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CAPÍTULO PRIMEIRO categorias nem princípios compartilhados,

Por que a série de TV não é cinema todo progresso é impossível.

1. A cinefilia como obstáculo É certo que nossa cinefilia


hipertrofiada impede o desenvolvimento de
Entre todos os freios à criação de uma tradição televisual autônoma. A França
série de TV, o mais sério é certamente a inventou a imagem-cinema, mas também a
ausência de uma tradição televisiva cinefilia, este amor do cinema que é
ininterrupta em matéria de ficção. igualmente uma estética, um modo de pensar a
A França conheceu um período imagem. Nos anos 1910-1920, autores às vezes
importante de criação na época da ORTF1, franceses, como Deluc, Canudo, Epstein,
com obras dramáticas de costumes e séries de Faure, Colette, etc. conseguiram impor a idéia
TV que ficaram no imaginário coletivo como de que o cinema era mesmo uma arte e que
Rocambole, Les Brigades du Tigre, Thierry la merecia o respeito de uma inteligentsia prestes
Fronde. Houve nas décadas seguintes criações demais a desprezá-lo.
interessantes, dos Chevaux du soleil a La Veja por exemplo o que retrucava
famille Ramdam, de Navarro a Nestor Burma, Louis Deluc aos que observavam que os filmes
de L'Instit a Seconde B, mas, por razões eram mais medíocres que geniais (um
sociológicas cuja medida não foi aferida pelos queixume que poderíamos transpor tal qual
poderes públicos, estes momentos criativos para as séries de TV):
não se sedimentaram numa tradição. Podem me nomear vários poetas de
O que é uma tradição? "A tradição gênio contemporâneos? e grandes
designa um conjunto de saberes, de técnicas, escultores? e pintores
de valore, que são transmitidos de uma geração surpreendentes? e grandes músicos?
à outra". É uma mistura inextricável de cultura, Eles são tão poucos quanto possível.
de memória e de pensamento; de obras-primas Eu os desafio a ver numa temporada
reconhecidas, de savoir-faire acumulado e de teatral mais de três peças escutáveis.
categorias de análise. Toda tradição artística Se há três ou quatro cineastas, já está
repousa assim em três pilares: um cânone (ou bom. Entre nós, isso me parece
conjunto de obras "farol" cujo êxito não é considerável.
discutido) serve de modelo de inspiração e de Desta geração pioneira nasceram
padrão de medida; uma poética (ou várias), ou todos os grandes críticos e teóricos do cinema,
seja categorias que permitem conceber novas de Bazin a Daney, de Mitry a Metz, que
obras, descrever e avaliar as obras existentes; fizeram da análise dos filmes uma
uma profissão, em outras palavras técnicas que especialidade francesa. Cjneastas como
permetem executar as obras imaginadas. Estes Hitchcock, Hawks ou Huston deveram ao
três pilares não são imutáveis, nem crivo da crítica francesa ser reconhecidos
homogêneos; sua ooerência mascara uma como artistas completos na cena mundial e é
pluralidade de tendências, tensões e ainda esse o destino de muitos cineastas
contradições; eles evoluem sem cessar, seja americanos. Basta pensar no renome dos
por transmissões insensíveis, seja por Cahiers du cinéma, verdadeira marca
mutações bruscas. internacional à qual acudiram sessenta
Destes três pilares de toda tradição candidatos vindos do mundo inteiro, assim que
viva, apenas as profissões ligadas à escritura e ela foi posta à venda em 2008, para assegurar-
à direção existem na França (sem as quais não se de que esta reputação é ainda tangível. Sim,
haveria séries televisivas francesas, nem boas há uma tradição cinéfila francesa forte e viva,
nem ruins). Por outro lado, apesar das que penetra bem além do meio do cinema e
individualidades talentosas, a profissão de marca todos estes que aspiram a trabalhar no
roteirista de televisão se transmite mal já que audiovisual. Com toda a consciência ou a
ela é exaurida de poética(s). Muda, sem fé nem expensas dela, a arte cinematográfica modelou
lei, falta-lhe a consciência coletiva de sua arte, na França a maioria dos profissionais da
um consenso mínimo sobre os meios e os fins imagem desde o nascimento da televisão.
do relato ficcional na televisão. Ora, lá onde No seio da indústria do cinema
uma comunidade de visões faz falta, quando francês e internacional, esta tradição é uma
não há domínio nem linguagem comuns, coisa boa; o problema começa quando o
cinema se torna a referência de toda a ficção
em imagens, o quadro de referência para
1 Ofício de Radiodifusão - Televisão Francesa, agência pensar e julgar a narração televisual. Ora, a
nacional responsável, entre 1964 e 1974, pelo cultura tem horror do vazio, cé bem isso que
fornecimento do serviço público de rádio e televisão na acontece. Fora do cinema, a França não tem
França.
realmente um quadro de pensamento, de viáveis? Há realmente alguns oásis, alguns
nomes e categorias, de teoria e de modelos apoios mágicos de circunstãncias, que
para abordar a ficção televisual. permitiram e permetem ainda uma postura de
Muitíssimos profissionais praticam a artista televisual (pouco importa que seja
série de televisão como se se tratasse de um marqueteiro, conselheiro de programa,
filme, como se o cinema e o telecinema fossem roteirista, diretor ou produtor, às vezes agente,
um meio único. Alguns deles estão bem já que a série de TV é uma obra coletiva);
conscientes disso, em nome de uma permetem o sucesso de alguns telefilmes,
desvalorização implícita: quem sonha mais (o surpreender com algumas séries breves, e isso
cinema), pode menos (o telecinema). Estes não em todos os canais. Mas estas árvores
veem jamais a televisão para preservar seu escondem a floresta escura de nossas misérias
talento, mas naturalmente eles sabem e perpetuam esta mentalidade calamitosa em
exatamente o que deveria ser uma série de lugar de obrigar a reformar-se, em lugar de
televisão e às vezes chegam a impor este saber. fazer tomar consciência sobre a Opinião e
Eles fazem séries chatas e desajeitadas, sobre o Estado de gravidade da situação.
imitações do cinema de quem o público foge;
como outrora fugia do cinema de arte e do As séries de TV americanas nos
cinema teatral. parecem inultrapassáveis porque nós
Outros profissionais têm dificuldade acreditamos que é preciso muito dinheiro, um
de reconhecer esta aderência da cinefilia ao mercado enorme, uma indústria antiga para
seu trabalho, quando eles mesmos não têm chegar a ficções semelhantes. Quem se
consciência disso. Acreditando refletir apenas perguntou se não era simplesmente uma
em termos de marketing, preocupando-se com questão de estado de espírito, de ponto de vista
a audiência, ou seja, com o público, eles estão ou de método? Uma melhor inteligência da
no entanto igualmente contaminados. Amam o essência da ficção televisual que nos falta?
cinema, mas trabalham na televisão; então eles "Ouve-se que nossa ficção carece de dinheiro.
fazem as ficções de televisão que podem, sem Ora, a primeira temporada de Dr House não
acreditar nelas. No seu subsconsciente, apenas custou muito caro: um cenário único de
o cinema tem o direito de ser inventivo e hospital, atores ingleses desconhecidos com
subversivo, a série de TV pode apenas repetir cachês inferiores aos dos americanos. Ter mais
receitas já provadas. Quais? dinheiro não torna necessariamente melhor."3
Aí está o problema, pois as suas Precisamos mudar nosso olhar sobre
receitas (inconscientes) convergem para uma as séries de TV, achar um novo método,
nostalgia: o modelo hegemônico dos anos princípios de ação eficazes. Mudar a realidade,
1960, a fórmula de L'Instit e de Julie Lescaut, modificar a realidade, é de início mudar a
com um herói "soldado do dever" e um aparência e a medida habituais das coisas, pois
universo mimético das classes médias. Como a realidade não existe por si, fora de nossas
se o gosto e o imaginário fossem atemporais, formas mais ou menos arbitrárias de apropriar-
imutáveis; como se a aparição de uma oferta nos dela, de a designarmos, de envelopá-la em
televisual alargada (TNT2, satélite e cabo), o nossos hábitos linguageiros e nossas
surgimento das séries made in USA não manipulações simbólicas. Se fracassamos em
tivessem recomposto as expectativas e as conceber e realizar grandes séries de TV, é a
práticas do público, mais esperto do que se crê. princípio porque nos falta uma linguagem
É claro, alguns captaram esta própria, uma maneira de pensar a série de TV
revolução, mas não chegam a tirar as que não deva nada ao cinema. "Não
consequências dela, a compreender que a série esqueçamos isso: basta criar novos nomes,
de TV é a seu modo inventiva e subversiva. A apreciações, verossimilhanças novas para criar
televisão é um mundo que vai rápido demais, a longo prazo novas coisas."
que demanda energia demais no dia a dia, para
elaborar um pensamento, um método que lhe 2. A série de TV não é uma arte da imagem
permita reformar suas idéias.
Estas atitudes não nos trazem de volta Pergunte a um profissional francês
necessariamente aos temperamentos e às com qual signo se reconhece uma série de TV
personalidades. Elas atravessam todo o meio de sucesso. Ele lhe dirá que é necessário:
televisual e, às vezes, alternam no mesmo ● um assunto original;
indivíduo. Outras posturas mentais são ● um conceito na tendência atual;

2 Sigla de Télevision Numérique Terrestre, a tecnologia 3 Laurent Storch, diretor dos programas da TF1,
que permite a recepção de sinais digitais por uma entrevista com Véronique Groussard em TéléObs,
antena que capta sinais de rádio. semana de 15 de outubro de 2009.
● personagens aos quais as pessoas se "Por definição, por seu funcionamento mesmo,
identificam; a linguagem da televisão é forçosamente mais
● ou tudo isso ao mesmo tempo. pobre que a do cinema", diz Pascal Bonitzer.
Se você procurar saber mais, bem Aí está uma propriedade notável,
poucos enumerarão os critérios importantes, a mesmo se ela é negativa: a imagem da série de
saber que não há grande série de TV sem uma TV é menos bem definida, menos
história interessante para o meio televisual. impressionante em seus efeitos sensorial e
Sob este caráter evidente, até mesmo artístico. A série de TV é uma arte pobre.
tautológico, esta proposição compreende três Mas este aspecto não é sem dúvida o
categorias decisivas: a da história, a do mais fundamental; a prova, certos pilotos de
interesse e a do meio televisual. séries (o de Fringe por exemplo) foram
Veremos que estas noções são bem rodados com um orçamento e meios dignos do
mais operatórias que a maioria das concepções cinema. O mais importante tem a ver com o
colocadas habitualmente em evidência. A dispositivo da televisão, que é bem diferente
noção de originalidade não tem sentido na do do cinema: a série de TV não é recibida
televisão, diferentemente do cinema; e os nem consumida da mesma maneira que um
personagens não podem estar no fundamento filme; suas condições de recepção, seu regime
de uma série, pois eles não resistem à usura perceptivo são diferentes. A importância desse
que provoca a repetição dos episódios. Quando dispositivo é tão fundamental que um filme
ao critério de identificação, ele é enganador; projetado na televisão perde, como todos já
repousa sobre uma idéia confusa do puderam experimentar, uma grande parte de
mecanismo de recepção. sua magia visual, sua imagem torna-se
Quando o produtor hollywoodiano achatada e banal.
David O. Selznick dizia que um bom filme É então menos o suporte material da
repousava sobre três coisas: uma boa história, imagem que entra em questão, que as
uma boa história e de novo uma boa história, condições de sua recepção, o contexto
não era uma boa definição do cinema, mas pragmático da sua visão (a pragmática designa
talvez da série de TV (na qual Selznick aliás a relação de um receptor com uma mensagem).
foi também bem-sucedido). É preciso pensar a A série de TV não pode apresentar as mesmas
ficção televisual na lógica própria de seu meio, propriedades visuais e sonoras de um filme
sem fazê-la dobrar-se às formas artísticas ou projetado numa sala escura. Há entre eles uma
aos mecanismos sociológicos que lhe são diferença contextual que afeta a sua
estranhos. "linguagem", o seu sistema de representação,
os meios de expressão utilizados. Para bem
INDIGÊNCIA DA IMAGEM TELEVISUAL compreendê-lo, remetemo-nos ao contexto de
recepção de uma série como Dr House, uma
A série de TV não é concebida nem ficção mundialmente conhecida.
produzida como um filme de cinema, as Você está com seu cônjuge que tem
diferenças começam com o financiamento e a um fraco pelo herói, talvez você tenha filhos
tecnologia. O orçamento de um episódio de que admiram sua insolência. Toda a família se
série de TV é bem inferior ao de um filme, apressou a terminar o prato. Cada um tomou
digamos de cinco a dez vezes inferior; o que seu lugar habitual diante da tela. O programa
tem incidências sobre a qualidade da começa. Você vai reencontrar este ambiente
realização, do jogo dos atores e dos cenários. obscuro e tranquilo, de natureza hipnótica,
Salvo exceção (piloto rodado em 35 mm), a próprio da sala de cinema? Esta tela imensa,
série de TV utiliza a imagem digital, isto é, a que te aspira nele e no qual a riqueza quase
menos precisa, que a imagem argêntea, basta para o seu prazer?
fotoquímica, do cinema. Em matéria de Nananinanão. Um raio de luz chega
resolução e de contraste, de claridade atípica, em suas costas e se reflete na tela do monitor,
há uma superioridade incontestável da imagem as idas e vindas das crianças aos banheiros não
35 mm sobre o vídeo. É o que explica que param e, depois que um telefone celular tocou
muitos cineastas resistem ainda ao digital, bastante, sua mulher acaba de iniciar uma
apesar de sua leveza e de sua rentabilidade. O conversa telefônica que promete ser
qualificativo que vem imediatamente ao seu interminável. É assim que o episódio começa,
espírito, para caracterizar a imagem vídeo, é o não no silêncio e a atenção geral, mas sobre
da pobreza: um fundo de rumor incessante.
"A imagem, no cinema atual, torna-se cada vez Em outras palavras, desde as
mais pobre, cada vez mais contrastada. primeiras imagens, as observações se fundem,
Habitua-se o público ao digital", estima Emir por exemplo no curioso plano de água
Kusturica. incrustado nos créditos desta série médica,
quando não é a cena dramática do pré-créditos comparações é a feita com o estado hipnótico,
que desencadeia um debate. Então de repente, pois é a menos metafórica, a que manifesta
seu filhinho se lembra que tem uma mais correspondências (fonte externa, fixação
competição de vôlei importante num canal da atenção, estado modificado, crença, etc.).
esportivo a cabo e que seu treinador tinha Escutemos Jean Epstein descrevendo o cinema
insistido para ele assistir. Ele suplica para ter a como uma "máquina de hipnose":
possibilidade de dar pelo menos uma olhada Na fascinação que desce de um grande
no placar; explica que não vamos perder nada plano e pesa em mil rostos atados na
em Dr House se por intermitência olharmos mesma impressão, em mil almas
alguns segundos o avanço da partida. Ninguém imantadas pela mesma emoção; (...)
concorda, mas o filhinho faz birra e sua mulher nas imagens que o olho não sabe
termina por deixar que ele veja. formar nem tão grandes, nem tão
Enquanto isso, o episódio está bem precisas, nem tão duráveis, não tão
adiantado e você tem dificuldade para retomar fugazes, descobre-se a essência do
o fio da história. Em outras palavras, por mais mistério cinematográfico, o segredo da
que você tenha investido numa tela grande máquina de hipnose: um novo
ultraplana, um defeito te enerva: a imagem conhecimento, um novo amor, uma
parece cortada, você não sabe como consertar nova possessão do mundo pelos olhos.
essa disfunção. Há sempre mais detalhes que O que é essencial nesta experiência,
escapam à sua visão, sem que você saiba se como analisaram em detalhe Raymond Bellour
eles são menores ou essenciais. Enfim, sua e alguns outros, é o dispositivo triangular sala
mulher lhe pede pra baixar o som, que já não escura/tela luminosa/percepção hipertrofiada,
está muito forte, enquanto que por seu lado, que cria no espectador um estado de
você gostaria muito de reencontrar a consciência em que os limites do seu Ego são
intensidade sonora de uma sala de cinema. abolidos. A partir de então, a ficção projetada
Em resumo, qualquer que seja a na tela é interiorizada pelo espírito, que pode
perfeição formal de seu televisor, do episódio investir-se nela de múltiplas formas, jogar ali
difundido, a boa vontade de seu entorno, o diversos papéis ao mesmo tempo:
conteúdo sensorial de uma série de TV é contemplador ou auditor, juiz ou participante,
rudimentar, bem abaixo deste fornecido por observador e/ou ator, segundo o seu grau de
uma sala de projeção. implicação.
O cinema oferece, com efeito:
● uma sala escura e silenciosa, A SUPERDETERMINAÇÃO DO VERBO
● uma posição sentado que suprime
toda atividade sensorial-motriz, O desafio da ficção televisual é que
● uma "visão bloqueada" em direção à ela deve chegar a criar um tal estado de
tela; imersão ficcional sem o dispositivo da sala
● uma tela imensa que exacerba a escura, da "visão bloqueada" e da tela
atenção visual e auditiva. superdimensionada. O telespectador está
Este dispositivo obriga o espectador a diante da imagem minimalista de um monitor
aniquilar-se na contemplação da tela, a fundir- de televisão, sem cessar convocado por seu
se num desfile de imagens que o transportam universo cotidiano. A imagem televisual não é
num universo outro, faz ele viver ou assistir a suficientemente rica para hipnotizá-lo nem
uma história cujo grau de realidade é muito abolir as fronteiras de sua personalidade.
forte para implicá-lo emocionalmente e Como diz sobradamente Pascal Bonitzer: "A
fisiologicamente. capacidade de atenção do telespectador é
Os contemporâneos do nascimento e muito mais distraída que a do espectador de
da maturação do cinema descreveram de cinema." É, no entanto, conhecido por todos os
maneira impressionante esta experiência amantes que uma série de TV pode ter um
perceptiva tornada banal por nós, após mais de efeito de implicação emocional tão intensa
um século de experimentações quanto um filme. Como compreender que a
cinematográficas de toda ordem. "A gente se televisão possa chegar a afetos tão intensos
pergunta se é simples espectador ou ator destas quanto os do cinema sem os meios que fazem
cenas surpreendentes de realismo", escrevia H. a potência do cinema?
de Parville em 1895. As comparações com a A única explicação possível, é que o
visão onírica ou alucinante, com o magnetismo telespectador não é então diferente do ouvinte
e o espiritismo, com a hipnose, afluíam sob sua que escuta uma história oral e, pela simples
pluma enquanto eram surpreendidos pelo eficácia da linguagem, encontra-se totalmente
estado da consciência modificada produzido envelopado nas dobras do relato. Se uma boa
pela projeção fílmica. A mais sugestiva destas série pode nos cativar tanto quanto um filme,
se a imersão ficcional é nela igualmente diferença do cinema, não é uma arte visual; ela
possível com tanto prazer, é que uma narração repousa muito sobre um discurso verbal, que é
oral bem conduzida possui a mesma nela superdeterminado. Esta predominância
capacidade de nos cercar de emoções; cada um oral se confirma nos jogos de espelho entre
teve esta experiência com narrações "naturais", programas e as transferências de vedettes e de
íntimas ou públicas. decididores, que têm lugar entre a rádio e a
A palavra reencontra aqui uma televisão, mas jamais com o cinema. Se
dimensão primordial de evocação ou de devêssemos a qualquer preço estabelecer uma
invocação, de criação de simulacros, bem filiação morfológica, a série de TV deveria ser
conhecida da tradição mítica e das grandes vinculada seja ao teatro, seja à dramática
religiões (assim o fiat lux bíblico, que as radiofônica. A série de TV é uma arte verbal, a
metaforiza). Sem dúvida, o aspecto visual da mais verbal das artes audiovisuais.
televisão joga um papel de auxiliar, a imagem A pobreza de seu meio, a série a
tem uma função no espetáculo aberto; ela compensa por uma outra de suas
apenas pode ajudar a captar o ouvinte, a fixar a características, que é a repetição.
atenção, para atingir a vigília paradoxal Vamos voltar com efeito à definição
buscada. Mas esta função não é primordial, ela desta forma semiótica. O que define uma série
não tem a potência originária da imagem de TV? Uma série televisual é um programa de
cinematográfica, seu poder de captação ficção, com uma história, personagens ou uns
imediato, de fascinação contínua. temas recorrentes, difundidos a intervalos
A imagem na televisão é secundária, regulares num mesmo canal e na mesma faixa
apesar do que pode ter de surpreendente uma horária. Sua duração é variável (de 3 a 90
tal declaração. É preciso lembrar mais uma vez minutos), assim como a periodicidade (6 a 24
uma decepção produzida pelos filmes vistos na episódios) ou sua perenidade (1 a 17
televisão. Os filmes estetizantes, que temporadas). A história pode ser em episódios
colocavam a carne do mundo no primeiro isolados ou "a seguir", o importante é que em
plano, tornam-se mortalmente chatos. Apenas cada episódio o público espera reencontrar
os filmes cuja narração dialogada ocupa um elementos idênticos e que o ritmo de sua
lugar importante resistem a esta prova. É difusão seja mais ou menos conhecido de
preciso saber ainda que a televisão é mais antemão.
escutada que vista. É um "rádio filmado", para A repetição e a previsibilidade que
retomar a expressão de Orson Welles, que dela decorre são o segundo par de
tinha começado sua carreira nesta mídia. características fundamentais do material
Sem contar que o que se chama "a televisual, sem o qual a série de TV não
escuta-rádio da televisão" em certos momentos poderia existir.
do dia, seus sinais auditivos são os verdadeiros Como se verá melhor na sequência,
responsáveis pela prática ritualizada, por esta repetição não vale apenas de um episódio
vezes, de sinais de alarme (créditos, para outro, ela é inerente a cada episódio e
comerciais) e de sinais de indicadores (pics confirma a pobreza do meio, a indigência de
sonoros nos momentos intensos). Os sons seus meios. O poder de fascinação visual e
televisuais permitem um visionado com auditivo da série de TV é limitado, mas é
atividades paralelas (entorno doméstico, reequilibrado pela familiaridade e a situação de
correio, tarefa das crianças, cozinha, refeições, espera que cria a "seriação". A instalação de
etc.). Eles permitem o consumo fragmentário histórias num ritmo seriado, o desdobramento
de certos programas (meteorologia, serviços, de uma narração num ciclo de retomada e de
informações, jogos). Eles fornecem tais índices variação dos mesmos elementos,
capitais, os profissionais aguerridos sabem que contrabalançam sua inferioridade.
se um programa que não é inteligível Neste sentido, seu princípio é muito
unicamente ao ouvido não o é definitivamente. antigo, bem anterior à televisão e mesmo à
Dos filmes projetados na sala à série de TV, modernidade. Existiu uma ficção seriada ou
passa-se consequentemente de um meio rico a cíclica desde o começo da literatura, e esta
um meio pobre, de um material de início visual forma jamais cessou, Gilgamesh, O
a um material de início sonoro. Mahabharata, as lendas patriarcais bíblicas, os
É a primeira dupla de características poemas homéricos, As Mil e Uma Noites, os
essenciais do meio televisual e por ramos do Roman de Renard ou da Távola
consequência da série de TV: a pobreza do Redonda, o corpus gargantuesco, o romance-
conteúdo visual, a subdeterminação da sua folhetim e os "romances-mundo" do século
imagem que não tem mais um papel XIX, as obras de Tolkien e de Asimov, são
organizador; contrabalançada pela importância também manifestações desta ficcionalidade
da palavra e da trilha sonora. A série de TV, à fundada no retorno de personagens e de
motivos. As serials no cinema dos anos 1910- Tudo o que é colocado no papel deve
1920 a radionovela, o remake, a suite e o poder ser visto na tela: tudo deve ser
mangá hoje, continuam alegremente esta forma VISUAL. O diálogo é uma prótese; você
imemorial de cultura popular. só recorre a ele em caso de necessidade
A ficção serial é um fenômeno (...).
universal que se confunde com a humanidade e O teatro FALA, o cinema MOSTRA.4
sua necessidade de histórias. De sorte que é Ou ainda, no antimanual de Jean-
estranho que a repetição seja considerada Claude Carrière e Pascal Bonitzer:
como um defeito congênito da narração e Não se trata apenas então de saber
odiada pelos espíritos que gostariam de decidir contar em função da imagem, "sob o
sobre o bom gosto. Será preciso perguntar, em ditado da imagem" para parafrasear a
boa hora, se estes espíritos não se confundem, fórmula de Klossowski (...) É a imagem
como mostrou Gilles Deleuze, repetição e que conta a história.5
generalidade, repetição e identidade. Uma ilustração clássica deste
princípio é o início de Janela indiscreta, no
CONCLUSÃO qual a situação do herói é evocada unicamente
´ pelo cenário sobre o qual desliza a câmera. O
Pobreza e repetição, oralidade pátio do imóvel, o rosto suado de James
hipertrofiada e previsibilidade são assim os Stewart, uma câmera fotográfica quebrada,
traços essenciais do meio da série de TV, as uma pilha de revistas, fotos de carros de
propriedades fundamentais de seu vetor, seus Fórmula 1 na parede, o gesso na perna do
limites e seus recursos. Se a gente se lembra da herói, tudo isso nos explica, sem palavras, que
fórmula do poeta-profeta McLuhan, "a o personagem principal é um grande repórter,
mensagem é o meio", pode-se sustentar que obrigado a ficar deitado em decorrência de um
estas propriedades guardam o segredo da arte acidente profissional, e que por inatividade
de contar histórias na televisão. Fabricar uma observa seus vizinhos. Eis aqui o comentário
ficção popular, imaginar uma grande série de sobre isso que dava Hitchcock a Truffaut:
TV, estas das quais a gente se lembra e que É a utilização dos meios oferecidos pelo
dão a volta ao mundo, não é jamais apenas cinema para contar uma história. Isso me
saber jogar com brio com estas propriedades interessa mais que se alguém perguntasse
negativas e positivas, para gerar a partir de um a Stewart: "Como você quebrou a
dispositivo muito modesto, um conjunto perna?", Stewart responderia: "Tirava
ficcional suntuoso, histórias e emoções uma foto de uma corrida automobilística,
surpreendentes. uma roda se soltou e me feriu." Não é?
Seria a cena banal. Para mim, o pecado
Esta especificidade do meio capital de um roteirista é, quando se
televisual, com excessiva frequência discute uma dificuldade, escamotear o
negligenciada, mesmo pelos profissionais, tem problema dizendo: "Nós justificaremos
consequências múltiplas para a concepção e a isso com uma linha de diálogo." Este
execução de uma série. Alguns delas são bem diálogo deve ser um ruído entre outros,
conhecidas, outras muito menos. Vamos logo um ruído que sai da boca dos
examinar as mais importantes. Mas personagens cujas ações e olhares
sublinhemos em seguida uma consequência contam uma história visual.6
relevante: a série de TV é antes de tudo uma
forma genérica, que funciona no quadro do A DUPLICAÇÃO VERBAL
sistema de gêneros (policial, comédia,
aventura, médica, etc.). Toda série de TV, para Este princípio tem valor de teorema
ser recebida sem esforço, deve mostrar um no cinema, onde é preciso saber "fazer cair as
contrato genérico claro, marcar seu palavras" como dizia um grande roteirista
pertencimento a um gênero, mesmo quando italiano; mas não existe na televisão. Esta
este fosse uma mescla genérica. repousa ao contrário sobre o princípio inverso:
o diálogo não é um "ruído entre outros", ele é a
3. A série e a arte da redundância chave da significação narrativa e deve

Todos os manuais de roteiro de


4 John W. Bloch, Bill Fadiman, Lois Peyser, Manuel du
cinema insistem com razão na necessidade de
favorecer a imagem na narração e de isolar a scénario américain, Bruxelles, CIAM, 1992, p. 3 e 14.
5 Jean-Claude Carrière, Pascal Bonitzer, Exercice du
palavra no plano de fundo. Assim, no Manual
do roteiro americano: scénario, Paris, La Femis, 1990, p. 95-97.
6 François Truffaut Hitchcock Truffaut (1984). Paris,
Gallimard, 1993, p. 183.
permanentemente acompanhar o relato visual. nenhum índice. Eu sou um monstro
É preciso dizer tudo, explicar tudo oralmente, que não deixa traços.
desde a exposição e até o desenlace, de modo Sem dúvida um cinéfilo poderia achar
que o telespectador, mesmo se sua atenção é que a série queima rápido demais seus
flutuante, mesmo se ele é distraído por ruídos cartuchos, vende barato o mistério do
parasitas, mesmo se sua escolha não é personagem, contradições que o atravessam.
verdadeiramente suspensa, seja cativado pela Mas num meio em que a imagem não tem nada
história começada diante de seus olhos. É este de fascinante, seria, no entanto, o melhor modo
acompanhamento da oralidade, esta duplicação de "fisgar" o público e lhe dizer: atenção, aqui
verbal que faz com que uma série americana está um policial diferente dos outros; este
possa ser facilmente seguida, enquanto que programa vai te fazer ver todas as suas cores.
isso é com frequência difícil com uma série A escolha inversa teria provocado um clima de
francesa. indeterminação nefasto, sem dúvida a pior
Um exemplo para ilustrar este coisa que poderia acontecer com o início de
princípio: o piloto de Dexter. Lembramos que uma série de TV, já que o telespectador não
esta série coloca em cena um técnico da polícia tem o hábito de permanecer por muito tempo
de Miami, que quando cai a noite torna-se o com um programa que o desorienta.
que é no mais profundo de si mesmo: um Examine o início de outras séries,
assassino em série. A exceção é que este como Dr House, Lost, Desperate, Malcolm ou
assassino não mata qualquer um: em virtude de Weeds, verá que não há exceção. Todas as
seu código moral, mata apenas criminosos séries bem-sucedidas começam com cenas de
perigosos. É "o código de Harry", legado por exposição explícitas, que contam ao mesmo
seu pai adotivo, um policial que soube tempo verbal e visualmente as informações a
perceber a pulsão criminosa de seu filho e conhecer sobre os personagens principais. Seja
canalizá-la. qual for o gênero, a fórmula narrativa (em
Dexter Morgan é então um episódios isolados ou folhetinesca), ou o
personagem Jano, cuja dualidade teria sido registro (cômico ou dramático), encontraremos
interessante desvelar progressivamente, sempre desde a abertura do primeiro episódio a
colocar em cena a lenta tomada de consciência formulação das premissas da série:
pelo herói de seu instinto assassino. Mas não ● a identificação dos personagens
foi essa a escolha do criador e de sua equipe de importantes e de seu meio;
roteiristas, que optaram ao contrário pela ● a menção de seus objetivos e até
revelação imediata e completa da identidade mesmo dos obstáculos a estes
do herói (interpretado pelo brilhante Michael objetivos.
C. Hall). Aí está a exposição do conceito da
No episódio inaugural da 1ª série, de sua ideia principal.
temporada, desde os pré-créditos, vê-se Dexter Mas tem mais. Não apenas a cena de
sequestrar e matar um padre pedófilo assassino exposição deve ser explícita, mas ela deve ser
de crianças e depois voltar pra casa de mostrada bem cedo, bem mais rápido que no
manhãzinha, pintando seu autorretrato para o cinema. Um fato surpreendente quando se
espectador. Graças à voz off que exprime seu cronometra o desenvolvimento de uma série de
discurso interior, uma linha narrativa TV e de um filme (acompanhar uma série com
consistente em um longo flashback biográfico, um relógio cronômetro é sempre cheio de
não ignoramos mais nada do herói. ensinamentos).
Eu me chamo Dexter Morgan. Não Comparemos a abertura de um
sei nada do que me tornou o que eu episódio da série policial Mentes Criminosas
sou, apenas que isso deixou um (Criminal Minds, 2005) e do filme policial Os
grande vazio em mim. As pessoas donos da noite (2007), de James Gray.
simulam certos sentimentos e eu, eu Só compreendemos verdadeiramente
os simulo todos. Mas tal é o fardo que o tema do filme de Gray após dez a quinze
devo carregar. (...) minutos, uma vez que os personagens foram
Do sangue que me mostra todas as apresentados cada um em seu universo (Bobby
cores ou ao contrário me permite no mundo da delinquência, Joe e seu pais no
colocar um pouco de ordem no caos. da polícia). É quando Bobby recusa cooperar
Os preceitos de meu pai adotivo são com seu irmão policial que nós percebemos
seguidos ao pé da letra. Ele pode que uma luta mortal vai ter lugar no seio de
estar muito satisfeito disso e eu sua irmandade (sequência 8). Num episódio de
também. Ele era um grande policial Mentes Criminosas, sabe-se desde o pré-
em Miami e me ensinou a não deixar créditos o tema da história, já que esta
sequência representa todo o ato criminal que
vai ser objeto do episódio (na T1E67), o tema é Dada sua curta duração, a ação
conhecido com 3'50''; esta duração dramática, tão clara e significativa
corresponde à chegada do nó dramático da que seja, tem o risco de escapar em
maioria dos episódios. parte ao espectador. É preciso que
Qual é a extensão da validade deste ela se torne sensível, seja observada
princípio? Só é válido para os pilotos? Ou e por isso se repita. Uma peça de
apenas para as exposições? Sabe-se que as teatro é composta de poucas ações
séries folhetinescas têm seus episódios frequentemente repetidas. É desejável
precedidos por um breve resumo. Este resumo que o efeito cênico seja
torna então inúteis os lembretes pesados, a completamente “extraído” da
explicitação das premissas para cada episódio. primeira tacada, sem hesitações, sem
No que toca às séries cujos episódios são rebarbas: mas uma vez extraído, ele
isolados8, elas repousam em princípio sobre deve se repetir e voltar sobre si
uma ideia muito simples, que não precisa ser mesmo a fim de melhor cruzar a
relembrada a cada momento. rampa […] vimos nesta repetição o
Por que estas repetições? Tendo a signo dos escrúpulos de Molière,
série obtido um enorme sucesso desde a preocupado em fazer-se entender
primeira temporada, o público não saberia já sobre um ponto perigoso. A repetição
tudo isso? Não teria sido mais sutil deixar estes é na minha opinião a expressão
dados tácitos? Não, uma menção alusiva teria teatral do pensamento (o mesmo
contradito a especificidade do meio televisual, procedimento se encontra na
no qual a atenção é difícil, parasitada por toda eloquência).
sorte de "ruídos"; em que os programas são Como no teatro clássico, toda a
tomados já em andamento, e em que um bom dificuldade está em que as repetições na série
programa não cessa de recrutar um novo de TV não devem desanimar o público já
público. É preciso então contar sem falta com informado, que seguiu escrupulosamente a
estes novos chegados, re-iniciar o conceito da série desde o começo e nos menores detalhes.
série, repetir seus traços essenciais. Toda a arte vai ser de transformar o defeito em
A série de TV é uma arte da qualidade. É aí que intervém o talento de
redundância. criador de diálogos dos roteiristas, que vão ter
que repetir muitas informações sem irritar o
PROCEDIMENTOS DA REPETIÇÃO público. De onde o gimmick e o leitmotiv, dois
procedimentos chave que permitem a
Este imperativo de redundância se redundância.
encontra também em outras formas de O guimmick é um traço ligado ao
atividade nas quais a escuta é sem cessar personagem que volta de forma recorrente, por
ameaçada de distração, como o teatro do exemplo a Winchester, serrada de Josh
século XVII ou a eloquência política e Randall. Fazendo em cada episódio uma cena
religiosa. Lembremos que até Voltaire, os diferente com esta arma e o vínculo do herói
Grandes e os Ricos do reino estavam sentados com ela, a série lembra que Randall tem um
em bancos, dos dois lados da cena teatral e uso das armas que sai do comum. Em vez de
enquadravam os atores, o que só poderia ser pesado, o retorno deste motivo é prazeroso
constranger a ação e a verdade dramática porque ele toma formas múltiplas, conforme as
(estes banquinhos ocupavam um terço da situações e as condições permitidas pela
cena). Quanto ao blá-blá-blá que reinava nas história. A recorrência do motivo adquire não
assembleias políticas ou religiosas de outrora, apenas um papel informativo, ela tem o mesmo
cada um pode imaginar que é o mesmo de papel que um refrão numa canção: uma função
todas as épocas. de pontuação e de acentuação.
Num estudo sobre Molière, o crítico O leitmotiv é a retomada de um
Ramon Fernandez explicou bem o que motivo ligado a uma intriga, ele não é
implicavam estas perturbações para a forma independente da ação como gimmick e sua
teatral: recorrência é menor. Assim, nos dois primeiros
episódios da temporada 7 de 24 Horas, o
7 T1E6: episódio 6 da temporada 1. motivo da barbárie de Jack Bauer retorna em
múltiplas retomadas, sob formas diferentes.
8 N.T.: o autor se refere aqui às séries em que cada
Lembremos do contexto: a temporada
episódio conta uma história completa, como por começa então ele é interrogado pelo Senado
exemplo Criminal Minds, independentemente da trama
maior que liga os protagonistas, nestes caso, os americano sobre as ações ilegais que teria
policiais envolvidos nas investigações. Cada episódio cometido com seu agente antiterrorista;
trata normalmente de um "caso" objeto de quando os agentes do FBI o embarcam para
investigação.
utilizá-lo contra um agente colega que passou todos os conteúdos, mas somente aqueles que
para o inimigo, cujas ações ameaçam a podem resistir ao desgaste que provoca uma
segurança dos Estados Unidos. Não tendo repetição sistemática. É assim que os
perdido nada de sua eficácia habitual, Bauer conteúdos excessivamente diáfanos, como o
faz avançar a investigação com um grande registro feérico, ou ao contrário sombrio
passo, mas recorrendo a métodos desumanos. demais, como os gêneros noir e de horror,
Muito rápido, ele divide os agentes do FBI: vivenciam mal a passagem para a série e são
alguns condenam-lhe por seu método e seu frequentemente fracassos em termos de
passado, eles não o autorizam a portar uma audiência.
arma; outros ao contrário o apoiam. Esta
divisão do FBI a propósito de Bauer e as 4. O interesse em vez da identificação
repreensão que lhe são feitas alimentam várias
cenas, que não trazem nada para o Sigamos o fio de nossa proposição. O
desenvolvimento da intriga, mas alimentam a que é uma história interessante para o meio
redundância inerente a toda série eficaz. televisivo? Por que não se agarrar ao bom e
Por que estas repetições, sobre um velho conceito de originalidade, que já foi
dado que no cinema teria sido assinalado de provado em outras paragens? Ou o famoso
uma vez por todas, em uma cena significativa? critério de identificação, que permite estar
É que nós estamos na temporada 7, certo de que o público não estará
conhecemos bem a eficácia suspeita de Jack desorientado?
Bauer nas situações de ataques terroristas; e
ela começa a nos cansar. Filósofos nos O PÚBLICO CRIA A OBRA
alertaram sobre o fato de que esta função bem
poderia ser, para os Estados Unidos, uma Auscultando o meio televisivo, vimos
forma de legitimar a tortura. Tanto que este tinha as propriedades de ser pobre e
emocionalmente como no plano ético, a série repetitivo, verbal e previsível, de produzir um
deve fazer frente a um desgaste e uma crítica contexto de escuta desfavorável à atenção.
sistemática, a pesar de seu sucesso constante. Ora, quem não vê que o critério da
A única maneira de fazê-la superar originalidade é incompatível com tal contexto?
isso, de dar-lhe um novo sopro, é integrar este Sobre a palavra ‘originalidade’, Le Petit
desgaste no funcionamento da série, fazer dele Robert diz: “Que parece não derivar de nada
um obstáculo para a ação excessivamente anterior, não lembra nenhum outro, é único,
eficaz do herói torturador. Repetir as fora do comum. ” Segundo esta definição, uma
acusações de que é objeto Bauer, constituí-las ficção original é inclassificável, sai dos hábitos
num motivo na ficção, é dizer ao público e das referências comuns.
antigo e novo: você viu, a série mudou, Bauer É frequentemente o que dá um prêmio
não tem mais o direito de fazer qualquer coisa, a um romance ou a um filme excepcionais;
e além disso ele mesmo tem dúvidas sobre a isso permite apreciar procedimentos e emoções
legitimidade de seus atos. É preciso que este sutis. Mas para apreciar a inovação, é preciso a
motivo seja um leitmotiv ao mesmo tempo atração para o desconhecido, o que não é dado
para o público fiel, mas também para os a todos; é preciso também muita atenção e
recém-chegados. conforto de escuta (tente ler Proust no metrô,
Graças à redundância que a estrutura, ao lado de vizinhos barulhentos). A inovação
a série sabe integrar suas condições de radical supõe um meio que projeta uma
recepção, mesmo negativas, para transformá- recepção individual, concentrada, exclusiva;
las em fermento de mudança. condições que são contraditórias com a
A série de TV repousa sobre a televisão.
repetição: retorno dos personagens, de motivos Por outro lado, para quem deve
e de situações, redundância dos diálogos e da atingir um sucesso imediato, como é o caso
trilha sonora com a imagem, mas também das séries de TV, comoera o caso dos antigos
mecanismos narrativos baseados na iteração dramaturgos gregos (Aristófanes, Sófocles) ou
como o gimmick e o leitmotiv. Aí está sua dos clássicos franceses (Molière, Corneille), e
grande diferença para com a ficção literária ou para muitas outras formas populares, a
cinematográfica; é por isso que ela substituiu o originalidade no sentido estrito é impossível,
mito no imaginário popular. pois significaria utilizar as convenções
Esta onipresença da repetição sob artísticas que o público não compreende ainda,
todas as formas tem uma consequência que ele deve assimilar como se assimila uma
fundamental, que nós veremos em detalhe na língua estrangeira.
sequência. Uma consequência negativa, a Valéry distingue em algum lugar as
saber, é que não se prestam para a série de TV obras que tendem a criar seu público
(educando-o, como Proust ou Maurice Pialat) pela cinefilia, os responsáveis pela ficção de
das obras como criadas por seu público, de TV não dizem outra coisa. Se lhes
quem elas preenchem a expectativa (Le Cid, E perguntamos sobre as história que interessam o
o vento levou). Ele notava também, com uma público, responderão: “Filmes que tocam as
confiança admirável, que esta distinção pessoas e aos quais elas podem se identificar9.”
poderia resolver a maior parte das questões “Tocar”, verbo por excelência do
ligadas ao valor artístico. século XVIII, o século do sentimento, cujo
Esta divisão é essencial para pensamento logo vai nos ser útil, marca o ato
compreender a ficção televisiva. Se recusamos de produzir emoções. Quanto à noção de
aceitar que é o imaginário do público que identificação, é ou uma palabra-sinal que quer
orienta as obras e impõe certas pregnâncias, dizer que as ficções estão destinadas ao grande
então não é preciso nos engajar no domínio das público e não a uma elite; ou uma concepção
séries de errônea que queria que a multidão apreciasse
TV, nem produzi-las nem escrevê-las. apenas os universos que refletem sua
Antes da chegada da oferta ampliada, existência e seu modo de vida.
quando havia quatro ou cinco emissoras de Por que esta concepção é errônea?
televisão, isto era apenas meia verdade. As Vamos ver de maneira detalhada,
emissoras e as grandes produtoras podiam em desenvolvendo as teses seguintes:
parte controlar a oferta (mas em parte apenas), ● Não é a identificação que permite a
manobrar a demanda e impor os conteúdos. É emoção, mas o interesse pela obra.
como fazia a televisão americana durante os ● O interesse supõe um duplo
anos 1980 que, após a idade de ouro dos anos movimento: uma ancoragem no “ar
1960 e a crítica social dos anos 1970, viu na do tempo”; um modo novo de
crise econômica e no refluxo ideológico a apresentar as coisas.
ocasião de estandarizar a produção das séries. ● As marcas do novo são a surpresa e a
Coloquem-se no lugar dos decisores: por que curiosidade.
se arriscar com protótipos e pegar uma úlcera, ● O público é neófito, procura o novo
quando se pode clonar algumas combinações nos limites permitidos pelo meio
vencedoras? televisivo.
Hoje, após a mutação da paisagem
audiovisual na América e na Europa, este
tempo passou, a escolha das obras realmente FORMAS DE INTERESSE
passou para o lado do público. Em outras
palavras, o limiar de exigência estética foi DEFINIÇÃO E MECANISMO
elevado pelas séries americanas. Se a série de
TV francesa não se aperfeiçoa, não se renova, Marmontel tinha proposto uma
não se diversifica, vai desaparecer ou algo explicação desta dupla atração contraditória do
parecido. público pelos assuntos ao mesmo tempo
O amor pela arte conduz familiar a distante. O que nos atrai, escreve em
frequentemente a magnificar obras indiferentes seus Elementos de literatura, senão as coisas e
ao sucesso, que inventam formas de expressão as situações que podem ter uma relação com
inclassificáveis e se impõem lentamente ao nós-mesmo: “… nada nos toca além do que
público. Mas bem poucas pessoas desprezam está próximo de nós; e o interesse tem a ver
realmente as obras populares, fontes de ligação com a relação que os objetos têm com nós-
social porque elas propõem uma exploração da mesmos10”.
cultura, um mundo unificado e o exemplo Aparentemente, reencontramos aquí a
frágil de uma perfeição. noção de identificação, salvo que Marmontel
As séries de TV pertencem a esta como Tomachevski distingue diferentes
categoria de obras que o público inspira e modalidades possíveis desta relação: “A
molda, por uma mistura de necessidade de relação dos objetos com nós-mesmos é de
novidades, de valorização e de rejeições. Os semelhança ou influência11.”
criadores de séries innovadoras conhecem e
amam a história da televisão, adivinham o
espírito de sua época e descobrem sua
expectativa confiando em seu instinto. O 9 Vincent Meslet, coordenador da ficção em France
critério de originalidade não é operatório para Télévisions, entrevista em Le Film français, nº 3333, 11
descrever uma série de TV. setembro 2009.
10 Jean-François Marmontel, Éléments de littérature,
Já que o público é tão importante para
a televisão, a noção de identificação não é Paris, Desjonquères, 2005, article “Invention poétique”,
p. 673.
mais adequada? Quando não são influenciados 11 Ibid., article “Intérêt”, p. 662.
Dito de outra forma, a relação com criar uma analogia, uma identidade de
nós-mesmos pode passar tanto pela identidade realções, sobre um duplo plano: identidade das
(a semelhança) como pela analogia (a relações entre as figuras estruturais (o
influência). Semelhantes, trata-se de situações personagem tem um estado civil e uma
comuns que se aproximam de nossa existência profissão como nós), identidade das relações
cotidiana, de assuntos que poderíamos entre bases (o personagem é atravessado por
vivenciar ou conhecer, como nos gêneros forças, sensações, emoções, necessidades
médico, familiar ou sentimental; ainda que esta biológicas e sociais como nossa existência) 13.
identidade possa ser apenas parcial. Influentes, É aí que revém o atual, a importância
quer dizer situações excepcionais, que temos do contemporâneo, do ar do tempo; às vezes
uma chance ínfima de conhecer, mas com as um fator generacional. Se as emoções que a
quais podemos muito bem conceber uma ficção propõe para viver nos são muito
identidade de relações; imagine o mal ou o estranhas, ela nos deixa indiferentes ou nos
bem que resultaria delas para nós confrontados afugentará.
com as mesmas condições, como no gênero Quando se lê Platão ou Santo
western, policial, de aventura ou de guerra. Agostinho, descobre-se com horror que a
A semelhança é uma relação de exposição de supliciados ou o combate à morte
identidade, mais frequentemente limitada; a de gladiadores eram formas de lazer comum na
influência supõe uma analogia ou uma Antiguidade. O público ia frequentemente a
metáfora, uma identidade de conexões internas estes espetáculos como nós vamos ao cinema
entre duas realidades (tenho medo como o ou ao teatro. No século XVIII, Rousseau deve
personagem da série perseguido por um ainda explicar por que o povo gosta de ver os
gigante, porque se eu estivesse no seu lugar, supliciados na saída das cidades. São estas
temeria pela minha vida). emoções que nos estão proibidas hoje, não
A relação dos objetos com nós- somente moralmente, mas porque num plano
mesmos é de semelhança ou de afetivo, poucas pessoas seriam capazes de
influência: de semelhança, pelas suportá-las.
qualidades que as aproximam de Os temas religiosos eram produtores
nossa condição; de influência pela de emoções até o fim do século XVII na
idéia do bem ou do mal que pode Europa: a tragédia cristã de Corneille que
acontecer conosco e de onde nasce o colocava em cena o sacrifício de um mártir,
desejo ou o temor12. Polyeucte, conheceu um triunfo quando de sua
Aqui estão os dois mecanismos de representação em 1643. Um século mais tarde,
nosso interesse por um tema narrativo, que seja em sua Dramaturgie de Hambourg (1767),
íntimo ou familiar para nós e temos prazer em Lessing observava que os mártires não
encontrá-lo, uma facilidade para compreender estavam na moda e não podiam fornecer um
os seus detalhes; ou podemos nos imaginar por bom tema teatral numa época já largamente
analogia em sua ação, viver por empatia as secularizada14. Os quadros do inferno e do
emoções dos personagens. paraíso, como os da Divina Comédia de Dante,
Na realidade, os dois movimentos deixavam há longo tempo indiferentes, após
supõe um fenômeno de analogia, já que uma ter envolvido gerações.
série de TV é uma representação, não a O que permite captar a descrição de
realidade; mas o primeiro é mais fácil de Marmontel, é que o interesse repousa sobre
justificar que o outro. É menos fácil explicar uma promessa de emoções atuais, arrima-se
porque a perseguição de um criminoso por ao ar do tempo. É preciso que nós tenhamos
Dexter Morgan ou Jack Malone pode suscitar vontade de viver as emoções prometidas, que
em nós a mesma mescla de medo, de excitação elas tenham uma ressonância em nós, para que
e de determinação. O fenômeno é no entanto o mecanismo do interesse se coloque em
comprovado, para todos os gêneros ficcionais: funcionamento.
seguindo uma ficção, somos capazes de nos Para melhor compreender este
transportar ao seu universo e de viver as funcionamento, é preciso aprofundar o elo
emoções dos personagens. O que conta, é
menos a verossimilhança do tema, que a
13 Ver Gilbert Simondon, Du mode d’existence des
possibilidade de reviver as emoções postas em
objets techniques, Paris, Aubier, 1969, 3ª parte, chap. II,
cena.
§ 1. Ver também Arthur Danto, “La littérature comme
O poder inigualável da ficção artística não está philosophe”, em L’Assujettissement philosophique de
em sua semelhança, na imitação da realidade l’art, traduit par Claude Harry-Schaeffer, Paris, Seuil,
humana; ele repousa na sua capacidade de 1993; Jean-Pierre Esquenazi, La Vérité de la fiction,
Paris, Hermès-Lavoisier, 2009.
14 Gottold Ephraïn Lessing, Dramaturgie de Hambourg,
12 Ibid. Paris, Didier, 1873, p. 59.
íntimo entre o interesse e a emoção. O que (M. Zundel) fala do teatro grego e do
supõe continuar a enriquecer esta noção de teatro de Shakespeare, e então de Racine
interesse, com as críticas que no século XVIII como imitadores dos gregos. No drama
a submeteram a uma verdadeira elaboração. grego, diz ele, o interesse se prende ao
Eis aqui a definição que dá dela o Précis de personagem, ainda que a ação seja nula;
l’art théâtral-dramatique de Chamfort: no teatro inglês, ao contrário, a ação é
INTERESSE. O que prende, excita a multiplicada, sobrecarregada, e se há
curiosidade, o que mantém a atenção e produz interesse, ele se apaga com o personagem
na alma os diferentes movimentos que a ideal que o faz nascer. No teatro grego o
agitam: o temor, a esperança, o horror, a autor apela à simpatia, Shakespeare
alegria, a indignação, o transtorno, o ódio, o invoca os recursos da curiosidade; no
amor, a admiração, etc. teatro grego não há surpresa, no teatro
Apesar da formulação antiquada, as inglês o autor visa o inesperado. Que
palavras são rigorosas. O interesse é um diferente existe então nos caracteres
mecanismo ao mesmo tempo de iniciação colocados em cena pelos gregos e os que
afetiva, de guia da atenção e de produção faz aparecer Shakespeare. Os primeiros
emocional. Conduz o espectador a se imergir são gerais, os segundos estão marcados
na ficção e a desencadear afetos. Ainda que por um selo particular, são criações da
seja um processo contínuo, três momentos fantasia16.
aparecem nesta definição: O redator coloca no mesmo plano a
● A iniciação (“o que prende, excita a curiosidade e a surpresa, são para ele
curiosidade”); sinônimos. Pode-se notar também, através
● A imersão na ficção (“mantém a da valorização de Racine, como a recusa
atenção”); do bigger than life se enraíza
● A criação de emoções (“produz na profundamente na cultura francesa, como
alma os diferentes movimentos”). uma herança do classicismo e da rejeição
Chamfort fornece mesmo um marcador, da desmesura shakespeariana, que o
um índice de desencadeamento do realismo e então o naturalismo se
interesse: a curiosidade. Será preciso encarregarão de perpetuar. Vê-se enfim
voltar a ela. que o interesse pode se centrar em objetos
Mais psicologizante, menos técnico, diferentes da obra, ora os personagens, ora
Marmontel vai por outro lado mais a ação - um punto que é preciso
diretamente à origem do mecanismo desenvolver.
emocional do interesse:
INTERESSE – Afecção da alma que lhe é INTERESSE DA AÇÃO, INTERESSE
cara e que a prende a seu objeto. Num DOS PERSONAGENS
relato, numa pintura, numa cena, numa
obra de espírito em geral, é a atração da Abramos um parêntese sobre o objeto
emoção que nos causa ou o prazer que do interesse. Qual vai ser o objeto do
nós experimentamos até ficarmos interesse do público? Sobre quais
emocionados de curiosidade, de alavancas se apoia? Tudo é suscetível de
inquietude, de medo, de piedade, de ser fonte de interesse numa ficção: a ação,
admiração, etc.15 os caracteres, o meio, os atores, o modo de
Ele coloca também em relevo a contar, o estilo, etc. Para sair desta
curiosidade entre as emoções dificuldade, é preciso pensar em termos de
desencadeadas pelo interesse, o que dominante17.
confirma seu estatuto de marcador. Hoje, Numa obra forte, tudo é interessante,
este papel de marcador seria dado é certo. Mas o que vai atingir de início o
sobretudo à surpresa. É uma simples público, é o que se chama o assunto, a
questão de vocabulário. No século XVIII e idéia geral, o tema narrativo, que repousa
no XIX, as duas noções de surpresa e de sobre a combinação “personagens + ação
curiosidade estão estreitamente associadas principal”. Pois é o que se percebe mais
e tendem a se encavalar. Testemunho facilmente numa ficção; através dos
disso é este resumo de uma comunicação
acadêmica em 1840:
16 Congrès scientifique de France, Huitième session
tenue à Besançon, en septembre 1840, Imprimerie et
lithographie de Sainte-Agathe l’Ainé, 1841, p. 186-187.
15 Nicolas Chamfort, Précis de l’art théâtral- (Disponível em Google Books).
dramatique des anciens et des modernes, Au grand 17 Ver Roman Jakobson, “La dominante”, in Questions
Buffon, Librairie A. G. Debray, 1808, t. I, p. 216. de poétique, Paris, Seuil, 1973.
resumos da imprensa televisiva, mídias ou pequeno e ao seu conhecimento pelo
o boca a boca; e a memorização deles é gênero humano.
fácil. Era a mesma coisa já na época de Não obstante, após vários anos de
Chamfort, para o teatro: difusão intensiva nos Estados Unidos e na
A arte é de sempre fazer crescer o França das três versões de CSI, era
interesse; mas a primeira regra, é de inevitável que o público evoluísse de novo
escolher um assunto, uma ação já capaz de e tivesse vontade de reencontrar a ação
interessar por si-mesma, e própria para física inerente ao gênero desde ao menos
fornecer grandes movimentos, belas Kojak. Daí o sucesso de Criminal minds,
situações, grandes sentimentos, etc. Um nos Estados Unidos a partir de 2003, na
poeta, diz Dubos, que trata um assunto França em 2007, que coloca em cena
sem interesse não pode vencer a igualmente uma equipe de investigadores,
esterilidade (...) É preciso prender, na mas que são muito mais implicados
comédia como na tragédia; o que não se fisicamente na sua investigação e na
pode fazer senão pelo interesse. procura exclusivamente de serial killers.
Na sua própria análise, Marmontel Não é raro que os membros da
chega à mesma constatação: o interesse brigada de Criminal minds sejam eles
formal, o trabalho artístico não é mesmos ameaçados ou feridos pelos
suficiente para reter o espectador comum; assassinos que eles perseguem. Mas
“ele é fraco demais”. Apenas “o interesse registro cerebral ou registro de
da coisa”, do conteúdo representado, do intervenção física, nestas séries, é a intriga
assunto em uma palavra, pode fixar o e seu tratamento que interessou o público,
espectador; “... o interesse mais vivo, o não os investigadores, mesmo se no fio do
mais encantador, o mais forte, é o da ação tempo o público se fixou neles. Ademais,
dramática”18. uma visão superficial pode dar a
Para simplificar, pode-se dizer que o impressão que o herói das séries tipo CSI
interesse do assunto está seja nas ou Criminal minds são apenas silhuetas
personagens e seu meio, seja na intriga e dos personagens sem caráter e sem
seu esquema de ação. espessura.
Assim, numa série policial como CSI, Em contraste, séries como Dr House,
o que seduziu o público desde o seu Dexter ou Desperate Housewives
lançamento em 2000, ao ponto de seduziram imediatamente por seus
autorizar duas séries derivadas (spin-off) personagens ambíguos, que não tinham
em 2002 e 2004, não são os personagens. equivalentes na história da televisão;
É, como se assinalou, o grande retorno do dificilmente precedentes nos anos 1990.
“policial de mistério”, do whodunit (quem Antes delas, os personagens populares
fez?), reservado até então a séries eram sobretudo unívocos e maniqueístas.
envelhecidas. Pela primeira vez há muito Eles não tinham direito à ambiguidade,
tempo, via-se de novo numa série nem em seu caráter nem nos fins que
prestigiosa investigadores que resolviam perseguiam. House, Dexter, Bree,
assassinatos unicamente pela reflexão e o Gabrielle, Lynette e Susan romperam uma
exame obsessivo da cena do crime. Ora, linha de demarcação entre gêneros
há no policial cerebral emoções de populares e gêneros artísticos que parecia
exploração, de observação e de dedução absoluta.
que não existiam nas outras famílias do Tão absoluta que um crítico tão
gênero (o policial de ação, o thriller ou a competente como Umberto Eco detectava
série criminal). no caráter unívoco das personagens uma
Como sempre, esta ressurreição não condição da gratificação das formas
se faz sem transformação, não voltamos populares. Segundo ele, estas formas que
simplesmente à fórmula de Arabesque ele estudou sobretudo através de suas
(Murder, She Wrote) ou de Maigret. CSI manifestações nos anos 1960 e 1970, não
adotaram os códigos da década (herói saberiam suportar a ambiguidade sem
coletivo, histórias múltiplas) e sobretudo colocar “o leitor em guerrra consigo
trouxeram um tratamento hipercientífico, mesmo”. Esta época está encerrada e no
ao mesmo tempo visual e dialogado, que presente o público menos cultivado espera
faz da série um hino ao infinitamente heróis contraditórios ou equívocos, como
nós somos todos mais ou menos.
No passado, se Corneille e Molière
conheceram cedo em suas carreiras os
18 Jean-François Marmontel, Éléments de littérature,
favores do público, é igualmente porque
op. cit., article “Interêt”, p. 666.
tinham inventado um novo tipo de Tome qualquer série, verá que elas
personagem, como lembrou Chamfort: eram no seu início seja desconcertantes,
Eu vejo Molière (...) mudar a forma da seja intrigantes, seja ambos ao mesmo
comédia. O cômico antigo nascia de um tempo. Malcolm? A história
tecido de acontecimentos romanescos, que “sitcomizada” de uma família americana
pareciam produzidos pelo acaso, como o média louca, que radicaliza a parte de
trágico nascia de uma fatalidade cega: loucura que desvelam todas as famílias
Corneille, por um esforço de gênio, tinha quando a gente se volta para a sua
se interessado pelas paixões; Molière, por intimidade. 24 horas? Seguir uma brigada
seu lado, subverteu o antigo sistema; antiterrorista confrontada com um complô
tirando o cômico do fundo dos caracteres, nacional, minuto por minuto, hora a hora,
colocou em cena a moral em ação, e se durante vinte e quatro horas. Sex and the
tornou o mais amável preceptor da City? Mulheres que falam cruamente de
humanidade que se viu desde Sócrates19. sua sexualidade e que estão mesmo assim
em busca de um grande amor. The west
MARCADORES: A CURIOSIDADE E A wing? Os bastidores do poder supremo,
SURPRESA como ninguém jamais tinha mostrado.
Dois marcadores se combinam ou
Voltemos aos marcadores ou índices alternam aqui: a curiosidade e a surpresa.
do interesse. Apenas tais índices podem A curiosidade é nossa reação diante
permitir sair de proposições muito gerais, do desconhecido, o inacessível, o
como “o público quer histórias escondido, ou a colocação em marcha de
interessantes e emocionantes”. Trata-se de um plano deliberado que sai do ordinário.
fornecer critérios, indicadores de Ela não está forçosamente ligada ao
conteúdos sem os quais ficaríamos na boa segredo malsão como queria Plutarco. Por
vontade. Existe um sinal indubitável para outro lado, pode-se dizer que ela se
captar as emoções novas, os assuntos confunde com o desejo de saber ou de
interessantes que fazem as grandes séries conhecer. A psicologia moderna mostrou
ou estamos condenados, tal pássaro de que era uma tendência que se encontrava
Minerva, a reconhecê-los apenas quando nas espécies animais superiores:
escolhidos pelo público? ● Suscitada por um objeto novo;
Apesar de sua fabricação quase ● Manifestava-se por aproximação e
industrial, a série de TV continua sendo, exame;
como se diz, um mercado de protótipos: ● Causada por uma necessidade de
cada ano, nos Estados Unidos, após menos busca de informações
de uma década de episódios, a maioria das independentemente das necessidades
novas séries parou, por falta de audiência. vitais (fome, sede ou reprodução).
É preciso concluir disso que não existe Desta necessidade de informação, mais
uma marca positiva para detectar de expandida nos jovens animais em todas as
antemão as grandes séries? Que o novo espécies, saiu sem nenhuma dúvida o edifício
que tem sucesso é imprevisível? dos conhecimentos científicos. “Ninguém se
Não há certamente um macete para instrui verdadeiramente se a busca do
produzir uma boa série, mas existe um conhecimento não lhe produzir um prazer em
critério negativo ou privativo, que permite si, dissociado do objetivo da utilidade”
detectar séries ruins a partir do seu (Russell). É claro, o segredo, tudo o que está
assunto, e evitar assim os inconvenientes. dissimulado ou inacessível, tende a despertar a
Um assunto que não surpreende ou não curiosidade facilmente.
atiça a curiosidade, cujos personagens ou Mas uma sequência comportamental
a ação principal não surpreendem ou não habilmente conduzida pode satisfazer para
intrigam, não tem nenhuma chance de se provocar, como se queixava Santo Agostinho
tornar uma grande série. Este critério num capítulo de finas observações, ainda que
pertence à intuição dos maiores criadores, inteiramente consagrado a denunciar a
que sempre têm o gênio de descobrir os curiosidade como um vício maior da alma:
assuntos que desestabiliza nossos hábitos, “Sem sair da morada, quantas vezes uma
que confunde as nossas percepções lagartixa pega moscas, ou uma aranha
rotineiras e nos abrem vistas enredando-as com seus fios não cativaram
insuspeitadas. minha atenção20.”

19 Nicolas Chamfort, “Éloge de Molière”, in Maxime et 20 Stéphane Jacob, La Curiosité, Éthiologie et


pensées, Paris; Larousse, 1928, p. 186. psychologie, Bruxelles, Mardarga, 2002, p. 30.
É a origem de vários contos e dramas, (paren tèn doxan) disse ele na Poética22. Isso
como notava Lessing a propósito de Richard parece tão evidente para Aristóteles que ele
III de Shakespeare, para explicar nosso recomenda “preferir o que é impossível mas
interesse por este personagem monstruoso: verossímil ao que é possível, mas não traz a
Todas as ações de Richard são atrozes; convicção23”. Mais literalmente, a frase diz
mas todas estas atrocidades têm um “preferir o impossível verossímil ao possível
propósito. Richard tem um plano de não persuasivo”.
conduta; e onde quer que vejamos um Esta consigna parece ter inspirado o bigger
plano, nossa curiosidade é despertada; than life americano, em todo caso ela o funda e
esperamos com boa vontade para ver se o explica. É uma idéia que a cultura francesa
ela será saciada; gostamos tanto da tem muita dificuldade de assimilar, tanto o
sequência nas intenções, que mesmo, realismo do possível lhe parecerá sempre
independentemente da moralidade do preferível à hipérbole ficcional. Sem exagero,
objetivo, sentimos prazer com ele21. é no entanto difícil de surpreender e de
As séries que despertam a curiosidade têm prender, como bem explicou a retórica antiga
ou temas com um personagem que tem um que via na amplificação o segredo para
projeto fora do comum; ou temas que nos produzir emoções.
desvelam um universo inacessível. Dexter é Notemos na passagem que Aristóteles
uma série que espicaça a curiosidade, já que a dava, com Platão, um valor filosófico a esta
intenção de um policial de matar os criminosos emoção de surpresa, ao espanto. Ao ponto que
como um serial killer só pode intrigar. gostar das histórias surpreendentes lhe parecia
Queremos saber como ele vai se encarregar própria dos caráteres filosóficos:
disso e se vai ter sucesso. este que gosta das histórias agradáveis
Uma série como Sex and the City excita é de certa forma filósofo, já que a
a curiosidade, já que ela dá acesso a um história bem sucedida se compõe de
universo que a gente acredita inacessível: a coisas supreendentes24. (Amantes de
sexualidade feminina. Nova-iorquinas que são séries americanas, saibam, vocês são
amigas e discutem sobre sua vida privada é filósofos!)
uma premissa banal. Mas quatro amigas que
discutem cruamente sobre sua sexualidade era
um assunto improvável (já que era tabu) no
fim dos anos 1990. O sucesso de Six Feet
Under repousa igualmente no desvelamento de
um universo oculto no Ocidente: o da morte,
através de uma empresa familiar de funerais
baseada em Los Angeles.
Às vezes, estas duas formas de
curiosidade são cruzadas como em Big Love
(2006) que conta a história de uma família
mórmon de Utah: etsamos ao mesmo tempo
intrigados pela cultura polígama dos mórmons,
e pelo modo como o herói Bill vai chegar a
conservar suas três mulheres, seus sete filhos,
suas duas lojas de bricolagem e suas três casas
reunidas em torno de uma só piscina.
O efeito de curiosidade não é sempre
dissociável do efeito de surpresa, o que explica
que autores como o cardeal de Bernis, Bossuet
ou São Agostinho os tenha propositalmente
confundido em suas análises.
A surpresa é igualmente a marca mais certa
de uma história interessante, como tinha já
observado Aristóteles. As histórias mais belas
são as que tem o “caráter da surpresa” (to
thaumaston), que apresenta fatos que vão
“contra nossos costumes ou nossas opiniões” 22 Aristóteles, Poética, cap. IX, 1452a.
23 Ibid., cap. XXIV, 1460a 27-28.
24 Aristóteles, Metafísica, A, 2, 982b 18. Traduzo
21 Gottold Ephraim Lessing, Dramaturgie de livremente muthos (história) para melhor transmitir a
Hambourg, op. cit. , 48º soiré, p. 370. idéia de Aristóteles.

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