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2 Sigla de Télevision Numérique Terrestre, a tecnologia 3 Laurent Storch, diretor dos programas da TF1,
que permite a recepção de sinais digitais por uma entrevista com Véronique Groussard em TéléObs,
antena que capta sinais de rádio. semana de 15 de outubro de 2009.
● personagens aos quais as pessoas se "Por definição, por seu funcionamento mesmo,
identificam; a linguagem da televisão é forçosamente mais
● ou tudo isso ao mesmo tempo. pobre que a do cinema", diz Pascal Bonitzer.
Se você procurar saber mais, bem Aí está uma propriedade notável,
poucos enumerarão os critérios importantes, a mesmo se ela é negativa: a imagem da série de
saber que não há grande série de TV sem uma TV é menos bem definida, menos
história interessante para o meio televisual. impressionante em seus efeitos sensorial e
Sob este caráter evidente, até mesmo artístico. A série de TV é uma arte pobre.
tautológico, esta proposição compreende três Mas este aspecto não é sem dúvida o
categorias decisivas: a da história, a do mais fundamental; a prova, certos pilotos de
interesse e a do meio televisual. séries (o de Fringe por exemplo) foram
Veremos que estas noções são bem rodados com um orçamento e meios dignos do
mais operatórias que a maioria das concepções cinema. O mais importante tem a ver com o
colocadas habitualmente em evidência. A dispositivo da televisão, que é bem diferente
noção de originalidade não tem sentido na do do cinema: a série de TV não é recibida
televisão, diferentemente do cinema; e os nem consumida da mesma maneira que um
personagens não podem estar no fundamento filme; suas condições de recepção, seu regime
de uma série, pois eles não resistem à usura perceptivo são diferentes. A importância desse
que provoca a repetição dos episódios. Quando dispositivo é tão fundamental que um filme
ao critério de identificação, ele é enganador; projetado na televisão perde, como todos já
repousa sobre uma idéia confusa do puderam experimentar, uma grande parte de
mecanismo de recepção. sua magia visual, sua imagem torna-se
Quando o produtor hollywoodiano achatada e banal.
David O. Selznick dizia que um bom filme É então menos o suporte material da
repousava sobre três coisas: uma boa história, imagem que entra em questão, que as
uma boa história e de novo uma boa história, condições de sua recepção, o contexto
não era uma boa definição do cinema, mas pragmático da sua visão (a pragmática designa
talvez da série de TV (na qual Selznick aliás a relação de um receptor com uma mensagem).
foi também bem-sucedido). É preciso pensar a A série de TV não pode apresentar as mesmas
ficção televisual na lógica própria de seu meio, propriedades visuais e sonoras de um filme
sem fazê-la dobrar-se às formas artísticas ou projetado numa sala escura. Há entre eles uma
aos mecanismos sociológicos que lhe são diferença contextual que afeta a sua
estranhos. "linguagem", o seu sistema de representação,
os meios de expressão utilizados. Para bem
INDIGÊNCIA DA IMAGEM TELEVISUAL compreendê-lo, remetemo-nos ao contexto de
recepção de uma série como Dr House, uma
A série de TV não é concebida nem ficção mundialmente conhecida.
produzida como um filme de cinema, as Você está com seu cônjuge que tem
diferenças começam com o financiamento e a um fraco pelo herói, talvez você tenha filhos
tecnologia. O orçamento de um episódio de que admiram sua insolência. Toda a família se
série de TV é bem inferior ao de um filme, apressou a terminar o prato. Cada um tomou
digamos de cinco a dez vezes inferior; o que seu lugar habitual diante da tela. O programa
tem incidências sobre a qualidade da começa. Você vai reencontrar este ambiente
realização, do jogo dos atores e dos cenários. obscuro e tranquilo, de natureza hipnótica,
Salvo exceção (piloto rodado em 35 mm), a próprio da sala de cinema? Esta tela imensa,
série de TV utiliza a imagem digital, isto é, a que te aspira nele e no qual a riqueza quase
menos precisa, que a imagem argêntea, basta para o seu prazer?
fotoquímica, do cinema. Em matéria de Nananinanão. Um raio de luz chega
resolução e de contraste, de claridade atípica, em suas costas e se reflete na tela do monitor,
há uma superioridade incontestável da imagem as idas e vindas das crianças aos banheiros não
35 mm sobre o vídeo. É o que explica que param e, depois que um telefone celular tocou
muitos cineastas resistem ainda ao digital, bastante, sua mulher acaba de iniciar uma
apesar de sua leveza e de sua rentabilidade. O conversa telefônica que promete ser
qualificativo que vem imediatamente ao seu interminável. É assim que o episódio começa,
espírito, para caracterizar a imagem vídeo, é o não no silêncio e a atenção geral, mas sobre
da pobreza: um fundo de rumor incessante.
"A imagem, no cinema atual, torna-se cada vez Em outras palavras, desde as
mais pobre, cada vez mais contrastada. primeiras imagens, as observações se fundem,
Habitua-se o público ao digital", estima Emir por exemplo no curioso plano de água
Kusturica. incrustado nos créditos desta série médica,
quando não é a cena dramática do pré-créditos comparações é a feita com o estado hipnótico,
que desencadeia um debate. Então de repente, pois é a menos metafórica, a que manifesta
seu filhinho se lembra que tem uma mais correspondências (fonte externa, fixação
competição de vôlei importante num canal da atenção, estado modificado, crença, etc.).
esportivo a cabo e que seu treinador tinha Escutemos Jean Epstein descrevendo o cinema
insistido para ele assistir. Ele suplica para ter a como uma "máquina de hipnose":
possibilidade de dar pelo menos uma olhada Na fascinação que desce de um grande
no placar; explica que não vamos perder nada plano e pesa em mil rostos atados na
em Dr House se por intermitência olharmos mesma impressão, em mil almas
alguns segundos o avanço da partida. Ninguém imantadas pela mesma emoção; (...)
concorda, mas o filhinho faz birra e sua mulher nas imagens que o olho não sabe
termina por deixar que ele veja. formar nem tão grandes, nem tão
Enquanto isso, o episódio está bem precisas, nem tão duráveis, não tão
adiantado e você tem dificuldade para retomar fugazes, descobre-se a essência do
o fio da história. Em outras palavras, por mais mistério cinematográfico, o segredo da
que você tenha investido numa tela grande máquina de hipnose: um novo
ultraplana, um defeito te enerva: a imagem conhecimento, um novo amor, uma
parece cortada, você não sabe como consertar nova possessão do mundo pelos olhos.
essa disfunção. Há sempre mais detalhes que O que é essencial nesta experiência,
escapam à sua visão, sem que você saiba se como analisaram em detalhe Raymond Bellour
eles são menores ou essenciais. Enfim, sua e alguns outros, é o dispositivo triangular sala
mulher lhe pede pra baixar o som, que já não escura/tela luminosa/percepção hipertrofiada,
está muito forte, enquanto que por seu lado, que cria no espectador um estado de
você gostaria muito de reencontrar a consciência em que os limites do seu Ego são
intensidade sonora de uma sala de cinema. abolidos. A partir de então, a ficção projetada
Em resumo, qualquer que seja a na tela é interiorizada pelo espírito, que pode
perfeição formal de seu televisor, do episódio investir-se nela de múltiplas formas, jogar ali
difundido, a boa vontade de seu entorno, o diversos papéis ao mesmo tempo:
conteúdo sensorial de uma série de TV é contemplador ou auditor, juiz ou participante,
rudimentar, bem abaixo deste fornecido por observador e/ou ator, segundo o seu grau de
uma sala de projeção. implicação.
O cinema oferece, com efeito:
● uma sala escura e silenciosa, A SUPERDETERMINAÇÃO DO VERBO
● uma posição sentado que suprime
toda atividade sensorial-motriz, O desafio da ficção televisual é que
● uma "visão bloqueada" em direção à ela deve chegar a criar um tal estado de
tela; imersão ficcional sem o dispositivo da sala
● uma tela imensa que exacerba a escura, da "visão bloqueada" e da tela
atenção visual e auditiva. superdimensionada. O telespectador está
Este dispositivo obriga o espectador a diante da imagem minimalista de um monitor
aniquilar-se na contemplação da tela, a fundir- de televisão, sem cessar convocado por seu
se num desfile de imagens que o transportam universo cotidiano. A imagem televisual não é
num universo outro, faz ele viver ou assistir a suficientemente rica para hipnotizá-lo nem
uma história cujo grau de realidade é muito abolir as fronteiras de sua personalidade.
forte para implicá-lo emocionalmente e Como diz sobradamente Pascal Bonitzer: "A
fisiologicamente. capacidade de atenção do telespectador é
Os contemporâneos do nascimento e muito mais distraída que a do espectador de
da maturação do cinema descreveram de cinema." É, no entanto, conhecido por todos os
maneira impressionante esta experiência amantes que uma série de TV pode ter um
perceptiva tornada banal por nós, após mais de efeito de implicação emocional tão intensa
um século de experimentações quanto um filme. Como compreender que a
cinematográficas de toda ordem. "A gente se televisão possa chegar a afetos tão intensos
pergunta se é simples espectador ou ator destas quanto os do cinema sem os meios que fazem
cenas surpreendentes de realismo", escrevia H. a potência do cinema?
de Parville em 1895. As comparações com a A única explicação possível, é que o
visão onírica ou alucinante, com o magnetismo telespectador não é então diferente do ouvinte
e o espiritismo, com a hipnose, afluíam sob sua que escuta uma história oral e, pela simples
pluma enquanto eram surpreendidos pelo eficácia da linguagem, encontra-se totalmente
estado da consciência modificada produzido envelopado nas dobras do relato. Se uma boa
pela projeção fílmica. A mais sugestiva destas série pode nos cativar tanto quanto um filme,
se a imersão ficcional é nela igualmente diferença do cinema, não é uma arte visual; ela
possível com tanto prazer, é que uma narração repousa muito sobre um discurso verbal, que é
oral bem conduzida possui a mesma nela superdeterminado. Esta predominância
capacidade de nos cercar de emoções; cada um oral se confirma nos jogos de espelho entre
teve esta experiência com narrações "naturais", programas e as transferências de vedettes e de
íntimas ou públicas. decididores, que têm lugar entre a rádio e a
A palavra reencontra aqui uma televisão, mas jamais com o cinema. Se
dimensão primordial de evocação ou de devêssemos a qualquer preço estabelecer uma
invocação, de criação de simulacros, bem filiação morfológica, a série de TV deveria ser
conhecida da tradição mítica e das grandes vinculada seja ao teatro, seja à dramática
religiões (assim o fiat lux bíblico, que as radiofônica. A série de TV é uma arte verbal, a
metaforiza). Sem dúvida, o aspecto visual da mais verbal das artes audiovisuais.
televisão joga um papel de auxiliar, a imagem A pobreza de seu meio, a série a
tem uma função no espetáculo aberto; ela compensa por uma outra de suas
apenas pode ajudar a captar o ouvinte, a fixar a características, que é a repetição.
atenção, para atingir a vigília paradoxal Vamos voltar com efeito à definição
buscada. Mas esta função não é primordial, ela desta forma semiótica. O que define uma série
não tem a potência originária da imagem de TV? Uma série televisual é um programa de
cinematográfica, seu poder de captação ficção, com uma história, personagens ou uns
imediato, de fascinação contínua. temas recorrentes, difundidos a intervalos
A imagem na televisão é secundária, regulares num mesmo canal e na mesma faixa
apesar do que pode ter de surpreendente uma horária. Sua duração é variável (de 3 a 90
tal declaração. É preciso lembrar mais uma vez minutos), assim como a periodicidade (6 a 24
uma decepção produzida pelos filmes vistos na episódios) ou sua perenidade (1 a 17
televisão. Os filmes estetizantes, que temporadas). A história pode ser em episódios
colocavam a carne do mundo no primeiro isolados ou "a seguir", o importante é que em
plano, tornam-se mortalmente chatos. Apenas cada episódio o público espera reencontrar
os filmes cuja narração dialogada ocupa um elementos idênticos e que o ritmo de sua
lugar importante resistem a esta prova. É difusão seja mais ou menos conhecido de
preciso saber ainda que a televisão é mais antemão.
escutada que vista. É um "rádio filmado", para A repetição e a previsibilidade que
retomar a expressão de Orson Welles, que dela decorre são o segundo par de
tinha começado sua carreira nesta mídia. características fundamentais do material
Sem contar que o que se chama "a televisual, sem o qual a série de TV não
escuta-rádio da televisão" em certos momentos poderia existir.
do dia, seus sinais auditivos são os verdadeiros Como se verá melhor na sequência,
responsáveis pela prática ritualizada, por esta repetição não vale apenas de um episódio
vezes, de sinais de alarme (créditos, para outro, ela é inerente a cada episódio e
comerciais) e de sinais de indicadores (pics confirma a pobreza do meio, a indigência de
sonoros nos momentos intensos). Os sons seus meios. O poder de fascinação visual e
televisuais permitem um visionado com auditivo da série de TV é limitado, mas é
atividades paralelas (entorno doméstico, reequilibrado pela familiaridade e a situação de
correio, tarefa das crianças, cozinha, refeições, espera que cria a "seriação". A instalação de
etc.). Eles permitem o consumo fragmentário histórias num ritmo seriado, o desdobramento
de certos programas (meteorologia, serviços, de uma narração num ciclo de retomada e de
informações, jogos). Eles fornecem tais índices variação dos mesmos elementos,
capitais, os profissionais aguerridos sabem que contrabalançam sua inferioridade.
se um programa que não é inteligível Neste sentido, seu princípio é muito
unicamente ao ouvido não o é definitivamente. antigo, bem anterior à televisão e mesmo à
Dos filmes projetados na sala à série de TV, modernidade. Existiu uma ficção seriada ou
passa-se consequentemente de um meio rico a cíclica desde o começo da literatura, e esta
um meio pobre, de um material de início visual forma jamais cessou, Gilgamesh, O
a um material de início sonoro. Mahabharata, as lendas patriarcais bíblicas, os
É a primeira dupla de características poemas homéricos, As Mil e Uma Noites, os
essenciais do meio televisual e por ramos do Roman de Renard ou da Távola
consequência da série de TV: a pobreza do Redonda, o corpus gargantuesco, o romance-
conteúdo visual, a subdeterminação da sua folhetim e os "romances-mundo" do século
imagem que não tem mais um papel XIX, as obras de Tolkien e de Asimov, são
organizador; contrabalançada pela importância também manifestações desta ficcionalidade
da palavra e da trilha sonora. A série de TV, à fundada no retorno de personagens e de
motivos. As serials no cinema dos anos 1910- Tudo o que é colocado no papel deve
1920 a radionovela, o remake, a suite e o poder ser visto na tela: tudo deve ser
mangá hoje, continuam alegremente esta forma VISUAL. O diálogo é uma prótese; você
imemorial de cultura popular. só recorre a ele em caso de necessidade
A ficção serial é um fenômeno (...).
universal que se confunde com a humanidade e O teatro FALA, o cinema MOSTRA.4
sua necessidade de histórias. De sorte que é Ou ainda, no antimanual de Jean-
estranho que a repetição seja considerada Claude Carrière e Pascal Bonitzer:
como um defeito congênito da narração e Não se trata apenas então de saber
odiada pelos espíritos que gostariam de decidir contar em função da imagem, "sob o
sobre o bom gosto. Será preciso perguntar, em ditado da imagem" para parafrasear a
boa hora, se estes espíritos não se confundem, fórmula de Klossowski (...) É a imagem
como mostrou Gilles Deleuze, repetição e que conta a história.5
generalidade, repetição e identidade. Uma ilustração clássica deste
princípio é o início de Janela indiscreta, no
CONCLUSÃO qual a situação do herói é evocada unicamente
´ pelo cenário sobre o qual desliza a câmera. O
Pobreza e repetição, oralidade pátio do imóvel, o rosto suado de James
hipertrofiada e previsibilidade são assim os Stewart, uma câmera fotográfica quebrada,
traços essenciais do meio da série de TV, as uma pilha de revistas, fotos de carros de
propriedades fundamentais de seu vetor, seus Fórmula 1 na parede, o gesso na perna do
limites e seus recursos. Se a gente se lembra da herói, tudo isso nos explica, sem palavras, que
fórmula do poeta-profeta McLuhan, "a o personagem principal é um grande repórter,
mensagem é o meio", pode-se sustentar que obrigado a ficar deitado em decorrência de um
estas propriedades guardam o segredo da arte acidente profissional, e que por inatividade
de contar histórias na televisão. Fabricar uma observa seus vizinhos. Eis aqui o comentário
ficção popular, imaginar uma grande série de sobre isso que dava Hitchcock a Truffaut:
TV, estas das quais a gente se lembra e que É a utilização dos meios oferecidos pelo
dão a volta ao mundo, não é jamais apenas cinema para contar uma história. Isso me
saber jogar com brio com estas propriedades interessa mais que se alguém perguntasse
negativas e positivas, para gerar a partir de um a Stewart: "Como você quebrou a
dispositivo muito modesto, um conjunto perna?", Stewart responderia: "Tirava
ficcional suntuoso, histórias e emoções uma foto de uma corrida automobilística,
surpreendentes. uma roda se soltou e me feriu." Não é?
Seria a cena banal. Para mim, o pecado
Esta especificidade do meio capital de um roteirista é, quando se
televisual, com excessiva frequência discute uma dificuldade, escamotear o
negligenciada, mesmo pelos profissionais, tem problema dizendo: "Nós justificaremos
consequências múltiplas para a concepção e a isso com uma linha de diálogo." Este
execução de uma série. Alguns delas são bem diálogo deve ser um ruído entre outros,
conhecidas, outras muito menos. Vamos logo um ruído que sai da boca dos
examinar as mais importantes. Mas personagens cujas ações e olhares
sublinhemos em seguida uma consequência contam uma história visual.6
relevante: a série de TV é antes de tudo uma
forma genérica, que funciona no quadro do A DUPLICAÇÃO VERBAL
sistema de gêneros (policial, comédia,
aventura, médica, etc.). Toda série de TV, para Este princípio tem valor de teorema
ser recebida sem esforço, deve mostrar um no cinema, onde é preciso saber "fazer cair as
contrato genérico claro, marcar seu palavras" como dizia um grande roteirista
pertencimento a um gênero, mesmo quando italiano; mas não existe na televisão. Esta
este fosse uma mescla genérica. repousa ao contrário sobre o princípio inverso:
o diálogo não é um "ruído entre outros", ele é a
3. A série e a arte da redundância chave da significação narrativa e deve