Você está na página 1de 49
Avistteles eo logos, Barbara Cassin ‘Axistételes no século XX, Enrico Bert ‘Ate, politica ¢ educagdo em Walter Benjamin, Matha D'Angelo Gelicismo, Charles Landesman Da naturesa, José Gabriel Trindade Santos Despertar da conscigncia na civilizaglo medieval (0), Marie Dominique Chenu Dilogos com a cultura contemporinea, WA Epieteto ca sabedora esis, Jean-foel Duhot Erie Weil e compreensto do nosso tempo, Marelo Perine Estudos de éticaeflosoia da religio, Francisco lavier Herero Filosofia a patir de seus problemas (A), 3* ed, ‘Mario Ariel Gonzélez Porte Filosofia da citncia — introdugio ao jogo e a suas regras, 11" ed, Rubem Aber Filosofia da natureza (A), Jacques Maritain Foucault ea fenomenologia, Marcos Alexandre Gomes Nall Foucault, simplemente — textos reunidos, Salma Tanmus Mucha LerPlatio, Thomas A. Sclezak Metfora viva (A), 2 ed, Paul Ricoeur Movimento sofista (O), GB. Kerferd Nietzsche e Freud — etemo retomo e compulsto a repetigao, Rogério Miranda de Almeida Niilismo (O), Franco Volpi Oficio do fildsofoestdico (0), Rachel Gazolla Ordem do ciscurso (A), 13° ed, Michel Foucault Para nfo ler ingenuamente uma tragédia grega, Rachel Gazolla Quatro ligdes sobre étca de Aristtcls, Marcelo Perine Que €filosofa antiga? (0), 2" ed, Pierre Hadot Razdes de Aristételes (As), 2* ed, Enrico Berti Saber as antigos — terapia para os tempos atuas, 2 ed, Giovanni Reale Sete ligdes sobre ser, 3* ed, Jacques Maritain Sobre politico de Patio, Comelius Castoriadis Sécrates, Denis Huisman crates ou o despertar da conscigncia,Jean-oe! Duhot Séecates,o feiticeto, Nicolas Grimaldi ‘Tempo em Plato e Aristteles (O), Remi Brague ‘Tempo erazao — 1.600 anos das Canfisséet de Agostinho, Garlos Arthur A. Naseimento ‘Transformagio da filosofia, vol. 1,2" ed, Kar-Otto Apel ‘Transformagio da filosoia, vol. 2; KarLOtto Apel Vontade de rer (A), William James Mario Ariel Gonzdlez Porta A FILOSOFIA A PARTIR DE SEUS PROBLEMAS Diddtica e metodologia do estudo filosdéfico Nota Prévia Para faclitar a leitura, estabelecemos alguns critérios com respeito aos destaques e referéncias usados no texto: a) termos que designam conceitos-chave para o traba- Iho sdo escritos em negrito na primeira vez em que sio empregados no contexto no qual sao relevantes. b) titulos de obras e palavras estrangeiras aparecem sem- pre em itdlico. ) as remissdes a outras partes do texto foram assinala- das com o ntimero da Parte, seguido dos némeros do capitulo e da secéo (por exemplo: 1°, 1, 1.1). Sumario Agradecimentes... Nota prévia Introducéo Finalidade do livre Estrutura temética . 1* Pare, A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS CCaptruo 1 ~ AS DIVERSAS RELAGOES POSSIVEIS COM A FILOSOFIA 1.1. Ensinar filosofia e ensinar a filosofar suse 1.2. As diversas relacées possfveis com a filosofia .... Cariruto 2 - Os MoMenros ESSENCIAIS DO “MODO FILOSOFICO DE PENSAR” 2.1. A primeira imagem da filoso’a ... 2.2. “O problema” como momento essencial do pensar filos6fico (tema, problema, questo, pergunta 2.3, Existem "problemas filos6ficos"? 2.4. A tese... 25. O argumento e a fundamentagéo 2.6. Questées de sistematicidade intrafiloséfica . 38 2.7. Resumo: resultados e perspectivas sree, 39 Cartruto 3 - AFINAL, 0 QUE £ FiLOsoFlA? PRIMEIROS ELEMENTOS PARA. UMA RESPOSTA .. a 3, Introdugio .. Al 3.2. O conceito de racionalidade .. 2 3.3. A filosofia como culminagdo da racionalidade 44 3.3.1. Filosofia e esclarecimento 44 3.3.2. Filosofia e intersubjetividade 4S 3.3.3. Filosofia e algoritmo..... 46 3.3.4. Filosofia e reflexividade 46 34, Filosofia, cultura e sociedade..... 49 Cariruto 4 - O texto... 51 4.1, Como se lé um texto fil0s6fico? vvsunesecoee 51 4.2, A compreensio do texto .. 53 4.2.1, O que é “entender” um texto? « 54 4.2.2. Por que as vezes nio entendo e 0 que devo fazer quando isso acontece? 37 4.2.3. Como sei se entendi “corretamente”? 59 4.3. A anilise do texto . 62 43.1, Retraducio semintico-gramatical: explcitagao exaustiva dos recursos puramente lingiifsticos 63 Excurso.... 64 4.3.2, Retradugio técnica: substituigéo de definigses 65 4.3.3, Taxonomia seméntica: tipologia dos contetidos presentes no texto. 67 43.4, Retraducho l6gicd..n ne 69 4.3.5. Modalizacao veritativa da tradugio alcangada 71 4.3.6. Entender e interpretar: para uma nova versio do texto .. 73 Cariruto 5 - © conrexto .. 7 5.1. Texto e contexto... 7 5.2. A historicidade do pensar 8 5.2.1. O status quaestionis.. 81 10 | nado" da histéria da filosofia 5.3. A reconstrucio do problema... 5.3.1. A reconstrugdo racional do problema 5.3.2. A reconstrugio histérica do problem .. Cartru.o 6 ~ O NAo-TExTUAL 6.1. A nogio de “texto”: texto e escrita ... 6.2. Falécia da harmonia hermenéutica preestabelecida 6.3. Redimensionamento de “texto” como instrumento de aprendizagem ¢ estudo filoséfico, assim como da prépria filosofia.. 6.4. A atividade filos6fica 655. As modalidades nio-textuais da atividade filossica 6.6. Texto € tradigio viva, O mestre e a escola... 2° PARTE EXEMPLOS Cairo 1 — © prosuema DA Cafrica Da RAziO PURA LL. Introdugao wn 1.2. O problema eritico 1.2.1. O problema t 1.2.2. O problema p 1,3. O caminho da solugao 1.3.1. A solugéo do problema pritico .. 1.3.2. A solugio do problema teérico 1.33. Coincidéncias e diferencas entre as solucdes das questées pritica e tedrica .... 1.4. O lugar de Kant na histéria da filosofia .. Cartruto 2 ~ © PROBLEMA DA “FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOLICAS” 21. Introduc80 2.2. Os pressupostos .... 2.2.1. O idealismo aleméo 2.2.2. O neokantismo . 2.3. Cassirer € a filosofia das formas simbélicas, 2.3.1. Introdugio 82 84 85 87 88 91 91 4 95 97 98 . 101 107 107 107 som 108 . 118 120 120 123 127 127 129 129 130 130 131 137 137 2.3.2. A filosofia cassireriana das mater’ e da fisica.. problema das ciéncias do espirito . 140 2.3.4. A filosofia das formas simbélicas .. 2.315. Estudo comparado de algumas formas icas simbélicas ............ . 151 2.4. A modo de concluséo: 0 pluralismo e problema da objetividade... sess 153 Carfruto 3. = A UNIDADE DA FILOSOFIA CONTEMPORANEA DO PONTO DE VISTA DA HISTORIA DA FILOSOFIA 187 3.1. Introdugio sm 157 3.2. Periodo metafisico wn 159 3.3. Periodo transcendental 160 3.4. A filosofia contemporanea .. mes 162 3.4.1. A filosofia analitica.. 162 3.4.2. Fenomenologia-hermentutica.. 166 3.4.3. Uma aproximagio sistemética da questo da unidade do pensamento contemporineo na perspectiva da hist6ria da filosofia 172 3.5. Consideragao final 178 12 | Introdusdo Finalidade do livro Este livro se propde um fim essencialmente prético, e seré por sua utilidade que teré de ser julgado; se ajudar aqueles aos quais se dirige, teré cumprido 0 seu objetivo. E claro que pressuposicées tedricas de todo tipo e natureza esto presentes no que se segue, sendo discutfveis enquan- to tais. A fim de evitar que as propostas degradassem em receitas rigidas, nio pude deixar de explicitar tais pressu- postos em alguna medida, sobretudo enquanto se referiam 4 idéia de filosofia, Nio obstante, nao esté no centro do meu interesse neste texto discuti-los, fundamenté-los ou polemizar com outros pontos de vista, senao, simplesmen- te, por um lado, expé-los e, por outro, exemplificé-los, Em nenhum momento me propus a oferecer uma “teoria” dos temas tratados, mas apenas uma reflexao, que, ao temati- zat uma prixis efetiva, possibilitasse sew partilhamento. Creio, contudo, que 0 exposto nao é tio polémico a ponto de nao suscitar uma aprovagio, sinda que parcial, de um 1B leitor de boa vontade que possua conhecimentos filoséficos nGo-escolares. Meu objetivo nao foi escrever uma “introdugao a filoso- fia" para pessoas que nunca tiveram contato com essa dis plina, e que procuram uma primeira aproximacio a ela. Cer- tamente, o presente livro nao € compreenstvel por qualquer leitor. Trata-se de um livro “bésico", mas nao de uma “intro- dugio” de utilidade universal. Ele pressupde um contato jé presente com a filosofia (seja autodidata ou académico) bem como, correlativamente, a experiéncia de uma certa frustra- ao na busca de um acesso a “ingrata” que nos exige tanto esforco € nos recompensa com tio pouca generosidade. Quando o escrevo, tenho em mente um aluno de graduacéo que j& sobreviveu a seus decisivos primeiros anos, um de pés-graduacao cénscio de uma formacéo inadequada ou até um professor que experimenta desconforto com os resulta- dos obtidos. Para esse grupo heterogéneo de leitores, as has que seguem podem poupar algum tempo e esforco. Este livro tampouco € um “manual” que tenha por obje- tivo oferecer uma sintese ou sistematizacdo de informagées fundamentais, O que aqui se propée é uma perspectiva de acesso & filosofia, centrada em explicitar de modo instrumen- talmente efetivo como podem ser melhorados 0 estudo ¢ 0 ensino dessa disciplina. Uma vez. que ensino e aprendizagem so correlatos, é possivel entender as linhas que seguem tanto como uma metodologia do estudo filoséfico quanto como uma didatica do ensino da filosofia, ainda que, ao mesmo tempo, também sejam muito menos do que isso. Aqui nao se responde a todas as perguntas, nem se toma posicéo com respeito a todos os assuntos usualmente compreendidos pelas disciplinas mencionadas. Em nenhum momento me propus a escrever um “tratado” (nem de didatica, nem de metodologia filos6fica), mas apenas esbocar uma abordagem acerca das 14 | hemocucho duas questées. Trata-se, unicamente, tanto num caso como no outro, da fixagdo primeira e proviséria de uma perspectiva bisica, a respeito da qual se diz tanto quanto necessério ¢ tio pouco quanto possivel, optando-se por explicité-la mediante a sua aplicacao a casos concretos. O principio que rege a perspectiva proposta (e do qual todo o resto sao variagdes) é extremamente simples, tanto que, por momentos, creio que é por isso que tende a ser passado por alto. O objetivo primordial do ensino e da apren- dizagem da filosofia é “entend@-la". Ora, ela tem fama de dificil, obscura e, inclusive, arbitréria. Pois bem, grande par- te das dificuldades usuais em sua compreensio deve-se a0 ‘nao entender o “problema” do qual a filosofia trata’. Por tal motivo, proponho-me a oferecer uma op¢io a didética e metodologia do estudo filoséfico com base no seguinte prin- cfpio: a compreenséo do problema deve constituir 0 nicleo essencial, 0 eixo, tanto do ensino quanto da aprendizagem da filosofia. Nao é possivel “entender” filosofia se no se enten- de “o problema” abordado por um fildsofo. Entretanto, 0 “problema” tende a ser pressuposto ou simplesmente igno- rado, sem que se dedique esforco especifico algum para esclarecé-lo. Nao poucas vezes, no lugar da sua explicitacao aparece um rétulo vazio (“o ser e 0 devir” etc.) Estrutura temitica Este texto contém duas partes claramente diferentes, Na I* Parte (seis capitulos) explicita-se a idéia central pro- posta e se estabelece reflexivamente principio basico ja 1. Ou melhor, do qual um determinads filésofo ou uma determinada obra tratam, Imooucio | 15 mencionado (sem pretender, repito, argumentar ou provar suas implicacGes teéricas); na 2° Parte (trés capitulos), ofe- recem-se trés exemplos que procuram evidenciar como tal principio pode ser operacionalizado em casos singulares. Como este é um livro que nao versa primariamente sobre certos contetidos, mas sobre 0 método de sua aquisicio, é claro que ele possuii uma flexibilidade temética intrinseca, a qual, ndo obstante, tampouco é sinénimo de absoluta arbi- trariedade. O capitulo 1 da 2* Parte oferece o exemplo de um pensador que, ao mudar o problema filoséfico fundamental, muda também a propria idéia de filosofia. A escolha de Kant, para tanto, tem secundariamente por objeto eviden- ciar que é de fato possivel explicar de modo simples “o problema” de um autor tradicionalmente considerado dificil, abrindo, a partir de tal explicagéo, caminho a um estudo posterior gratificante. Uma vez escolhido Kant como exem- plo de pensador “classico”, optou-se por continuar, no capf- tulo seguinte, com um outro autor que tivesse como pressu- posto a virada critica, de forma a poder exemplificar 0 caso, extremamente comum, de um problema construido sobre os supostos de uma tradicao. O escolhido foi um neokantiano: Ernst Cassirer. Novamente aqui existe um motivo comple- mentar na escolha. Cassirer nfo tem fama de incompreen- sivel como Kant. Todos “entendem” seu texto. Lamentavel- mente, todos entendem coisas diferentes. Essa situagio nao 6, de fato, téo-s6 culpa de seus leitores. Cassirer possui um estilo literério envolvente e fluido, porém impreciso do pon- to de vista conceitual, proporcionando, por tal motivo, uma excelente oportunidade para 0 exercicio do nosso método. O estudo do “caso Kant" e do “caso Cassirer” evidencia, como principio geral, que em filosofia nao hé autores “fi ceis", sendo que hé aqueles dificeis de ler e aqueles dificeis 16 | InrrooucAo depois de lidos. O capitulo 3 da 2* Parte, finalmente, mostra em forma sucinta como se aplica a perspectiva proposta & historia da filosofia em geral. Com tal fim, parto do que suponho sabido pelo leitor e 0 confronto com uma forma de ordenacio um tanto diferente da que creio lhe seja usual. O ganho ali ser possibilitar uma visio unitéria da filosofia contemporanea. A forma de tratamento dos exemplos oferecidos nos capitulos 1, 2 3 da 2* Parte obedece ao critério de qual seja © minimo necessério para que alguém com inteligéncia mé- dia, ¢ certa familiaridade com a disciplina, possa entender um determinado problema filoséfico. Isso néo quer dizer, contudo, que eles sejam “féceis” e nao exijam ser lidos com atengao, atengao que deve ser tante maior quanto menor for a formagio do leitor. Trata-se, certamente, de textos “introdu- t6rios”, mas no simplificadores; de textos “bisicos", mas no triviais, Trata-se, assim mesmo, de textos proposital- ‘mente enxutos, que respeitam com rigor o principio de re- duzir a exposigéo a um mfnimo essencial, Essa brevidade mostra que é possfvel explicar problemas filoséficos ndo s6 de modo claro, mas também “econdmico”, “O problema da Critica da razio pura” foi inicialmente publicado pela revista Integragdo (USJT), com o titulo “Uma aula sobre Kant”, e constitui uma versio sem alteragées de uma palestra oferecida no ano de 1999 no curso de “Intro- duo & Filosofia” do Cogeae da PUC-SP, encontrando in- tensa difusio através da versio html da referida revista. O texto sobre Cassirer foi publicado na revista Ethica, da Uni- versidade Gama Filho do Rio de Janeiro. Uma versio subs- tancialmente mais extensa e complexa do texto sobre a unidade da filosofia contemporanea foi publicada pela revis- ta Reflexéo, da UNESP. Iwmeoucso | 17 1? Parte A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS Capitulo | As diversas relacdes possiveis com a filosofia 1.1. Ensinar filosofia e ensinar a filosofar E bem sabido que Kant, em citadissima passagem, afirma que nao se pode ensinar filosofia, mas apenas ensinar a filo- sofar. O filésofo de Kénigsberg quer dizer outra coisa do que geralmente se lhe atribui; assim, por exemplo, ele jamais entenderia por filosofia “historia da filosofia” (algo que hoje seria para nés uma primeira identificagio). A oposicdo que lhe interessa é entre uma ciéncia constituida como um conjunto de verdades e uma atividade da razio, Como a filosofia nio € a primeira, mas propriamente a segunda, nao h aqui o que ensinar no sentido de uma transmissio de contetidos. E um mérito kantiano o haver chamado a atencio sobre a diferenca entre “ensinar contetides filos6ficos” e “ensinar a filosofar”!, Sem embargo, sua distingio introduz mais proble- 1. E, pelo menos de modo indireto, mas genericamente, entre 0 “conted- do filossfico” e 0 “pensar filosaficamente’. [20 mas que solugées. Kant supde que é possivel ensinar a filoso- far, ainda que, a partir de seus pressupostos, niio seja ébvio que isso possa ser “ensinado” e em que sentido o seja, Por outro lado, a pergunta principal fica de pé: se 0 ensinar filo- sofia nos remete ao ensinar a filosofar, o como se filosofa ¢ 0 como se ensina a filosofar ainda estio por ser esclarecidos. 1.2. As diversas relagdes possiveis com a filosofia Filosofar nio é a tinica relagdo que se pode manter com aquilo que chamamos de “filosofia”. Por tal razio, devemos distinguir as seguintes perguntas: 1. Como se “filosofa", ou seja, como se produz filosofia “original”? 2. Como se pensa “filosoficamente", ou em que consis- te the philosophical way of thinking (“o modo fi- los6fico de pensar”)? 3. Como se investiga ém Bllosofia com os critétios sca- démicos de rigor? 4, Como se investiga em histéria da filosofia? 5. Como se ensina filosofia? 6. Como se estuda filosofia? 7. O que €, propriamente, “ensinar filosofia”? 8. O que é, propriamente, “estudar filosofia"? E Sbvio que a forma de responder as perguntas acima depende, em iiltima instincia, da forma de responder A pergunta bésica: 9. Afinal de contas, 0 que é “filosofia”? No que se segue, nossa andlise se concentraré em 5, 6, 7 e 8; algumas reflexdes a respeito de 1, 2, 3, 4 ¢ 9 serio, todavia, imprescindiveis. “Filosofar” 6 um verbo que indica tanto uma atividade como seu produto. Conseqiientemente, hd dois sentidos para 22 | Armosona e seus mromienas a pergunta “como se filosofa?". Em um deles, trata-se de determinar como se tornar um filésofo original, apontando- se um certo resultado; no outro, como podemos nos apro- priar do philosophical way of thinking, e alude a uma forma especifica de proceder intelectual ‘Agora, se por “filosofar” entendemos producéo de “co- nhecimento filos6fico ‘original’ e, inclusive, “de qualidade” (seja la 0 que isso signifique), tal dédiva esta certamente reservada a poucos mortais. “Como se forma um fildsofo?”, nesse sentido, é uma pergunta tao pouco suscetfvel de res- posta quanto a de como se forma um pintor ou um poeta. Talvez a tinica coisa que se possa é estabelecer de modo empirico algumas condigées provéveis. Se a primeira pergunta permaneceré sempre sem ser resolvida, € possivel dar uma resposta concreta a segunda, Deixando de lado a valoragio acerca da qualidade, nio ape- nas os filésofos filosofam, mas também outros que jamais produziram um pensamento “original”. Comum a ambos é 0 exercicio de um tipo de atividade intelectual que chamamos “filoséfica”. Todas as formas de relacionar-se com a filosofia supdem em tltima instncia (para serem frutfferas) a pre- senca deste tipo de atividade. Isso nada tem a ver com ditos usuais como o de que todo homem é por natureza um fil6- sofo ou que as criancas filosofam. Refiro-me a um sentido mais exigente. Trata-se da capacidade de uma reflexio siste- mética, metédica e (em maior ou menor medida) aut6noma sobre certos problemas. Sem ela, jamais hi filosofia em nenhum sentido, nem sequer no mais despretensioso de entender um texto. Existem diferentes tipos de trabalho filoséfico, modos heterogéneos de relacionar-se com a filosofia. No entanto, nao estio desvinculados, pois hé entre eles uma identidade basica no “modo de pensar”, de forma tal que constituem As onesas RECO rssvs com A uosonA | 23 um continuo que se direciona a um grau crescente de “cria- tividade”. Entre investigacao e docéncia, trabalho académico € produgio filos6fica, filosofia e hist6ria da filosofia, nao ha — necessariamente — um hiato absoluto nem, muito me- nos, uma contradicio. Mas em que consiste o philosophical way of thinking presente em todos eles? 24 | A ruosona € ses rrosisns Capitulo 2 Os momentos essenciais do ® i aes ” modo filoséfico de pensar 2.1. A primeira imagem da filosofia Para quem néo se dedicou a um estudo sistemético da filosofia e tem um contato primério com essa disciplina, a impressio de um certo caos é inevitavel. A filosofia é vista como um espaco onde reina 0 capricho, podendo cada um dizer 0 que quiser. Seu caréter nio-empirico é entendido como pura arbitrariedade, quando nao como confusio cré- nica, Porém, essa impressio é falsa: a filosofia nao é um caos de pontos de vista incomensuraveis, nem consiste sim- plesmente em possuir certezas. Trata-se de ter opinides sobre certos temas bem definidos ¢ sustenté-las em algo diferente de uma conviccio pessoal; mais ainda, 0 nécleo essencial da filosofia nao € constituido de crencas temati- camente definidas e racionalmente fundadas, senio de pro- blemas e solucées. | 25 2.2. “O problema” como momento essencial do pensar filoséfico (tema, problema, questéo, pergunta) Se o piiblico em geral nfo entende 0 que os filésofos fazem e cré que cada um simplesmente diz. que quer, isso se deve, em grande medida, ao fato de que nio entende 0 problema ou, mais ainda, no toma consciéncia da existén- cia de um problema. Esse ¢ 0 dado da equacéo que tende a faltar e 0 motivo essencial da impressio de arbitrarieda- de. O que o filésofo diz. € tomado como “mero dizer, co- mo “irresponsével afirmar”, passando-se por alto seu origi- nério carfter de “solugéo”. No entanto, a filosofia possui problemas, sendo a unidade dinémica interna desses pro- blemas o que esti na base da multiplicidade e da mudanga de temas e opiniées. Quando nao hé problema tampouco ha filosofia. A lista dos problemas filosoficos esta sempre incompleta ¢ submetida a constante revisio. Nao existe, por assim dizer, um catélogo deles fixado por uma instancia externa a pr6- pria filosofia, e do qual ela poderia se servir. Os problemas da disciplina — e isso por sua prépria natureza — ndo estio ali prontos, esperando simplesmente que o pensador os tome. ‘A sua construgio (e nfo tdo-s6 e em primeira linha a sua resposta) é parte essencial do trabalho filoséfico. O primeiro passo para entender filosofia 6 sempre esta- belecer o problema. Diante de um filésofo particular, deve- mos comecar pela pergunta “qual é o problema por ele pro- posto?" e, eventualmente, “por que ele o formula dessa ma- neira?”. Entender um autor é ver sua filosofia como resposta “a0” problema que ele se coloca, Isso vale para qualquer fil6- sofo, sem excegdes. Do mesmo modo que pergunto qual é 0 problema de Huser] nas Investigagdes légicas, devo perguntar qual é 0 problema de Heidegger em Ser e tempo, ou qual é 0 26 | A mosor « seus momisnas problema de Nietzsche em Assim falou Zaratustra®, As vezes 0s filésofos colocam diferentes problemas em diferentes obras. Geralmente, quanto mais os enterdemos mais percebemos que problemas & primeira vista desconexos so apenas aspec- tos de um s6°, Por isso ndo devemes s6 nos perguntar qual é © problema de Heidegger em Ser e tempo, mas também qual ‘0” problema de Heidegger. A compreensio do problema opée-se 4 mera reuniado de informagées. Por “informagées” nao entendo unicamente da- dos biogréficos ¢/ou hist6ricos, mas também “saberes” acerca do que 0 filésofo “diz”. Estudar filosofia néo é possuir um conjunto de “saberes” a respeito do autor. Posso ter muitos “saberes" sobre Kant, Hegel ou Wittgenstein (saber, por exem- plo, que Kant afirma que espaco e tempo sido intuigées, que 2. Virios leitores das primeiras versdes deste texto expressaram estra~ nheza diante de minha afirmacio, consciente e intencional, de que também cem Nietzsche existe um "problema", Por momentos pensei escrever um ca- pitulo da segunda parte mostrando como minha tese também vale no caso de lum autor como Nietzsche. Entretanto, logo compreendi que, desta forma, 0 texto corra perigo de nfo encontrar um fim, pois com base no mesmo critério ‘outros exemplos poderiam ser considerados necessérios. Por tal motivo, me limito a observa: 1. Na reflexdo nietzschiana existe conteie, coisa que no acontece na maioria, dos nictschianos adolescentes, os quas ndo passam do modismo estilisic. 2.0 problema de Nietzsche & evidenciar que da absoluta negao de toda trans- cendénca no se segue o pessimismo ou © nism como conseqiénca “neces siria", para 0 qual grande parte do esfogo consiste em explicitar o que transcendéncie significa. A impossbilidale de toda transcendéncia no tem que ser propriamente provada, sendo explicitada. Na medida em que expli- citamos, descobrimos 0 fenimeno da aenagio e, com ee, 0 caminho pars & respasts: jutamente a negaco da transcendénciapossbilita ao homem ass- mir seu carter ciadore, deste modo, dar a si mesmo valores sentido. 3. Pode-se estabelecer em Nietzsche uma distingio, paalela 8 kantiana, entre “précritco” e “ritico", a qual deve ser fiada em torno ao diferente trata- mento do pessimismo e & ruptura com Schopenhauer. 3. Para 0 conhecedor € dbvia a inspiragio, bergsoniana desta idéia;jus- tamente por isso solicito que nio se a identifique. (+ novTo# sxmicns pO “Hoo0 miowbnco De rasan" | 27 Hegel nega a existéncia das coisas em si, ou que Wittgenstein defende a teoria pictrica da proposicéo) e, nao obstante, no ser capaz de fixar o problema desses autores; nesse caso, apesar de todos os meus esforcos, simplesmente nao os en- tendi. O estudo da filosofia nao deve se dirigir a “saber” 0 que 0s fil6sofos “dizem”, mas a entender 0 que dizem como so- lugio (argumentada) a problemas bem definidos. Se nossa tese € correta, enitio 0 conceito de uma filosofia puramente descritiva é uma contradigéo de termos. f certo que (como, segundo dizem, alguma vez alguém disse) toda filosofia deve estar referida a “experiéncia”. Outra questéo, ‘no entanto, € se o mero descrever a experiéncia alguma vez constituiu uma filosofia. Existem de fato filosofias que pre- tenderam ser puramente “descritivas", como, por exemplo, a fenomenologia. A andlise husserliana da intencionalidade apre- senta-se como nio sendo mais que uma espécie de “inventé- tio” de um certo estado de coisas. £, todavia, uma “feliz casualidade” que tal anélise solucione tantos problemas, sem se propor problemas que se evidenciam como tais, quando observamos as dificuldades do conceito brentaniano de inten- cionalidade ¢ sua discussio subseqiiente? Que a “teoria” da intencionalidade, assim como qualquer outra “teoria” filos6fi- ca, também é solugéo a problemas, poe-se de manifesto se observamos que hé critérios para se estabelecer 0 que sio boas e mis teorias sobre o fendmeno intencional. Isso ndo significa que 0 descrever adequadamente nao seja um fator decisivo na "solucdo", reformulacio e, inclusive, dissolucao do problema original. Certamente, ele pode desempenhar um papel preponderante em vérios sentidos; 0 que néo pode é climinar o problema enquanto tal (reduzindo, assim, uma tese filos6fica a uma mera descricéo). A filosofia nao é um discur- so descritivo, Toda descrigao € para ela apenas um eventual problema a ser desenvolvido, 28 | Arnosonn e seus mowens O nio atentar ao problema degrada o ensino ou 0 estu- do filos6fico a um contar ou escutar histérias. Tal tendéncia & tao forte que se assemelha a um virus contra o qual parece nao existir campanha preventiva eficaz, E comum, quando se pergunta aos alunos em que consiste a contribuicio de- cisiva de Hume ao problema da causalidade, obter-se como resposta que é o derivar a causalidade do hébito. Aqui temos um bom exemplo de redugéo de uma filosofia a uma tese, na qual ndo se considera o problerra. A afirmacio de que 0 nexo causal surge do hébito é uma resposta que esqueceu sua pergunta. O aporte de Hume se reduz, por conseguinte, ao ter “visto” (¢ descrito adequadamente) algo que outros pensadores néo viram. Descrever um fenémeno, contudo, ndo € resolver um problema, Hume parece ser “um rapaz sem problemas”, Obviamente, isso est muito longe de ser verdade. Hume descobre o carter ado-racional do principio de causalidade, ou seja, que ele nao é suscetfvel de demons- tragdo. Uma vez que isso fica claro, entio, jé que de fato dispomos de tal principio, aparece a pergunta: de onde ele surgiu? Para responder a esta pergunta é que é elaborada a teoria do habito, a qual ocupa, porcanto, um lugar sistemé- tico subordinado: ela substitui o inviével embasamento ra- cional por uma explicacéo psicolégico-causal. Os exemplos poderiam multiplicar-se. A dificuldade em se entender a diferenca entre a priori e inato e a tendéncia a continuar reduzindo um ao outro, mesmo quando se é advertido de sua radical heterogeneidade, evidenciam outros modos de se apresentar a mesma questio bésica (decorren- te, em ltima instincia, do esquecimento do problema): reduzir a um discurso descritivo um outro tipo de discurso absolutamente diverso. A filosofia nio pode (mais precisa- mente, nao deve) ser “contada”; ensinar filosofia ndo é “con- tar histérias”. Existe uma diferenca categorial entre a hist6- © wows esENOAS DO “HDpO FLosbRCO ve rsa” | 29 tia dos trés porquinhos e 0 Discurso do método. Nem Des- cartes é uma espécie de “Pritico", nem o génio maligno uma ie de “lobo mau”. ore problema de uma teria flos6fica 6 algo diferente tan to de seu tema como de toda “questo”. © tema ¢ aquilo do que ou sobre 0 que 0 autor fala. Contudo, 0 autor fala sobre algo e diz alguma coisa a respeito, a saber, sua tese, ‘mos, entio, aquilo do que fala daquilo que diz a respeito; por exemplo, posso falar do conhecimento ou da verdade, e dizer que a verdade € 0 evidente ou que consiste no acordo entre pensamento ¢ realidade etc. Em ambos os casos, trata-se apenas de “informagées” que nao determinam problema algum. Em portugues é fatidico o hibito académico de falar da “ques- tao”. Na linguagem comum, uma “questo” nio € senéo uma pergunta; um “questionério”, uma lista de perguntas, Em seu tuso académico, porém, o termo perde seu cardter interroga- tivo e se torna extremamente vago. Em algumas (poucas) ocasides, “questo” é usada como sinénimo de conceito: a ‘questio” do belo em Kant pode significar 0 conceito do belo em Kant. Na maioria dos casos, entretanto, “a questo” faz referéncia propriamente ao tema, um tema que, em tal caso, por sua vez, nao é fixado, mas apenas aludido. Assim, por exemplo, se diz que Kant trata da “questo da metafisica” e Heidegger da “questio do ser”. Mas em que consiste “a ques- tio da metafisica” e em que medida consideré-la pode nos ajudar a entender Kant? Se, a primeira vista, parece que Kant toma algo preexistente (e claramente definido) de um certo “reservatorio”, uma mfnima anélise deixa patente que o cliché oculta aqui a mais absoluta vaguidade. Com a “questéo do ser” o estado de coisas é ainda mais grave: os auténticos pro- blemas desaparecem em uma nebulosa, ‘Uma vaga vivéncia de insatisfacao, por mais intensa que seja, no basta para que tenhamos um problema filos6fico. 30. | A mosona e seus mromienas Ela pode ser o primeiro passo (e geralmente 6), mas o que define 0 filésofo € 0 fato de que ali onde o entendimento comum se contenta com tal insatisfago (e cré, eventual- mente, que ela, enquanto pura “resisténcia”, j4 € o pensa- mento de um problema) 0 filésofo a conduz @ forma de uma pergunta explicita bem definida e, por tal motivo, suscetfvel de resposta. Por conseqiiéncia, o critério minimo para decidir se es- tamos ou nao diante de um problema é a possibilidade de formuli-lo como uma pergunta gramaticalmente completa Isto nao quer dizer que toda pergunta: a. € uma pergunta filoséfica; b. fixa o problema enquanto tal (sem degradé-lo a um novo saber); c. fixa o problema suficientemente‘; d. e que nem sequer basta prestar atengdo a pergunta que um autor explicitamente se faz em um texto para entender seu problema. 2.3, Existem “problemas filoséficos"? Propusemos uma metodologia de estudo ¢ uma didética da filosofia centradas na idéia de problema, Ora, afirmar que a fixacio do problema constitui 0 momento essencial do trabalho filoséfico supde dar como concedido que ele é efe- tivamente tal. Porém, isto esté longe de ser ébvio. Com efeito, diz-se que a tarefa da filosofia nao € responder per- guntas, mas sim dissolvé-las, evidenciando que clas, em dl- ima instincia, carecem de sentido, Esta tese possui uma 4, Compreender 0 problema da Critica da razao pura, por exemplo, no € saber que a pergunta dela é “como sio possiveis juitos sintéticos a priori Pode-se “saber” isso ¢ nio haver entendilo o problema. (Os HomENTOS esENCAS 90 “HOD MLosbnco oF rewsAR” | 31 s6lida fundamentagdo e sua andlise nos obrigaria a ir muito além da questdo limitada que agora discutimos. Nao pode ser esse nosso objetivo. Apenas um ponto deve ser ressal- tado, a saber, que, na dimensao restrita da qual aqui nos ocupamos, 0 que a primeira vista se apresenta como uma alternativa excludente se estabelece no seio de uma coinci- déncia bisica: se 0 sem-sentido em questéo nao é mera- mente 0 das teses filos6ficas, sendo 0 dos préprios proble- mas, pelo menos no que concerne ao significado decisivo do problema, para definir o que a filosofia seja, ha coincidéncia com 0 que temos afirmado, Mais ainda, uma vez que a filosofia, redimensionada mediante a critica que considera- mos, nao € propriamente “teoria”, mas uma “atividade es- clarecedora”, tampouco aqui é necessério assumir uma al- ternativa excludente. 2.4, A tese Diferenciaremos a seguir “proposicéo", “proposico afir- mada’, “tese”, "hip6tese”, “tese a ser refutada” e “definicio’. A proposicio é um enunciado capaz de ser declarado verdadeiro ou falso. No conjunto das proposigdes, podemos diferenciar dois grupos, o das afirmadas ¢ o das nio-afirma- das. Nem toda proposigio é necessariamente afirmada. En- tre as proposicées afirmadas situamos a tese. Uma hipotese € um candidato a tese. A tese pode, eventualmente, se apre- sentar, de inicio, como uma hipétese que se confirma pela ulterior argumentacio. Dependendo do caso, 0 autor pode dedicar relativamente pouco espaco & sua tese, concentran- do-se nas alternativas a serem negadas. Distinguir entre tese e definigio merece cuidado especial: a maioria das defini- Ges so meramente nominais e, portanto, nem verdadeiras 32 | A mosona « seus momians nem falsas, néo tendo sentido concordar ou discordar delas. Baseados no que foi dito anteriormente, afirmamos agora: ser uma proposicio é uma propriedade que o enunciado possui “em si”; ser uma tese, hipétese ou definigio € uma funcio que ele assume ou nao conforme o contexto. No caso do que poderiamos chamar de “teses filos6fi- cas”, elas cumprem, além das condigées mencionadas, ine- rentes a toda tese enquanto tal, uma terceira, a saber: elas sfo solugéo de um problema. O estabelecimento da tese principal de uma determinada obra depende, portanto, da correlativa fixagio do seu problema bésico. O que foi dito & muito simples, mas tudo indica que esté longe de ser ébvio. Nio é incomum situar a tese em um lugar privilegiado do saber filos6fico, certrando nela o estudo do autor. Querer entender a tese filos6fica sem o problema é, contudo, algo assim como querer eatender a resposta sem a pergunta. A tese filos6fica é, origindria e essencialmente, res- posta; ela s6 pode ser entendida em correlacio com a pergun- ‘ta A qual responde. O ser-resposta nio é parte de seu entorno pragmitico contingente, mas de sua natureza l6gica intrinseca; nao é um acidente, algo que casualmente lhe acontece, seno que lhe € hermeneuticamente constitutivo. A atividade filosofica priméria nfo é a afirmagéo ou negacio de “teses em si”, mas sempre em seu vinculo com © problema’. A aparéncia de que o afirmar proposigdes 6 a atividade basica em filosofia é muito forte e se deve a que, inclusive para 0 préprio filésofo, o problema é dado como parte do legado histérico do qual ele nem sempre € plena- mente consciente ou que, por ser-lhe ébvio, nfo considera necessério explicitar. 5. Poder-se-ia inclusive afrmar, como jé fizemos acim (I*, 2, 2.2), que a atividede filossfica bisica € a prépria formslacio do problema. 0s nomevros snes 00 “Hoo0 mosbnco oF rset” | 33 A atengio a0 problema nao é necesséria apenas para entender um filésofo em particular, mas também para per- ceber a dinfmica prépria do movimento filos6fico ao longo da historia. Se nos atemos apenas a tese, o devir filos6fico se torna uma mera sucessio de opiniGes cujo cardter essen- cial € 0 nao poder decidir valores de verdade (um modo de ver que, como jé indicamos [1° 2, 2.1], € quase onipresente 20 iniciante). Entretanto, no se pode entender filosofia se a reduzimos a uma seqiiéncia de pontos de vista diversos, j& que a exata fixagio do problema é elemento essencial para precisar o sentido da propria tese. Como regra geral, em filosofia néo se contrapée simples- mente uma tese a outra. Quando 0 movimento filoséfico é interpretado dessa forma, cria-se uma compreensio epidér- mica dele. Ali onde, a primeira vista, parece haver uma mera oposicao de teses, uma anélise mais acurada mostra, no pou- cas vezes, uma mudanca na prépria pergunta. Com muito menos freqiiéncia do que se tende a acreditar, teses contra- ditérias so solugdes do mesmo problema. Mais do que sim- plesmente negar uma tese ¢ a contrapor a outra, o movimen- to filos6fico caracteristico 6 a explicitacdo dos supostos tanto da tese quanto do problema, a qual termina conduzindo, nao poucas vezes, & reformulacdo destes tiltimos. O devir filoséfico contém uma certa continuidade, um certo sentido, algo assim como uma sedimentacao concei- tual. © pensamento anterior nunca é simplesmente negado ou esquecido; ele € sempre “superado” e “integrado” no posterior. O devir no suprime, mas supde o anterior, € constréi sobre sua base de formas diversas’. E certo que muitos grandes filésofos pretenderam apagar tudo e come- 6. Em tal sentido, a histéria da filosofia ests sempre contida na filosofia contemporiinea. 34 | A moson seus momorns gar do zero, mas sempre se tratou de pura ilusio. Caso tal fato prove alguma coisa, € s6 que grandes filésofos podem ser pequenos homens. A consideragio da unidade que tese e problema compéem permite ver naquilo que, a principio, parecia puramente descontinuo uma dinfmica interna e, in- clusive, uma certa direcéo constitutiva daquilo que a filoso- fia 6. Que o trabalho filoséfico essencial ao longo da histéria se concentra na inter-relacio tese/problema, existindo nele uma continuidade e até uma direcio, tem a ver com a pré- pria natureza desse tipo de discurso: explicitar supostos 6 a forma priméria na qual se manifesta o movimento reflexivo, caracteristica bésica do modo particular de racionalidade presente na filosofia (1*, 3, 3.4). Alguns exemplos talvez ajudem a iluminar diferentes aspectos do que foi dito: 1, Geralmente se estabelece o vinculo entre Kant ¢ Frege a respeito da natureza da aritmética como se © segundo simplesmente negasse uma tese que o pri- meiro afirma e afirmasse uma tese que o outro nega. Assim, enquanto para Kant os juizos aritméticos sio sintéticos a priori, para Frege tais juizos so analtti- cos, O simples opor de teses encobre aqui, todavia, © que & 0 verdadeiro assunto © que s6 pode ser adequadamente fixado no contexto de uma coinci- déncia basica: tanto Kant como Frege aceitam que os jutzos aritméticos sao “informativos”. Contudo, dado © conceito kantiano de analiticidade, um jutzo analt- tico nao pode ser informativo. Dai surge o problema eritico: em que se sustentam os jutzos aritméticos jé que, por nio serem analiticos, nio podem fazé-lo na logica? Dai, por outro lado, a solugio kantiana me- diante 0 recurso a “intuigo pura”, Daf, finalmente, © problema de Frege: como um juizo analitico pode (Os nowewros esas be “HeDe nuosEnco De rosa” | 35 ser informativo? Colocando as coisas desta forma, vyé-se com clareza que Frege nao est meramente afirmando o que Kant nega, mas sim revisando seus supostos, supostos que, mediante 0 conceito de analiticidade, remetem, em tiltima instancia, a teoria da proposicio e, por meio dela, & propria concepgio de légica. 2. Entendida como “mera” tese, a negagéo da mudanca por parte de Parm@nides parece ser mais uma daque- las excentricidades t4o peculiares aos filésofos. Todo aluno de graduacéo “sabe” que, “obviamente”, Heré- lito “esta certo”. O que falta aqui € a adequada compreensio do problema do eleata e, sobretudo, a consciéncia de sua importancia. Haver explicitado a pr6pria idéia de Razio ao descobrir o principio de identidade como o seu elemento primeiro e definidor e, inversamente, haver entendido o dito prinefpio como exigéncia bisica de toda inteligibilidade, é jus- tamente 0 aporte parmenidiano decisive. Uma vez que se toma consciéncia disso, surge 0 problema de que todo tipo de mudanga e alteridade constitui algo irracional. A solugio de Parménides é, por conse- qiiéncia, no as reconhecer como reais. Dado que, por outra parte, os sentidos nos informam da exis- téncia de ambas, eles ndo podem nos brindar mais que pura aparéncia. 2.5. O argumento e a fundamentagio A tese € uma solugao a0 problema e implica um optar em que outras alternativas sdo descartadas. Tal optar parte da exigéncia de que a resposta seja “pertinente”, o que li 36 | A mosona e seus mosuonas PP ta em boa medida toda arbitrariedade. Entretanto, é dbvio que isso ainda nao basta. As vezes h4 varias respostas igual- mente “pertinentes” para a mesma pergunta. Por que, entdo, © fildsofo se decide por uma e nao por outra? £ aqui que os argumentos desempenham um papel essencial. © que legi- tima a opcio por uma determinada tese so os argumentos. Convém, portanto, determo-nos no conceito de “argumen- to” e precisar o sentido no qual ele é um elemento essencial do philosophical way of thinking. Entre filésofos de procedéncia analitica, costuma-se di- zer que o discurso filos6fico é “argumentativo”. No entanto, afirmar que a filosofia € discurso argumentativo pressupoe que ela é “solugao de problemas”. O prioritério na ordem lgica € 0 estabelecimento do problema. Ele é suposto es- sencial tanto da tese como dos argumentos que conduzem A sua aceitagéo ou ao seu rechaco. Todavia, se por “argumentar” entendemos algo preciso, entio ele consiste em uma infer€ncia de valores de verdade. Uma vex aceita a definigéo anterior, segue-se que a idéia de “argumento” néo esgota nem caracteriza suficientemente a ra- cionalidade filosofica. Existem modos de “fundamentagio” que nao podem ser reduzidos a “argumentos” em sentido estrito. A diferenca essencial entre ambos reside no elemento de reflexividade radical, necessariamente presente em um caso, mas nio no outro’. Um desses modos mencionados é a expli- Citagdo, a qual consiste em clarificar e precisar conceitos, teses, problemas e supostos de todos os tipos e géneros. A anélise lingiifstica ou seméntica é um caso particular de explicitagio* 7, Poderfamos formular a mesma idéia estabelecendo o ponto essencial de outra forms, por exemplo distinguindo entre argumento ¢ algoritmo. 8. A simples, simplissima, distingdo entre sentido e valor de verdade, fixada e desenvolvida nos iltimos dois séculos, mostrou-se extremamente fecunds, Toda evolugio filoséfica ulterior (inclusive aquela que, eventualmente, (©5 monenros esseNcins Do "wooo LosérIcO DE reNsan” | 37 A idéia do filosofar como “discurso argumentative” é ‘uma boa descrigio do que, de fato, muitos analiticos produ- zem como filosofia, ou seja, partem irrefletidamente de problemas “dados” e refutam outros com um certo refina- mento técnico. A filosofia, contudo, é algo diferente de um jogo de engenho. Ela nao se limita a desenvolver conseqiién- cias de pontos de partida pressupostos, ‘A fundamentacao (e argumentagio) da tese nem sempre tem um carfter linear e facilmente reconstruivel; as vezes ela assume formas muito refinadas. Em algumas ocasiées, entre os argumentos, encontra-se a derivagdo de conseqiién- cias. Toda tese contém conseqiiéncias e também elas tém que ser verdadeiras. ‘Teses sio rechacadas muitas vezes nao por si mesmas, mas por suas conseqtiéncias, outras vezes aceitas pelas conseqiiéncias de sua eventual negacgdo, porque se descartou toda outra alternativa etc. Nao é incomum, por outra parte, que o principal “argumento” passe por uma explicitaco dos supostos da tese rival, ou seja, aqueles que dio sentido ao problema, caso em que a argumentacdo da tese ¢ a reformulagao do problema terminam confluindo. 2.6. Questées de sistematicidade intrafiloséfica A filosofia possui, por sua propria natureza, um anseio de totalidade. “Totalizagao”, porém, nao é necessariamente sind- nimo de unificagéo intra-sistémica, O “sistema” nfo € mo- 4 supere) deve partir dela. Ora, & curioso que justamente filésofos provenien- tes de uma tradicdo que contribuiu de modo decisivo para estabelecer a dis tincio mencionada, consttuindo-a no ciao de wna concepyie do fazer filos6- fico, possam, por momentos, reduzir sua tarefa a mostrar que se p € verda: deira, entdo q é verdadeira. Querer contra-argumentar dizendo que a clucids- <0 do significado € justamente © modo principal da argumentacio filos6fica € brincar com as palavras. Pelo menos, deve-se conceder que se caracterizou. © discurso filos6fico de modo inexato. 38 | A mosona & seus mooienas mento essencial do pensar filos6fico (e muito menos 0 é a pecante exaustividade). Nao obstante, boa parte do esforco de alguns filésofos esté dirigida a ajustes na estrutura do edificio. que constroem ¢ dai, em tal sentido, 4 solugéo de um certo tipo de problemas que poderfamos denominar “imanentes”, Esta tendéncia se intensifica nos periodos “epigonais", quando as grandes idéias perdem sua forca e potencial criativo. Ora, todo trabalho intra-sistemético nao tem sentido em si mesmo, supondo, em diltima instancia, um problema que, ainda que nio livre de supostos, € extrinseco & prépria sistematizacio, 2.7. Resumo: resultados e perspectivas Resumamos os resultados alcangados até agora. Qualquer que seja o autor, sempre temos que fazer trés perguntas: . a) qual é 0 problema? (e, dado que todo problema se for- mula em uma pergunta, qual é, pois, 2 pergunta do autor?); b) qual € a solucao ou resposta? (ou seja, qual é a tese ou conjunto de teses que ele propde?); ©) quais sio os argumentos ¢ fundamentos? (por que ele escolhe uma resposta € nio outra?). Entre estas trés perguntas, a primeira é a decisiva e a que da sentido As duas restantes. A questao intra-sistemati- ca, enquanto derivada, ndo haveri de ocupar mais nossa atengéo a partir de agora. ‘Afirmamos que a filosofia “tem problemas", que é mo- mento essencial do trabalho filoséfico formulé-los e que, por tal motivo, tanto sua didética como sua metodologia de es- tudo devem concentrar-se neles. Destacaremos agora, na di- reco inversa, que se a fixacéo do problema é 0 objetivo primério da aprendizagem e do estudo da filosofia, isso ocor- re porque ela é essencial para a prépria filosofia. (O5 momenros ESsINCINS DO "HOD ALOSOFICO DF FENSA Capitulo 3 Afinal, o que é filosofia? Primeiros elementos para uma resposta 3.1. Introdugio A forma de entender o ensino ¢ a aprendizagem da fi- losofia remete a uma fixacio do philasophical way of thinking. Os momentos fundamentais deste dependem, por sua vez, de como se concebe a filosofia. Pois bem, afinal de contas, 10 que & “filosofia"? Se, retomando 0 resultado do capitulo anterior, partimos da base que 0 problema é momento es- sencial da atividade filos6fica, as p:6ximas perguntas sio: 1. Por que ele ocupa esse lugar preponderante no pensar filoséfico? Por que o fazer perguntas é para a filosofia e, em particular, para o seu devir, mais fundamental que (ou pelo menos tanto quanto) o respondé-las? . Existe algo que caracterize os problemas filoséficos enquanto tais, algum traco inerente a eles? 3. Por que os problemas filoséficos ndo sio simples- mente “dados”? Por que € necessério que sejam “cons- trufdos"? N [41 AA filosofia nao é outra coisa que a consumacéo plena da racionalidade. Uma razio que nao culmine em filosofia é uma razio mutilads; um discurso filos6fico irracional, uma contradicdo de termos. Ora, 0 que é “racionalidade”? 3.2. O conceito de racionalidade Se a filosofia é originariamente discurso racional, é im- prescindivel fixar em que ele consiste. E dbvio que a questo proposta nfo é suscetivel de ser seriamente tratada em pou- cas linhas; 0 que podemos, no atual contexto, 6 somente sublinhar alguns pontos de relevancia prioritéria: 4, Discurso (ou pensamento) racional nao é sinénimo de discurso (ou pensamento) “légico” A razio, certamente, nao se opde a I6gica', nem entra em conflito com ela, mas tampouco se identifica com ela. A légica explicita a legalidade da razdo, mas nao a esgota, nem, portanto, consegue reduzi-la a um conjunto de regras. Dian. te de toda regra, a razio segue estando “além’, Ela nao pode ser “mecénica”. Todo algoritmo, na medida em que desen- volve conseqiiéncias a partir de supostos dados, nao passa de um proceder “técnico’ b, Racionalidade é “esclarecimento"” O discurso racional é esclarecedor; ele contém em sium movimento rumo ao esclarecimento. Razio significa transpa- 1, Por “Iogica” entendo a ciéncia assim denominada usualmente, 42 | Armosorn « seus momenas réncia, e a presenca do opaco s6 pode ser razoavelmente indicada a partir do limite desta transparéncia. Aquele que apela ao opaco para limitar a “arrogincia da razio” mostra a propria arrogdncia na sua (implicita) pretensio de ser capaz, de chegar ao limite da transparéncia, Seu dogmatismo nao é de modo algum menor do que aquele do qual acusa seu oponente. Ele nfo faz outra coisa que substituir um absoluto por outro, a saber, 0 absoluto da Razio pelo abso- luto da nio-Razo, sem assumir de modo conseqiiente, en- tretanto, o ponto de vista da finitude e sua imanéncia cons- titutiva, Pretender chegar ao limite da Razio nao é outra coisa que uma forma rancorosa de negar a propria finitude. A aspiracao & transparéncia sé tem sentido como “idéia” na acepcio kantiana: um ser finito é sempre realizagio parcial da racionalidade. c. Racionalidade é intersubjetividade A intersubjetividade no € um atributo da razio, mas um momento integrante de seu conceito. Um discurso ra- cional que néo seja em principio intersubjetivo (e, do mes- mo modo, um discurso intersubjetivo que nao seja em prin- cfpio racional) é uma contradicao de termos. Agora, se racio- nalidade implica intersubjetividade, um discurso intersubje- tivo é, em seu limite ideal, estritamente universal. d. Racionalidade é rejlexividade “Reflexividade” € qualidade priméria da razio. Discurso racional, diferentemente de discurso algoritmico ou “intra- sistémico”, € discurso reflexivo. A fungao esclarecedora da ‘AAINAL, © QUE € RLOSOFA? PROMEROS ELONENTOS PARA UMA ReSPOSTA | 43 razio exige explicitar e tematizar todo suposto, o qual im- plica um principio de reflexividade radical que inclui a pré- pria auto-reflexio. 3.3. A filosofia como culminagao da racionalidade 3.3.1, Filosofia e esclarecimento A filosofia € um esforco para pensar com clareza, para lancar luz na penumbra. © que diferencia o filésofo da maioria dos mortais ndo ¢ que ele pensa mais coisas ou outras coisas, ou que as pensa de um modo especial’, mas sim que ele pensa, simplesmente, de um modo mais claro. Essa clareza no € um dom dos deuses, senio que resulta de érduo tra- balho intelectual. © fil6sofo pensa.de um modo mais claro Porque aprendeu a pensar de forma disciplinada e precisa. Se a clareza é o objetivo, a diferenciagdo e a delimitagao sio seus instrumentos. "Pensar racionalmente” é, em boa medi- da, separar, distinguir, diferenciar?, Porque a filosofia é um discurso “esclarecedor”, a cla- reza nao é uma propriedade meramente desejavel dele, mas parte essencial de seu préprio sentido. Uma filosofia vaga ou nebulosa é, simplesmente, filosofia de mé qualidade. 2. As investigagées dos citimos anos tém evidenciado © que se suspeita- vat 08 filgsofos ndo possuem um “terceiro olh ™ 3. B usual escutar que a anilise congela e isola as idéias. Nada mais injusto que ista. A anslise nfo detém © pensamento, nei implica atomismo, Distinguir nfo ¢ isola, sendo o primeiro passo imprescindivel para estabelecer relagoes bem definidas. © todo é assim clarificado em cada uma de suas articulagées. Quanto mais vinculadas se encontram duas idéias, mais necessé- Tia € sua distincao, Em reaidade, a andlise s6 se ope a confusio e vaguidade: pensamento confuso ow vago € aquele que nao distingue onde € possvel. 44 | A mosorn sus momenas Um discurso confuso néo é profundo, & apenas confuso. Confuséo e vaguidade sé podem ser admitidas como pri- meiro estégio no caminho rumo a uma transparéncia ainda a ser alcancada. “Profundidade” é transparéncia. O niilismo conceitual, 0 vazio elegante, o impressionismo imagético, 0 apelo sinestésico, 0 malabarismo estetizante ou simples- mente oco: tudo isto nao é filosofia. Onde ha verdadeira filosofia — e nio somente moda cultural de feuilleton — 0 contetido estd presente e, com ele, a necessidade de sua clarificagao. A tarefa esclarecedora nao é privativa nem da epistemo- logia, nem da Idgica (e ainda menos da anélise da linguagem), mas inerente 8 filosofia enquanto tél; ela é propria também da estética e da teoria politica. Nem o discurso filoséfico sobre arte é artistico, nem o discurso filosdfico sobre a po- Iitica é politico; ambos sio filoséficos: arte e politica so seus objetos, no seus meios. 3.3.2, Filosofia e intersubjetividade {A filosofia é de principio “compreensivel”; ela néo supée intuigdes especiais, aptiddes extraordinérias ou uma inteli- géncia fora do comum, Todo ser humano, enquanto ser ra- cional, pode entender o discurso filos6fico se retine os pres- supostos necessérios para isso, ou, pelo menos, tem a pa- ciéncia necesséria para reuni-los‘. A intersubjetividade de principio do pensamento filoséfi- co nfo est presente apenas no seu resultado, mas também no seu percurso construtivo. Ao contrario do que se tende a crer, 4. A ansiedade € inimiga da filosofia. © acompanhamento medicamentoso se torna, em alguns casos, recomendavel ‘Arn, 0 Que miosonA? Prnenos mmiros ra ona nerosta | 45 ‘0 pensamento filoséfico é uma atividade coletiva, no indivi- dual; a filosofia, um modo de préxis essencialmente social. 3.3.3. Filosofia e algoritmo A filosofia no é um discurso nem puramente inferen- cial nem puramente algoritmico. A redugio da racionalidade a0 “I6gico” assemelha de tal forma a filosofia a outros modos de pensar, que chega a ameagé-la com a perda de sua espe- cificidade, ‘Todo modo de racionalidade néo-filos6fico con- tém algo de inercial: ele “aplica” a Razdo. Na filosofia, pelo contrério, a Razao nfo é apenas aplicada, € “construida”, nao ha nada "mais alto”. 3.3.4, Filosofia e reflexividade Por ser um discurso originariamente reflexivo, a filosofia & encarnacio radical da razio. Diz-se que filosofar 6 pensar sem supostos. Essa tese é em si falsa, ainda que contenha uum nticleo de verdade. Existem boas razées para crer que no € possivel pensar sem supostos, e que nem sequer a filosofia o consegue. Porém, o que é certo é que o pensar fi- los6fico possui com a idéia de supostos uma relagéo sui generis: parte principal de sua tarefa & explicité-los. Poder- se-ia dizer que a filosofia néo ifumina aquilo que esté em nossa frente, sendo aquilo que fica a nossas costas. Nossas crengas mais basicas sio ao mesmo tempo as mais dificeis de explicitar, A dificuldade especifica de compreen- sio da filosofia, dificuldade que, paradoxalmente, reside em boa parte na extrema simplicidade de seu modo de pensar, comega com 0 reconhecimento de que seus problemas sio 46 | A mosonn & sus moses efetivamente tais. The philosophical way of thinking 6 to dificil por ser to simples. Em um certo sentido, o filésofo se cocupa com a explicitagio do ébvio. Na medida em que ele descobre 0 suposto como suposto, tematiza e problematiza 0 Sbvio, descobrindo que neste se encerra uma dificuldade. Agora, se a filosofia ¢ explicitagéo do dbvio, ela nao é certa- mente uma colegio de trivialidades, A tomada de consciéncia do ébvio encontra-se nos antipodas de toda ingenuidade. A essencialidade do problema ne filosofia nao é um mero. fato a ser constatado, sendo uma necessidade que funde suas rafzes na propria natureza do que a filosofia seja. Ela é a conseqiiéncia do carter primariamente reflexivo do discur- so filoséfico. Se a existéncia de um problema é condigéo minima do filosofar, nem todo problema faz um grande filésofo. Com respeito & relevancia de um problema, hé algo assim como critérios objetivos. Os grandes fildsofos so os grandes proble- matizadores: eles descobrem um problema decisivo ali onde nao se percebia nenhum. A explicitacio de supostos efetuada pela filosofia consu- ma a reflexividade radical inerente 4 razdo, sendo por inter- médio desta que ela constitui seus problemas. O pensamen- to filoséfico € originariamente reflexivo. O filésofo jamais perde de vista o mundo; porém, ‘sso € diferente de um permanente refazer a filosofia a pa-tir da sua consideracio direta ou de ignorar que ele s6 esté dado ao pensamento como objeto a ser refletido. £ por esse motivo, por derivar da reflexio, que o problema filoséfico néo € simplesmente dado, mas tem de ser “construfdo”. A explicitagéo de supos- tos (e néo apenas da tese, mas inclusive do problema ante- rior) € 0 que conduz a0 novo problema. Descartes muda 0 conceito aristotélico de substincia, Uma vez. estabelecido seu novo canceito, ele se pergunta ‘Ariat, © QUE E FLOSORA? PRINEROS BLEYENTOS PARA UMA ResosTA | 47 que substincias hé no mundo. Responde dizendo que hi duas substdncias que séo absolutamente heterogéneas: alma © corpo ¢, coloca assim a ulterior dificuldade de explicar como se relacionam. Tentar superar a mencionada dificulda- de seré 0 préximo movimento. Spinoza, radicalizando o conceito cartesian, afirmaré que s6 ha uma substancia e que alma e corpo nao sio mais que dois de seus atributos, entre outros; Malebranche, por sua vez, diré que Deus cria permanentemente o mundo e, nesse sentido, a cada instante coloca de modo direto as substéncias em relagdo; Leibniz, insistindo na unidade como elemento definitério da substan- cia, vai afirmar que existe uma harmonia preestabelecida entre elas; Berkeley, que s6 ha uma substincia, 0 espirito; Lamettrie, que sé hé uma substincia, corpo etc. Visto retrospectivamente, 0 que se opera ao longo desse movi- mento € uma exploracio sistemitica de possiveis solugdes as dificuldades do dualismo cartesiano, Se observamos mais detidamente, em todos os casos a nova tese néo apenas se opée a anterior, mas passa por uma revisio do préprio con- ceito de substéncia. A validade deste, nao obstante, perma- nece fora de toda diivida. O passo decisivo neste ponto seré dado por Hume quando, em vez de tentar uma nova respos- ta para o problema do vinculo entre as substancias, estabe- lece um questionamento de principio quanto a legitimidade do préprio conceito de substdncia. Nao se trata ja de corrigi- lo, mas de abandoné-lo, Purgada por Hume, a questo alma- corpo deixa de ser metafisico-ontoldgica e passa a referir-se de forma exclusiva aos fendmenos. Contudo, ela nio desapa- rece totalmente, pois, ainda que neguemos 0 conceito de substincia, fisico e psiquico parecem ser incomensurdveis. Rebelando-se contra toda redugao do segundo ao primeito, mesmo aquela que pretende aceitar entidades psicofisicas, 48 | A racsonn « sus onus Brentano afirmara a especificidade irredutivel do fisico e do psfquico enquanto fendmenos (com independéncia da ques- tio de seu status substancial ou néo). E sbvio que, em tal contexto, a dificuldade de dar conta da sua relacao subsiste, Porém, se, retomando a inspiraco spinozista, partirmos da unidade do fisico e do psiquico (considerados agora enquan- to fenémenos), parecer entio que tal dificuldade torna-se superdvel. Primeiramente Mach, sobretudo Natorp e, poste- riormente, Scheler e Cassirer procurarao nessa direcio. ‘Teremos, agora sim, alcangado a sclucio definitiva do pro- blema cujos estagios temos esbocado? De modo algum. Na realidade, a tinica coisa que fizemos foi reformular, em um novo nivel, a dificuldade basica de todo “monismo”; nao a unio do diverso, mas a diviséo do homogéneo. Se partirmos de uma unidade primitiva, os problemas nao desaparecem, antes se deslocam para explicar como “do mesmo” surge “am outro”. A unidade fenoménica, portanto, longe de ha- ver eliminado todo problema, simplesmente criou um novo. Na filosofia nunca chega 0 momento de dizer: “... e viveram felizes..."; para o trabalho reflexivo no ha “redengi 3.4, Filosofia, cultura e sociedade Porque a racionalidade é sempre tomada de consciéncia, a filosofia € essencialmente libertadora. Ela nio dé novos grilhoes, Uma cultura que néo possua filosofia ou uma edu- cagio que nao a ensine (e que, nio obstante, pretendam valorizar 0 “espirito critico”) néo sio mais que uma incoe- réncia. A filosofia cumpre uma funcio imprescindivel no conjunto da cultura e, por isso, no seio da sociedade. Al- guém tem que assumir essa funcio. Se néo queremos que ‘Asn. © Ue € tosonA? Prenos rumors rata uma merase | 49 seja a filosofia, podemos the dar outro nome; o estado de coisas fundamental nao se altera por isso, Isto implica, por outro lado, claro est4, que quando 0 filésofo renuncia a sua tarefa, deixando de ser guardiéo da racionalidade, ele perde suta funcao social e a filosofia, sua legitimacio como momen- to necessério e irredutivel da cultura. 50 | A ruosona « sus monuins Capitulo 4 O texto 4.1. Como se 1é um texto filoséfico? Existem duas perspectivas possiveis sobre um texto — leitura e produco —, sendo que uma percorre 0 movimento inverso da outra. A producéo de um texto tem como ponto de partida uma estrutura légica que tenta se realizar numa forma literéria. Produzit um texto ¢ proporcionar uma for- mulagdo literdria adequada a uma certa estrutura I6gica; ler um texto é efetuar 0 movimento inverso, ou seja, partir de uma certa estrutura literéria ¢ tentar chegar a uma estrutura l6gica!. Os manuais de metodologia filoséfica concentram-se na primeira perspectiva. Um manual de aprendizagem e en- sino da filosofia deve se concentrar na segunda (I, 4, 4.3.1). Hé uma interagio — embora esta no signifique identi dade ou implicagio necesséria — entre como se lé e como se produz um texto. Bons hibitos de leitura se refletem em uma producéo satisfatéria de texto, assim como vicios de 1. Mais adiante teremos que corrigir esta nocio de “texto” a luz da proposta de uma distincio entre texto e escrita (I', 6, 6.1) | 51 producéo séo quase sempre também de leitura. Dois deles sdo extremamente comuns: 0 “petiodismo filoséfico” e o “literaturicismo". 1. Um texto filos6fico ndo é uma narracio na qual se contam coisas, porém nao € nada fécil perceber que nfo o seja. Podemos ler a “deducéo transcendental” como um pas- seio pelo bosque no qual, em vez de Arvores, se descrevem “estruturas transcendentais”. © que esta errado aqui é a “an- tecipagio hermenéutica”, a propria categorizacio do que esta~ mos lendo. Um texto filoséfico néo contém “noticias”, pois sua finalidade nio é transmitir “informagSes”.. Conseqtiente- mente, a sua leitura tampouco pode consistir em informar-se ou a respeito do texto ot daquilo que ele diz, nem em infor- mar-se com o autor, nem em informar-se sobre 0 autor (o autor fala de..., diz que...). Ao texto lido como “fonte de informa- Ges” devemos opor 0 texto como “objeto de andlise”” 2, Ler ou produzir um texto filoséfico é algo essencial- mente diferente de ler ou produzir um texto literério. Assim como muitas leituras ndo passam de uma apreensdo pura- mente literéria do texto, muitos textos “filoséficos” nao ‘so outra coisa que meras pecas literérias. Eventualmente, eles so textos “bem escritos", “oportunos”, ou 0 que se queira, mas nfo efetuam uma verdadeira contribuigao no Ambito da pesquisa ou do aprofundamento conceitual. A formulagio literdria nao 6 em filosofia a finalidade, mas apenas uma ferramenta de comunicacio. Elegancia de esti- lo € desejével, porém nao é essencial, sendo aquilo que, caso necessério, deve ser sacrificado. A elegincia de estilo, néo poucas vezes, se constitui em inimiga do rigor e da E por isso que pode haver revistas filoséficas melhores ou piores, mas rio “sensacionalistas’, 52. | A rtosom « seus promenas precisio. Fragilidades, saltos, caréncias e lacunas podem ser mascarados literariamente. Nivel literdrio e nivel lingiiistice do texto nao sio a mes- ma coisa. £ provivel que nao exista pensamento sem lingua- gem e que aquilo que temos chamedo de estrutura “Iégica” esteja essencialmente vinculado a estrutura lingiifstica. De qualquer forma, isso é diferente de dizer que a expressio literéria € prioridade para 0 pensamento filos6fico (e, muito menos, que a filosofia seja um género literdrio). E ébvio que um mesmo pensamento pode encontrar formulagées liter4- rias diversas igualmente adequadas, assim como ordem de exposicio e estilo, que sio opgdes pessoais. Deveria ser dbvio, também, que um pensamento pode ser acabado, sutilmente elaborado ¢, no obstante, nao lograr uma formulacio literéria satisfat6ria. Simples notas so capazes de conter idéias filo- s6ficas decisivas. 4.2. A compreensao do texto Ainda que seja possivel diferenciar, em principio, entre os modos de abordagem do estudo da filosofia e do texto filoséfico, existe entre ambos um vinculo estreito. A idéia condutora seré aqui, novamente, a de problema. O objetivo da leitura do texto filoséfico deve ser, pri- mordialmente, “entender”. [sto nic é dbvio, j4 que, de fato, hi outros objetivos possiveis, como “informar-se”, "tomar conhecimento” ou “assumir posigio” em relagio ao escrito, O importante € que qualquer outro objetivo pressupée com- preender © texto, 0 que, como conseqiiéncia, sempre é a “compresnde 3, Uso os termos “entender como sinénimes. Orwao | 53

Você também pode gostar