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7 TERRA E CULTURA, ANO XX,_N?38 3 A CONSTRUCAO DO “SER” CRIANCA NA SOCIEDADE CAPITALISTA* RESUMO As experiéncias ¢ pesquisas sobre a infancia evidenciam a necessidade de analisar a concepso de infancia como categoria histérica e n&o somente como categoria biologica. Sabe-se que a crianga nem sempre foi vista da mesma forma pela sociedade, pelo adulto. Conforme se processavam as mudangas sociais, eco nGmicas ¢ historicas, cla foi adquirindo imagens diferentes, de acordo com essas miudancas. Nesse sentido, a andlise do presente trabalho teve como preocupacio situar a crianga dentro dessas transformacdes sociais, percebendo-a sempre como sujeito histérico que consttdi historias. Nessa perspectiva, destaca-se a necessi- dade de um olhar especial para a crianga na contemporaneidade, analisando sua presenga no uso da tecnologia, no mercado de trabalho, na familia, na sua relago com o adulto, na sua forma de pensar e sentir, agir, diante do mundo que a cerca. Para isso, tomou-se como categoria de analise o trabalho e as respectivas mudan- gas no mundo ccondmico ¢ social. Q estudo aqui descnvolvido é uma reflexio sobre o sujeito-crianga, na sociedade capitalista. PALAVRAS-CHAVE: Infincia como Categoria Historica; Sujeito Crian- a; Familia; Mudangas Sociais, Econémicas ¢ His- téricas. TProjeto de Disseriaglo de Mectrado om Educaclo, Universidade Estadual de Maringé, Pr: 2003 2 Dacente 2 Coordenadora do Curso de Pedagozia da UriFil, E-mail: martafurlan@pop.cora be pedagogia@filadelfia br 7 TERRA E CULTURA, ANOXX, N°38 4 ABSTRACT The experiences and research about childhood bring fo evidence the need to analyze the concept of childhood as a historical category and not only as a biological category. It is known that the child has not always been seen in the same way by the society, by the adult. As social, economic, and historical changes were being processed, the child acquired different images, according to those changes. In that sense, the analysis of this work aimed at placing the child within the framework of those social transformations, always perceiving him/her as a historical subject that builds history. In that perspective, the need of a special look at the child in the contemporaneity is to be emphasized, analyzing its presence in the use of technology, in the labor market, in the family, in its relationship with the adult, in its ways of thinking, feeling, acting, before the world that surrounds him/ her, For that reason, asa category of analysis, the work and the respective changes in the economic and social world are considered. The study is a reflection on the subject-child in the capitalist society. JKEY- WORDS: Childhood as a Historical Category; Subject-Child; Family; Social, Economic and Historical Changes. 1, INTRODUCAO ‘A nova estruturacio social, politica e econémica estabelece mudancas na ‘maneira como os sujeitos sdo percebidos, categorizados, diferenciados. Essas trans- formagdes aparecem implicitas em atitudes, comportamentos, palavras e nas mais diferentes praticas educativas. Nesse novo cenario social busca-se, como objeto de estudo, pensar a crianga como sujeito historico. Esta investigago orienta-se pelo seguinte questionamento: Como vem sen- do construida a imagem de “ser” crianga na sociedade de consumo? O conceito de infincia reflete as variagdes da cultura humana e as transfor- magécs histérico-sociais, assumindo marcas bem definidas em cada epoca. Desse ‘modo, buscou-se analisar a inffincia no momento crucial da sociedade atual, bem como nas transformagdes por que passou sua concepsao ao longo de alguns mo= ‘mentos historicos, por entender que esta andlise servira como subsidio para uma comprecnsdo mais ampla da visdo que se tem da crianga no momento presente.? 3° ciianga neste momento precisa ser vista como sujcito concreto, dinéinico, histirico. que pensa, interage, consti e reconstrdi situaedes cotidianas, manifestando seus medos, suas necessidads, suas, peculiares maneiras de centic 7 TERRA E CULTURA, AN 5 Para este estudo, foi feita a opcao por referencias significativas que so base para tal investigac30. Recorreu-se, por isso, a autores como: Karl Marx, Friedrich Engels, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Philippe Ariés, entre outros. Compreendcr a crianga como ser social é 0 grande desafio desta reflexao. Assim, 0 primeiro capitulo estuda a relagao entre crianga e sociedade através de uma anilisc historica ¢ social desde fins da Idade Média, passando pelo periodo da industrializapo no Brasil, até a contemporaneidade. ‘A produso ¢ 0 uso de conceitos sobre a infancia pelo conjunto da sociedade interferem diretamente no comportamento da crianga, modelando formas de sere agir, de acordo com as expectativas criadas nos discursos que passam a circular centre as pessoas, expectativas estas, que, por sua vez, comesponcem aos interes ses culturais, politicos e econdmicos de um contexto social mais amplo (JOBIM- SOUZA, 1996, p.106). O segundo eixo da reflexdo - segundo capitulo - analisa a crianga nas rela- 6cs familiares, rclacionando-se dirctamente com o primeira capitulo. 0 objetivo € discutir a questo da familia e suas mudangas na sociedade, bem como entender as mudangas na concepsio de infancia e do que é ser crianga. Nesse sentido, revelam.se tanto a permanéncia da sensibilidade da sociedade para com o mo- mento proprio da crianga, quanto as mudangas que se operam ao longo da histo- ria, além da forma de perceher e ver a criansa, tanto pela sociedade quanto pela familia, Como tiltimo eixo de reflexio, verifica-se o grande desafio desta pesquisa, que € refletir sobre 0 sujeito-crianca na sociedade contemporanea. E notério ob- servar que, com a vida modema, tudo se torna mais rapido; o tempo nao péra © também nés nao paramos. Assume-se a correria desatinada como se fosse movi- mento proprio. Desde a revolusio industrial, a socicdade tem-se deixado seduzir pelas idéias de utilidade, produtividade e lucro, passando a identificar como fum- damentais 0 tempo ¢ 0 dinhciro. Vive-sc definitivamente regulado plo incessante “tic-tac” do relégio. Em meio a tanta coneria, pergunta-se: Qual € o lugar da infancia nesse tempo tio apressado? A crianga no mundo modermo se depara também com a pressa, a rotina, a tenso, com colegas vivendo na rua, com o trabalho infantil, a erotizagao, a pros- tituigao; sendo objeto de consumo, convive também com o apressamento da in- fancia, empurrada e seduzida cada vez mais para o futuro ~ 0 mundo adulto. Neste cendrio capitalista, trabalha-se a crianga como veiculadora de venda de produtos em geral e produtos considerados especificos para ela. Esta situago cesta relacionada especificamente a compra ¢ venda, visando o Incro. A reflexio que se faz é que @ infancia acompanha a histéria dos homens e traz sinais de uma sintese rigorosa na modemidade. 7 TERRA E CULTURA, ANO XX N°38. 6 As mazelas do capitalismo compartilham com as criangas as condigdes de existéncia adversas ao mundo infantil. Assim, as criancas t¢m sua infancia trans- figurada pela voracidade do mercado, do consumo e do préprio progresso tecnolégico, A propria auséncia da familia tradicional na educag4o das criangas também contribui para a nova imagem de infaincia. Prcad (apud POSTMAN, 1999) cha- ‘mou a atengdo para esse fato ao dizer que a televisdo € o segundo pai, querendo dizer com isso que as nossas criansas passam mais tempo coma TV do que com seus pais. Até usam o “disque-historia”, como substituto dos pais na hora de con- tar historias para elas. Seja como for, é bem claro que a midia e as novas formas de trabalho © necessidades sociais reduziram o papel da familia na moldagem dos valores e da sensibilidade das criangas. Criangas ¢ adultos nfo mais se misturam. Constituem suas histérias separa damente. Se antes as criangas estavam misturadas com os adultos, se toda reuniao para o trabalho, para o passcio on para o jogo juntava criangas ¢ adultos, a partir do fim do século XIX percebe-se a tendéncia crescente de separar 0 mundo das criangas do mundo dos adultos. Uma das conseqiiéncias mais radicais do scnti= ‘mento moderno da infancia foi, portanto, o afastamento entre o adulto ea crianga. Isso significa uma perda da intimidade, dependéncia ¢ lealdade que tradicional- mente caracterizam a relaso entre pais e filhos. Estes sdio apenas alguns dos apontamentos que compéem o contexto da in- fancia contempordnea, dentre os quais destaca-se a ruptura do contato e do diflo- go entre adultos e criangas e entre criangas e eriancas, como uma questiio que precisa ser analisada com maior profimdidade. essa forma, surge a necessidade de refletir melhor sobre este afastamento da crianga em relagao a0 “outro”. A razo mais significativa para cssa investigacao sc 4 por se acreditar, segundo pressupostos vygotskyanos, que é necesséria a interago da crianga com o “outro”, scja adulto, scja crianga, contudo mais expcricnte. Dentre muitas contribuicdes significativas de VYGOTSKY (1989), desta- ca-se 0 valor da interagio da crianga com o outro. Por meio das relagdes, os pro- cessos dados no plano externo se reconstituem no plano interno. Vygostky valori= zaa interagio entre criancas de idades diferentes no ambito da heterogeneidade. Assim, a crianga interage com parceiros diversos cm diferentes situagdes, sendo todos co-autores da situacao pedagégica Dessa forma, as interagées sociais ocupam um espaso de destaque no desen- volvimento infantil, pois é a partir delas que a crianca tem acesso a cultura, 20s valores ¢ conhecimentos universais. A crianga tem oportanidades de cooperar, ‘trocar experiéncias, adquirir padrées sociais através da linguagem, durante as ex- 7 TERRA E CULTURA, AN periéncias e, até mesmo, de ampliar o pensamento empirico para um pensamento mais concreto Estes apontamentos instigam a uma pesquisa mais profunda para conhecer mais tém sido as conseqiiéncias visivcis deste distanciamento da crianga em rcla- cdo a0 “outro” na sociedade moderna. 2. A INFANCIA COMO CATEGORIA HISTORICA Partindo da premissa de que a produgio de conhecimentos acerca da infan- cia estd intimamente ligada ao lugar social que a crianga ocupa na relago com o outro, é intengao deste capitulo mostrar algumas transformagées e orientacdes dos modos de ser da infncia, a partir da Idade Média, como um meio para a compreensio da experincia de ser crianga e as vicissitudes desse acontecimento na contemporancidade. Com efeito, cada época ira proferir 0 discurso que revela seus ideais e expectativas em relacio as criangas, tendo esses discursos conseqii- Encias constitativas sobre o sujcito cm formasio, Entende-se, entdo, que o lugar da crianga na sociedade nfo se deu sempre da mesma forma. Ao longo dos tempos, a crianga pode ser considerada uma expres- sfo de cada sociedade marcada por suas dimensdes culturais, religiosas, econdmi- cas, politicas, etc, Nao sera a primeira vez que o saudavel exercicio de olhar para tras ira ajudar a iluminar os caminhos que sio percorridos pela crianga hoje, en- tendendo melhor o porqué de certas escolhas feitas pela sociedade. ‘esse sentido, levam-se em conta diferentes momentos em que a concepg30. de infincia foi indiferenciada e confundida com a do adulto, prevalecendo até fins do século XVI. Nessa fase, 0 desconhecimento das caracteristicas préprias da crianga era visivel, encontrando-se uma relacdo que tinha no adulto o tinico mode- loa ser seguido. Sendo assim, a infincia modificou-se acompanhando as transformagdes do sistema econdmico, politico, social ¢ cultural vigente em cada periodo da histaria. Com isso, pretende-se afirmar a convicg%o de que a nogo de inffincia no é uma categoria natural, mas profundamente historica e cultural. A CRIANGA NAS RELACOES FAMILIARES Em decorréncia das grandes mudancas na vida social, politica, cconémica ¢ cultural que ocorrem atualmente, vem-se evidenciando uma modificacao signifi- cativa na familia, Em conseqiiéncia, ela apresenta, hoje, dois aspectos distintos 7 TERRA E CULTURA, ANO XX N°38. 8 que a constituem como instituigao. Por um lado, ela tem sido vista como 0 centro de atencSo devido 20 espago privilegiado que ocupa no surgimento e frui¢io da vide emocional de seus companentes. Por outro, tem chamado a atencao dos cien- tistas sociais, pois, ao mesmo tempo que, sob alguns aspectos, mantém-se inaltcrada, também apresenta uma grande gama de transformasées. Na perspectiva histérica, percebe-se uma vasta midanga na familia, desde sua forma extensa, na Idade Média, até a sua forma nuclear, da atualidade. Antes da industrializagdo, a familia compunha-sc de pais, fillhos ¢ mumcrosos parentes vivendo juntos em solidariedade coesa.* Somente as presstes irresistiveis da modemizasao puderam romper esses vinculos. Essa tradiso historico-sociolégi- ca pressupunha uma familia definida pela quantidade de parentes que constituiam vuma casa, Hoje, a familia esta sendo atacada por um lado ¢ defendida pelo outro, com igual veeméncia. E responsabilizada por oprimir as mulheres, maltratar as crian- as, disseminar a neurose ¢ impedir a comunidade. E louvada por sustentar a moralidade, ser um ffeio a criminalidade, manter a ordem e perpetuar a civiliza- 40. Casamentos cstio sendo mais desfeitos do que munca, ¢ mais celebrados do que em qualquer outra época, como afirma Tozoni-Reis (apud LANE, 1984, p.99). Alguns historiadores* puderam afirmar que a mudanga ne padréo demografico, conquanto nao afetasse as dimensdes da familia, teve consideravel impacto sobre a vida cotidiana da familia: “A familia nuclear que emergiu na transigo para a modemidade é uma configurac3o Gnica de comportamentos © atitudes decisivamente diferente da que existia antes” (POSTER, 1979, p.11). A historia da familia pode contribuir para o conhecimento da historia social, ao se examinarem as estruturas emocionais na vida cotidiana de varios tipos de familia, Tal investigasSo historica capacitard a cincia social a clucidar, no s6 0 passado, mas também os dilemas atuais da vida de familia, que envolvem, em certa medida, scntimentos, scxualidadc c estabilidade psiquica. Dessc modo, a historia da familia pode contribuir substancialmente para a compreensio dos des- contentamentos atuais. ‘No periods medieval, 2 snfancia era caracterizada pela familia como um periodo de grande impulsividade, desortem. A crianca era compatada a um animal, sendo vista como um ser guiatlo pelos instintos, eno pela razAo: incapaz de interpretar de forma correra as poucas experiéncias que porventura viesse a ter. GUERRA (1985, p.50) afirma “[..] aos adultos era imputada a responsebi- lidade de promover a entrada da crianca ao muado dos ‘sealmcate humanos’.” 5: TOZONE- REIS (2002) reforea essa idéia ao se referir 20 periodo peé-industrial, quando a familia era constitulda por agrupamentos de 40 e até mais de 200 pessoas, A vica familicr era mais publica do que privada GE de merccimento destacar que ARIES (1981) estava somente interessado na idéia de infancia © suas muudangas, 7 TERRA E CULTURA, AN 9 Apesar de todas as mudangas ocomidas na familia, pode-se perceber, ainda hoje, um certo nimero de caracteristicas da familia tradicional, como a existéncia de casamento formal com relagdes sexuais privilegiadas para os cénjuges; superi- oridade dos maridos em relasao as esposas (patriarcado) c dos pais cm relagio aos filhos; familias ainda numerosas. Quaisquer que sejam 2 extensao e a complexi- dade da rede de parentesco ¢ dos dircitos ¢ obrigasécs mituos dentro dela, uma familia nuclear — um casal com filhos — estava geralmente presente em alguma parte. No que se refere 20 conceito de familia, pode-se dizer que: “[..] Para alguns, a familia é a base da sociedade e garantia de uma vida social equilibrada, célula sagrada que deve ser mantida intocdvel a qualquer custo. Para outros, a instituigSo familiar deve ser combatida, pois representa um entrave 20 desenvolvimento social; € algo exclusivamente nocivo, € local onde as neuroses sio fabricadas ¢ onde exerce a mais implacavel dominagao sobre as criangas ¢ as mulheres.” (LANE e CODO, 1984, p.99). Afirma Engels que os sistemas de parentesco e formas de familia diferem dos atuais sentiments familiares, visto que nfo sao estaveis, mas sc modificam conforme os tempos, As mudangas referentes a concepsao de crianga intcrligam-se significativa- mente nas mudancas da familia, pois, embora ideologicamente tenha-se veiculado dentro da prépria familia a idéia de que a representago da instituigdo familiar é algo natural e imutivel,” ela nao se constréi como algo imutivel, mas sim como uma instituisio social que se depara constantemente com grandes modificasées, de acordo com as mudangas sociais mais amplas. Percebe-se, enti, que ha uma determinagdo historica da estrutura familiar que tem como ponto de discuss a questo das relagdes entre familia e socieda- de. E através deste enfoque que se procurara discutir a relagdo da crianca neste grupo social, analisando-se como cla foi perccbida no decomrcr das mudangas no conceito de familia. Parsons (apud LANE © CODO, 1984) fala da sociedade capitalista e toma a familia dessa socie- dade como universal mutével: @ familia nuclear burguesa toma-se sindnimo de familia. Outras formas, quando cxistentes, so consideradas, no méximo, estrumuras que se vo, ainda, diferenciar em dizecdo a esse modelo ideal de familia. 7 TERRA E CULTURA, ANO XX N°38. 10 4, A CRIANCA NA SOCIEDADE CONTEMPORANEA Vive-se hoje um momento crucial da histéria, um tempo em que ha uma espécie de culto 20 novo. As nogdes de pés-modemo, pés-industrial, em niveis diversos, afirmam uma nova cra, ¢ os cenérios mistificadores indicam o momento globalizado e reestruturado, qualitativamente, pela terceira revolugio industrial. Nesse sentido, verifica-se um conjunto de conhecimentos a servigo da pro- dugao e do consumo, Essa sociedade apela incansavelmente para 0 consumo, cri- ando no individno a necessidade de consumir mercadorias. MARCUSE (1997) afirma que essa sociedade é a que mais enaltece o indi- ‘viduo; usa de todos os meios para que este usufiua da mercadoria para seu proprio conforto; entretanto, ¢ a que menos permite que o individuo aja como sujcito singular que tem vontades, sentimentos, sensagdes ¢ idéias préprias. Essa mesma sociedade faz com que esse individuo adulto tenha a liberdade de consumir, escolher, comprar. E em meio a essa liberdade, verifica-se também a presenga da crianga como cliente passivel de consumir mercadoria. Esse consumismo provaca no individuo, seja adulto, seja crianga, a satisfacdo por ter 0 produto; no entanto, o individuo nao tem mais controle sobre interesses e necessi- dades proprios, Nao tem espago para ser de outra maneira, a no ser 2 que 0 mercado propée. Ha a remincia do eu em prol do todo e a tmica busca acaba se restringindo & busca da felicidade por meio do consumo. Tanto adultos quanto criansas vivem e convivem diariamente com a possi- bilidade da obtengiio de prazer que, conforme Palangana (1998, p.153) é um “[...] prazer pervertido, cujo fundamento ¢ deslocado para o consumo. O prazer, aguele anunciado pelos Tluministas, que as condigdes factuais permitem, mas a socieda- de posterga, permanece como possibilidade posta entre parénteses, ainda que como possibilidade cada vez mais rcal. A manipulagao sc vale do calculo de probabili« dade para induzir o individuo a acreditar que as chances de ser ele 0 prdximo a tirar a sorte grande so reais.” No caso da crianga, essa s6 se satisfaz se tiver 0 produto que é anunciado em propagandas; s6 se sente satisfeita se possuir a roupa do super-homem, ou o com putador da Sandy ¢ Junior; ou, mais ainda, s6 brinca se for com brinquedos eletrd- nicos e industrializades. MARCUSE (1997, p.29) entende que, nessa sociedade, “...as criaturas se reconhecem em suas mercadorias, encontram sua alma em seu automével, casa com varios patamares, utensilios de cozinha, etc. Em meio a tanta mudanga na esfera econémica e social e tanta novidade, questiona-se: Em que lugar as criangas esto? O que faze’ Quem sio clas? Como esto? De que forma reagem a tantas mudancas? Que certezas e incertezas vém 7 TERRA E CULTURA, AN it trazendo para o mundo atual? Essas inquietagdes permitem pensar de forma criti- ca como as criangas tém reagido a essas mudangas Percebe-se, entiio, que esses questionamentos so condicdes para o encami- mhamento da reflexio sobre este capitulo, no intuito de esclarecer o significado social da crianga na atualidade. Assim, como foi discutido nos capitulos anterio- res, procura-se perceber a infancia, em especifico a crianga dentro de-um contexto social, vendo-a sempre como um ser histérico que constréi e reconstréi a historia © que participa ativamente dessa conjuntura social ¢ econémica. Perceber a crianca em sua subjetividade ajuda a responder as inquietacdes que elas possam ter. Por sua condigao de fraqueza e de promessas, a crianga con- figura forgas no seio da sociedade, seja atraindo as atengées de empresas como Piiblico consumidor ou como forca de trabalho, seja prefigurando uma imagem de gestagio." Frases como estas sko ouvidas diariamente: “as criangas precisam ser educadas para competir no mercado global do futuro”, ou “...as criangas tém que ter acesso 20 computador, pois nao queremos que clas fiquem para trés.” Para melhor ilustrar essas argumentac6es, veja-se 0 relato de uma crianga de ito anos: “Uso saia ou calga de brilho para sair a noite com meus pais. Também gosto de shorts curtinho ¢ justo, sandélia e bota de saltinho, E adoro roupa country. Carrego na bolsa batom, espelho e perfume, mas nfo passo muita maquiagem porque minha mie nao gosta. Estou fazendo regime porque engordei um pouquinho. Nao tomo guarand ¢ parei de comer chips. Quero ser modelo profissional, por isso néo posso engordar.” (VALE, 2001 p.12). ‘Na condigo de participante da familia, a crianga se coloca no mercado de bens, quer como forga de trabalho, no caso das familias de baixa renda, quer como piblico consumidor, nas familias de rena alta e média Ontra questio pertinente a imagem de crianca na atualidade € a de que, emrazio da familia ter se madado significativamente nas socicdades industriais mais avanga- das, reduzindo-se numericamente, as instituigdes educacionais jé se fazem presentes prematuramente na vida das criangas, Também ocomreram mudangas radicais no cspa- 0 urbano e as criangas ja nfo tém os espacos informais coletivos para brincar com :Braste aa contemporaneidade eifiaciaprecocee ainfincia consumidore. Ea goragdo de meti- thas e meniaos precoces que eriam o adbito de user roupas, ter gostose falas semelbantes a5 dos adultos, Criangas que se transformam gradativameate em pequenas cipias dos adultos. 7 TERRA E CULTURA, ANO XX N°38. 2 outras criangas, como havia antes (rua, quintal...). A crianga acaba tendo que fre- gientar, desde pequena, uma instituig20 educativa (creche, jardim) para a sociali- zacio, e para o desenvolvimento das potencialidades intelectuais e psicomotoras. No entanto, a parte afctiva ainda deve scr responsabilidade da familia. GHIRALDELLI JUNIOR (1997, p.45) também contribui para a compreen- sio da infincia na atualidadc, afirmando que a modemidade vem criando a con- cepe’o de crianga como um ser diferente, em contraposigo 4 concepeao de crian- ¢acomo adulto cm miniatura. Afirma, ainda, que se vive num mundo onde crian- cas nao tém infancia, sendo obrigadas 2 se tomarem o trabalhador precoce, a vitima precoce, o réu precoce. E necessario, portanto, construir instruments teéricos que permitam pensar nessa nova concepeio de crianga que se vem constituindo a cada dia. Pode-se ainda pensar na crianga pequena com agenda lotada. A televisio que se transfor- ma em baba. Os pais ausentes. Erotizacdo da infancia. Sexualidade, publicidade, cultura do consumo, Individualismo desencadcado pela auséncia do “outro”. Apa- gamento da relago de alteridade. Crianca sozinha. Crianga que manda nos pais. Estes sao alguns dos fragmentos que compaem a infancia hoje, dentre os quais destaca-se a ruptura do contato e do didlogo entre adultos e criancas, como uma questo que precisa ser analisada posteriormente com maior profundidade. A crianga contemporanea tem como destino transitar entre adultos que no sabem mais 0 que fazer com ela. Segundo SOUZA e PEREIRA (1997, p.38): ...] as criangas passam assim a compartilhar entre si suas experigncias mais fieqtientes, as quais se limitam, na maioria das ‘vezas, a0 contato com o outro televisivo, remoto, virtual ¢ maquinico.” Assim, aprodugo do conhecimento acerca da infincia faz com que ela garihe um novo starts nessa nova realidade. Acaba sendo vista como uma eficiente tradutora, para oadulto, de algo criado por ele mas que ainda the soa como desconhecido. Muitas vezes, sto as criangas que solucionam os impasses que os adultos tém diante do computador, por exemplo, O mesmo acontece quando a crianga, ante a uma camera de video, se ‘mostra a vontade e interage com a maquina como faz com os seus semelhantes. E possivel, entao, pensar numa infancia, nfo cm termos de reforma, mas em ter ‘mos de desafio, danecessidade de um novo pensamento, denso e capaz, mum novo olhar para acriansa pequena. Othar para a crianga € percebé-la em sua subjetividade, enquanto ser humano, vvalorizando seus pensamentos, sentimentos, emogaes ¢ ages, diante do mundo que a cerca. B 7 TERRA E CULTURA, AN 5. CONSIDERACOES FINAIS ‘estas conclusdes procurar-se~a, em primeiro lugar, sintetizar a orientag3o geral de reflexao que compas este estudo. Assim, em primeiro lugar, analisou-se a crianga como snjcito histérico-social, que reflete as mudangas em suas préprias concepcdes, decomentes das mudancas sociais mais amplas. Verificou-se que a crianga esta presente nas relagdes sociais, seja através de imagens ou idéias que dela se fazem, seja através de mediagdes da familia, seja ainda através de sua propria ago enquanto sujeito-criansa. Sob estas varias formas, a crianga revela-se como um ser social importante que constréi e reconstréi historia; e ¢ também um ser que tem emocGes, sentimen- tos, expressdes, desejos © ages, que merecem ser evidenciados nessa sociedade capitalista. Durante toda a andlise, percebeusse que a crianga foi ora secundarizada, ora exaltada; entretanto, em nenhum momento, ela desapareceu. Apenas foi vista con- forme as mudangas sociais, politicas, econémicas ¢ culturais de cada momento histérico. ‘Assim, entende-se que a infaincia resulta de uma condigao historica da crian- a, que nfo nega o dado natural, mas o incorpora eo expressa socialmente. Reve- 1a, contudo, a natureza social do homem na crianga e a sujeigdo da realizagao mais acabada da sua especificidade as contradigécs sociais. Hoje, ser crianga € ser consumidor, é ser precoce, é ser trabalhador. Essas caracteristicas so marcas da concep¢ao que sc tem de infaincia na atualidade. Ao mesmo tempo em que se depara com a visdo idealizada que prega a liberdade da crianga ¢ os deveres ¢ direitos criados pela sociedade para cla, tais como a atitucle de respeito, o amor e a protegao que Ihe sto devidos, do outro lado, ha exigéncias de comportamento, nas quais é tratada c conduzida cotidianamente tal qual 0 adulto em responsabilidade, coragem, trabalho, conhecimento, junto ao fato anta- ‘gonico de ser considerada como carente, inferior, e condicionada a obedecer ¢ a seguir as ordens dos “maiores” O que existe ¢ a falta de didlogo entre o adulto e a crianga; some-se a violén- cia, « destruigo, a perda da sensibilidade ¢ da espontancidade infantil, por uma “qutoridade” adulta que seduz gradativamente as criangas para 0 mundo adulto, lotado de tensées, individualismo, responsabilidades, isolamentos, consumo, cx- ploragaio do trabalho, ete. Esta andlise buscou compreender grande desafio atual que consiste em compreender as conseqiiéncias negativas que o encurtamento da infincia pode provocar na vida da crianga enquanto sujeito. Em fangao disso, entende-se que é preciso tabalhar numa perspectiva de humanizaeao, valorizando a experigncia, we TERRA E CULTURA, ANO XX N°38 14 as emogdes, os sentimentos, 05 desejos, a propria espontancidade infantil, da cri- anga consumidora, da crianca trabalhadora, da crianga negra, da criansa da favcla, da crienga de rua, da crianga vitims, da crianga ré, da crianga softida, da crianca feliz, Nessc sentido, buscaese libertar a crianga enquanto crianga, ¢ dar-lhe 0 sca maior direito que é 0 de viver seu tempo de infancia. Entretanto, isso € possivel se forem revistas as condigdes econdmicas, politicas ¢ sociais postas na sociedade capitalista, pois a crianga que se tem hoje expresso do que a sociedade determina via mercado produtivo REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ARIES, Philippe. 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