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A literatura e o leitor DIANA MARIA MARCHI El encuentro decisivo entre los niiios y los libros se produce en los bancos de las escuielas. Si se produce en una situacién creativa, en que cuen- ta la vida y no el ejercicio, podra surgir aquel gusto por la lectura con el cual no se nace por- que no es un instinto.* Gianni Rodari (1990, p.2) De inicio, cabe uma pergunta: quem ¢ esse leitor? Se, num pri- meiro momento, pode nos parecer dificil defini-lo, quase impossivel delinear o seu perfil, num segundo momento, como professores com um olhar um pouco critico e sensivel, podemos perfeitamente dizer quem so eles - e cles existem! Na verdade, o que a sociedade, de um modo geral, ¢ a acade- mia, de um modo especial, nos cobram é a formacdo de um indivi- duo que lé textos escritos, preferentemente livros. Por esse critério, atrevo-me a afirmar que mais da metade da populacdo seria climina- da. Crua realidade? Sim, mas nao é por ser crua que vamos deixar de discuti-la. Chegamos assim, a uma equagiio simples: para termos como resultado leitura, devemos somar livro + leitor. Mas afinal, que li- vro é esse? Que objeto de adoragdo ¢ esse, to distante do leitor comum? O livro, indicado invariavelmente como objeto de cultura por exceléncia, considerado como a Jeitura verdadeira, néo cen- traliza o universo cultural da populacdo brasileira. Essa, em geral, admira e respeita quem lé, talvez até inveje quem possua a capaci- dade de ler, ¢ até se considere em desvantagem pelo fato de ndo ser leitora. A leitura esta associada a textos, especialmente a livros, obje- tos de pouco convivio doméstico, pessoal, mas sempre valorizados. A literatura e © leitor 159 Os didaticos sao vistos como livros da escola e nao dos leitores. Aqui surge a primeira divisao de aguas: certas leituras sdo para a escola, nao para si préprios. No entanto, esse mesmo leitor, se consultado, podera surpreender-se ao perceber que gostou de uma determinada leitura, indicada pela professora. Apesar do haver gostado, a leitura nao chega a tornar-se habito. A leitura espontanea torna-se rara. Es- taremos, entao, formando um leitor escolar? Um leitor que, distante do espago escolar, esquece o prazer da leitura? E a leitura escolar € realmente prazerosa? Para muitos, a leitura de livros de literatura é muito exigente, di- ficil, cansativa, mondtona, demorada, enquanto os jornais ¢ as Tevis- tas sdo de leitura rapida e, por isso, agradavel. E comum que os ado- lescentes - ou pré-adolescentes - refiram-se 4 sensagao de perda de tem- po relacionada com o fato de ficarem lendo enquanto as coisas acon- tecem. Para eles, ler livros ndo 6 nenhum acontecimento. E, no minimo, curioso que a énfase na caréncia de leitura feita por educadores ¢ intelectuais também ocorra entre os ditos ndo-lei- tores. Parece que ninguém - nema escola nem a sociedade - percebe a ligagdo existente entre o que é vivenciado/lido dentro e fora da es- cola, ¢ o que ela ¢ eles mesmos consideram como leitura. Especial- mente tratando-se da interagéo tao intensa e difundida da linguagem verbal com a visual. O visual ¢ a oralidade, predominante nas praticas nao institucio- nalizadas, sao tidos ¢ identificados como nao-leituras. Menospreza- dos por seus prdprios leitores e ignorados pelos letrados, no entan- to, so as /eituras mais freqiientemente realizadas pela maioria da po- pulagao. Por outro lado, a literatura infantil resgatou com extrema sabedoria essa conjung¢éo, tornando a ilustragao pega fundamental para a leitura, integrando texto ¢ imagem. Varios sao os exemplos na literatura infantil brasileira. Se tomarmos uma unica pagina do li- vro de Siguemoto (1993) Tia é a..., dentre um crescente numero de publicagGes, veremos que é impossivel realizar a leitura sem que a imagem - a ilustragdo - seja igualmente lida. Os baldes das histérias em quadrinhos que encerram as falas das personagens merecem uma analise a parte: aquele que detém a voz da bruxa ¢ enorme, ocupa quase toda a pagina. As letras sdo grafadas em caixa-alta (maiusculas) e estao fortemente marcadas, carregadas de cor, como se tivessem sido negritadas. A pontuacado também exerce 0 seu papel, com a profusdao de pontos de exclamagao ao final da frase. Como contraponto, o leitor se depara, na outra pagina, ao lado da voz da bruxa, 160 Ler e escrever Grete & aes ae 7 Quem Estd al © 8 ‘ QUEM 2 VOCE ? APARECA, SENAO TE TRANSFORMO NUMA BETERRABA!!!! a Mariana, Niio quero beterrabat Fonte: Siguemoto, R. Tia é a... 1993. p. [10-11]. compondo um unico cenario, um balo tremido, reduzido, localizado embaixo de uma mesa, contendo a fala da menina. Esse texto foi es- crito utilizando minusculas e somente as iniciais em maitisculas, ¢ a sucessao de exclamagées foi substituida pelas reticéncias, Podemos entdo perguntar: onde esta o narrador dessa historia? Ele existe? Como sabemos que aquela fala enorme da bruxa transmite po- der, forga, e até impde um certo - se ndo for muito - medo? Por outro lado, como podemos afirmar que a menina estava tremendo de medo da bruxa? Evidente. O texto incorpora a ilustrag4o que, por sua vez, faz o papel do narrador. Ela nao se limita mais a ilustrar a historia. Adquire o status de linguagem, de texto, de narrativa. E ¢ gragas a incorporagéio de clementos visuais ¢ de linguagem que a literatura infantil tem con- quistado o scu leitor, habituado que esta a ler o mundo que 0 cerca. O que vinha sendo feito com muita propriedade, e sem o menor pudor, pela area da publicidade, incorporando recursos literarios para atrair a atencdo do consumidor e vender os mais variados produtos, esta sendo feito, agora, pela literatura infantil ao apropriar-se de téc- nicas € recursos de outras areas, como da fotografia, do cinema, das revistas em quadrinhos, das artes plasticas em geral e, quem diria, da propria televisdo, aquela que, até bem pouco tempo, era tida como a grande inimiga da leitura. A literatura e © leitor 161 Nao ha necessidade da intervenc4o da voz do adulto dizendo o que esta acontecendo na histéria, nao é preciso que um mediador se faga presente esclarecendo passagens, explicitando personagens, diri- gindo a leitura. O livro de literatura infantil fala com o seu leitor, pois ele se encontra nele representado. A identificagdo ¢ imediata e ocorre sem que haja nenhum esfor¢o - ou forga por parte da professora. Eles léem com a maior naturalidade. E se nos atrevermos a perguntar-Ihes algum absurdo do tipo colocado anteriormente - como sabemos que a menina esta com medo? - receberemos, de um leitor extremamente in- dignado, uma rapida e sonora resposta: - “Ora, é claro que ela esta com medo, olha so como ela esta tremendo, escondida embaixo da mesa, com 0 dedo na boca e falando bem baixinho!” A explicagao se faz desnecessaria, porque autor e leitor falam a mesma lingua. A menina que ali esta é a propria crianga, representada enquanto personagem, implicita na obra. O didlogo se estabelece atra- vés dessa identificagao. O texto agil, semelhante a fala cotidiana da crianga, a criativa e dinamica ilustrag4o que remete ao movimento te- levisivo, 0 uso dos balées, retirado das revistas em quadrinhos, sao ele- mentos que encontram, de imediato, correspondéncia no repertorio do leitor infantil, pois integram a sua vida, 0 seu dia-a-dia. Essa passagem é necessaria. E uma espécie de conquista do lei- tor €, para isso, a aproximac¢do é fundamental. E como a casinha da bruxa no meio da floresta, coberta de doces, encontrada por Joao e Maria. A tentagéio é tdio grande que, por maior que possa ser a descon- fianga da crian¢a diante desse novo objeto, ela ¢ por ele atraida, con- quistada pelo livro de literatura infantil. Lamentavelmente, em algum lugar do caminho, esse leitor se perde. Nao estranhamos entao quando alguém diz que as criangas meno- res — antes da adolescéncia — gostam de ler, adoram os livros de bruxas ¢ fadas ou as historias de animais. Assim como nao desconhecemos que, ao entrarem na adolescéncia, outras prioridades surgem, exigindo-lhes novas atitudes diante da pressdo exercida pelo seu proprio grupo. Fagamos um exercicio utilizando a imaginagao: imaginemos um Jeitor, sentado confortavelmente num recanto silencioso, com um li- vro aberto na mao, olhando fixamente para a pagina, num ato de leitu- ra. Como essa se processa? Os simbolos graficos desenhados no pa- pel estéo sendo rapidamente confrontados com o repertério armaze- nado na memoria desse leitor. Se houver correspondéncia entre o sim- bolo da pagina e o simbolo do repertério, o leitor tem condigdes de decifra-lo, de decodifica-lo. 162 Ler e escrever Na medida em que ele 1é, 4 medida que vai decodificando pala- vra por palavra ¢ articulando uma palavra a outra, reconstroi para si mesmo uma frase e, portanto, uma descri¢do, uma avaliagdo, uma idéia ou pensamento. A percepgao dessa questao se insinua pela subjetivi- dade do leitor. As sugestées do autor so como doses de estimulante para a imaginagdo do leitor. Os arquivos da memoria sao revirados € de la surgem paisagens, rostos, gestos, cenas, imagens, objetos, tios, vizinhos, avés, lembrangas perdidas evocadas por uma frase, uma ima- gem, uma descrigdo. Na interpenetragdo entre os fragmentos da vida real passada e os fragmentos da presente ficgao proposta pelo autor, localiza-se a percep¢ao do leitor. Fica, assim, mais facil entendermos por que os adolescentes nao gostam de ler certos textos: a leitura é uma experiéncia profundamen- te pessoal ¢ resulta da permanente confrontagdo entre a narrativa do autor e as historias de vida do leitor. O leitor seria, portanto, uma es- pécie de co-autor da obra literaria. Assim, continuemos imaginando que esse jovem tenha nas mos uma das obras classicas da literatura brasileira, de leitura obrigatéria no ensino médio, na qual aparece a seguinte descrigao: De um dos cabegos da serra dos Orgdos desliza um fio de 4gua que se dirige para 0 norte, ¢ engrossado com os mananciais, que recebe ne seu curso de dez léguas, torna-se rio caudal. (Alencar, 1988, p.13) O leitor, nosso aluno, jovem adolescente, olha os simbolos gra- ficos distribuidos na pagina, agrupa-os formando as palavras, e bus- ca, rapidamente, no acervo da memoria, alguma coisa que correspon- da aos simbolos desenhados. Revira de um lado, revira de outro e, como bem sabemos, nada encontra que seja sequer parecido com essas es- tranhas palavras, essas esquisitas frases. Ora, nada mais natural para um leitor comum — nao estamos mais falando somente dos adolescen- tes — do século 20 que nao compreender absolutamente nada do que o nosso consagrado mestre Alencar queria dizer nessa bela descrigdo do cenario por onde transitaram Ceci e Peri, no ano da graga de 1604. O que esta errado? Sera que ha algo errado? Alencar nado deve mais ser lido? Essa leitura deixa de interessar pelo seu distanciamento do ho- mem e da histéria e, para ser lida, devera buscar outro caminho de re- lacdo obra/leitor. O texto demanda o leitor e seu repertorio de Jeitu- ras, a fim de que haja a interagdo, a interpretagao. Na medida em que A literatura € o leitor 163 ele nao pode estabelecer uma relagao com O guarani, o livro sera des- prezado ¢, seo leitor nao se dispuser a uma compreensao interativa, a contribuigdo do romance para pensar a constituigdo da sociedade bra- sileira estara bloqueada, ainda que latente. Pensar essa relagdo ¢ pensar a necessidade de um intérprete, de um mediador. E pensar a relagdo da leitura nio mais como revelagiio, mas como interpretagao, o que supd¢ um texto — o meu texto — articu- lado com outro — do outro. A leitura sd é possivel se 0 leitor, com toda a carga de memoria que tem, conseguir reconstituir o texto a partir das proprias experiéncias, tornado o romance significativo. O preenchi- mento dos vazios existentes, tal como Iser (1996) desenvolve na esté- fica da recep¢do, é tarefa do leitor, auxiliado, sempre que necessario, pelo professor que assume o compromisso de apreseniar-lhe a obra (no tempo e no espago de produgio) A questao da leitura se coloca, entdo, na confluéncia das inter- pretagdes, na necessidade de transformarmos alunos apaticos em lei- tores sensiveis, de modo que os textos desencadeiem a mobilizacéo de sujeitos histéricos. Entramos, pois, no espago da comunicagao expres- siva, da interagao entre obra ¢ leitor, da relagdo entre o sujeito e seu tempo, do sujeito ¢ sua memoria. O homem 1é desde sempre; 1é todos os significantes que estao disponiveis. Essa potencialidade para significar faz com que o homem imediatamente compreenda os objetos, os outros homens, aproprian- do-se de uma imagem desenhada e que, muitas vezes, n4o correspon- de diretamente ao objeto de que trata. Essa distncia entre o signifi- cante ¢ o significado, como vimos, se por um lado dificulta a identifi- cagao, por outro pode funcionar como uma espécie de desafio que, uma vez aceito, rompera com a barreira da leitura mastigada, mediocre, abrindo novos horizontes de leitura de mundo. Essa forga instauradora do significado é a que da a palavra esse carater magico. O leitor vai instalando com relagdo a palavra uma cer- ta desconfianga e quanto mais se busca fixa-la, mais ela impée seu du- plo mistério. Quando falamos de ler e compreender, estamos falando de conhecer. O melhor autor ¢ aquele que faz seu publico avangar na medida em que propée novas leituras da realidade. O melhor media- dor - professor - é aquele que, gostando da leitura, sabe explorar um texto propondo atividades de promogao da leitura através de estratégias que atendam os interesses do jovens. Por fim, uma recomendagao: as atividades para a motivagao da leitura devem perseguir um grande objetivo que consiste em fazer com 164 Ler e escrever que os jovens desejem descobrir 0 livro, pega-lo nas maos com expec- tativa, apropriar-se dele e, conseqiientemente, 1é-lo. Este objetivo pode ser alcangado se fizermos: —uma boa apresentagao da obra: —uma conversa ou uma pesquisa sobre um tema relacionado com a obra; ~a leitura, em voz alta, de uma parte da obra capaz de despertar o interesse ou a curiosidade dos alunos. Referéncias bibliograficas ALENCAR, José de. O guarani. S40 Paulo: Circulo do Livro, 1988. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, S40 Paulo: Ed. 34, 1996, v1. RODARI, Gianni. Nuevas maneras de ensejiar a los nifios a odiar la literatu- ta. Hojas de ACLL/, Bogota: Asociacién Colombiana para el Libro Infantil y Juvenil, v.4, 0.7, p.2, nov.1990. SIGUEMOTO, Regina. Tia é a... Il, Matinez. Sao Paulo: Editora do Brasil, 1993. p. [7-8]. Leituras recomendadas: AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formagdo do leitor: alternativas metodologicas. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: his- torias & historias. 3.ed, Sdo Paulo: Atica, 1987. LIMA, Luiz Costa (org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recep- ¢Go. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MARCH, Diana Maria. A literatura infantil gaticha: uma historia possivel. Porto Alegre: PUCRS, 1996, (Tese de doutorado). ZILBERMAN, Regina, MAGALHAES, Ligia Cademartori. Literatura infan- til: autoritarismo e emancipagdao. 3.ed. Sao Paulo: Atica, 1987. ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da (org.). Leitura: pers- pectivas interdisciplinares. Sao Paulo, Atica, 1995. Nota * Oencontro decisivo entre as criangas ¢ os livros ocorre nas escolas. Se ocorrer numa situagdo criativa, em que conta a vida e ndo a gramatica, podera gerar aquele gosto pela leitura com o qual nao se nasce, porque nao é um instinto. A literatura e o leitor 165

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