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MARIA CLAUDIA BONADIO MopaA: COSTURANDO MULHER E ESPACO PUBLICO. ESTUDO SOBRE A SOCIABILIDADE FEMININA NA CIDADE DE SAO PAULO 1913-1929. Dissertagdo de Mestrado apresentada a0 Departamento de Histéria do Instituto de Filosofia. e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientagao da Prof. Dr’. Vera Hercilia (Wavy) Pacheco Borges Bk sromnadon songovi So. osdaryan tivo da} rditla 2 ope we shee Sede au Jolta] zoo HeQean fen te roqurerengd (( BANCA [rbot Ja (hol Prof. Dr’. Vera Hercilia (Vavy) Pacheco Borges (Orientadora) Prof’. Dr’. Heloisa André Pontes Prof. Dr. Michael MacDonald Hall Prof. Livre Docente Guita Grin Debert (Suplente) 2M-GO153974—~2 UNICAMP SIBLIOTECA CENTRAL SECAO CIRCULANT. FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP B64m Bonadio, Maria Claudia ‘Moda: costurando mulher e espago piiblico - estudo sobre a sociabilidade feminina na cidade de S4o Paulo 1913-1929 / Maria Claudia Bonadio. - - Campinas, SP : [s.n.}, 2000. Orientador: Vera Hercilia (Vavy) Pacheco Borges. Dissertago (mestrado ) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. 1. Moda. 2. Publicidade. 3. Lojas de departamento — Aspectos sociais - Histéria. 4. Comércio- Sao Paulo (SP) ~ Séc. XX. 5. Sociabilidade. 6. Mulheres - Histéria. I. Borges, Vavy Pacheco. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. I1L.Titulo. SIBLIOTECA CENTRA SECAO CIRCULANT Resumo Este estudo tem por objetivo investigar as relagdes entre mulheres das classes médias e lites paulistanas com 0 espaco plblico na cidade de Séo Paulo, no periodo 1913-1929, através das crdnicas de moda escritas por Marinette e publicadas na Revista Feminina entre 1914-1926, e dos anincios do Mappin Stores divulgados no’ jomal “O Estado de Sto Pauls, no periodo 1913-1929. Procuramos também identificar as alteragées da sociabilidade feminina a partir de dois fatores fundamentais: a simplificagio do traje ocorrida por volta de 1914 € a instalagio da primeira loja de departamentos da cidade 1913 (um novo lugar para a pritica da sociabilidade feminina). Objetivamos, assim, demonstrar a importincia da moda ¢ das casas de moda na ampliacio do espaco aberto 4 presenca e A movimentacio da mulher na cidade de Sto Paulo, observando como a publicidade "vende" sociabilidade & mulher através dos aniincios da moda, da propria estratégia de atra¢io do consumidor inerente as lojas de departamento e ainda da légica de mercado que rege @ imprensa ferninina. Queremos demonstrar como os tradicionais papéis femininos de mile, esposa € dona de casa, acabam por relegar 4 mulher o papel de consumidora/provedora do lar, costurando-a assim A cidade e mais especificamente ao seu centro comercial formado pelas ruas Direita, 15 de ‘Novembro e Sio Bento, conhecido como "Triangulo”. Abstract ‘This study aims at investigating the relationship of middle-class and elite women in Sao Paulo with public space, in the period 1913-1929. This will be done through a study of fashion editorials signed by Marinette, published in the magazine Revista Feminina (from 1914 to 1926) and Mappin Storer ads published in the newspaper O Estado de Sao Paulo (from 1913 to 1929). We sought to identify the Changes in women’s sociability looking at two fundamental elements: the simplification of women’s wear that occurred around 1914 and the opening of Sao Paulo's first department store in 1913, which became then a new place for feminine sociability in the city. We had thus the objective of demonstrating the importance of fashion and fashion houses in the growth of the presence of women in Sao Paulo’s public space, observing the following elements: how the publicity of that period “sells” sociability to women through fashion adverts; the strategies of consumer attraction inherent to department stores; the market logic that underlies the feminine press. We want to show how traditional feminine roles, such as mother, housekeeper and wife, end up restricting women to a place of consumer/house keeper, creating for her a place in the city, more specifically in its commercial center, known as the “Triangle”, formed by the conjunction of the Direita, 15 de Novembro and Sao Bento streets UNICAMP AGRADECIMENTOS BIBLIOTECA CENTRA SECAO CIRCULANT 4 muitas pessoas a agradecer e tenho consciéncia de que sera impossivel traduzir tamanho da minha gratidao em palavras, pois no h4 como agradecer o carinho, a atengio € a dedicacio de tanta gente a esse trabalho e a mim no periodo em que o estive realizando. De qualquer forma, vou tentar expressar aqui um cadinho da minha gratidao. Eu gostaria de comecar pela professora (minha "fada madrinha" - como bem definiu Vavy) Leila Mezan Algranti, por acreditar em mim desde 0 principio, pelo grande estimulo que deu a esse trabalho e por ter me apresentado 4 Vavy. Sem tudo isso esse trabalho no teria acontecido. Meu muito obrigado a ajuda fundamental, do amigo Guilherme Amaral Luz, que realizou uma leitura muito cuidadosa deste trabalho quando ele ainda era um projeto. ‘Ao NIDEM e em especial a0 Alexandre Bérgamo, sempre me dando dicas pra ld de importantes, como por exemplo 2 existéncia do Arquivo do Mappin! A Iraci Santos pelo carinho e presteza com que me atendeu nas indimeras vezes que estive no Arquivo do Mappin, possibilitando que eu finalizasse a minha pesquisa mesmo em. meio a toda a instabilidade pela qual a empresa passava, ¢ também por tomar minhas viagens de trabalho momentos muito agradaveis. A Zuleika Alvim, por me receber tio prontamente ¢ pelo valioso depoimento. A Ilka Stern Coehn, sempre tio simpatica no empréstimo do livros pra li de especiais. A Professora Stella Bresciani, pela preciosissima dica sobre os antincios do Mappin. ‘Aos ptofessores Michael Hall e Helofsa Pontes pela leitura cuidadosa do exame de qualificagio e pelas dicas, indicagbes bibliogrificas ¢ de fontes. A ambos e professora Guita Grin Debert pela atenta leitura da dissertacio. As minhas vizinhas Samira, Adriana ¢ Uliana, pela companhia nas caminhadas, almocos e principalmente pelo apoio nos momentos de inseguranga ¢ stress. Obrigado por tudo meninas! A Dani Manini, e 20 Marko Synésio, pela super forca que me deram. A Janaina Dasmaceno e 20 Cliudio da Silva pela amizade incondicional (¢ ao Cliudio também pelas trilhas sonoras da dissertacao). E também ao Paulo Tremacoldi, Silvia Cristina, Socorro Cipriano, Elisa Nébrega, Valéria Augusti, Maria Irian, Regina Paz Marcelo Bressanin, vocés foram fundamentais. ‘A Milena Martins, um agradecimento especial, no s6 pelas intimeras leituras dos meus textos € correcao ortografica desta dissertacdo, mas principalmente pelo suporte que me dew nas horas mais dificeis, vocé é uma amiga e tanto. A Vavy Pacheco Borges, pela orientaco cuidadosa, e também pela seguranca, dedicacio e carinho com que sempre me recebeu em Sio Paulo. E. ainda por propiciar que a realizagio deste trabalho em todas as suas etapas fosse, antes de tudo, um grande prazer. Ser sua orientada é sem cuivida um grande privilégio! Um muitissimo obrigado enorme 4 minha pequena, porém especialissirna, familia: Tia Célia, Marilda, Odete, Valéria, Papai e Mari. E especialmente ao Luizinho pela atencio, paciéncia e disposicio sempre! Quem mais me ensinaria a manipular as imagens passo a passo via Embratel?! As minhas duas mies (Odete da Silva, que criou a menina, e Mari Bonadio, que cuidou da adolescente), cada uma & sua maneira, sempre tio amorosas, obrigada por todo catinho, cuidado ¢ atengio. Voets sao muito especiais. ‘Ao meu amado pai Geraldo Bonadio, pelas familias que me proporcionou, pelos livtinhos que me dava quando eu era crianca (sem Stella Carr eu nfo chegaria a Jurgen Habermas), por todas as palavras de carinho e por ter acreditado sempre em mim (¢ por ler meus textos também!). Pai, esta dissertagdo é para vocé. Po fim, meu agradecimento 4 CAPES e 4 FAPESP pela concessio das bolsas, apoio sem o qual nao teria sido possivel a realizagio desta dissertacio. SUMARIO AGRADECIMENTOS 05 INTRODUGAO 09 a.Capirutod 1, MODA, CONCEITOS E FUNCOES a 1.2. ALTA COSTURA E PODER DO “CRIADOR” 39 2. SRO PAULO ENTRA EM MODA 44 3. MODA, APARENCIA E HISTORIOGRAFIA SOBRE AS MULHERES NO | BRASIL. 53, 2. CaPETULO 2 63 4. LoJas DE DEPARTAMENTO 63 1.2. COMERCIO PAULISTANO: C454 ALLEMA E OUTROS ESTABELECIMENTOS_72 2. UM PASSEIO PELO TRIANGULO, 72 2.1 O MAPPIN STORES OU O PALAIS DE LA FEMME 78 2.2. DO TRIANGULO PARA O “MELHOR DO TRIANGULO”: SAO BENTO COM RUA DDIREITA, AS NOVAS INSTALAGOES DO MAPPIN STORES. 89 3, ESTRATEGIAS DE VENDA E ATRACAO DO CONSUMIDOR, 96 3. CAPITULO 3 117 1. A MODA COM VERNIZ DE “MODERNIDADE” 117 1.2, NOVAS ROUPAS, NOVAS IDENTIDADES. 124 2. REVISTA FEMININA 138 2. 1. O CONTEUDO. 141 3. UM “KISTO SEBACEO” NO MEIO DA REVISTA.. 149 CONSIDERAGOES FINAIS 167, 4, FONTES E BIBLIOGRAFIA 171 5. CREDITO DAS ILUSTRAGOES 185 INTRODUGAO 1. MULHER E ESPAGO PUBLICO: COSTURAS POSSIVEIS O objetivo desta dissertagdo de mestrado ¢ constatar, a partir da observagio dos antincios do _Mappin Stores, publicados no jornal O Estado de S. Paulo, e da crénica mensal especializada da Revisia Feminina, de que maneira a moda, no contexto da cidade de Séo Paulo entre os anos 1914-1929, costura firmemente as mulheres das “classes médias e altas" & cidade, ampliando o leque da sociabilidade daquele grupo e conseqiientemente seu contato com o espago piiblico. Seria evidente exagero dizer que anteriormente a esse periodo essas mulheres nao saiam de casa. Memérias ¢ mais recentemente pesquisas nos do conta do habito femninino de sai as compras, desde meados de 1870! Mas, a partir da instalacio da primeira grande loja de departamentos da 1Tais dados sio rlatados pelo memorialista Alfredo Moreira Pinto; ao descrever as ruas principais de Sio Paulo em 1900, Alfredo Moreira Pinto, inicia pela Quinze de Novembro “E a prindpal rua da cidade, a de mais commerdio « animagio”. Por ali, descreve, passavam os “bonds efaustosos trees tiradas por saberbos cavalbs de rapa”, ponto de convergéacia daquilo que 2 capital paulista tisha de mais seleto, politicos, jomnalistas, académicos, comerciantes, excursionistas, enfim, gente de todas fas racas e classes se aglomeravam nas portas das lojas. “Ogue porém— destaca 0 escritor ~ dé a essa rua nom tom alegre ¢estivo ¢ grands quantidade de jormasas pasiistanas ¢ itlianas que percorren-ta em todas as direies,trojande, wmas reas wiletes, otras 4m ‘estudrio simples, mas eegante, todas alegres, riumbas ¢ distinginda-se pela excessiva gentleva ¢ amabilidade com que se digem aos canhecidos que exconiram”. CE PINTO, Alfredo Moreira. A cidade de emt Sdo Patio em 1900, Sao Paulo: Governo do Estado de Sto Paulo, 1979. P. 224-225. E reafirmadas no estudo Modemizando a desigualdade de Susan Besse, no qual relata que ¢ modemizacio da infra-estnatutra econémica das grandes cidades (pavimentacio das nuas, coletas de lixo, iluminacio pis, servigo regulac de bondes) propiciou um espaco pablico mais convidativo as mulheres das elites. Por volta de 1870 as mulheres comecam a ser vistas em mimero cada vez maior em parques, casas comerciais ¢ saldes de ch, ainda que cidade, bem como do inicio da circulacio da primeira grande revista dirigida ao piblico femninino, a Revista Feminina, cria-se um novo contexto que reconfigura e amplia os espacos de sociabilidade da mulher das classes sociais mais abastadas. Além disso, as novas formas da roupa — saias mais curtas, troca dos espartilhos por cintas ¢ sutias, simplicidade dos vestidos, agora de corte reto, cintura baiza e soltos no corpo ~ propiciam maior conforto ¢ liberdade de movimento as mulheres, facilitando-lhes a citculagdo no espaco piiblico, na medida em que as saias nio varrem mais o pé do chao e a auséncia de espartilhos toma possivel as senhoras aceitar um gole d'égua nas reunides sociais.? © novo modo de trajar amplia a visibilidade feminina, introduzindo saias curtas e decotes generosos (estes restritos aos trajes de saint). A visibilidade feminina aumenta em razio da maior exposicio do seu corpo através das novas formas e fendas das roupas e também porque a moda se associa a varias outras novidades, como emergentes padrées publicitirios, formas inowadoras de comércio e 0 status feminino de "consumidora/provedora”, elementos que associados ampliam a desenvoltura_e a movimentagio no espago piiblico. Os amincios das casas comerciais de moda convidam a mulher a comprar. A configuragio das casas comerciais se modifica, com 0 propésito de atrait a consumidora das mais variadas maneiras. Abastecer a casa, através das compras, passa a ser uma tipica tarefa delegada as mulheres citadinas. O mais importante é que, na medida em que passa a responder pelas compras da casa, ela pode, também, sair sozinha. Rapidamente a “tarefa" se transforma em passeio. A sociabilidade feminina amplia-se. A mulher das classes médias e altas passa a ser no apenas vista mas também Sempre em companhia de parentes ou empregadas. Ci BESSE, Susan. Modernizands a desgualdade. Reestruturajio da Tavologia de Ginera wa Brasil. Reestrcuraso da Ldsiogia de Genera no Bras 1914-1940. Sio Paulo: EDUSP, p. 19. 2 Bustos Ferieira recorda o martbio que as zeuniGes sociais eram para as saulhexes nos tempos dos espartlhos, “Dpais de cingide + apertade, madame somparscia confiant ¢risonha a wma festa onde no podia comer nem tomar um copa d’agua porque a campressio 10 ouvida por outros. Ainda que passe a maior parte do tempo no lar, ou seja, na esfera privada, niio mais se encontra “privada” da vida, no sentido que Hannah Arendt confere Aquela palavra, ou seja, 0 de privagio. Definindo o privado como o que é oposto a piblico, aquela pensadora entende que a principal diferenca entre as esferas piblica e privada seria "a diferenga entre o que deve ser exabido # 0 que pode ser ocultade.” © termo piblico, no sentido escolhido por ela, define dois fendmenos intimamente correlatos — embora nao perfeitamente idénticos. O primeiro fendmeno ~ "tudo 0 que vent a piiblico pode ser visto e ouside por todos e tem a maior divsleasia possivel”, induz 4 conclusdo de que a aparéncia — "aguilo que é visto e outdo por outros e por nés mesmos" — constituiria a rcalidade. Os scntimentos, na concepgao de Arendt, s6 ganham cariter de realidade na medida em que sio desprivatizados ¢ desindividualizados — em contraposicao 4 subjetividade dos mesmos quando privativos, ou ainda em oposi¢io a morte, sindnimo de "des-aparecimento”.* Piiblico seria ainda "o priprio mundo na medida en que 4 conum a todos nis ¢ diferente do lugar que nos cabe dentro dele’’ A condigo primordial para que identifiquemos mundo como pablico é a existéncia de um vinculo entre as pessoas. do aparbo digestivo nia Ibe permitia tal Eberiade”. Cf: FERREIRA, Barros. Meio seule de Séo Paulo, Sio Paulo: ‘Melhoramentos, 1954. P. 46. 3 Segundo Hannah Arendt, “Para o individuo viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituido de coisas essenciais a vida verdadeiramente humans: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto ¢ ouvido ‘por outros, privado de uma relacéo “objetiva” com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um Tnundo comum de coisas, ¢ privado da possibilidade de realizar algo mais pemmanente que a propria vida” C& |ARENDT, Hannah. A condido Humana, Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.68. + ARENDT, Hannah, Op. cit p. 82. S ARENDT, Hannah. Op. cit. p. 59-61. © Hannah Azendt assinaia a diferenga entre mundo/pibico terra/natureza, ressaltando que, em sua definicio, mando seria “ua produto das ms bamanas, come os regis realizado entre os qt janes habitam o mun fo peas bomen:". ARENDT, Fianna. Op. Git p. 62 uw Acrescentando as consideracées de Hannah Arendt aquelas de Richard Sennett ¢ Jiirgen Habermas sobre as categorias piblico e privado, é possivel ampliar ¢ tomar ainda mais evidente a reconfiguracio € ampliaglo da relacio das mulheres paulistanas das classes médias ¢ altas com 0 espaco puiblico, ou seja, a costura entre mulher ¢ espaco piblico através da moda, no periodo aqui considerado. Para Richard Sennett, piiblico, derivado do francés Je public, define uma “regiao especial da sociabilidade”, separada do Ambito da familia e ainda um dominio que inclui uma diversidade relativamente grande de pessoas conhecidas e/ou estranhas. O autor destaca que ainda no século XVIII piblico passa a ser associado a cosmopolitismo: “De acordo com 0 emprego francés registrads em 1738, cosmapolita é um homem que se movimenta despreocpadancente em meio @ diversidade, que estd a vontade emt situagbes sem nenhum vincula com aguilo que the é familiar” ¢ completa “Dessa maneina, puiblico veio a siguificar uma vida que se passa fora da familia ¢ dos amigos intimos; na regizo piiblica, grupos soctais campplexcos e dispares teriam de entrar em contato inelutavelmente. E. 0 centro dessa vida piiblica era a capital”? Essas novas priticas tomariam félego maior a partir da ampliaco de espacos de sociabilidade ou, como prefere o autor, “comodidades urbanas": parques, clubes, bares e especialmente cafés! Em Mudanga Estnaural da Esfera Priblca, Siegen Habermas apresenta algamas definigdes que a palavra recebeu ao longo da Histéria do Ocidente. Aqui interessa registrar suas reflexdes a partir do petiodo a que denomina "o outono da Idade Média", 0 momento em que piblico pode ser definido por oposiso a privado. Na sociedade feudal nao havia uma separaco nitida entre as duas esferas 7 Sennett, p. 31-32. * Sennett, p.108. ° O autor ressalta que “Durante 2 Idads Média exrapéia, a contraposio entre publicas¢ privatus, embora carrente, na tinha vincilo de obrigatoritdade” Cf HABERMAS, Jiiegen. Mudanga Estrutural da Eefora Pidblica. Imestigagies quonta a wma categoria da soaedade burguesa Rio de Janeito: Tempo Brasileiro, 1984. p. 17. na metade do século XVI que surge, na Alemanha, a palavra “privat”, derivada do latim privatus: "Privat significa estar excluido, privado do aparelho do Bstado, pois "publica" rfere-se entrementes ao aparelbo do Estado formado com 0 Absolutiome e que se objetiva perante a pessoa do soberano.".° Assim, os servidores do Estado tornam-se pessoas piblicas, pois exercem atividades piiblicas em funcdes piiblicas. Em contrapartida, existem pessoas privadas, cargos privados, negdcios privados, casas privadas ¢ por fim o homem privado. “A autoridade esto contrapostos os siditos, dela exceluidos; aguela serv, diese, ao bem comum, enguanto estes perstguem seus interesses privados’®” E apés a Reforma, mais precisamente no século XVIII, que Habermas localiza 0 marco decisivo na separagio entre publico e privado, determinado pela "chamada lberdade de crenca {que assegura bistoricamente a primeira esfera da autonomia privada”. Com a polarizacao do poder principesco € conseqtiente a separagio entre orgamento piblico e bens privados do senhor fundiério, a instauragao da crescente burocracia, a criagio do exército e, em parte, da Justica, vo se objetivando "ar instituigies do poder publica perante a esfera cada vex mais privativa da corte”.” Simultaneamente a essa contraposicao "publico/privado", é possivel detectar uma terceira categoria: a formacio da esfera publica, entendida pelo autor como © "fincionamento regulamentado, de acordo com competincias, de um aparelho munide do monopétio da utilizagtio leitima da forga. Nesse sentido € possivel dizer que as pessoas privadas, submetidas a uma regulamentagio, configuram um puiblico que compée a esfera privada; esta, por sua vez, seria "a eyra das pescoasprivadas reunidas num pilin”. 1© HABERMAS, Jiiegen. Assumindo sentido semelhante aquele utiizado aa Inglaterra (prizat) ¢ Franga(pnié) do mesmo pesiodo: wot doling public fice or oficial position ox er francés “sans empoi Ori Vela ge dans les affaires publiguts”. Op. cit. p. 24. 5. HABERMAS, Jirgen. Op. Cit. p. 24. Idem. p. 25. 1 Idem. p. 32 4 Idem. p. 42. Esse piblico formado por burgueses é antagénico ao piblico instituido pelo Estado, ou seja "o piiblico da esfera prtbical”™*. Jurgen Habermas ilustra tal construgio recorrendo a0 desenvolvimento da Imprensa ~ "a instituigao por exceléncia da esfera publica”. Oriundos do sistema de correspondéncias privadas, os jornais nascem com © intuito de tornar ptiblicas informagées privadas, disponibilizando a troca de informagbes comerciais. Num segundo momento, mais precisamente na passagem do século XVIII para o XIX, a "imprensa de informagio" evolui para a chamada “imprensa de opiniio", caracterizada pelo jornalismo literério. Naquele momento, "os jornais passaram de meras insttuigies publicadoras de noticias para, além disso, serem porta-vozes e condutores da opinido psiblica, meios de lnta politico partidéria." No século XIX, com a insergio cada vez maior de antincios, a imprensa, que até entio "fora instituiao de (pessoas privadas enguanto pulblico, toma-se instituigao de determinados membros do publica enquanto pessoas privadas — on seja, pértico de entrada de privilegiados interesses na esfora piblica." “ Em contrapartida, a casa e por exceléncia a familia burguesa — os burgueses so considerados pessoas privadas pois ndo governam ¢ se relacionam na esfera piiblica ~ configurariam o espaco da privacidade, “no sentido moderno de uma interioridade satisfita!’, cessalta ainda Jiirgen Habermas.” Neste trabalho pensamos as mulheres das classes médias ¢ altas como pessoas ptivadas que constituem um piblico consumidor por exceléncia, na medida em que possuem tempo e poder aquisitive. © Mappin Stones se caracteriza como um espaco privado: aberto ao pablico em determinados horirios, esse lugar possui vitrines e um prédio que se faz visivel na cidade, mesmo quando de portas fechadas, e se propde a associar a imagem de seu prédio & cidade em uma série de antincios importantes, ampliando também a relagio de seus consumidores com 0 espaco puiblico 15 HABERMAS, Jiirgen. Op. cit. p. 38. 6 Idem. p. 218. citadino. A abernura do salio de ché do Mappin Stons ¢ a sua associagio pela publicidade com um espaco familiar para que as consumidoras fizessem uma pausa aps as compras seria um exemplo de “comodidade urbana" ou espaco de sociabilidade feminina, aberto pela moda. Nao sé a loja se notabilizava pela sua secio de modas, como era também no interior do seu Salio de Cha que se realizavam semestralmente badalados desfiles destinados a tornéla conhecida'*. Desta forma é possivel afirmar que o Mappin Stores seria um espaco para o desenvolvimento da sociabilidade femninina pois, 20 realizarem suas compras na loja, as mulheres tomavam contato com vendedores, outras consumidoras, ¢ ainda ao passear pela cidade, vendo as vitrines de moda, tomavam também contato com pessoas estranhas. ‘A Revista Feminina apresenta elementos que ajudam a corroborar os pressupostos acima. Se a Ioja de departamentos convida as mulheres a sairem de casa para conhecer as novidades e tomar um ch no seu salio, 2 revista, além de veicular a propaganda do Mappin Stores, estimula a relagio da mulher com espago publico da cidade, através de uma colunista de moda simpatica 20s novos trajes, que nao se cansa de ressaltar as maravilhas do conforto ¢ funcionalidade das saias curtas (, por -vezes, ainda lembra as leitoras que tais saias podem ser encontradas na Casa Mappin!).” W Idem. p. 43, 18 possivel tragar um paralelo entre o Salo de Chi do Mapnin e 0s cafés parisienses. Sem adentrar na especificidade de cada um ¢ tomando apenas os pontos em comum, é possivel utilizar para ambos a afirmacio de Jofre Dumazedier, segundo 0 qual este ambientes sio privilegiadamente loceis que se “opGem 20 isolamanto social” ou seja “ls atts de boissons et particalir ls cafs apparaiscaient “avant tout comme wn lew de relations socials et échonges ctu... se rattachan somes‘ a wre proesionelle faible ou extrafaribale, sit paur la compenser, La prolonger ow Cowtlir”, ef dans tous le cas, tls ’opposaiont ‘a Tisolment soda!” Cf DUMAZEDIER, Jofee et A. Sufiert. Fonaions socials et ulareles de eof. In: Lianne sodalogigue, PUB, Paris, 1962. APUD: LANGLE, Henry-Melchior de. Le Pati monde des cafés et débts parisienses au XIX. Siéde, Pasis: PUF, 1999. © Casa Mappin & 0 denominacio utlizada por Marinette, 2 cronista de moda da Reiita Feminina, para se referic & Loja de departamentos, cujo nome oficial & época era Mappin Stores, como explicam Solange Peirio e Zuleika Alvim. Na maior parte dos amincios é assim que a loja faz sefecéncia a si mesma, mas foram encontradas algumas excecSes, como 08 amiacios de 05/07/1918 e 25/05/1922, no qual pode-se ler “V.S. pagari menos na Casa Mappin” “Trajado com distingao na Casa Mappin”. Nas memérias consultadas a nomenclatura também varia. Laura Rodsigo Octavio refere-se loja como Mappin Stor, Exasto de Toledo por sua vez usa apenas Mappin. Aqui utiizaremos o nome oficial ds loja para referir-se a ela. Essa escolha se deve justiica por dois motivos: 1) Essa era 2 denominacio mais frequente nas fontes Como veremos de modo mais detalhado no capitulo 3, a propria revista abre suas portas para a freqientacio feminina, através da venda de produtos, convites para conhecer a redagio e biblioteca instalada em sua sede, tudo isso sem contar © espago aberto as cartas e opinides das Ieitoras em mais de uma de suas segdes. A revista € um "pirtico de entrada de priviligiados interesses na sera pitbica': dvulga a moda, publica antincios da Casa Mappin e leva ambos para dentro das casas de suas leitoras. No momento em que compra um exemplar do periédico, 2 mulher leva consigo também uma série de "produtos" associados 4 feminilidade: moda, remédios € cosméticos, por exemplo” 2. DE LOUISE BROOKS A RITA HAYWORTH: MARCOS CRONOLOGICOS ‘A moda colabora em muito na reconfiguracio da relagio das mulheres com 0 espaco piblico, na cidade de Sao Paulo entre 1913 e 1929. Isso pode ser verificado se somarmos as novas formas ¢ recortes das roupas as imagens propagadas pela publicidade destas. ‘A inauguragio do Mappin Stores em Sao Paulo em novembro de 1913, na condigao de primeira loja de departamentos da cidade, o inicio da circulagio da Revista Feminina e a deflapracio da Primeira Guerra em 1914 levaram-me a situar o inicio desta pesquisa em 1913. publicitisias, 2) O nome Mappin Stores faz referéncia & primeira fase da loja no Brasil referente 20 periodo 1913-1939 quando esteve sob 0 comando exclusivo dos ingleses, Em 1939, a loja amplia o quadro de seus acionistas, a0 qual além do proprio Mappin Stores (Brazil LTDA), somam-se 3 antigos membros de sua diretoria (Charles Octavius Frank, Wiliam Era Dawson e Bertie Frank Geenwood), 0 italiano Silvio Cicareli, 0 brasileiro Tito Pires e o ameticano Alfred Sim sécio ‘majoritirio. Nessa ocasido a loja passa a se chamar Casa Anglo-Brasilira. Cf: ALVIM/PEIRAO, Zuleika, Solange. Mappin 70 anos. S40 Paulo, Ex Libtis, 1985. p. 97. TOLEDO, Exasto. A didade madera, / ALVIM, Zuleika & PEIRAO, Solange. P. e OCTAVIO, Laura. Op. Git. p. 239, 242. 2 Uma anilise mais detalhada sobre 0 assunto pode ser encontrada no capitulo 3 desta dissertacio. 16

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