
O conhecimento do outro, implica e pressupõe a inferioridade, como no caso dos
nacionalismos. Uma simples atividade culinária de uma determinada cultura, em
comparação a outra, já contém os germes de superioridade e inferioridade: o churrasco do
sul é superior ao churrasco paulista. Nesta superficialidade se manifesta algo muito mais
profundo. No nível mais profundo do pólo da identidade menos conhecido de nós todos.
Eliminemos também respostas que apelam para elementos demasiados diurnos*, a
racionalizações de atributos exteriores: porque os judeus-capitalista nos roubariam nosso
dinheiro, ou porque os negros, os árabes seriam super-sexuados e colocariam em perigo a
nossa virilidade. 21
Assim, se chegamos ao racismo em sua ponta extrema dizendo que as formas mais
exarcebadas do ódio do outro constituem, do ponto de vista psicológico e psicanalítico,
monstruosos deslocamentos transferidos para o outro, esse ódio de si que não pode se
realizar sobre o próprio sujeito e através dos quais o sujeito consegue, ao mudar de objeto,
guardar o afeto. Ele guarda esse ódio absolutamente impossível de saciar e em vez de
dirigi-lo contra seu o objeto inicial, que é sua existência diurna, volta-se contra o outro
alguém, que ele destrói, elimina. 22 Aqui se encontra o fundamento da conversão do outro
ou da eliminação.
Todavia, essa realidade não pode e não deve determinar o ser humano. De fato a
forma de como foi criado e moldado o humano, é que deve ser revertido. Como reverter
esse processo? Pensar a sociedade, o estado a partir da pessoa e não do coletivismo ou do
individualismo. E o que é a pessoa? A pessoa é relação. Não se pode falar de estado, de
sociedade, de instituição sem relação à pessoa. O primeiro ato da gente deve ser, pois, a
criação com outros de uma sociedade de pessoas, cujas estruturas, costumes, sentimentos e
até as instituições estejam marcadas pela sua natureza de pessoas: sair de nós próprios;
compreender; tomar sobre nós, assumir o destino, os desgostos, as alegrias, as tarefas dos
outros 23 . Educar para o outro possibilita sinais de grandes mudanças, educação na
totalidade do humano, não da separação do outro, não do dualismo negro e branco, não do
determinismo, mas à relação como substrato. Relação com o outro, com a natureza e com o
mundo

REFERÊNCIAS

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de
Janeiro: Contraponto. 1997.
CARRO, Venancio D. La teologia y los teólogos juristas españoles ante la conquista de
América. Madri: BAC, 1944.
CASTORIADIS, Cornelius. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 2007.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.1999.
                                                            
21
Ibidem. p. 272.
22
Ibidem. p. 273.
23
 MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. São Paulo: Centauro. 2004. P. 47 
*os resíduos diurnos que sabemos serem os elementos deflagradores do sonho, foram matéria pré‐inconsciente que, 
tanto no período noturno como no estado de sono, tinha estado sob a influência de impulsos plenos de desejos, 
inconscientes e reprimidos; tais resíduos diurnos, combinando‐se com estes impulsos e graças à energia desses, foram 
capazes de construir o sono latente. In. (http://www.scribd.com/doc/4564368/Vol‐16‐Conferencias‐introdutorias‐
sobre‐psicanalise‐parte‐3) pesquisado dia 28/08/2009 
 
MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. São Paulo: Centauro. 2004
NASH, T. Peter. Relendo Raça, Bíblia e Religião. Centro de Estudos Bíblicos. São
Leopoldo: Con-Texto. 2005.
VITÓRIA, Francisco de. Os índios e o direito de guerra. Rio Grande do Sul: Unijuí. 2006.

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