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r e v i s ta

direitos
humanos
Candido Portinari

MARCIO POCHMANN

VICTOR ABRAMOVICH

ISRAEL PEDROSA

MILTON RONDÓ FILHO

JANE FELIPE

MARIA CAROLINA TIRABOSCHI FERRO

ANTÔNIO JOSÉ FERREIRA

MARILENA CHAUí

Mirian fichtner

08
J A N EIR O 201 2
Candido Portinari
A publicação da edição número 8 da Revista Direitos Humanos é mais e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero
um desafio alcançado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência (Geerge), utiliza o conceito de pedofilização para analisar determinadas
da República. Ela teve sete edições publicadas desde dezembro de 2008, a práticas em torno da erotização dos corpos infantis, a partir da análise de
partir da importante iniciativa do então ministro Paulo Vannuchi. Já naquele conteúdos de sites dirigidos a esses públicos.
momento, escrevia seu idealizador que a revista “[...] tem caráter institu- A pesquisadora Maria Carolina Tiraboschi Ferro mostra em seu artigo
cional, mas tal identidade não deve resultar em oficialismo chapa branca. como o protagonismo das pessoas em situação de rua na luta pelos seus
Governos democráticos não podem temer a convivência com a crítica. direitos está pressionando a mudança do enfoque das políticas públicas
A vocação da revista é desenvolver reflexões e um diálogo franco com a voltadas para essa população. Na mesma direção, o artigo do secretário
sociedade civil. Seu formato e linguagem buscam um ponto intermediário nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Antônio
entre a elaboração acadêmica e aquela mais sintética das lutas populares.” José do Nascimento Ferreira, discorre sobre a luta das pessoas com
Penso que reafirmamos o caráter da revista nestas exatas palavras, querendo deficiência para o reconhecimento, no Brasil e no mundo, da indissolu-
que ela cada vez mais amplie seu caráter de divulgação e permita, a um só bilidade dos direitos humanos.
tempo, trazer à reflexão temas importantes de direitos humanos e provocar A filósofa Marilena Chauí, entrevistada desta edição, comenta o atual
iniciativas em todos os cantos de nosso país e do mundo. cenário mundial para os direitos humanos, fala de suas apreensões em
Recomposto pela natural transição de governos, o seu Conselho relação ao crescimento da violência, da exploração, do tráfico de armas,
Editorial é formado por representantes da Secretaria, na qualidade de das guerras, entre outras, e de seu desânimo frente à falta de propostas
membros natos, e por conselheiros convidados, que gentilmente aceitaram para mudança desse quadro. Quanto ao cenário brasileiro, sua análise
o convite, como Celso Lafer, Emir Sader, José Geraldo de Sousa Junior, abrange os avanços obtidos nos últimos anos e também os desafios que
Marco Antonio Rodrigues Barbosa; Marco Aurélio Garcia, Marcos Rolim, se apresentam à sociedade e ao Estado brasileiro para a superação de
Margarida Pressburger, Paulo César Carbonari, Paulo Vannuchi, Ricardo suas estruturas históricas de desigualdade e violência estrutural.
Brisola Balestreri, Sérgio Haddad e Wanderlino Nogueira Neto. O belíssimo ensaio da fotógrafa Mirian Fichtner ilustra uma faceta
Nesta edição, o primeiro artigo é assinado por Márcio Pochmann, surpreendente da religiosidade no sul do país, onde, segundo os dois
presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor últimos censos demográficos do IBGE, está o maior número de adeptos
licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e declarados de terreiros no Brasil. Ao mesmo tempo, o preconceito reli-
de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Nele, gioso criminaliza essas manifestações e oprime seus seguidores. Esse
sob a ótica da economia do trabalho, o economista analisa os recentes ensaio marca a introdução do tema do respeito à diversidade religiosa na
avanços dos direitos humanos no Brasil – que abrangeram as dimensões agenda da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
sociais, econômicas, culturais, civis, políticas e de terceira geração –, e Não temos palavras para agradecer a João Cândido Portinari, incan-
o processo de mobilidade na base da pirâmide social brasileira. sável guardião e divulgador da obra de seu pai, pela generosidade de
Em seguida, temos o artigo de Victor Abramovich, secretário execu- autorizar para a ilustração da revista as imagens dos painéis Guerra e Paz
tivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul e dos estudos do artista para a realização das obras entre 1952 e 1956.
(IPPDH), no qual ele discute os direitos de crianças e adolescentes mi- Aproveitamos a oportunidade para antecipar nossas homenagens à vida
grantes e comenta o ineditismo da solicitação de opinião consultiva à e à obra de Portinari.
Corte Interamericana de Direitos Humanos apresentada em conjunto pela Fechando esta edição, temos uma seção com informações sobre
Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. alguns dos programas, projetos e atividades da Secretaria e a reprodução
Em memória dos cinquenta anos da morte de Portinari, no dia 6 de do texto da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
fevereiro de 2012, e para marcar o retorno ao Brasil, por um período três Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, primeiro instrumento normativo
anos, dos painéis Guerra e Paz, publicamos o artigo do artista plástico e internacional a ser internalizado pelo Brasil na importante categoria de
crítico de arte Israel Pedrosa. Esses painéis, encomendados a Portinari pelo emenda à Constituição.
governo brasileiro para doação à Organização das Nações Unidas (ONU), na Desejo a todas e todos uma boa leitura. Que essa revista fortaleça 3
década de 1950, decoram o hall de entrada de sua sede em Nova York, EUA. nossa disposição de luta pelos direitos humanos!
Revista Direitos Humanos

O tema da reforma agrária e suas relações com a política externa


brasileira é tratado no artigo de Milton Rondó Filho, ministro da carreira Brasília, janeiro de 2012.
diplomática e coordenador-geral de Ações Internacionais de Combate à Maria do Rosário Nunes
Fome do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. No artigo seguinte, Ministra de Estado Chefe da Secretaria de
a educadora Jane Felipe, professora da Faculdade de Educação da UFRGS Direitos Humanos da Presidência da República
Candido Portinari

06 Mudanças sociais, direitos


humanos e desenvolvimento

Marcio Pochmann

Arquivo pessoal

10
Iniciativa do Mercosul
sobre direitos das crianças
migrantes

Victor Abramovich

Arquivo pessoal

14 O pintor do novo mundo

Israel Pedrosa

Arquivo pessoal

21 Direito à terra: dimensão


internacional

Milton Rondó Filho

Arquivo pessoal

31
Pedofilização como prática
Revista Direitos Humanos

social contemporânea nos sites


para crianças

Jane Felipe

Arquivo pessoal
Expediente
Presidenta da República
Dilma Rousseff

Política Nacional para a Vice-presidente da República

35
População em Situação de Michel Temer
Rua: o protagonismo dos Ministra de Estado Chefe da Secretaria
invisibilizados de Direitos Humanos da Presidência da
República
Maria do Rosário Nunes
Maria Carolina
Secretário-Executivo
Tiraboschi Ferro Ramaís de Castro Silveira

Arquivo pessoal Conselho Editorial


Maria do Rosário Nunes (Presidenta)
Antônio José Ferreira
Bruno Gomes Monteiro
Plano Viver sem Limite: a Carmen Silveira de Oliveira

40
conquista de direitos pelas Celso Lafer
Christiana Galvão Ferreira de Freitas
pessoas com deficiência no Emir Sader
Brasil Gleisson Cardoso Rubin
Fábio Balestro Floriano
José Geraldo de Sousa Junior
Antônio JosÉ Ferreira Marco Antonio Rodrigues Barbosa
Marco Aurélio Garcia
Marcos Rolim
Margarida Pressburguer
Maria Ivonete Tamboril
Arquivo pessoal Nadine Monteiro Borges
Paulo César Carbonari
Paulo Vannuchi
Ramaís de Castro Silveira
Ricardo Brisola Balestreri

44
Salete Valesan Camba
Sérgio Haddad
Wanderlino Nogueira Neto
Entrevista
Coordenação Editorial
Flávia Carlet
Marilena Chauí Maria Adelaide Santana Chamusca
Ramaís de Castro Silveira

Revisão
NJOBS Comunicação
Elizângela Pires Bindá
Colaboração
Valéria Rabelo

48
Projeto Gráfico
Fabrício Martins e Wagner Ulisses – Liberdade de
Expressão - Agência e Assessoria de Comunicação
Imagens
Diagramação
NJOBS Comunicação
Mirian Fichtner
Imagens da Capa e Miolo
Candido Portinari

Fotos
Mirian Fichtner (ensaio fotográfico)
Arquivo pessoal Elizângela Pires Bindá

60
SCS-B, Quadra 9, Lote C, Edifício Parque Cidade
Corporate, Torre A, 10ª andar
direitoshumanos@sdh.gov.br
Serviços www.direitoshumanos.gov.br
Siga-nos no twitter: @DHumanosBrasil

ISSN 1984-9613
Tiragem: 15.000 exemplares 5

68
Revista Direitos Humanos

Direitos Humanos é uma revista quadrimestral, de distribuição


gratuita, publicada pela Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República do Brasil.
Documento internacional
As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclu-
siva dos autores e não representam necessariamente a posição
CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
ou do Governo Federal.
OS DIREITOS DAS PESSOAS COM
Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou
DEFICIÊNCIA E PROTOCOLO FACULTATIVO total desta obra, exceto de fotografias e ilustrações, desde que
citada a fonte, vedada a venda ou uso para qualquer fim comercial.
Candido Portinari

Marcio Pochmann, professor


licenciado do Instituto de Economia e
do Centro de Estudos Sindicais e de
Economia do Trabalho da Universidade
Estadual de Campinas. Presidente
do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea).

6 Mudanças Sociais,
Direitos Humanos
Revista Direitos Humanos

e Desenvolvimento
A
origem e a evolução da noção de direi- Analisando-se a questão sob a ótica sobre os desafios embutidos nessa mudan-
tos humanos têm como pano de fundo da economia do trabalho, por exemplo, ça. Na década de 1970, o Brasil também
a afirmação de liberdades, primeiro constata-se que a primeira década do passou por grandes transformações base-
negativas, depois positivas. Entendidos ini- século XXI responde pela maior expansão adas em um forte ritmo de expansão eco-
cialmente como resultado da abstenção da quantitativa de ocupações dos últimos 40 nômica decorrente do dinamismo do setor
ação do Estado sobre a vida dos indivíduos, anos, com saldo líquido 44% superior ao industrial, que foi o responsável também
os direitos humanos, em um relativamente verificado nas décadas de 1980 e 1990 e pela geração de grande parte das ocupações,
curto espaço de tempo, alargaram o seu es- 22% superior à década de 1970, confor- sobretudo de maior remuneração – identifi-
copo para se tornarem, também, o resultado me dados do IBGE. Além disso, verifica-se cado por alguns como o “milagre econômico
da ação do Estado – enquanto expressão da que a maior parte dos postos de trabalho brasileiro”. Concomitantemente, assistiu-se
vida política das sociedades –, no sentido de gerados concentrou-se na base da pirâ- à mobilidade de vários segmentos sociais,
produzir aquilo que os mercados não podem mide social, uma vez que 95% das vagas sobretudo daqueles provenientes do meio
produzir: segurança econômica, bem-estar abertas tinham remuneração mensal de até rural, em função da modernização conser-
social e garantia de direitos difusos, como 1,5 salários mínimos – o que significou o vadora e selvagem do campo. Todavia, como
a um meio ambiente saudável, à verdade e à saldo líquido de 2 milhões de ocupações se depreende do esplêndido estudo interpre-
memória. Nesse sentido, os direitos humanos abertas ao ano, em média, para o segmento tativo de Mello e Novais (2009) acerca do
são, inevitavelmente, uma construção histó- de trabalhadores de salário de base. Nas impacto da alteração das forças produtivas
rica, na qual movimentos de reestruturação faixas dos trabalhadores sem remuneração sobre o conjunto da sociedade brasileira
econômica, social e política – assim como e dos acima de 3 salários mínimos mensais nesse período, a força do modo de produção
de atores engajados que, em dado momento, houve destruição líquida de ocupações, capitalista intercalado com o autoritarismo
ousam desafiar o status quo – são particu- sendo de 108 mil vagas e de quase 400 levou à conformação de singulares anoma-
larmente determinantes. mil, em média ao ano, respectivamente. lias de exclusão social no país.
Essa observação é importante quando No segmento dos ocupados pertencentes O conhecido livro de Sader (1988),
se trata de analisar os direitos humanos no à faixa de rendimento de 1,5 a 3 salários por sua vez, indica como a prevalência
Brasil pós-Lula. Como se sabe, o tecido mínimos mensais houve a geração média do elemento industrial combinada com a
social e econômico brasileiro foi marcado anual de 616 mil postos de trabalho. mobilidade social levou à formação de um
por uma verdadeira metamorfose no perío- Em função disso, a estrutura da distribui- novo sujeito social, responsável pelo pro-
do entre 2003 e 2010, particularmente após ção dos postos de trabalho segundo as faixas tagonismo da luta pela redemocratização
2006. De um lado, esse período aprofundou de remuneração no ano de 2009 aproximou- e por uma nova forma de fazer política no
a realização dos direitos humanos – nas suas -se à registrada em 1980, com forte peso Brasil. Em meio às dificuldades cotidianas
dimensões sociais, econômicas e culturais, para as ocupações na base da pirâmide so- da vida em uma grande metrópole como
sem sombra de dúvida, mas também civis, cial. A recuperação do valor real do salário a São Paulo da década de 1970, as clas-
políticas e de terceira geração. Por outro lado, mínimo, por sua vez, tem contribuído deci- ses populares recriaram as condições de
deixou como legado um notável processo de didamente para proteger e elevar o piso do organização social e ajudaram a renovar o
mobilidade na base da pirâmide social brasi- poder de compra das remunerações desses sentido da política. Problemas encontrados
leira que tem sérias implicações para o futuro trabalhadores que se encontram nos postos nos locais de trabalho ou de moradia eram
dos direitos humanos no país e que ainda de trabalho em profusão nos setores mais transformados em plataforma do movimento
não restou bem compreendido pelos ana- dinâmicos da economia nacional – ou seja, social reivindicativo, capaz de motivar con-
listas e formuladores de políticas públicas. no setor terciário, seguido da construção civil flitos e lutas de empoderamento de novos
A leitura acerca do surgimento de uma “nova e indústrias extrativas. Pelas mesmas razões, agentes sociais.
classe média”, aliás, ajuda a obscurecer a uma parcela considerável da força de trabalho Mesmo com o contido nível educacional
complexidade daquelas mudanças – embora superou a condição de pobreza, transitando e a limitada experiência profissional, as novas 7
forneça uma gramática atrativa, seja para a para o nível inferior da estrutura ocupacional ocupações de serviços absorvedoras de enor-
Revista Direitos Humanos

classe política, seja para o setor produtivo, de baixa remuneração. mes massas humanas resgatadas da condição
seja ainda para setores da intelectualidade Uma perspectiva histórica, no entanto, de pobreza permitem ascensão social inegável.
que encontram um novo objeto de estudo e pode ser – mais uma vez – instigadora de Mas a experiência de ascensão não é capaz de
de presença na cena pública. uma reflexão, tanto sobre a natureza quanto afastar esses indivíduos da condição de classe
Mudanças Sociais, Direitos Humanos e Desenvolvimento

trabalhadora1. E, seja pelo nível de rendimento,


seja pelo tipo de ocupação, seja pelo perfil e
atributos pessoais, o grosso da população em Seja pelo nível de rendimento, seja
processo de ascensão social não se encaixa
em critérios sérios e objetivos que possam ser
pelo tipo de ocupação, seja pelo perfil
identificados rigorosamente como de classe e atributos pessoais, o grosso da
média. De fato, embora tenha havido queda
significativa no número de pessoas em con-
população em processo de ascensão
dição de pobreza – de 37,2% para 7,2% entre
2000 e 2010 –, a classe média praticamente
social não se encaixa em critérios sérios
não sofreu alteração considerável; manteve-se e objetivos que possam ser identificados
estacionada na faixa de 1/3 dos brasileiros.
Nesse sentido, os emergentes associam-
rigorosamente como de classe média.
-se fortemente às características gerais das
classes populares que, por elevarem o ren- dimento, ampliam imediatamente o padrão e a mídia comprometida com o pensamento
Candido Portinari de consumo. Não há qualquer novidade, neoliberal querem fazer crer, quando aludem de
pois se trata de um fenômeno comum, uma modo acrítico a uma “nova classe média”. De-
vez que trabalhador não poupa, gasta tudo o sejam, assim, além de gerar mais conformismo
que ganha. Mas, justamente por isso, o seg- sobre a natureza e dinâmica das mudanças eco-
mento das classes populares atualmente em nômicas e sociais do país, domesticar e alienar
ascensão apresenta-se, muitas vezes, como as possibilidades de, pela política, aprofundar
despolitizado, individualista e orientado para as transformações das estruturas do capitalismo
a maximização das relações de utilidade – ou brasileiro do início do século XXI.
para a “racionalidade” –, conforme busca É desnecessário salientar que essa pers-
estabelecer a sociabilidade capitalista e se pectiva é absolutamente preocupante para os
apresentar como homo economicus. Ficam de direitos humanos, pois representa a incapacidade
fora tanto a solidariedade social, que inspirou de a base política e simbólica da reprodução
o engajamento daqueles atores na luta por da sociedade orientar a sua base material numa
políticas universalistas de saúde, educação e direção condizente com a maximização das liber-
previdência – sobretudo no âmbito do processo dades individuais e sociais. Esse descolamento,
constituinte –, quanto a adesão a valores mais aliás, está na raiz da gravidade da atual crise
transversais, como o respeito à diversidade e internacional, que, diferentemente de 2008, tem
ao meio ambiente, sem os quais será muito no fator político um de seus elementos mais
difícil construir um verdadeiro projeto de de- determinantes. Os países europeus abdicam
senvolvimento para o país. de seus sistemas de proteção social em prol
A “saída de cena” de movimentos sociais em de ajustes estruturais, em muitos casos com
geral, tais como as associações de moradores e o apoio de eleitorados mais conservadores, às
bairros, os partidos políticos, as entidades estu- vezes tendendo ao fascismo e à xenofobia. Os Es-
dantis e sindicais, reforça o caráter fortemente tados Unidos, que há quase quatro anos elegiam
mercadológico que intelectuais engajados um presidente comprometido com a ampliação

8
1 Evidentemente, essa classe trabalhadora é qualitativamente distinta daquela que se constituiu nos anos 1970, dentre outras coisas porque sua vinculação ao mundo do tra-
Revista Direitos Humanos

balho se dá, predominantemente, no âmbito do setor de serviços ou terciário, enquanto que os trabalhadores da década de 1970 estavam vinculados de maneira preponderante
ao setor industrial ou secundário. Entre 1950 e 1980, o peso do setor secundário passou de 20,5% do Produto Interno Bruto (PIB) para 38,6% (aumento de 88,3%), ao passo
que a participação do setor primário reduziu-se de 29,4% para 10,7% do PIB (queda de 63,6%). Para o mesmo período de tempo, o setor terciário manteve-se relativamente
estável, com participação inferior a 51% do PIB. Neste início do século 21, contudo, somente o setor terciário tem registrado aumento na sua posição relativa em relação ao
PIB. Entre 1980 e 2008, o setor terciário cresceu seu peso relativo em 30,6%, respondendo atualmente por 2/3 de toda a produção nacional, enquanto os setores primários e
secundários perderam 44,9% e 27,7%, respectivamente, de suas participações relativas no PIB. As alterações no interior da dinâmica da produção nacional repercutiram, em
consequência, na evolução e composição da ocupação da força de trabalho (cf. IPEA, 2011).
Candido Portinari

do acesso à saúde, aproximam-se de um pro- Para escapar desta perspectiva, portanto, trabalhadora, abre oportunidades renovadas
cesso eleitoral que, sob o efeito do surgimento é necessário entender que o avanço das ocu- de politização por parte das instituições que
do Tea Party, terá como epicentro uma agenda pações na base da pirâmide social brasileira, devem representá-la. Isso é o que se espera
igualmente conservadora. E experiências latino- a partir do recebimento do salário de base, das associações de bairros, dos sindicatos,
-americanas que buscam conjugar o exercício não apenas impõe condições de trabalho e partidos políticos e até mesmo de governos
da soberania com a promoção de um inédito vida melhores para significativa parcela da compromissados com a classe trabalhadora
direito ao “bem viver” continuam tratadas como população que vivia na condição de po- – e, por consequência, para a ampliação dos
pitorescas pela mídia brasileira e internacional. breza, mas, por constituir uma nova classe direitos humanos.

Referências bibliográficas
9
Sader, E. Quando novos personagens entram em cena. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
Revista Direitos Humanos

Mello, J.; Novais, F. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. São Paulo: Unesp/Facamp, 2009.
POCHMANN, M. O trabalho no Brasil pós-neoliberal. Brasília: Líber Livro, 2011
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Comunicado do Ipea n. 104: natureza e dinâmica das mudanças recentes na
renda e na estrutura ocupacional brasileiras. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110804_
comunicadoipea104.pdf>.
Iniciativa do Mercosul
sobre Direitos das
Crianças Migrantes

Candido Portinari

10
Revista Direitos Humanos
VICTOR ABRAMOVICH, secretário Igualmente, é importante destacar o traba- grave e pendente, de violação dos direitos
executivo do Instituto de Políticas lho levado adiante pela Reunião de Altas Autori- humanos deste grupo que migra por motivos
Públicas em Direitos Humanos do dades em Direitos Humanos e Chancelarias do econômicos, sociais, culturais ou políticos no
Mercosul (IPPDH). Este documento foi Mercosul e Estados Associados (RAADH) e, es- continente.
elaborado com a colaboração de Laura pecificamente, pela sua Comissão Permanente Em síntese, os números ilustram que na
Saldivia e Constanza Argentieri. Tradução Iniciativa Niñ@sur, da qual se impulsionaram América Latina e Caribe, cerca de 25 milhões
para o português: Marcus Paiva.
distintas ações de promoção e proteção dos di- de pessoas migraram para países da Améri-
reitos de crianças migrantes em nível regional. ca do Norte e Europa, enquanto outros seis

E
m uma iniciativa sem precedentes na A solicitação de Opinião Consultiva foi milhões migraram para outros países dentro
região, os quatro países-membros do elaborada com assistência técnica do Institu- da região.1 Entre essas, uma quantidade cres-
Mercosul firmaram e apresentaram to de Políticas Públicas em Direitos Humanos cente, porém ainda inestimável, são crianças e
conjuntamente perante a Corte Interameri- do Mercosul (IPPDH), um organismo criado adolescentes, alguns dos quais migram junto
cana de Direitos Humanos (Corte IDH) uma pelo Conselho de Mercado Comum no ano com seus pais (ou com algum deles), enquanto
solicitação de opinião consultiva sobre os di- de 2009, que tem como principal função a outros o fazem, de maneira crescente, desa-
reitos de crianças e adolescentes migrantes. cooperação técnica, a investigação aplicada e a companhados ou separadamente.
Além disso, os quatro governos formalizaram coordenação no campo das políticas públicas Não obstante, as crianças e os adolescen-
a referida apresentação em audiência com os em direitos humanos no âmbito dos países do tes afetados de uma forma ou de outra pela
juízes da Corte IDH por ocasião de seu 92° Mercosul. Posteriormente, este documento foi migração internacional representam um nú-
Período de Sessões. discutido na Comissão Permanente Niñ@sur e mero significativamente mais alto, já que não
A Corte IDH declarou sua admissibilidade e aprovado pela RAADH no mês de abril de 2011, se contabilizam, por exemplo, muitos filhos de
fixou prazo para a apresentação de observações na cidade de Assunção, Paraguai. migrantes nascidos posteriormente à migração
escritas sobre a solicitação mencionada. A elaboração da opinião consultiva se de seus pais, visto que acabam adquirindo a
Esta é uma experiência inédita, pois pela insere no âmbito do diálogo dos governos nacionalidade do país de destino, em razão
primeira vez se apresenta perante o Sistema com o sistema universal e com o sistema do princípio ius solis, que rege quase toda
Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) interamericano, assim como em um con- a região. Tampouco se incluem as crianças
um pedido de opinião consultiva por qua- texto mais amplo de trabalho e articulação e os adolescentes que permanecem no país
tro Estados, o que expressa uma posição regional entre os países signatários. Isso é de origem quando seus pais decidem migrar.
comum dos países-membros do Mercosul fundamental para a discussão e o fortaleci- A quantidade de crianças e adolescentes mi-
ante um tema de importância central para a mento de ambos os sistemas e das políticas grantes que se encontram em situação migra-
vigência dos direitos humanos no continente públicas em direitos humanos dos governos. tória irregular na região é outro dado sobre o
americano. A decisão de apresentar conjuntamente uma qual não se tem certeza. Portanto, é possível
O respeito aos direitos humanos nas polí- solicitação de opinião consultiva ante o tribu- assegurar que os dados citados anteriormente
ticas migratórias é um assunto destacado na nal do sistema interamericano expressa uma são limitados a respeito da quantidade real da
agenda dos países do bloco regional e do resto tendência à coordenação de posicionamentos população infantil migrante.
dos países da América Latina e Caribe. Isso entre os Estados, sobre aqueles assuntos de O assunto objeto da opinião consultiva
ficou demonstrado através da assinatura de alto interesse público que têm uma incidên- apresentada à Corte IDH surge principalmente
acordos bilaterais, regionais e sub-regionais cia fundamental para a vigência dos direitos dos problemas que, na prática, suscitam pela
que reconhecem os direitos humanos dos mi- humanos na região. correspondente falta de articulação entre várias
grantes, independentemente de sua condição leis e políticas migratórias com o sistema de
migratória, assim como a partir da ratificação O conteúdo da solicitação de proteção aos direitos da criança. Esse déficit
dos principais tratados internacionais sobre opinião consultiva limita a possibilidade de que as instituições
direitos humanos, em particular sobre os di- A ideia de elaborar uma solicitação de públicas definam de forma adequada as medi- 11
reitos da criança, e da sanção de legislações opinião consultiva sobre os direitos das crian- das de proteção de direitos que têm de adotar
Revista Direitos Humanos

internas que promovem a proteção dos direitos ças e adolescentes migrantes surgiu em vir- quando uma criança ou adolescente ingressa
deste grupo. tude da concreta existência de uma situação, irregularmente no país.

1 COMISSÃO ECONÔMICA PARA AMÉRICA LATINA E CARIBE (CEPAL). Migración internacional, derechos humanos y desarrollo. Santiago, ago. 2006. p.73.
Iniciativa do Mercosul sobre Direitos das Crianças Migrantes

Essa falta de articulação entre políticas


migratórias e políticas de proteção aos direitos
da infância gera problemas urgentes, que são
Muitos sistemas legais ainda permitem que
tratados nos distintos parágrafos da consulta, na crianças e adolescentes tenham sua liberdade
pessoal restringida por motivos migratórios,
qual os Estados signatários enunciam suas posi-
ções sobre o alcance que consideram que deva
ser dado às normas da Convenção Americana
de Direitos Humanos nos assuntos propostos.
qualquer que seja a denominação recebida
A primeira questão que se submete à apre- por essas medidas nos diferentes países,
ciação da Corte IDH, e que serve de antessala
e contexto para os assuntos restantes consul- em algumas circunstâncias, sem garantias
tados, é a que concerne aos procedimentos e
mecanismos institucionais para identificar as
mínimas razoáveis.
distintas situações de risco em que se encontram
as crianças e os adolescentes migrantes para o Desta forma, enquanto alguns países preve- consiste em planejar e implementar mecanis-
exercício de direitos. É notória a ausência de tais em a detenção de migrantes (sem discrimina- mos de proteção específicos para crianças e
procedimentos nos países da região, ausência ção de idade) como sanção penal por infringir adolescentes migrantes, dirigidos a assegurar a
esta que impede identificar nos fluxos migrató- legislação migratória, em outros se dispõe a proteção de seus direitos, sem que estes meca-
rios mistos as diversas necessidades de proteção detenção administrativa como medida caute- nismos incluam a privação de liberdade como
internacional que podem apresentar crianças e lar no âmbito dos procedimentos migratórios, possibilidade. Para isso, solicitam à Corte IDH
adolescentes migrantes que tenham ingressado sem contemplar medidas que não impliquem que especifique as obrigações do Estado relati-
ou buscam ingressar no território do Estado. restrições à liberdade de ir e vir ou detenção. vas à disposição de outras medidas alternativas
A ausência de um enfoque baseado na Também, carências importantes por parte à restrição de liberdade, baseadas na família e
proteção dos direitos da criança e sua vin- da autoridade competente (por exemplo, falta na comunidade, que sejam obrigatórias e de
culação com políticas migratórias também de intervenção do poder judicial), a não estipu- prévia implementação a qualquer medida de
pode ser observada na falta, em vários siste- lação de prazos de tais medidas e a ausência de institucionalização, para que transformem a
mas legais, de garantias processuais básicas garantias elementares do devido processo para restrição de liberdade em um último recurso.
do devido processo, adequadas a sua idade, ditar e executar medidas procedimentais a res- O tema relacionado às características
que devem contemplar as medidas aplicáveis peito de crianças, podem implicar restrições que deveria conter a adequação de garantias
às crianças e aos adolescentes no âmbito dos à liberdade e chegar à detenção de adultos, processuais e substantivas à situação das
procedimentos migratórios nos quais possam crianças e adolescentes migrantes. crianças e adolescentes é outra das consul-
defender seus direitos. Outra circunstância que tem impacto direto tas formuladas à Corte IDH. A aplicação de
Em contrapartida – para além de que seja sobre os direitos de crianças e adolescentes é dito sistema de garantias relacionadas com
possível falar de um princípio de não crimi- a própria condição migratória de seus pais. Isso restrições à liberdade pessoal deve reunir ele-
nalização da migração irregular, reconhecido se dá, por exemplo, quando são obrigados a se mentos específicos e diferenciados quando
por nítidas posições dos Estados da região, alojar com seus pais em estações migratórias,
Candido Portinari
o qual se vê, por sua vez, reforçado pelos pa- ou quando sofrem o alojamento em instituições
drões fixados pela Corte IDH e por diversos migratórias fechadas como consequência de
organismos internacionais de proteção dos medidas cautelares aplicadas a seus pais em
direitos humanos sobre esta questão – muitos razão de sua condição migratória, ou quando de-
sistemas legais ainda permitem que crianças vem acompanhar seus pais expulsos, ainda que
12 e adolescentes tenham sua liberdade pessoal sejam nacionais de um país, ou quando sofrem
restringida por motivos migratórios, qualquer a expulsão de seus pais e a ruptura do vínculo
Revista Direitos Humanos

que seja a denominação recebida por essas familiar. Portanto, ao analisar a situação de crian-
medidas nos diferentes países, em algumas cir- ças e adolescentes migrantes, é indispensável
cunstâncias, sem garantias mínimas razoáveis, vinculá-la aos direitos dos adultos migrantes.
nem avaliação de medidas alternativas, nem as Os países signatários da opinião solicitada
correspondentes garantias de devido processo. acentuam que o dever prioritário dos Estados
está em jogo a liberdade pessoal de crianças A relevância desta iniciativa para tema concreto da consulta e que se referem
e adolescentes. o bloco MERCOSUL ao fortalecimento do Mercosul como bloco.
Na região, também é notória a ausência de Os países-membros do Mercosul pensa- Por um lado, essa é a primeira opinião
um enfoque baseado nos direitos das crian- ram na intervenção da Corte IDH, por meio de consultiva apresentada ante o dito tribunal
ças e dos adolescentes (migrantes e filhos de sua competência consultiva, para efeitos de por um bloco sub-regional, o qual contribui
migrantes) no âmbito dos procedimentos de aprofundar e precisar os padrões e princípios para a consolidação do Mercosul como um
expulsão de migrantes como sanção a infra- assentados em seus precedentes sobre infân- processo de integração social e político e não
ções à regulação das condições de ingresso e cia e migrações. Isso com a ideia de fixar tanto apenas econômico-comercial. Igualmente,
residência em um país. O princípio do interesse um piso comum de padrões quanto um marco serve como um vetor para afirmar os direitos
superior da criança, entendido como a satis- conceitual a ser reconhecido pelos países da humanos como uma questão de identidade
fação integral de todos os direitos de crianças região, que lhes sirva de referência inevitável comum do bloco; e promove o fortalecimen-
e adolescentes, mostra-se essencial nos pro- para ajuste e revisão de leis e políticas públicas to do diálogo entre o Mercosul e o sistema
cedimentos migratórios. Componentes-chave nessa matéria, e fortalecer os diálogos que interamericano da OEA.
do direito internacional dos direitos humanos, os governos da região têm em nível regional. Finalmente, essa solicitação de opinião
como o princípio da não devolução, exigem Também há outros objetivos de caráter po- consultiva apresenta o Mercosul como um espa-
a adoção de medidas específicas no âmbito lítico que se alcançam por meio da iniciativa ço de coordenação de políticas e posicionamen-
dos mencionados processos, que incluem de consulta ante a Corte IDH que vão além do tos comuns em matéria de direitos humanos.
uma série de padrões concretos (entre outros,
Candido Portinari
emanados do Comitê de Direitos da Criança)
dirigidos a assegurar os direitos da criança.
Por outro lado, no contexto do aumento de
fluxos migratórios mistos, faz-se necessário,
também, contar com sistemas adequados para
identificar, de maneira oportuna, o ingresso de
crianças e adolescentes eventuais solicitantes
de asilo ou refúgio, e ter disponíveis procedi-
mentos claramente estabelecidos para resolver
medidas adequadas de proteção antes e de-
pois de reconhecida a condição de refugiado.
As decisões que se adotem no âmbito dos
procedimentos especiais sobre solicitação de
asilo ou refúgio devem partir, também, de um
enfoque baseado na proteção dos direitos da
criança e do adolescente, à luz do princípio do
interesse superior, por exemplo, ao decidir seu
esquema de garantias processuais e os acor-
dos sobre soluções temporárias e definitivas,
entre outras situações.
Finalmente, o último ponto colocado à
consideração dos membros da Corte IDH se
refere aos mecanismos de expulsão de pais
de crianças ou adolescentes residentes ou 13
nacionais de países de destino, os quais tam-
Revista Direitos Humanos

bém requerem uma profunda revisão desde um


paradigma baseado no respeito aos direitos da
criança e do adolescente que priorize, entre ou-
tros, o direito à convivência familiar e o direito
a um desenvolvimento integral.
Candido Portinari

14
Revista Direitos Humanos

Israel Pedrosa, artista plástico, aluno


de Portinari, sócio honorário da Associação
Brasileira de Críticos de Arte.
Candido Portinari

Escala real
O Pintor
do Novo Mundo
Revista Direitos Humanos

15
O Pintor do Novo Mundo

perfil de Portinari como o de O pintor do Novo


Candido Portinari

Mundo. Epíteto que, ultrapassando o signi-


ficado simplesmente geográfico, representa
sobretudo o novo mundo social e espiritual
que o perene labor humano vem construindo,
como fruto de seus melhores anseios: a Nova
Era de que Paul Klee e David Alfaro Siqueiros
sonhavam ser os pioneiros. E que realmente
o foram, cada um a seu modo.
Este Novo Mundo, de que Portinari viria a
ser seu grande intérprete e magno representan-
te, é o Novo Mundo que começa a emergir em
meio às lutas e às aspirações, não apenas dos
visionários das regiões periféricas e dos atuais
países emergentes, mas também às de toda
a humanidade progressista. Mundo de paz,
de trabalho produtivo, de alegria, felicidade
e amor entre os seres humanos, e de fraterna
confiança entre os povos.
Mundo que, alheio às desalentadoras es-
peculações cerebrinas sobre o fim da História,
começa a palmilhar as sendas vislumbradas
de superiores estágios sociais da irrefreável
História, nutridas pela incansável busca da
perfectibilidade da condição humana.

O Realismo do século XX
Se aplicarmos à obra de Portinari o con-
ceito de John Ruskin, de que para a análise da
obra de arte a primeira pergunta a se fazer é:
“O que ela nos ensina?”, a resposta será o
espanto. Veremos que melhor que nos com-
pêndios de história, de economia, de socio-
logia ou de política, o relato visual de Porti-
nari expressa os mais avançados conceitos
da cultura de seu tempo, que aponta sempre

S
empre que se quis definir Portinari, seu diretor Pietro Maria Bardi o qualificara para um horizonte promissor.
a partir da visão de sua obra, essa como “um intérprete das misérias do Terceiro Tomada em seu conjunto, como um imen-
definição atingia tal abrangência que Mundo”, tendo Antônio Bento, algum tempo so painel que aborda todos os aspectos da
ultrapassava em muito a caracterização, sim- depois, denominado-o simplesmente: o pintor alma humana e da vida social, da miséria e
plesmente humana, do pintor. do Terceiro Mundo. da desgraça, aos anseios da bem-aventurança
16
Foi assim quando de sua exposição no Mu- Ao reduzir o termo, Bento ampliava-lhe o terrestre. O brilho do olhar de seus miseráveis
Revista Direitos Humanos

seu de Arte Moderna de Nova York, apresentan- sentido, como que dissesse ser ele não apenas e degradados seres amoráveis tem a chama
do-o como Portinari of Brazil, formulação que o intérprete das misérias, mas também das reivindicativa da esperança. Sua obra, expres-
dava-lhe o foro de pintor nacional de seu país. lutas, alegrias e esperanças comuns a esse são coerente de sua generosa visão de mun-
No catálogo da exposição Cem Obras Pri- universo majoritário de nosso planeta. do, não decorre apenas de um “otimismo da
mas de Portinari, realizada pelo Masp (Museu Hoje passadas várias décadas desses es- vontade” em meio ao “pessimismo da razão”.
de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), forços de definição, delineia-se claramente o É expressão de uma razão combatente que,
em meio à adversidade, revela os lenitivos os Estados Unidos da América do Norte e homens provenientes de todos os quadran-
de uma cantata ao porvir. os povos da América Latina, na mobilização tes do mundo, conseguindo assim mode-
Então, tal como Shakespeare, Bach, continental contra o nazifacismo. Período que lar uma unidade nacional surpreendente:
Mozart ou Goethe, em puro aporte ao con- antecedeu a entrada do Brasil na 2ª Guerra o Brasil.
ceito gramisciano, sua arte “ensina enquanto Mundial ao lado das potências aliadas. Segundo o crítico Antônio Bento que
arte, não como arte educativa”, adentrando assistira essa exposição de Portinari em Pa-
o reino do conhecimento sensível, tal como A Exposição Da Galeria ris, ao lado de inúmeros outros jornalistas e
vislumbrara Vico. Charpentier intelectuais brasileiros, em seu livro Porti-
Sem desfalecimento a obra de Portinari No imediato pós-guerra, quando Paris nari (p. 195), Jean Cassou, então diretor do
assume autêntica expressão do Realismo do preparava-se para reassumir sua condição de Museu de Arte Moderna de Paris, em texto
século XX. Realismo herdeiro do mesmo cli- capital mundial da pintura, no outono de 1946, introdutório ao catálogo, afirmava: “as telas
ma espiritual de Goya, Turner, Daumier, Millet é montada na Galeria Charpentier a grande ex- do brasileiro eram uma narrativa e um canto.
e Courbet. posição de Candido Portinari, idealizada pelo Descreviam e cantavam uma América jovem,
Nutrida por hermenêutica de toda a História historiador de arte e conservador do Museu do uma tragédia nova. Referiu-se a seu colorido
da arte, a saga portinariana revela ressonâncias Louvre, Germain Bazin, que escreveu o prefácio livre, sua ampla composição, seu desenho
sensíveis dos pré-renascentistas, dos renas- do catálogo da mostra. lancinante... semelhante a uma canção até
centistas, dos tormentos de Grunewald, dos Nele o crítico francês afirma que, sozi- então não ouvida”.
arroubos expressionistas e até de insólitos nho e no outro lado do mundo, o pintor de Segundo o crítico brasileiro, à véspera
ângulos cubistas. Seu Realismo, expressão Brodósqui tomara espontaneamente essa da inauguração, Paris apareceu coberta de
sublimada do modernismo estético do século posição social, cuja inquietude começava cartazes anunciando a exposição de Portinari
XX, reveste-se com toda a riqueza ancestral do então a surgir na França. Acrescentando que na Galeria Charpentier. O êxito da mostra foi
vocabulário plástico universal. confrontavam-se em sua obra todas as forças registrado em inúmeros noticiários e em mais
Contudo, não é um Realismo sem frontei- de expressão. Agia como se tivesse de inventar de 50 artigos de crítica e assistido por nume-
ras, como aspirava Roger Garaudy, pois nele, por conta própria a pintura, abordando todas roso público: “comparecimento em massa,
como assinala o próprio Portinari, em seu poe- as técnicas e todas as harmonias. Ao lado de verdadeira multidão”.
ma Grunewald, há um inequívoco norteamento telas cheias de ternura, havia outras de um Através da cadeia nacional da radiodi-
humanístico: expressionismo pungente, cuja violência sem fusão francesa, o poeta Louis Aragon, um
O bem é teu, permanecerá. medida talvez causasse surpresa aos parisien- dos criadores do surrealismo, ressaltou a
Malditos eles donos do mal
Não existirão.
ses, habituados a verem respeitados, mesmo expressão profunda, exata, humana e sur-
nas maiores audácias, os cânones elaborados preendente de um artista estrangeiro como
A universalidade de seu vocabulário plás-
por 30 anos de especulações plásticas obe- Portinari, que em cuja obra se sentia repre-
tico é ao mesmo tempo a única forma de ex-
dientes ao bom-tom. sentada sua nação...
pressão de seu postulado estético.
Essa violência soprava como um ven- No mesmo período da mostra de Portina-
É com ela que desde o início de sua saga
to impetuoso, vindo de seu próprio país. ri, realizaram-se em Paris o Salão de Outono
ele revela um universo novo para a historici-
Terra dominadora dos trópicos, cuja força, e a exposição de Kandinsky, dando início ao
dade da arte. Daí surgem as reminiscências
no espaço de uma geração, assimilava os revigoramento da abstração pictórica.
rurais de sua infância, o cenário humilde
das nascentes metrópoles, cenas e alma da
vida brasileira.
A singeleza ou a monumentalidade des-
sas visões estão expressas nos murais da
Se aplicarmos à obra de Portinari o
casa de Brodósqui, da capela da Pampulha, conceito de John Ruskin, de que para 17
do Ministério da Educação, da Biblioteca do
a análise da obra de arte a primeira
Revista Direitos Humanos

Congresso, em Washington, e dos painéis


e quadros que percorreram o território das
três Américas.
pergunta a se fazer é: “O que ela nos
Em período sombrio para a humanidade, ensina?”, a resposta será o espanto.
a exposição de elementos dessa imensa obra
fez parte da “política de boa vizinhança” entre
O Pintor do Novo Mundo

A origem desse revigoramento encontra- O fim das denominadas vanguardas ar- pelas sonoridades díspares de Aran Katcha-
va-se do outro lado do Atlântico, no êxito da tísticas está ligado ao declínio do poder dos turian, Samuel Barber e Heitor Villa-Lobos;
distante exposição de 1913, no Armory Show, polos estéticos hegemônicos das grandes pela dramaturgia de Bertold Brecht; pelas
de Nova York. Evento catalisador de público e potências ocidentais. espantosas visões literárias de Mikhail
prestígio para as vanguardas artísticas e para Em decorrência do vigoroso surto de re- Cholokhov, de Theodore Dreiser, Guimarães
todo o movimento modernista europeu, crian- novação cultural que vinha se desenvolvendo Rosa e Gabriel García Márquez; pela poesia
do em meio aos artistas, à intelectualidade e desde o século XIX e início do século XX nas de Nazim Hikmet, Paul Valéry, Pablo Neruda
à alta burguesia norte-americana o decisivo antigas regiões periféricas, caracterizadas e Carlos Drummond de Andrade; pelos re-
apoio para o triunfo e a expansão planetária agora como universo emergente, juntando- lampejares sísmicos de Serguei Eisenstein,
dessas correntes artísticas que caracterizaram -se ao que de melhor produziram alguns Akira Kurosawa, Frederico Fellini e Glauber
a cultura e as artes do último século. artistas dos países desenvolvidos, surgem Rocha; pela imagística de Paul Klee, David
No curso da segunda metade desse cita- no decorrer do século passado excepcionais Alfaro Siqueiros e Candido Portinari.
do século, verifica-se a morte das denomi- exemplares de uma arte que abre caminho a
nadas vanguardas artísticas, dando início ao novos estágios de fruição estética, apontando Os painéis Guerra e Paz
ciclo de culto aos grandes artistas revelados para um almejado e inigualável mundo novo. Para Portinari, os últimos anos da déca-
por elas. Falamos de uma cosmovisão alicerçada da de 1940 e os primeiros da seguinte são
Candido Portinari marcados pela realização de seus grandes
painéis móveis: A Primeira Missa no Bra-
sil (1948), Tiradentes (1949), Chegada de
D. João VI ao Brasil (1952) e Guerra e Paz
(1952-1956).
Em 1952, atendendo a convite do Itama-
raty, Portinari inicia a realização das maquetes
dos dois imensos painéis (14 x 10m cada)
para a decoração do edifício sede da ONU, em
Nova York, projetado por Le Corbusier, e em
cuja elaboração trabalhara Oscar Niemeyer.
Os temas escolhidos para os painéis foram
a Guerra e a Paz – síntese das preocupações
e objetivos primordiais dos trabalhos das
Nações Unidas.
Decorridos quatro anos de árduo trabalho,
no dia 5 de janeiro de 1956 os imensos painéis
foram entregues ao Ministério das Relações
Exteriores.
Durante o período de sua realização, a
imprensa do país e do exterior acompanhou
com interesse o trabalho do artista. Ao ser
anunciado o seu término, desencadeou-se
imenso movimento de opinião pública liderado
por eminentes intelectuais, artistas e organi-
18
zações culturais e até por sindicatos operários
Revista Direitos Humanos

desejando a exposição dos painéis no Brasil,


antes de seu envio para Nova York.
Atendendo a este clamor geral, o Itama-
raty organizou a mostra dos painéis Guerra e
Paz, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro,
transformando-o no mais amplo salão de
exposição visto no Brasil até então, e no e do sangue, nem o preto, o branco ou o O livro Guerra e Paz – Portinari foi publica-
templo reverencial de um momento espe- amarelo. É o azul que domina. Uma trá- do em dois volumes, com idêntica programa-
gica e dorida sinfonia em azul, passando
cífico de nossa contribuição à historicidade por toda sua escala. Os tons escuros, ção gráfica, em português e inglês. War and
artística da humanidade. soturnos, ricos em variadas e profundas Peace – Portinari foi oferecido pelo presidente
No dia 27 de fevereiro de 1956, nas pre- nuanças violáceas, desenham as cenas Luiz Inácio Lula da Silva ao secretário-geral da
sobre fundo de claros azuis de reflexos
senças do presidente da República, Juscelino Organização das Nações Unidas, Sr. Ban-Ki-
verdátreos, tendentes aos leves citrinos.
Kubitschek de Oliveira, e altas autoridades, de Contrastando com esse universo azulado, -Moon, momentos antes do pronunciamento
representantes políticos de todas as tendên- valorizando-o cromaticamente, em con- do presidente da República do Brasil, abrindo
cias, de intelectuais, artistas e de eufórica traponto tonal, o cavalo manchetado de a 62ª Assembleia-Geral da ONU.
carmim, a carnação de rostos, braços e
multidão em clima de júbilo nacional, foi
pés saindo das vestes escuras surgem em
inaugurada a extraordinária mostra. vibrantes alaranjados que vão das sombras A exposição dos painéis Guerra
Pouco mais de um ano depois, ante o trevosas violáceas, aos quase vermelhos e Paz no THeatro Municipal do Rio
e rosas de intensa crepitação luminosa. de Janeiro
secretário-geral das Nações Unidas, Dag
Nesse clima de violentos contrastes, de
Hammarskjold, e representantes do Brasil, o A realização da exposição dos painéis
soturna féerie, o tropel ininterrupto liberta
embaixador Cyro de Freitas-Valle e o ministro as feras que aterrorizam o mundo. Guerra e Paz de Portinari no Theatro Munici-
Jayme de Barros, em setembro de 1957, Estamos diante de um cataclismo aterrador pal do Rio de Janeiro insere-se no clima de
em que os tempos remotos confundem- crescente presença internacional do Brasil, não
foram inaugurados no edifício sede da ONU,
-se com a origem dos tempos. Se o terror
em Nova York, os painéis Guerra e Paz, de nos traz à memória reminiscências de
apenas na área econômica, mas sobretudo no
Candido Portinari. anátemas de Luca Signorelli e de Dürer, a reconhecimento de nossos valores sociais
concepção, inventiva e fatura nos trazem em progressão, valores intelectuais, morais e
Considerações Gerais de volta à realidade de uma modernidade espirituais expressos em nosso amor à paz,
intemporal.
Em 2007, marcando o cinquentenário da Realçado por clara luz, um eremita desnu- à tolerância no trato dos contrários, e nosso
inauguração dos painéis, o Projeto Portinari do, de pé em penitência, cobre os olhos apego à arte, vivificado em todas as manifes-
com as mãos, em prece e lamento. Figu- tações do espírito nacional.
publicou o livro comemorativo da efeméride: ras em grupo compacto, genuflexo, braços
Guerra e Paz – Portinari. Nele, eu afirmara que A inimaginável, até então, vinda ao Bra-
levantados com as mãos espalmadas e
os dois painéis constituíam rostos voltados para o céu, nesse cenário sil dos monumentais painéis Guerra e Paz de
[...] um discurso visual uno em sua com- de morte deixam transparecer uma aragem Candido Portinari que ornamentam o saguão
plexa complementaridade sobre os extre- de força e vida, de condenação à própria principal do edifício sede da ONU, em Nova
mos da desgraça e da bem-aventurança, existência da guerra.
York, só foi possível graças a uma conjugação
na trágica e comovedora visão pintada por No painel Paz, tal como acontece em
Portinari. de fatores, destacando-se dentre eles:
seu par:
Nas páginas da história da arte, em que
[...] são múltiplas as reminiscências de
Primeiro, a deliberação da grande reforma
surgem incontáveis guerras datadas do edifício sede da ONU, no período de 2010 a
obras anteriores de Portinari, como tam-
e localizadas, como as de Tróia, e do
bém são vários os vestígios desses traba- 2013. Período em que as obras de Portinari teriam
Peloponeso pintadas por Eufrônio, as
lhos em quadros posteriores do Mestre. que ser removidas e abrigadas em outro local.
Batalhas de San Romano e Anghiari, de
O que significa dizer serem eles elos coe-
Paolo Uccello e de Da Vinci, ou Guernica, Segundo, a existência da modelar organiza-
rentes de uma imensa produção pictórica
de Picasso, todas são narradas por cenas ção do Projeto Portinari que idealizou e geren-
da mais alta representatividade do poder
que as identificam, localizam e datam.
criador do século XX [...]. O que emana ciou, posteriormente, toda a operação e motivou
Com os recursos próprios ligados ao
desse painel, nos enleva e encanta, mais
tempo da pintura, cada uma delas par- o governo brasileiro a solicitar e dar garantias à
que a idéia de paz e da paz, é a própria
ticipando da variada gama de conceitos ONU para o empréstimo dos painéis Guerra e
paz que nos invade ao contemplá-lo. É a
que vai do heroísmo à dor e ao desespero
sensação de penetrarmos num universo Paz a serem expostos e restaurados no Brasil.
ou defendendo um solo, uma idéia ou
sereno, de comunhão fraterna no trabalho Terceiro, a existência nos mais altos
uma causa que as particularizam. A abor-
produtivo, num reino mágico de cores re-
dagem de Portinari é outra. Não identi- escalões da República, na Presidência, na 19
luzentes, do som da ciranda de jovens num
fica guerra alguma, como se afirmasse Vice-presidência, no Ministério das Rela-
canto universal de fraternidade e confiança,
Revista Direitos Humanos

que em essência todas se equivalem no


ou da candura dos folguedos infantis. Com ções Exteriores, no Ministério da Cultura e no
desencadeamento de horror e animali-
todos esses tons dourados, alegres, crepi- BNDES de autoridades sensíveis aos pode-
dade. Nenhuma arma identificável, em
tantes de vida, o pintor parece nos dizer:
Portinari; a cavalgada apocalíptica que res e imperativos da Arte como manifestação
A paz universal é possível. Dia virá em que
corta a cena em todas as direções com insubstituível do patrimônio intelectual, moral
a humanidade desfrutará a paz sem limites
seu cortejo de conquista, guerra, fome e
no espaço e no tempo. e psíquico da nação brasileira.
morte, não traz as cores bíblicas do fogo
O Pintor do Novo Mundo

Parafraseando formulação que se torna- Apoteose da Paz destinos compartilhados na construção de um


ra frequente nos últimos tempos, podemos Por imensuráveis que sejam as distâncias reino de perene paz e felicidade.
dizer que nunca na história desse país um e o número de estrelas e de seus incontáveis Nem todos tinham a mesma clareza sobre
governo prestigiou tanto a cultura nacional, planetas e satélites pelas infinitas galáxias na a extraordinária excepcionalidade do momento
como o faz agora, com grande repercussão imensidão cósmica, o Theatro Municipal do que estavam vivendo, mas todos vislumbravam
internacional, em relação à obra de Candido Rio de Janeiro, na noite mágica da inauguração o privilégio que teriam pelo tempo afora de
Portinari. da exposição dos painéis Guerra e Paz de Por- poder afirmar: “Eu estive lá!”
O exemplo maior desta prestigiação está tinari, trazidos por empréstimo temporário da Seguramente, a memória nacional guarda-
expresso na parte final da histórica fala do pre- sede da ONU, NY, transformara-se no epicentro rá para sempre a lembrança do espetáculo de
sidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura artístico do universo. interação de todas as artes no palco do maior
da 62ª Assembleia Geral das Nações Unidas, Impossível pensar que naquele momento, teatro da “cidade maravilhosa”.
em que ele diz: em qualquer outro corpo celeste, a arte e tudo Precedendo o desfile da multidão diante da
Senhoras e senhores, ao entrar neste pré- magistral obra de um dos maiores pintores de
dio, os delegados podem ver uma obra o que possa haver de superior e sublime no
de arte presenteada pelo Brasil às Nações universo estivessem sendo celebradas com tal todos os tempos, desenrolava-se o documen-
Unidas há 50 anos. Trata-se dos murais efusão apaixonante. tário de Carla Camurati, seguido pela dança de
Guerra e Paz, pintados pelo grande artista Ana Botafogo e Alex Neoral, coreografada por
Se seres de inteligência igual ou superior à
brasileiro, Candido Portinari. David Parsons; o canto de Milton Nascimen-
O sofrimento expresso no mural que retrata existente aqui existissem ou existirem em tais
a guerra nos remete à alta responsabilidade espaços siderais, por certo, reverenciariam o to, a sonoridade de Villa-Lobos trazida pela
das Nações Unidas de afastar o risco de magno espetáculo montado por uma obstina- Orquestra Sinfônica Brasileira Jovem.
conflitos armados. Magnífico e bendito planeta este, em que
O segundo mural revela que a paz vai mui-
ção filial apoiada por um presidente operário,
que se fez representar por eminente chanceler a luminosidade impera, e que em suas entra-
to além da ausência da guerra. Pressupõe
bem-estar, saúde e um convívio harmo- em meio a uma plateia eufórica, interpretando nhas a matéria em seu mais elevado estágio
nioso com a natureza. Pressupõe justiça em seu justo valor nossa mais vigorosa men- de perfectividade produz sonho, ideal e beleza,
social, liberdade e superação dos flagelos em que, mesmo entre suas diatribes intestinas
da fome e da pobreza. sagem artística, transformando-a em símbolo
Não é por acaso que o mural Guerra está de uma cantata universal de paz. e dolorosas etapas do parto do alvorecer de um
colocado de frente para quem chega, e o A alegria reinante em todos os semblantes da Novo Mundo, fascinou o primeiro terráqueo a
mural Paz, para quem sai. A mensagem do contemplá-lo do cosmo, arrancando-lhe a inde-
multidão que lotava o teatro, e que durante todo o
artista é singela, mas poderosa: transfor- lével exclamação: “A terra é azul!” Tão azul como
mar aflições em esperança, guerra em paz, período da exposição envolveu o edifício com in-
é a essência da missão das Nações Unidas. termináveis filas, deixa transparecer o justificado o descrito por Drummond no poema declamado
O Brasil continuará a trabalhar para que orgulho do reencontro de cada um e de todos com por Fernanda Montenegro naquela noite majes-
esta expectativa tão elevada se torne defi- tosa, diante dos painéis Guerra e Paz:
nitivamente realidade.
sua parcela da verdadeira alma nacional e com
“e nada mais resiste à mão pintora [...] a
Muito obrigado. os elementos precursores de seus almejados mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.”
Em meio a numeroso público em clima de
júbilo nacional, com a presença do ministro
das Relações Exteriores, Celso Amorim, repre- Nota do Editor:
sentando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, No dia 6 de fevereiro de 2012, data dos 50 anos da morte de Portinari, será inaugurada,
do professor Luciano Coutinho, presidente do em São Paulo, no Memorial da América Latina, a exposição dos painéis Guerra e Paz. Eles
BNDES, do diretor do Projeto Portinari, João ficarão em visitação pública por um período de dois meses e meio. Em seguida, planeja-se
Candido Portinari, de autoridades federais, continuar a itinerância por Oslo, Noruega, em dezembro de 2012, com a possibilidade de
estaduais e municipais, na noite de 21 de que a entrega do Prêmio Nobel da Paz aconteça diante dos murais; Hiroshima, no dia 6
20 dezembro de 2010, foi inaugurada a exposi- de agosto de 2013, data em que se abateu sobre o Japão a tragédia da bomba atômica;
ção dos monumentais painéis Guerra e Paz, e, por último, antes da devolução dos murais à ONU, Cidade do México, em homenagem
Revista Direitos Humanos

de Candido Portinari, no Theatro Municipal aos grandes muralistas que no século XX dialogaram com Portinari e pelo desejo de levar
do Rio de Janeiro. Guerra e Paz a um país latino-americano.
Direito à Terra:
Dimensão Internacional
Candido Portinari

Milton Rondó Filho, ministro da carreira 21


diplomática, coordenador-geral de Ações
Revista Direitos Humanos

Internacionais de Combate à Fome do Ministério


das Relações Exteriores do Brasil.
Direito à Terra: Dimensão Internacional

ambiental, socioeconômica e de segurança fundamental de acesso à terra nos âmbitos


“A reforma agrária não é apenas um
alimentar, energética, ambiental e financeira. nacionais, em consonância com o que estabe-
tema de política interna.”
No processo de reflexão sobre a verten- lecem as “Diretrizes Voluntárias para o Direito
Samuel Pinheiro Guimarães
te dos direitos humanos, percebe-se que o à Alimentação”, aprovadas na FAO, em 2004.
conceito de “direito de acesso à terra” como Dessa forma, a função social da terra, fulcro
categoria de direito humano é ainda incipiente. do uti possidetis, poderá tornar-se, nacional-

A
reforma agrária e a política externa Com efeito, ao buscar a garantia dos direitos mente, direito de acesso à terra, permitindo
brasileira guardam estreita relação. No humanos, sob a hegemonia do pensamento melhor distribuição e democratização de terra,
período de 2003 a 2011, essa conexão liberal na segunda metade do século XX, pouco de riqueza e de poder político, inclusive na
estreitou-se, dada a prioridade das políticas atentou-se para as garantias materiais desses, esfera internacional.
interna e externa brasileiras ao tema da garantia principalmente o acesso aos meios de produ- A transposição do uti possidetis para os
da segurança alimentar e nutricional. ção, dentre os quais, o acesso à terra. âmbitos legais nacionais, na forma do direi-
Após décadas de relativa letargia inter- Para a salvaguarda desses direitos, a polí- to à terra, de função social da terra, consa-
nacional, o tema da reforma agrária recobrou tica externa pode contribuir para forjar o direito grada pela Constituição nacional, ao abrigo
importância no âmbito multilateral e regional. de acesso à terra, tornando-o direito fundamen- dos princípios gerais do direito, é legítima,
Para isso, muito contribuiu a realização da tal, universal, nos âmbitos nacionais, demo- consoante o artigo 4º da Carta Magna, que
Conferência sobre Reforma Agrária e Desen- cratizando o acesso a esse insumo primordial estabelece que as relações internacionais
volvimento Rural, em Porto Alegre, em 2006. para o aumento da produção de alimentos e do país devem reger-se pela prevalência dos
A relação de causalidade entre a reforma permitindo a inclusão das camadas pobres direitos humanos, coincidindo com a própria
agrária e a política externa pode ser aferida urbanas, pelo consumo, e rurais, pela renda. Carta das Nações Unidas, a qual, em seu ar-
pela simples análise de fontes, dados e refle- Com efeito, atualmente, negociam-se no tigo 13, prevê a cooperação internacional no
xões provenientes de documentos do próprio âmbito da Organização das Nações Unidas para campo da formulação de direitos, que não
Ministério das Relações Exteriores. a Alimentação e a Agricultura (FAO) as “Dire- são estáticos, mas estão em processo de
Se na década de 1970 a reforma agrária trizes Voluntárias sobre a Governança Respon- constante atualização.
emergiria na pauta internacional como política sável da Posse da Terra, Florestas e Recursos Na base da defesa externa do direito de
compensadora de distorções socioeconômicas Pesqueiros”, cujo processo negociador deverá acesso à terra, encontra-se a ética política, a
– no contexto das alternativas democráticas ao estar concluído no primeiro semestre de 2012. busca da justiça social baseada na promoção
modelo de desenvolvimento então vigente –, no Na negociação das referidas Diretrizes Vo- das justiças distributiva e participativa, que
início do século XXI retorna à pauta internacional luntárias, a delegação brasileira tem lançado incluem o acesso aos meios de produção,
sob novo enfoque, não mais restrito à mera redis- mão de ferramentas teóricas como a “teoria principal limitação para que um bilhão de
tribuição de terras, como ocorrera no Brasil, nos garantista” do direito constitucional, que facul- pessoas possam alimentar-se adequadamente.
assentamentos da região amazônica, no período ta à diplomacia brasileira a defesa do princípio Tendo por base as interações da refor-
da ditadura militar. Reaparece sob a ótica integra- do uti possidetis – universalmente aceito em ma agrária e da política externa brasileira, é
da do provimento de políticas públicas de con- escala internacional – também como direito necessário entender como a reforma agrária
cessão de crédito, assistência técnica, seguro
agrícola, construção de infraestruturas públicas
(inclusive para armazenagem), estabelecimento
de preços mínimos e comercialização em geral,
incluindo a negociação dos acordos de comércio
Na base da defesa externa do direito
internacional. Ressurge como direito humano à de acesso à terra, encontra-se a ética
22
terra, nos contextos nacionais.
Cabe relacionar a política externa e a re-
política, a busca da justiça social baseada
forma agrária entre si e com a grande gama na promoção das justiças distributiva e
Revista Direitos Humanos

participativa, que incluem o acesso aos


de vertentes temáticas que dizem respeito ao
desenvolvimento humano. Para isso, pode-se
recorrer à análise de algumas das principais
vertentes do fazer público: política, ética, his-
meios de produção.
tórica, cultural, de direitos humanos, jurídica,
no Brasil relaciona-se com os parâmetros da que do acesso à terra depende a produção tização da formulação e execução da política
reforma agrária, debatidos e implementados de alimentos e de riqueza; sem ele, fica externa agrícola brasileira. A reforma agrária
no âmbito internacional, privilegiando as comprometida a garantia da segurança e da passaria, então, a ocupar um novo papel na
discussões nas instâncias multilaterais, em soberania alimentar. pauta externa, no contexto mais amplo da de-
razão do amplo consenso obtido nas últimas Com efeito, a segurança e a soberania fesa da segurança e da soberania alimentares.
décadas. Para isso, é importante considerar, alimentares são pilares centrais do conceito Como resposta institucional a essas novas
principalmente, as conferências internacionais amplo de soberania, que é concreto e integrado prioridades, foi criada no Itamaraty, em janeiro
da Organização das Nações Unidas para a Ali- pela soberania territorial, alimentar, energéti- de 2004, a Coordenação-Geral de Ações In-
mentação e a Agricultura sobre Reforma Agrária ca, ambiental e financeira, entre outras. Nesse ternacionais de Combate à Fome (CGFome).
e Desenvolvimento Rural de Roma (1979) e sentido, a política externa brasileira incorporou As competências estabelecidas para a CGFome
Porto Alegre (2006). Da primeira conferência, nas últimas décadas o tema da reforma agrária preveem: 1) segurança alimentar e nutricional
o governo brasileiro pouco implementaria as como aspecto fundamental na defesa da so- (inclusive direito à alimentação); 2) desenvol-
principais recomendações (a limitação ao ta- berania e do interesse nacional, objetivos per- vimento agrário (inclusive agricultura familiar e
manho da propriedade seria a mais importante manentes. Ademais, outro objetivo central da reforma agrária); 3) pesca artesanal; 4) Programa
delas). A segunda conferência, convocada por diplomacia, a promoção da paz duradoura, só Mundial de Alimentos (PMA); 5) Fundo Interna-
iniciativa brasileira, foi sediada e financiada resulta da justiça social, como bem assinalou cional para o Desenvolvimento Agrícola (Fida);
em sua quase totalidade pelo Brasil, o que a Campanha da Fraternidade da Conferência 6) Fórum Social Mundial e 7) diálogo com a
demonstra a mudança na prioridade do tema Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para sociedade civil. Posteriormente, foi acrescentada
para as políticas interna e externa brasileiras. 2009, como lema: “A Paz é Fruto da Justiça”. a assistência humanitária.
Em 2006, também a conferência paralela re- Vale notar também o lema do aniversário do Ao criar-se uma nova institucionalidade no
alizada pela sociedade civil internacional foi Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem- Itamaraty para o tratamento do tema da refor-
sediada e financiada em maior parte pelo go- -Terra (MST), que festejou seus 25 anos em ma agrária, foram perseguidos três objetivos:
verno brasileiro. janeiro de 2009: “MST-25 anos – por justiça a) a promoção internacional da estratégia de
Ambas as conferências da FAO consensu- social e soberania popular”. dupla tração para o combate à fome adotada
aram e definiram conceitos e parâmetros im- O tema da reforma agrária, de fato, trans- pelo “Fome Zero” – emergencial e estrutural,
portantes para as políticas de reforma agrária cende as motivações econômicas, situando-se como forma de garantir a segurança alimentar
como “limites-teto ao tamanho das proprie- no campo da justiça social, da promoção da e nutricional; b) melhor tutela dos interesses
dades privadas” (retomado parcialmente na democracia, da garantia dos direitos humanos, da agricultura familiar nas negociações inter-
Constituição de 1988 sob a forma de “função do desenvolvimento sustentável, da busca da nacionais; c) a promoção de temas estrutu-
social da terra”, estabelecendo limites à pro- segurança e da paz nos âmbitos nacional e rais, como o da reforma agrária, no âmbito
priedade da terra) e “segurança alimentar”, internacional. internacional.
emitidos na Conferência de 1979; e “soberania No plano estritamente político, uma das O Estado brasileiro buscou, dessa forma,
alimentar”, “direito de acesso à terra”, “justiça principais contribuições da reforma agrária adequar o tratamento dos temas de justiça
social” e “comércio justo”, conceitos resul- para a política externa brasileira tem sido a social distributiva e participativa no âmbito
tantes ou reforçados na Conferência de 2006. promoção da imagem do país como defensor da Chancelaria.
Com efeito, a reforma agrária é funda- da democratização dos meios de produção e De fato, o Estado é o principal garante
mental para a política externa brasileira por de consumo. Isso traz o aumento da legiti- da participação e da distribuição: que os
muitos motivos. Reporta-se ao direito coletivo, midade política e diplomática do Brasil nas diferentes sejam tratados de forma diver-
nacional, de acesso à terra, alicerçado por discussões internacionais sobre agricultura e sa, no que tange à promoção da equidade
Alexandre de Gusmão, pelo Visconde e pelo desenvolvimento social. e da justiça participativa, devendo ambos
Barão do Rio Branco. Vale notar que até a Revolução de 30 a os pilares da democracia aristotélica serem
A partir de 2003, o governo brasileiro monocultura exercera grande influência sobre protegidos, promovidos e providos pela auto- 23
tem assumido posições na política externa e as políticas interna e externa. Após 1930, com ridade pública. Decorre que tanto na política
Revista Direitos Humanos

interna em prol da concepção de que a terra exceção do Governo de João Goulart, a política interna, quanto na externa, convém estarem
representa um fator fundamental de segurança externa agrícola continuaria a pautar-se ma- em primeiro lugar os interesses daqueles em
alimentar e nutricional, de desenvolvimento, joritariamente pela defesa dos interesses do situação de maior vulnerabilidade de direitos
de justiça e de paz, tanto no âmbito nacional monocultivo. A partir de 2003, teve início um e que sua participação na elaboração e exe-
quanto no internacional. O Brasil tem advogado processo tardio, mas contínuo, de democra- cução das políticas públicas seja garantida,
Direito à Terra: Dimensão Internacional

para a equidade social e democrática. Para No oriente, a questão da ética nas relações rência às manufaturas inglesas e limitava o
ser ética, a política deve prover a inclusão de internacionais também encontra abrigo nas re- comércio destas, levou o Império a editar a
todos os cidadãos nos processos políticos flexões religiosas do chefe da igreja tibetana, Lei de Terras. Com ela, o acesso à terra pas-
e prover-lhes o acesso aos direitos e bens o Dalai Lama, para quem a área mais impor- sou a dar-se por meio da aquisição. No limiar
fundamentais. tante onde devem ser plantadas as sementes da libertação progressiva dos escravos e da
Para isso, faz-se necessária também uma do altruísmo é a das relações internacionais. chegada dos primeiros imigrantes alemães no
adequada institucionalidade, que garanta a Segundo ele, a verdade ainda estaria ausente Vale dos Sinos, em 25 de julho de 1824, a Lei
participação daqueles em piores condições em boa parte da vida política, principalmente 601, de 18/9/1850, teve por função precípua
socioeconômicas, defendendo e promoven- nas relações internacionais. As nações mais vetar a posse por meio do processo de apro-
do seus interesses em consonância com os fracas tenderiam a ser manipuladas e oprimi- priação de terras públicas, impedindo que os
objetivos inclusivos do Estado. das pelas mais fortes, assim como os setores escravos libertos pudessem ter acesso à terra
De fato, cabia ao Estado brasileiro tratar a mais fracos da maioria das sociedades, pelos por meio da ocupação. Em grande parte, a Lei
questão agrária de forma diferenciada também mais poderosos e influentes. Conclui que, de Terras iria configurar a estrutura fundiária do
no âmbito internacional. Em um país com enor- embora no passado a expressão da verdade país durante os séculos XIX e XX.
mes extensões de terras, públicas e privadas, a costumasse ser descartada como irrealista, No âmbito da política externa, o tema ter-
existência de agricultores sem-terra representa hoje ela é uma força imensa na mente humana ritorial sempre constituiu prioridade. De fato,
uma limitação ética e política, inclusive para e, por conseguinte, na formação da história.3 foi prioritário antes mesmo que o país contasse
a diplomacia, uma vez que demonstra a não A questão agrária remonta a 1500, quando com uma política externa própria, anteriormen-
garantia pelo Estado de um direito humano o latifúndio passaria a ser a forma de ocupação te à sua independência.
fundamental, o direito de acesso à terra para e exploração que iria caracterizar a produção Em 1750, a assinatura do Tratado de Madri,
os agricultores. agrícola no Brasil. Teve origem em Portugal, entre Portugal e Espanha, consagraria a defe-
No Brasil, sucessivas pesquisas de opinião sendo primeiramente implantado nas ilhas de sa de Portugal de novos limites para a então
têm identificado as igrejas como instituições Porto Santo e Madeira, no Arquipélago da Ma- colônia do Brasil, com base no princípio do
que gozam de maior credibilidade pública. deira, e no Arquipélago dos Açores. uti possidetis, que o Dicionário Aurélio define:
Com base nessa legitimidade, é pertinente A “concessão de uso” da terra era de di- “fórmula diplomática que estabelece o direito
citar o documento “Exigências Evangélicas e reito hereditário, não permitindo aos herdei- de um país a um território, direito esse fundado
Éticas da Superação da Miséria e da Fome”, ros a venda das terras ou a compra das terras na ocupação efetiva e prolongada, e indepen-
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil adjacentes. A terra, portanto, ainda não era dente de outro título qualquer”.6
(CNBB).1 Nele, defende-se a importância do considerada uma mercadoria.4 O negociador português, nascido em San-
acesso de todos os seres humanos à terra, à Desde o período colonial, as plantations tos, Alexandre de Gusmão, conseguiu que o
água, ao ar, às sementes e à tecnologia, defi- (latifúndios monocultores com a produção vol- Tratado fixasse novos limites para o Brasil,
nidos como fontes da vida e bens comuns e tada à exportação) se expandiram e lucraram ampliando em muito o território a que antes
a importância desses aspectos serem objeto com a exploração de mão de obra escrava. De Portugal fazia jus pelo Tratado de Tordesilhas
de regulamentação pelo poder público, não acordo com João Pedro Stedile5, as primeiras de 1494 e preanunciando os vastos contornos
podendo, segundo a CNBB, ficarem à mercê estatísticas macroeconômicas produzidas pelo do atual território brasileiro.
da propriedade privada e do mercado. Nesse Banco do Brasil, em meados do século XIX, Após a independência, no período impe-
sentido, o documento invoca a urgência de registram que o então Brasil Colônia exportava rial, o uti possidetis também seria invocado
reforma agrária e de política agrícola, para a 80% de toda a sua produção agrícola. pelo Visconde do Rio Branco, como princípio
redistribuição da terra e para o desenvolvimen- Em 1850, a pressão inglesa pelo fim do que deveria reger a demarcação dos limites
to da agricultura familiar e das cooperativas.2 tráfico de escravos, que representava concor- brasileiros.

24
1 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Exigências evangélicas e éticas da superação da miséria e da fome. São Paulo: Paulinas, 2002.
Revista Direitos Humanos

(Documentos da CNBB, n. 69).


2 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Exigências evangélicas e éticas da superação da miséria e da fome. São Paulo: Paulinas, 2002.
(Documentos da CNBB, n. 69).
3 OUAKI, Fabien. Imagine All the People: uma conversa com o Dalai Lama sobre temas polêmicos e atuais. Campinas: Versus, 2004.
4 STEDILE, J. P. A A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 15-31.
5 STEDILE, J. P. A A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 15-31.
6 HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Uti possi de tis. In: ____. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 5. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 1434.
Candido Portinari
No período republicano, a política externa
do Barão do Rio Branco também se caracteri-
zou pela defesa do tema territorial. Para isso,
empreendeu negociações de limites com todos
os países limítrofes e superou definitivamente
um dos principais entraves que um país conta
para suas relações externas: a delimitação das
fronteiras.
Tanto Gusmão quanto os Rio Branco,
pai e filho, este último principalmente na
defesa da soberania brasileira sobre o Acre,
recorreram ao princípio do uti possidetis. A
invocação do princípio como direito cole-
tivo, nacional, traria coerência à posterior
inclusão do direito de acesso à terra nos
âmbitos nacionais, na agenda diplomática
brasileira. A atual proteção, promoção e pro-
visão da reforma agrária pela diplomacia bra-
sileira decorreria, de forma lógica, do país
haver superado, no processo de definição
da própria soberania, a fase da defesa do
território para ingressar na etapa, igualmente
desafiadora, da defesa do acesso à terra nos
contextos nacionais, como direito humano Oitenta e cinco anos após o Tratado de taneamente, segundo critérios e graus de
fundamental, universal. Petrópolis, a função social da terra seria reco- exigência estabelecidos em lei, aos se-
guintes requisitos:
Euclydes da Cunha já percebera a urgência nhecida, protegida, promovida e provida pela I – aproveitamento racional adequado;
de se tratar o tema do acesso à terra e da Constituição de 1988, Capítulo III - Da Política II – utilização adequada dos recursos na-
justiça distributiva para a paz, como registrou Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, ar- turais disponíveis e preservação do meio-
-ambiente;
em “Os Sertões”.7 tigos 5, 184 e 186:
III – observância das disposições que re-
Na obra-prima, relata o profundo estra- Art. 5: Todos são iguais perante a lei, sem
gulam as relações de trabalho;
distinção de qualquer natureza, garantindo-
nhamento dos expedicionários do litoral em IV – exploração que favoreça o bem-estar
-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-
relação ao sertão, ao ponto de sentirem-se dos proprietários e dos trabalhadores.8
dentes no País a inviolabilidade do direito à
em terra estrangeira, em que a geografia, os vida, à liberdade, à igualdade, à segurança Por direito à terra nos âmbitos nacionais,
hábitos e até a língua eram diversos. Compre- e à propriedade, nos termos seguintes: entendem-se as duas definições consignadas
[...] XXIII – a propriedade atenderá sua nas “Diretrizes Voluntárias com o Objetivo de
ende-se, dessa maneira, a violência com que função social.
combateram seus próprios compatriotas, a [...]Art. 184: Compete à União desapropriar Apoiar a Realização Progressiva do Direito a
seus olhos, assimilados a estrangeiros. Canu- por interesse social, para fins de reforma uma Alimentação Adequada no Contexto da
agrária, o imóvel que não esteja cumprindo Segurança Alimentar e Nutricional”, apro-
dos marcaria, de fato, o paroxismo da fratura
sua função social, mediante prévia e justa
social brasileira. Ironicamente, aos soldados vadas pelos países-membros da FAO, em
indenização em títulos da dívida agrária,
vencedores, aguardava-os o confinamento com cláusula de preservação do valor real, 23/9/2004, cujos itens 8.1 e 8.10 dizem
social nas “favelas”, cuja etimologia e sig- resgatáveis no prazo de até vinte anos, a respeito ao direito à terra, como garantia do
partir do segundo ano de sua emissão, e direito à alimentação: 25
nificado representariam internacionalmente a
cuja utilização será definida em lei. 8.1 Os Estados deveriam facilitar o acesso
cicatriz mais visível da iniquidade socioeco-
Revista Direitos Humanos

[...] Art. 186: A função social é cumprida aos recursos e a sua utilização de forma
nômica brasileira. quando a propriedade rural atende, simul- sustentável, não-discriminatória e segura,

7 CUNHA, Euclydes da. Os Sertões: campanha de Canudos. São Paulo: PubliFolha, 2000.
8 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 2002.
Direito à Terra: Dimensão Internacional

de acordo com sua legislação nacional e foram estabelecidos em conjunto com a so- A partir de 2003, duas outras vertentes irão
com o direito internacional, e deveriam ciedade civil, que priorizou os relatos sobre realçar o tema da reforma agrária na agenda da
proteger os bens que são importantes para
a subsistência da população. Os Estados o direito à alimentação e o direito à terra em diplomacia. São elas a segurança e a soberania
deveriam respeitar e proteger os direitos relação a outros temas de grande relevância alimentares, para as quais a reforma agrária
individuais relativos aos recursos, tais como o meio ambiente, o acesso à justiça, o concorre de forma primordial.
como a terra, a água, os bosques, a pesca
direito à documentação civil básica, os direitos No Brasil e em âmbito internacional, é
e a pecuária sem discriminação de nenhum
tipo. Quando for necessário e apropriado, das pessoas idosas e à liberdade religiosa etc. reconhecido que a segurança alimentar e nu-
os Estados deveriam empreender uma re- O item 3.5 do relatório discorreu sobre a tricional e a soberania alimentar dependem
forma agrária, assim como outras reformas realização do direito à terra no Brasil, o que diretamente do acesso democratizado à terra.
de políticas em consonância com as suas
constitui a mais importante menção a esse A agricultura familiar apresenta níveis
obrigações em matéria de direitos huma-
nos e de conformidade com o estado de direito humano, interna e externamente, seu mais altos de produção e de produtividade
direito, a fim de assegurar um acesso eficaz reconhecimento pelo sistema das Nações Uni- de alimentos; produz com técnicas menos
e equitativo às terras e reforçar o cresci- das e a aceitação por parte dos países. agressivas ao meio ambiente, preservando o
mento em favor dos pobres.
8.10 Os Estados deveriam adotar medidas De forma complementar aos documentos patrimônio ambiental e permitindo uma me-
para promover e proteger a segurança da internacionais antes citados, um importante lhor ocupação socioeconômica do território
posse da terra, especialmente em relação instrumento teórico de que dispõem os agen- nacional, elemento fundamental inclusive para
às mulheres, aos pobres e aos segmentos
tes públicos brasileiros contemporâneos para a defesa do território produtivo.
desfavorecidos da sociedade, mediante
uma legislação que proteja o direito pleno tratar a questão agrária é a teoria “garantista” A crise de insegurança alimentar deflagra-
e em condições de igualdade a possuir do direito. Magistrados brasileiros, como o da em 2008 deixou patente a necessidade de
a terra e outros bens, incluído o direito à juiz Alexandre Morais da Rosa, da Comarca os países buscarem não apenas a segurança
herança. Caso corresponda, os Estados
de Porto União (SC), já aplicam o direito alimentar e nutricional, mas também a própria
deveriam estudar a possibilidade de es-
tabelecer mecanismos jurídicos e outros com base na teoria garantista. Em sentença, soberania alimentar. De fato, no primeiro se-
mecanismos de políticas, em consonân- o juiz afirma que todos os atores jurídicos mestre de 2008, o mercado mundial mostrou
cia com as suas obrigações internacio- devem ter para com a Constituição Federal sua fragilidade, na medida em que o aumen-
nais em matéria de direitos humanos e
de conformidade com o estado de direito, uma ligação imediata, direta e total, existindo to dos custos dos fretes impediu os países
que permitam avançar na reforma agrá- a necessidade orgânica de convergência das africanos de continuarem a importar arroz da
ria, para melhorar o acesso das pessoas práticas jurídicas aos regramentos constitu- Ásia, cujos principais exportadores também
pobres e das mulheres aos recursos. Tais
cionais relativos aos direitos fundamentais, adotaram políticas restritivas à exportação.
mecanismos deveriam promover também
a conservação e a utilização sustentável de sorte a estabelecer um sistema que ga- O mercado internacional, até então tido
da terra. Dever-se-ia prestar atenção ranta sua preservação e realização. Para ele, como absolutamente confiável, passou a ser
particular à situação das comunidades a principal tarefa do “ator garantista” seria visto como um provedor complementar.
indígenas.9
tutelar materialmente os direitos e garantias Para as posições externas do Brasil, no-
Durante a Assembleia Geral da ONU de
individuais e sociais. Os garantidores desse vos atores vêm sendo incluídos no processo
2008, o Conselho de Direitos Humanos reuniu-
sistema não poderiam, em face de violações de reflexão e elaboração, configurando outro
-se em grupo de trabalho para “Revisão Univer-
ou de ameaças de lesão aos direitos funda- aspecto da busca da ética pública, referente à
sal Periódica” do estado dos direitos humanos,
mentais constitucionalmente reconhecidos, promoção da democracia participativa.
para o qual o governo brasileiro apresentou
ser indiferentes ou admitir que legislações Com efeito, a maior democratização da
relatório nacional, conforme resolução daquele
infraconstitucionais os contrariem.11 política externa representa tendência interna-
Conselho (5/1, parágrafo 15 a).10
Decorre que, no paradigma garantista, os cional, de que é prova a crescente participa-
O parágrafo 5º do relatório em apreço
atores públicos, entre os quais se incluem evi- ção da sociedade civil, inclusive integrando
registrou que, tendo em vista a limitação de
dentemente os diplomatas, devem tutelar não delegações oficiais, nos foros internacionais.
26 páginas, fora necessário selecionar os tópicos
apenas a formalidade, mas principalmente o A política externa, de fato, também in-
a serem considerados. Os temas selecionados
conteúdo constitucional. flui no processo de reforma agrária nacional.
Revista Direitos Humanos

9 FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO. Diretrizes Voluntárias para o Direito à Alimentação. Brasília, 2005. p. 35-37.
10 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Documento A/HRC/WG.6/1/BRA/1.
11 ROSA, Alexandre Morais da. Autos nr. 052.01. Comarca de Porto União, SC. Disponível em: <http://www.juizesfree.hpg.com.br/governo_e_politica/93/index_int_to-
xico2.html>.
Em primeiro lugar, pelo princípio do uti pos- países da América Latina, com o Caribe, a e Desenvolvimento Rural, de 2006, prati-
sidetis. Originário do direito privado roma- África e a Ásia, de sorte a permitir um maior camente meio século após a aprovação da
no, foi habilmente utilizado por Alexandre conhecimento das experiências exitosas, resolução citada, de 1958, os países do Sul
de Gusmão para a negociação do Tratado de dos obstáculos enfrentados e das soluções não conseguiram incluir a proposta de criação
Madri (1750) e posteriormente pelo Viscon- encontradas para superá-los. Em segundo de “observatório” sobre a reforma agrária na
de e pelo Barão do Rio Branco para a defesa lugar, agindo diretamente no âmbito interno, Declaração Final da Conferência, em razão da
da soberania territorial brasileira. Oitenta por exemplo, por meio da colaboração para a oposição dos países do Norte. Por isso, o Bra-
e cinco anos após o Tratado de Petrópolis diminuição dos preconceitos culturais, arrai- sil passou a propor a regionalização crescente
(1903), que confirmou a soberania brasileira gados na sociedade e em muito reforçados da discussão da reforma agrária, uma vez que
sobre o atual Estado do Acre, o princípio do pela maioria dos meios de comunicação, a atual conjuntura política latino-americana
uti possidetis refletir-se-á no ordenamento articulando nesse esforço os órgãos dos favorece esse debate.
interno nacional, plasmado na Constituição poderes Executivo, Legislativo e a sociedade Da Conferência Mundial sobre Reforma
brasileira de 1988, em que se reconhece a civil organizada. Agrária e Desenvolvimento Rural de 1979
função social da terra (artigos 184 e 186) No contexto multilateral, a reforma agrá- resultaram Declaração de Princípios e Pro-
como fulcro e condição sine qua non do di- ria ocupou lugar central na Organização das grama de Ação, que conformaram a “Carta do
reito de propriedade. Nações Unidas para a Alimentação e Agricul- Campesino”, documento que conserva grande
No período de 1979 a 2006, a influência tura desde sua criação, em 1945, quando lhe atualidade. Aprovaram aquele documento re-
da política externa sobre a reforma agrária coube o mandato para o tratamento do tema presentantes de 145 países.12
no Brasil pode ser examinada por meio da no âmbito da ONU. A partir de 2003, o governo brasileiro tem-
identificação, da leitura e da análise de do- Com efeito, a 5a Conferência Regional da -se empenhado em implementar as principais
cumentos que precederam e prepararam a FAO para a América Latina (1958) já adotaria linhas dessa Carta. Discutida em um momento
realização das conferências mundiais da FAO resolução sobre o tema da reforma agrária, em que as contradições do capitalismo se
sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento antecipando em quase 50 anos os próprios acirravam, a “Carta do Campesino” reflete a
Rural de 1979 e 2006. resultados da Conferência Internacional so- tentativa dos setores democráticos interna-
O estudo das duas conferências da FAO bre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural cionais de buscarem uma via negociada para
demonstra que os conceitos mais importantes (CIRADR) em 2006. De fato, aquela resolução a superação dos conflitos, gerados pela má
que plasmaram foram inovadores. De fato, mar- de 1958 propusera a criação de Centro Regional distribuição da renda, da riqueza e da par-
cos conceituais como “limites-teto ao tama- sobre Reforma Agrária para a América Latina e o ticipação política. Convém recordar que no
nho das propriedades privadas”, “segurança Caribe, interesse que foi reiterado posteriormen- final dos anos 1970 movimentos armados
alimentar”, “soberania alimentar”, “direito de te pelos países latino-americanos na CIRADR. revolucionários surgiram tanto nos países em
acesso à terra”, “justiça social” e “comércio Na Conferência Mundial sobre Reforma desenvolvimento como nos países desenvol-
justo”, resultantes ou reforçados em ambas Agrária e Desenvolvimento Rural (CMRADR), vidos (Itália, Alemanha e Japão, entre outros).
as conferências, vêm sendo paulatinamente realizada de 12 a 20 de julho de 1979, já se Imersa nesse contexto de grande tensão social
incorporados pelos estados, tendo-se tornado reconhecera que na maior parte dos países internacional que em muitos casos levou a
parâmetros para as relações internacionais em economicamente subdesenvolvidos preva- guerras civis, a CMRADR aprofundou, entre
temas socioeconômicos. leciam estruturas agrárias insatisfatórias, outros temas, a busca de parâmetros que per-
Com efeito, a política externa pode co- constituindo um dos maiores obstáculos ao mitissem efetivamente o acesso à terra aos
laborar de muitas formas para a realização desenvolvimento econômico, ao impedir a camponeses sem-terra.
da reforma agrária em âmbito nacional. Em melhora do padrão de vida das populações, Na introdução à Carta do Campesino, o
primeiro lugar, reforçando o tema externa- particularmente dos trabalhadores rurais. então diretor-geral da FAO, Edouard Saouma,
mente, no contexto multilateral e no campo O estudo cronológico do tema da reforma qualificou-a de “a carta da população rural po-
da cooperação bilateral, e favorecendo o agrária no âmbito da FAO permite também bre”. Definiu o desenvolvimento rural como 27
intercâmbio organizado e estruturado sobre aferir a inflexão do multilateralismo, ao longo problema global que deveria ser abordado si-
Revista Direitos Humanos

os temas da reforma agrária e do desenvol- dos últimos 50 anos. Com efeito, na Confe- multaneamente nos âmbitos locais, nacionais e
vimento rural, principalmente com os demais rência Internacional sobre Reforma Agrária internacional: mediante a ação de instituições

12 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E A AGRICULTURA (FAO). Carta do Campesino. Roma: 1979.
Direito à Terra: Dimensão Internacional
Candido Portinari
Éticas de Superação da Miséria e da Fome”
(n° 69), editado por ocasião da comemoração
do Jubileu de Ouro de fundação da CNBB,
referir-se-á em seu parágrafo 63 à importância
da “campanha nacional pelo limite máximo da
propriedade da terra”.
A primeira razão dos limitados objetivos
alcançados pela Carta do Campesino pode
ser imputada à involução democrática inter-
nacional registrada no período posterior a
1979: ao invés do fortalecimento dos termos
de troca internacionais, houve seu progres-
sivo enfraquecimento; ao invés do fim do
protecionismo dos países desenvolvidos, o
aumento; ao invés da maior assistência fi-
nanceira e técnica, o neoliberalismo pregou a
rurais das comunidades, a reorientação de Destarte, introduz de forma inovadora diminuição do Estado; ao invés do incremen-
políticas nacionais de desenvolvimento e a o conceito de segurança alimentar, que no to da cooperação internacional, o término da
realização de uma “Nova Ordem Econômica Brasil só viria a ser adotado em 1993, com “Guerra Fria” traria uma redução ainda maior
Internacional”. a criação do Conselho Nacional de Seguran- da ajuda internacional, principalmente aquela
O prefácio da Carta do Campesino enun- ça Alimentar e Nutricional (Consea). Desde voltada à agricultura. Consequentemente, os
ciava conceitos políticos avançados, lembran- então, o conceito passaria a balizar cada vez países mais pobres, em que a agricultura
do que seria necessário oferecer à população mais as discussões sobre a reforma agrá- tem maior peso socioeconômico, tiveram
rural, pobre, acesso à terra e à água, aos in- ria, como se pode notar não apenas pelas seus recursos ainda mais dilapidados. Vale
sumos e serviços agrícolas, à extensão e à conclusões da Conferência Internacional citar o caso do Níger, que, obrigado a se-
pesquisa, assim como permitir-lhe participar sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento guir os ditames do Banco Mundial (BIRD)
do planejamento, da execução e da avalia- Rural (2006), mas também pelos trabalhos e do Fundo Monetário Internacional (FMI),
ção de programas de desenvolvimento rural. apresentados no Fórum Mundial de Reforma no sentido de reduzir seus sistemas nacio-
A importância da participação é ressaltada em Agrária, realizado em Valença, Espanha, em nais de vigilância animal, sendo a pecuária
outro trecho do prefácio, em que se afirma que dezembro de 2004. uma das principais fontes de renda do país,
o crescimento é necessário, mas não suficiente, Um dos pontos mais interessantes da Car- frequentemente encontra-se em estado de
devendo ser reforçado por meio da equidade e, ta do Campesino é aquele que estabelece que emergência humanitária.13
principalmente, da participação da população na essas estratégias devem incluir a imposição Nas décadas seguintes à Conferência de
formulação, execução e avaliação de programas de limites-teto ao tamanho das propriedades 1979, amplia-se a insegurança alimentar no
e políticas de desenvolvimento rural. Como se particulares (item A – Reorganização do sis- âmbito internacional. A polarização política das
pode verificar, a Carta pautou-se pela promoção tema de posse da terra, letra i). Trata-se de décadas de 1950, 1960 e 1970 decantou pou-
da justiça distributiva e da participativa. reivindicação permanente da sociedade civil cos assuntos consensuais: um deles foi a fome.
A Declaração de Princípios também tra- organizada, incorporada pelo Conselho Na- Lentamente, a segurança alimentar tornar-se-ia
ta da questão da equidade e da participação cional de Segurança Alimentar e Nutricional, questão prioritária nos foros internacionais.
social, ao enunciar a necessidade de acesso conforme mencionado anteriormente, prin- Com a eleição do presidente Lula, em
mais equitativo e completo à terra, à água e a cipalmente dos movimentos sociais inter- 2002, passados 25 anos da Conferência Mun-
28 outros recursos naturais; a ampla participação nacionais e da própria Igreja Católica. Com dial sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento
no poder econômico e político; e o aumento efeito, 23 anos após a Carta do Campesino, Rural (1979), iniciar-se-iam as articulações
Revista Direitos Humanos

da produção, da produtividade e da segurança o documento da Conferência Nacional dos para trazer de volta à pauta internacional o tema
alimentar para todos os grupos. Bispos do Brasil “Exigências Evangélicas e da reforma agrária.

13 ZIEGLER, Jean. Los nuevos amos del mundo. Barcelona: Destino/Colección Imago Mundi, 2003. v. 29.
Em 2003, o Ministério do Desenvolvimen- intergovernamentais e mais de 150 organi- prioridades da reforma das Nações Unidas pro-
to Agrário, em coordenação com o Itamaraty, zações da sociedade civil. Durante os cinco postas em 2005 pelo então secretário-geral
iniciou as gestões nacionais e internacionais, dias da Conferência, houve amplo debate entre da ONU, Kofi Annan: os direitos humanos, a
visando à realização de uma nova conferência representantes de governos e da sociedade segurança (“o democrático império da lei”) e
sobre reforma agrária e desenvolvimento rural, civil, atestando a importância do diálogo o desenvolvimento.
também sob a égide da FAO. sobre políticas públicas para o acesso mais Relacionou-se também na Declaração a
A proposta brasileira foi aprovada pelo equitativo à terra e ao desenvolvimento rural, estreita união que guardam na atualidade re-
Comitê de Agricultura da FAO, em sua 19a como condição para a garantia da segurança forma agrária, segurança alimentar e direito
Sessão, como parte da estratégia de cumpri- alimentar e nutricional e da dignidade huma- à alimentação. Buscou-se deixar claro que a
mento dos compromissos da Cúpula Mundial na. Vinte e sete sessões temáticas também fome, a falta de acesso à terra, à água e a outros
da Alimentação de 1996, da Cúpula Mundial permitiram a discussão aprofundada de temas insumos eram consequências de processos
sobre Desenvolvimento Sustentável e das Me- relacionados à CIRADR. políticos, não de limitações naturais.
tas de Desenvolvimento do Milênio. Na 128a A delegação brasileira foi composta por Retomou-se a justiça social, distributiva e
Sessão do Conselho da FAO (20 a 24 de junho 25 delegados, sendo 12 representantes de participativa, como fulcro da reforma agrária.
de 2005), a proposta de realização da Confe- governo, 12 de sociedade civil e um repre- De fato, o acesso representa elo de grande
rência, exarada do Comitê de Agricultura, foi sentante do Consea (composto de 2/3 de potência com a garantia dos direitos humanos,
referendada pelo pleno do Conselho, ficando representantes da sociedade civil e 1/3, de principalmente com o direito à alimentação,
a data fixada para 6 a 10 de março de 2006. governo). Foi chefiada pelo então ministro uma vez que a produção mundial de alimentos
Para organizar a CIRADR, estabeleceu-se do Desenvolvimento Agrário, Miguel Ros- é superior às necessidades atuais, constituin-
um Comitê Nacional, integrado por represen- setto, ao qual também coube a presidência do a fome um fenômeno político, como bem
tantes de Governo e da sociedade civil. Em da Conferência. afirmou Josué de Castro.15
Roma, foi estabelecido Comitê Diretor no âm- A Declaração Final da CIRADR sintetiza o O documento também demonstraria atu-
bito da FAO, composto por representantes dos encontro, sumaria consensos e aponta obje- alidade ao mencionar um dos temas que têm
grupos regionais, com a participação do país tivos comuns. A delegação brasileira esteve sido tratados com maior prioridade no âmbito
anfitrião, o qual tinha por secretário-executivo representada no comitê de redação, em re- das reformas da ONU: a questão humanitária,
servidor do Secretariado da FAO. O Conselho presentação da América Latina e do Caribe, cuja importância cresce em razão direta do
também solicitou aos Estados membros dis- e contribuiu para a qualidade do documento. aumento dos conflitos, fruto do unilateralis-
ponibilizarem recursos extraorçamentários, de Vale mencionar que a representação bra- mo, e das alterações climáticas e ambientais.
modo a garantir uma Conferência exitosa e sileira no Comitê de Redação contou também Trata-se de abordagem moderna do tema, que
apoiar a participação dos países menos de- com a ampla participação dos representantes estabelece conexão estreita entre a resposta e
senvolvidos. Recomendou ainda que canais e da sociedade civil que integravam a delegação a recuperação. Ao lado disso, vincula o de-
outros mecanismos de comunicação fossem brasileira, permitindo que a visão governa- senvolvimento socioeconômico à prevenção
estabelecidos, para garantir a participação mental fosse complementada com a pers- de desastres naturais, uma vez que efetiva-
de governos e sociedade civil no processo pectiva da sociedade civil, inclusive daquela mente aquele permite reduzir a ocorrência de
preparatório e na própria Conferência. internacional. desastres ou minorar seus efeitos. O contrário
Sob a inspiração do combate à fome e da Na Declaração Final da CIRADR, a reforma também se verifica: o menor desenvolvimento
segurança alimentar e nutricional, a CIRADR agrária e o desenvolvimento rural são vistos socioeconômico está na proporção direta, in-
foi aberta pelo presidente da República em como centrais para a promoção do desenvol- clusive de geração, dos maiores danos, uma
exercício, José Alencar Gomes da Silva, e pelo vimento sustentável, no qual estão incluídos vez que a pobreza rural engendra e registra o
diretor-geral da FAO, Jacques Diouf. os direitos humanos, a segurança alimentar maior número de vítimas dos desastres naturais
Participaram da Conferência 1,4 mil de- e a justiça social, conceito este que coloca a ou daqueles causados pelo homem.
legados de 96 países-membros da FAO14, 25 ética pública no centro da retomada da reforma Com base nessa visão, no parágrafo 29, 29
ministros de estado, oito organismos especia- agrária no âmbito internacional. Coincidiram, último da Declaração, são estabelecidos
Revista Direitos Humanos

lizados das Nações Unidas, seis organizações de certa forma, essas três vertentes com as os “Princípios da CIRADR”. Nele, vários

14 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Telegrama 214/06 da Representação junto à FAO.


15 CASTRO, Josué de. A explosão demográfica e a fome no mundo. CASTRO, A. M. de (Org.). Fome: um tema proibido. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.
Direito à Terra: Dimensão Internacional

conceitos que permeiam o documento são tarda em incorporar ao ordenamento nacional processos de tomada de decisão e na subs-
retomados, como a definição abrangente de “limites-teto” ao tamanho das propriedades, tância das matérias que defende a maior
reforma agrária; a importância da participação conforme propugnado pela Carta do Campe- gama possível (e na devida proporção de
da sociedade civil; da democracia participa- sino, resultante daquela Conferência de 1979. cada segmento) de interesses do conjunto
tiva; da inclusão social; do acesso igualitário No que tange à Conferência Internacional da sociedade que representa. Nesse sentido,
aos bens de produção primários; da maior sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Ru- cabe à política externa refletir adequadamente
igualdade social; da segurança alimentar; ral, de 2006, os conceitos plenamente expres- os interesses dos contingentes populacionais
do combate à fome; da descentralização; do sos na Declaração Final (soberania alimen- que dependem da reforma agrária para o aces-
desenvolvimento sustentável; da igualdade de tar, justiça social, comércio justo) e aqueles so à terra e da agricultura familiar para o seu
gênero; da atenção especial aos agricultores que obtiveram consenso apenas para serem desenvolvimento socioeconômico, inclusive
sem-terra, entre outros. Traduziu-se, dessa esboçados (direito de acesso à terra, como o direito à alimentação.
forma, a compreensão comum mínima, porém corolário da realização dos direitos humanos; Com efeito, para o desenvolvimento e a
consensual, de que o relançamento da reforma diretrizes voluntárias para a realização do direi- segurança da nação, a política externa e a
agrária e do desenvolvimento rural deveriam to de acesso à terra nos âmbitos nacionais; e política interna têm deveres. Porém, a política
estar ancorados na ética pública, na justiça a criação de observatório internacional para o externa guarda também a responsabilidade
social distributiva e participativa. acompanhamento dos programas nacionais de primária pelo desenvolvimento e a segurança
O Fórum Paralelo “Terra, Território e reforma agrária) encontraram posteriormente do conjunto das nações e da razão de ser
Dignidade”, promovido pela sociedade ci- grande interesse e aplicação nos âmbitos na- destas: seus cidadãos, detentores de direitos,
vil internacional, paralelamente à CIRADR, cionais e internacional. que devem ser protegidos, promovidos e,
realizado na mesma Pontifícia Universidade Com base nos preceitos emitidos por oca- quando necessário, providos pelos Estados.
Católica de Porto Alegre, sede da Conferência, sião de ambas as conferências internacionais Demais, a política externa é responsável in-
atraiu mais de 350 participantes, pertencentes sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Ru- clusive por todos aqueles que, por razões
a 210 organizações, oriundas de 67 países. ral de 1979 e 2006, é possível concluir que alheias à própria vontade, perderam a pro-
Foi organizado pelo Comitê Internacional a defesa internacional do direito de acesso à teção nacional.
de Planejamento da Sociedade Civil para a terra pela diplomacia brasileira é fundamental Cabe à política externa, principalmente,
Soberania Alimentar (CIP), que coordenou a para a garantia da segurança alimentar e dos permitir que os direitos fundamentais, como
participação da sociedade civil internacional direitos humanos internacionalmente, de for- o direito à terra, tornem-se universais, reli-
nos eventos preparatórios e na própria Con- ma que se possam atingir os objetivos éticos gando a construção socioeconômica do país
ferência, e pela Via Campesina Internacional, que toda democracia deve perseguir: justiça àquela da vida internacional, a exemplo do que
que o integra. Criada em 1992, em Manágua, distributiva e participativa. Dessa maneira, as fizeram Alexandre de Gusmão, o Visconde e
a Via Campesina Internacional coordena orga- posições brasileiras internacionais serão ainda o Barão do Rio Branco, ao traduzirem em di-
nizações camponesas de pequenos e médios mais legitimadas, permitindo que o país, refor- reito internacional público a função social da
trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e co- çando as dimensões da soberania, inclusive terra, o uti possidetis. A diplomacia brasileira
munidades indígenas. alimentar e energética, por meio do acesso à alcançou um novo patamar, em que a política
As conclusões do Fórum foram apresen- terra e, quando necessário, da reforma agrária, externa está baseada em princípios e direitos,
tadas em sessão plenária da Conferência e possa atingir seu destino de potência, pela via inclusive os indivisíveis direito à vida, à ali-
incorporadas ao relatório final da CIRADR. da defesa dos princípios. mentação e à terra.
Nesse sentido, ambas as conferências in- De fato, o acesso à terra, por meio da Levando-se em conta a hermenêutica an-
ternacionais sobre Reforma Agrária e Desen- reforma agrária nos casos em que esta seja tes mencionada do “garantismo”, que insta os
volvimento Rural, de Roma 1979 e de Porto necessária, constitui uma das principais for- agentes públicos à defesa dos direitos funda-
Alegre 2006, estabeleceram parâmetros im- mas de política pública distributiva, uma vez mentais, os diplomatas brasileiros poderão
30 portantes para a reflexão internacional e nos que garante o direito humano fundamental, o contribuir para proteger, promover e prover a
âmbitos nacionais. direito à alimentação adequada, por meio do aplicação dos referidos conceitos, no âmbi-
Revista Direitos Humanos

No caso da Conferência de 1979, a segu- uso do principal insumo para a produção de to nacional e internacional, em consonância
rança alimentar foi incorporada como parâ- alimentos, a terra. com o artigo 4º da Constituição Federal, que
metro de desenvolvimento, nacional e inter- Tendo como parâmetro a justiça social, estabelece que as relações internacionais do
nacionalmente, sendo o Brasil uma referência a política externa é tanto mais participativa, país deverão reger-se pela prevalência dos
mundial no tema. Entretanto, o país ainda democrática, quanto mais reflete em seus direitos humanos.
Jane Felipe, professora da Faculdade de Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Candido Portinari (UFRGS) e integrante do Grupo de Estudos de
Educação e Relações de Gênero (Geerge).

Pedofilização como
Prática Social
Contemporânea nos 31

Sites para Crianças


Revista Direitos Humanos
Pedofilização como Prática Social Contemporânea nos Sites para Crianças

O
Candido Portinari
presente artigo pretende discutir e
analisar os conteúdos presentes em
alguns sites destinados ao público
infantil, mostrando o que eles veiculam, es-
pecialmente no que diz respeito às relações
de gênero e sexualidade. Afinal, quais são os
limites do exercício da sexualidade quando as
crianças estão, de algum modo, envolvidas?
A partir do referencial teórico dos Estudos
Culturais e dos Estudos de Gênero, em uma
abordagem pós-estruturalista de análise, utilizo o
conceito de pedofilização para analisar determi-
nadas práticas em torno da erotização dos corpos
infantis com o objetivo de problematizar algumas
interessantes contradições percebidas nas socie-
dades contemporâneas, pois ao mesmo tempo
em que se criam leis que visam proteger a in-
fância e a adolescência contra os maus-tratos,
a negligência, o abandono, a violência/abuso
sexual, a exploração sexual e a pedofilia, por
outro lado, essa mesma sociedade legitima de-
terminadas práticas sociais, seja através da mídia
– publicidade, novelas, programas humorísticos
–, seja por intermédio de músicas, filmes etc.,
em que os corpos infantojuvenis são visibiliza-
dos de forma extremamente erotizada, através
de expressões, gestos, roupas e falas, modos
de ser e de se comportar. Corpos que se
colocam como objeto de desejo e de consumo
(FELIPE, 2006, 2010).
Nas últimas décadas, tem sido possível
observar um borramento de fronteiras entre os
conceitos de erotismo, pornografia e obsceni-
dade. Tal borramento tem se dado também em
relação às faixas etárias – infância, juventude e
idade adulta. Com as novas tecnologias dispo- estimados em cifras milionárias. Os dados situada na Nova Zelândia, realizou uma
níveis para incrementar o embelezamento e o referentes ao mercado de produtos no Brasil pesquisa2 com um total de sete mil usuários
rejuvenescimento, acrescido de uma determi- disponibilizados pela Associação Brasileira de internet de oito países: 55% do total eram
nada performance corporal, temos presenciado das Empresas do Negócio Erótico e Sensual brasileiros, considerados os atuais campeões
uma supervalorização da juventude, estado al- (conforme levantamento realizado no ano de de acesso a sites de cunho pornográfico.
mejado tanto por crianças quanto por adultos. 2009) revelam a expansão do mercado por- Paralelamente ao mercado pornográfi-
32 Em relação à pornografia, pesquisa re- nográfico, em especial de materiais e produ- co adulto, a ampliação no acesso à internet
alizada por Liliane Madruga (2011) mostra tos cujo acesso é facilitado pela rapidez das culminou também numa maior visibilidade
Revista Direitos Humanos

que a indústria pornográfica movimenta um informações veiculadas na internet.1 No ano das questões referentes à pornografia infan-
amplo mercado consumidor, cujos lucros são de 2009, a empresa de tecnologia Symantec, til e pedofilia. O relatório de 2009 intitulado

1 Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/economia/mercado-erotico-cresce-15-ano-brasil>. Acesso em: 30 abr. 2010.


2 Disponível em: <http://pt.shvoong.com/humanities/1777637-brasileiros-s%C3%A3o-campe%C3%B5es-em-acessar/>. Acesso em: 30 abr. 2010.
“On line Child Abuse and Sexual Exploitation”3,
publicado anualmente pela Organização não
Governamental (ONG) italiana Telefono Arco- Os sites infantis como artefatos
baleno, mapeou, em todo o mundo, 49.393
sites de conteúdo pornográfico infantil, o que
culturais contribuem para a produção e
representa um aumento de 16,5% em compa- disseminação de determinados padrões,
ração ao ano de 2008. Os dados coletados
apontam que diariamente são disponibilizados produzindo efeitos de verdade, como o
em torno de 135 novos sites de pornografia
infantil, os quais são acessados por, aproxi-
culto ao corpo e de toda a parafernália
madamente, 100 mil pessoas por dia. O nú- tecnológica para mantê-lo jovem.
mero expressivo de acessos tem despertado a
atenção das empresas ligadas ao mercado do
sexo que procuram esses sites para anunciar O que os sites de jogos ensinam a roupa da babá, por exemplo. Outro jogo inti-
seus produtos contando com cerca de 3,5 mil às crianças tulado “Enfermeiras impertinentes” traz essas
sites desse tipo financiados por publicidade. Nos últimos anos, tem havido uma ace- profissionais com roupas curtas, mostrando
Tal processo, em toda a sua complexida- lerada expansão da indústria midiática e do os seios para os pacientes. Em outros jogos
de, tem levado à inclusão de crianças como universo on-line. A diversidade de conteúdos as mulheres são tratadas como mero obje-
objeto de desejo e consumo, seja de modo veiculados, em particular, nos sites classifica- to sexual para o deleite masculino. Garotas
mais explícito, pela pornografia infantil, seja por dos como “infantis”, estão repletos de jogos, lavam carros seminuas, enquanto os donos
mecanismos mais sutis e difusos em relação chats, histórias e inúmeras outras atividades. dos automóveis ficam observando a cena e
aos modos de ser e se comportar de crianças e Pesquisa desenvolvida por Liliane Madru- oferecendo dinheiro.
adolescentes. Poderíamos, então, nos pergun- ga (2011)4 mostra que os sites classificados Percebe-se ainda que grande parte dos
tar: até que ponto não estaríamos construindo como “infantis” possuem portas de acesso jogos voltados para o público infantil esta-
um olhar pedófilo, incitando a produção de para páginas eróticas ou com materiais por- belece divisões rígidas de gênero. No caso
masculinidades e feminilidades pautadas nessa nográficos e também a diversas salas de bate- de sites voltados para as meninas, a ênfase
lógica da exibição dos corpos? Não estaríamos -papo. Em relação a este aspecto, pesquisas recai sobre as atividades voltadas ao culto e
construindo um olhar masculino em torno das realizadas pela Organização não Governamen- embelezamento do corpo, aos cuidados da
meninas, colocadas apenas como objeto de tal SaferNet apontam que pelo menos seis em casa e à busca do par perfeito. No que tange
desejo e sedução? Ao incentivarmos a divul- cada dez crianças já mantiveram contatos com aos meninos, observa-se que a maioria das
gação de imagens erotizadas, não estaríamos pessoas desconhecidas na internet. A divul- atividades propostas compreende jogos de
construindo apenas um modo de representá- gação de materiais de cunho erótico é feita ação, raciocínio matemático ou velocidade.
-las? É possível perceber o quanto as meninas através dos próprios sites por meio de ícones Portanto, os sites infantis como artefatos cul-
e os adolescentes estão sendo subjetivados por (em geral desenhos ou palavras estrangeiras), turais contribuem para a produção e dissemi-
tais pedagogias da sexualidade (LOURO, 1997, muitos dos quais sem aviso ou qualquer restri- nação de determinados padrões, produzindo
1999; FELIPE, 1999). Elas aprendem que, para ção. As atividades propostas incluem jogos de efeitos de verdade, como o culto ao corpo e de
serem desejadas, amadas, valorizadas, preci- quebra-cabeça, memória, tiro ao alvo, com ce- toda a parafernália tecnológica para mantê-lo
sam se comportar de determinada forma, que o nas eróticas envolvendo desenhos animados jovem (FELIPE; GUIZZO, 2004). Em alguns
poder das mulheres está constantemente referi- popularmente conhecidos do público infantil. dos sites pesquisados há um incitamento
do e atrelado à sua capacidade de sedução, que A princípio, os jogos parecem inocentes e para que a criança experimente jogos eróti-
passa por um belo corpo e a utilização deste atrativos, mas em seguida a criança descobre cos (beijar o namorado ou o super herói) e
como performático (FELIPE, 2008, 2010). que ela ganhará mais pontos se conseguir tirar engane os adultos: 33
Revista Direitos Humanos

3 Disponível em: <http://www.telefonoarcobaleno.org/report2009-eng_web.pdf>. Acesso em: 4 jun. 2010.


4 Alguns dos sites foram acessados através do Google mediante a escrita da expressão “sites infantis”, o que resultou na indicação de uma infinidade de sugestões de
endereços eletrônicos contendo os mais variados conteúdos. Alguns dos sites pesquisados:
Jogo da Babá safadinha: Disponível em: <http://www.ejogosonline.com.br/jogos-de-humor/baba-safadinha.html>.
Jogo da Lavagem de carros: Disponível em: <http://www.games2win.com/en/funny/play-naughty_car_wash.asp>.
Jogo Enfermeiras impertinentes: Disponível em: <http://pt.ogigames.com/5273/enfermeiras-impertinentes-jogo#play>.
Pedofilização como Prática Social Contemporânea nos Sites para Crianças

Clique e segure para beijar enquanto o Os artefatos culturais contemporâneos, em nos sites e demais artefatos culturais voltados
chefe está dormindo, mas cuide para que especial a cultura visual a que temos amplo para crianças? Quais são os limites (nossos,
ele não flagre vocês! Quanto mais tempo
você beijar, mais pontos você vai ganhar. acesso, apelam para uma convocação do exer- das crianças, da mídia, da arte, das tecnologias,
Marque 1.000 pontos em 200 segundos cício da sexualidade, de modo que crianças e do poder público)? Em tempos de diversidade
para vencer o jogo5. adolescentes são cada vez mais cedo interpe- e de borramento de fronteiras das mais varia-
Quando os vilões não estiverem olhando,
lados por tais discursos. Que concepções de das ordens, será que ainda existe sentido em
aproveite e... Realize seu velho sonho de
beijar o misterioso e heróico aracnídeo gênero e sexualidade estão sendo produzidas falarmos de limites?
neste jogo online! Mas não dê bobeira: os
vilões estão só esperando uma chance para
pegar o Homem-Aranha distraído. Portanto, Referências BIBLIOGRÁFICAS
só beije quando ninguém estiver olhando!6 BUCKINGHAM, David. Crescer na era das mídias eletrônicas. São Paulo: Loyola, 2007.
Outro dado curioso nos jogos até agora ana- FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo? Cadernos Pagu, Núcleo de Estudos de
lisados consiste no fato de a criança ser incitada Gênero – Pagu/Unicamp, n. 26, 2006. p. 201-223.
a ludibriar o adulto, além de ser incentivada a de- ______. Erotização dos corpos infantis. In: LOURO, G. L. et al. (Org.). Corpo, gênero e
senvolver práticas de sedução (tirar a roupa, por sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 5. Ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
exemplo). Alguns desses jogos estão localizados ______. Gênero e sexualidade nas pedagogias culturais: implicações para a educação
em páginas que apresentam um menu de vídeos infantil. Disponível em: <http://www.ced.ufsc.br/~nee0a6/SOUZA.pdf>. Acesso em: 28 fev. 2008.
pornográficos caseiros, com jovens (algumas ______. Entre tias e tiazinhas: pedagogias culturais em circulação. In: SILVA, Luiz Heron.
delas adolescentes) que se exibem diante da (Org.). Século XXI: qual conhecimento? Qual currículo? Petrópolis: Vozes, 1999.
webcam. Parece não haver nenhum controle em FELIPE, J.; GUIZZO, B. S. Entre batons, esmaltes e fantasias. In: MEYER, D.; Soares, Rosângela.
relação ao que a criança pode acessar na rede. (Org.). Corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre: Mediação, 2004.
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.
Pedagogias Culturais e
Petrópolis: Vozes, 1997.
Educação para a sexualidade:
um amplo debate ______.(Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
MADRUGA, Liliane. Infâncias, cibercultura e pedofilização: o que se ensina e o que se
A partir da compreensão de que a educação
aprende no ambiente virtual? Porto Alegre: PPGEDU (Proposta de Tese de Doutorado), 2011.
acontece numa variedade de locais sociais, para
além do espaço escolar, e que as pedagogias
Sites consultados
culturais produzem conhecimentos e ensinam
<http://diganaoaerotizaoinfantil.wordpress.com/007/10/23/aracelli-simbolo-da-violencia/>.
modos de ser e estar no mundo, cabe aqui pensar
Acesso em: 18 out. 2008.
o que tais pedagogias têm produzido no campo da
<www.jogueaki.com.br> Acesso em: 19 nov. 2008.
sexualidade e a importância de ampliarmos essa
<http://midiaboom.com.br/2010/02/18/confira-os-dados-do-facebook-que-comemora-
discussão na escola (especialmente na formação
6-anos/> Acesso em: 5 maio 2009.
de professores/as), promovendo uma educação
<http://www.jogueaki.ig.com.br/jogos-online.php?jogo=spider-man-kiss>. Acesso em:
para a sexualidade que respeite as diferenças e
5 maio 2009.
construa relações mais igualitárias. Também em
<http://www.supermeninas.com.br/namoro/chelsea_clinton_wedding_kiss-2999.html>.
várias áreas do conhecimento que, de uma forma
Acesso em: 7 ago. 2010.
ou de outra, deparam-se com questões em torno
<http://www.supermeninas.com.br/namoro/naughty_hospital-985.html>. Acesso em:
da sexualidade e das relações de gênero, tornam-
7 ago. 2010.
-se necessárias e urgentes essas reflexões. Tanto
<http://www.supermeninas.com.br/namoro/occupational_hazard-979.html>. Acesso em:
crianças quanto adolescentes, jovens e adultos
7 ago. 2010.
podem ser desafiados a pensar nas formas como
34 <http://www.supermeninas.com.br/namoro/gourmet_kiss-1103.html>. Acesso em: 11
os sujeitos estão sendo produzidos, como suas
ago. 2010.
Revista Direitos Humanos

identidades, inclusive as sexuais, vêm-se cons-


<http://www.girlsgogames.com.br/jogo/beijos_no_estabulo.html>. Acesso em: 11 ago. 2010.
tituindo a partir de diferentes discursos.

5 Disponível em: <http://www.girlsgogames.com.br/jogo/beijos_no_estabulo.html>.


6 Disponível em: <http://www.jogueaki.ig.com.br/jogos-online.php?jogo=spider-man-kiss>.
Candido Portinari

Política Nacional para a


População em Situação
de Rua:
o protagonismo
dos invisibilizados

Maria Carolina Tiraboschi Ferro, formada em Administração


de Empresas pela Universidade de São Paulo (USP) e mestranda da
Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO-Argentina). 35
Atua no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos em São Paulo e é
Revista Direitos Humanos

pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos


Sociais e Ação Coletiva (Nepac-Unicamp).
Política Nacional para a População em Situação de Rua

N
o Brasil, historicamente, coexistiram aumento do trabalho informal e do subemprego Tem-se início um esforço para construir
dois tipos de políticas públicas des- (SILVA, 2009; ROSA, 2005). No entanto, em políticas de inclusão social no âmbito federal
tinadas à população em situação de geral, a década de 1990 esteve caracterizada para este segmento da população brasileira.
rua.1 Um primeiro tipo de política, que remonta por escassas políticas sociais na esfera mu- Assim, a partir de 2005, por intermédio do
à origem das ruas, é a criminalização e repres- nicipal e estadual e pela ausência de políticas Ministério de Desenvolvimento Social e Com-
são dessas pessoas por agentes públicos. O de inclusão no âmbito federal. bate à Fome (MDS), inicia-se um processo sem
uso da violência tem sido prática habitual para O enredo dessa história começa a mudar precedentes na história do Estado brasileiro de
afastar essas pessoas dos centros urbanos e no início do século XXI, mais precisamente a discussão sobre o fenômeno social das pessoas
levá-las para áreas remotas ou para outros mu- partir do ano de 2004. Nesse ano, o massacre em situação de rua. Igualmente, de forma tam-
nicípios, em nítidas políticas de higienização de moradores de rua ocorrido na Praça da Sé, bém inédita, o Governo Federal promove várias
social. Esse tipo de ação estatal reflete, é claro, em São Paulo, foi o ponto de inflexão deter- iniciativas que possibilitaram a participação da
a cultura dominante em nossa sociedade de minante para o início do processo nacional de sociedade civil na discussão e formulação de
discriminação e culpabilização do indivíduo articulação e organização das pessoas em situ- políticas públicas destinadas a essa população.
por estar e morar nas ruas, visão que é proje- ação de rua. Esse triste episódio fez com que Esta mudança aponta para um projeto político
tada e estimulada por diversos meios de co- as experiências existentes de organização, por não apenas diferente, mas antagônico ao que
municação. O segundo tipo de política consiste exemplo, em Belo Horizonte, São Paulo e Porto vinha sendo praticado historicamente pelo Es-
na omissão do Estado e, como consequência, Alegre se unissem para lutar contra a violência tado. Um projeto no qual, pela primeira vez, a
na cobertura ínfima ou inexistente das políticas e impunidade. Esse processo de mobilização inclusão dos “invisíveis” torna-se importante.
sociais para este segmento em todos os três da sociedade civil pela dignidade da população
níveis de governo (municipal, estadual e fede- de rua e por políticas públicas de inclusão Construindo uma perspectiva
ral), ou seja, a invisibilidade do fenômeno para confluiu com a sensibilidade mostrada pelo intersetorial das políticas
públicas e a participação da
o poder público. Nesse sentido, a ausência de presidente Luiz Inácio Lula da Silva diante da
sociedade civil
políticas sociais é também uma política. problemática e expressada, por exemplo, em
É somente a partir do final da década de suas visitas anuais aos catadores de materiais No dia 25 de outubro de 2006, foi decretada
1980 e principalmente durante a década de recicláveis e à população em situação de rua (Decreto s/n) pelo presidente da República a
1990 que o problema começa a ser incorpo- por ocasião do Natal. Essa confluência de criação de um Grupo de Trabalho Interministe-
rado, a partir de uma nova visão, na agenda elementos possibilitou que a problemática rial (GTI) com o objetivo de apresentar propos-
de alguns governos municipais e aparecem as em questão se tornasse parte da agenda do tas de políticas públicas e realizar estudos sobre
primeiras iniciativas na intenção de criar polí- Governo Federal. a população em situação de rua. A instituição do
ticas públicas de atenção e inclusão social das
pessoas em situação de rua. Nesse sentido,
São Paulo e Belo Horizonte foram municípios
pioneiros, ambos durante gestões do Partido
O massacre de moradores de rua ocorrido
dos Trabalhadores (PT). Essa mudança na atu- na Praça da Sé, em São Paulo, foi o ponto
ação de alguns governos esteve associada à
expressiva intensificação do número de pes- de inflexão determinante para o início do
soas que faziam uso do espaço público como
lugar de moradia e sobrevivência nas grandes
processo de articulação e organização
e médias cidades devido, principalmente, às das pessoas em situação de rua no
transformações no papel do Estado (vinculadas
à adoção de políticas neoliberais) e às mu- âmbito nacional.
36 danças no mundo do trabalho que levaram ao
Revista Direitos Humanos

1 Dada a heterogeneidade e a complexidade da população em situação de rua é difícil chegar a uma definição que englobe e caracterize todos os seus
integrantes. O Governo Federal vem utilizando a seguinte definição: “Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que
possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza
os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de
acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.” (BRASIL, 2009)
GTI, com a participação de diversos ministérios, No início do processo de construção da riais capazes de gerar alternativas de saída, com
foi um passo fundamental no sentido de ampliar Política Nacional, conhecia-se pouco sobre o dignidade, da situação em que se encontram.
o foco das políticas sociais destinadas à po- perfil das pessoas em situação de rua, não O surgimento do MNPR foi significativo para a
pulação em questão, comumente centrado na se sabia a dimensão do problema no âmbito construção da Política Nacional e para outros
assistência social, para incorporar as áreas de nacional e não se tinha clareza sobre o que processos democráticos, pois por intermédio
saúde, educação, direitos humanos, habitação, significava incluir socialmente essas pessoas. do MNPR as próprias pessoas em situação de
trabalho e cultura. A participação da sociedade civil no processo rua passaram a ser sujeitos nos debates sobre
O fenômeno das pessoas em situação de foi fundamental para promover um diálogo com a sua realidade e na construção de proposições.
rua é complexo, multicausal e precisa ser en- o Governo Federal que possibilitasse a cons- Dessa forma, aqueles que sempre foram vistos
frentado de forma estruturante, tendo como nor- trução de conhecimento sobre essa população até como “inúteis” para reprodução do sistema
te uma perspectiva de integralidade e dignidade e o desenho de políticas públicas que fossem social econômico e, muitas vezes, como “apolí-
do ser humano. Nesse sentido, argumenta-se adequadas às suas necessidades. ticos” se revelaram atores capazes de apresentar
que as políticas públicas precisam ser interse- Historicamente, as conquistas da política proposições, de debater e também sujeitos pos-
toriais para promover o resgate da autoestima institucional não ocorreram sem a organiza- suidores de sonhos e projetos de vida.
e permitir a reinserção habitacional, laboral e ção reivindicativa da sociedade civil. Nesse Uma conquista significativa foi a realiza-
afetiva dessas pessoas. A intersetorialidade é sentido, a organização e articulação da so- ção da Pesquisa Nacional sobre População em
a única estratégia capaz de oferecer “possibi- ciedade civil em volta do tema da população Situação de Rua em 2008 (BRASIL, 2008).
lidades efetivas de saída das ruas” (BRASIL, em situação de rua tem sido fundamental para O setor populacional em questão não é incluído
2006). O desempenho exclusivo da assistência pressionar o poder público e conquistar leis, nos censos oficiais realizados pelo Instituto
social, por exemplo, só pode dar um sentido decretos e políticas públicas, ou seja, para que Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
compensatório à exclusão, sendo uma modali- as condições de vida dessas pessoas melho- pois a coleta dos dados é realizada com base
dade paliativa sem a capacidade de apresentar rem e para que elas sejam tratadas dignamente no domicílio. Até os dias atuais, não há dados
saídas à situação (ROSA; FERRO, 2011). pelo Estado brasileiro. Inicialmente, foram as oficiais (e nem extraoficiais) que estimem o
Foram cerca de cinco anos de processo de organizações sociais que trabalham com essa número total de pessoas em situação de rua
participação da sociedade civil. O marco político população, que se articularam e reivindicaram no país ou que revelem seu perfil socioeconô-
mais notável desse processo foi a assinatura do que o poder público assumisse um papel ativo mico. A Pesquisa Nacional, encomendada pelo
Decreto Presidencial nº 7.053/ 2009, que institui e de atenção social diante da problemática. MDS, foi o primeiro e único estudo realizado
a Política Nacional para a População em Situa- No entanto, progressivamente, a reivindicação nacionalmente. Seus resultados se tornaram
ção de Rua (BRASIL, 2009). Além do MDS e da se fortaleceu por meio do protagonismo e da um instrumento fundamental para a construção
Presidência da República, outros ministérios e organização política da própria população em de políticas públicas para o setor da população
instituições públicas estiveram envolvidos. Do situação de rua. O surgimento do MNPR em em questão porque, pela primeira vez, gestores
lado da sociedade civil, organizações sociais 2005 é o maior expoente dessa organização. públicos tiveram acesso a informações confiá-
de diversos estados participaram em diferentes Assim, o MNPR, ao lado de diversas enti- veis em nível nacional sobre essa população.
espaços institucionais. Ademais, surge simulta- dades sociais, foi imprescindível para politizar O levantamento abrangeu 71 cidades
neamente ao processo participativo um novo ator a problemática da rua e buscar superar a visão brasileiras das quais 23 são capitais3, inde-
coletivo: o primeiro movimento social de alcance retrógrada de que a população de rua precisa pendentemente de seu porte populacional, e
nacional representante da população em situa- apenas de albergues e ações de assistência so- 48 são os municípios com mais de 300 mil
ção de rua, o Movimento Nacional de População cial. Esse Movimento, presente atualmente em habitantes. A Pesquisa Nacional identificou um
da Rua (MNPR), um dos únicos do gênero no sete estados2 e em diversos municípios, tem contingente de 31.922 adultos em situação de
mundo. O MNPR se torna um dos protagonistas sido importante na defesa de que as pessoas em rua nos 71 municípios pesquisados. Se somar-
do processo de participação na esfera federal. situação de rua necessitam de políticas interseto- mos os números obtidos nas quatro capitais4
37
Revista Direitos Humanos

2 O MNPR tem uma coordenação fortalecida em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Ceará, Bahia e Distrito Federal.
3 Entre as capitais brasileiras, não foram pesquisadas São Paulo, Belo Horizonte e Recife, que haviam realizado pesquisas semelhantes em anos recentes,
e nem Porto Alegre que solicitou sua exclusão da amostra por estar conduzindo uma pesquisa de iniciativa municipal simultaneamente ao estudo contratado
pelo MDS (BRASIL, 2008).
4 Esses números estão disponíveis na Pesquisa Nacional (BRASIL, 2008). Os estudos/levantamentos mencionados foram realizados em momentos dis-
tintos e seguindo metodologias diversas. Dessa forma, a simples soma de seus resultados é uma forma simplificada de estimar o número total de pessoas
em situação de rua nas cidades pesquisadas.
Política Nacional para a População em Situação de Rua
Candido Portinari
que fizeram os seus próprios estudos, chega-
mos ao montante aproximado de 50 mil adultos
que vivem nas ruas das capitais e cidades com
mais de 300 mil habitantes. Embora expressi-
vo, enfatiza-se que esse contingente não pode
ser considerado o número total de pessoas em
situação de rua no Brasil.
De acordo com a Pesquisa Nacional, trata-
-se de uma população predominantemente
masculina (82%), que na maioria dos casos
vive só (sem cônjuge, filhos ou familiares).
Mais da metade (53%) está na faixa entre
25 e 44 anos, ou seja, em idade produtiva.
A proporção de negros é substancialmente
maior na população em situação de rua (67%)
à observada no conjunto da população brasi-
leira (50,6%) (IBGE, 2008). Ainda que a maio-
ria declare saber ler e escrever (74%), o nível
de escolaridade é baixo, sendo que 15,1%
nunca estudaram, 48,4% têm o primeiro grau
incompleto e apenas 3,2% completaram o
segundo grau. A população em situação de
rua é composta na sua grande parte por tra-
balhadores: 70,9% exercem alguma atividade
remunerada, estando a grande maioria situada
na economia informal.
Em geral, a maioria das pessoas que se
encontram em situação de rua não nasceu na
rua, mas foi levada a essa situação (VIEIRA;
BEZERRA; ROSA, 2004, p. 96). Pesquisas re- sentimento de inutilidade social e de fracasso a sociedade civil, possa desenvolver propostas
velam que a situação de rua é uma síntese de pessoal e perda de projetos de vida. para a efetiva implementação da Política Nacio-
múltiplas determinações, ou seja, não pode ser Uma conquista fundamental do Decreto nº nal. Assim, o CIAMPRua garantiu a continuidade
explicada por um único fator (ESCOREL, 2006; 7.053/2009 foi a instituição do Comitê Interse- da participação da sociedade civil no processo
SILVA, 2009; BRASIL, 2008). As causas mais torial de Acompanhamento e Monitoramento da de construção de políticas nacionais destinadas
enfatizadas pela literatura especializada estão Política Nacional para a População em Situação à população em situação de rua.
relacionadas a duas dimensões: i) econômico- de Rua (CIAMPRua), coordenado pela Secre- A atuação de organizações sociais e, prin-
-ocupacional, e ii) sociofamiliar, ambas vincu- taria de Direitos Humanos da Presidência da cipalmente, do MNPR dentro do CIAMPRua
ladas a dimensões estruturais da sociedade. República. Este comitê é tripartite, composto por tem permitido o protagonismo dessa base so-
Além disso, permeando esses fatores, é comu- representantes do Governo Federal6, de organi- cial invisibilizada historicamente pelo Estado
mente discutida a questão do uso frequente de zações sociais e de associações e movimentos brasileiro. Ainda que invisível diante das políti-
álcool e outras drogas.5 As consequências deste sociais da população de rua. Ele tem sido um cas de inclusão social de muitos municípios, a
38 ciclo de perdas são notáveis: baixa autoestima, espaço para que o governo, em conjunto com população de rua é uma problemática cada vez
Revista Direitos Humanos

5 “O uso de substâncias psicoativas é uma constante na rua. A grande maioria (74%) declara utilizar: álcool, drogas ou ambos. Entre os jovens de 18 a
30 anos, a proporção atinge 80%” (SÃO PAULO, 2010). Vale destacar que a relação das pessoas em situação com o álcool e outras drogas é tanto causa
como consequência da situação, havendo, até o momento, uma escassez de estudo que possam detalhar as complexidades desta relação.
6 O CIAMPRua é composto por: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Ministério das Cidades, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério dos
Esportes, e Ministério da Cultura.
mais visível para os olhos de nossa sociedade, concede um favor, está o sujeito a ser emanci- situação, todos os entes federados deverão
principalmente nos grandes centros urbanos. pado com a consciência dos seus direitos de reservar em seus orçamentos recursos para
Diante dessa contradição, a participação e o cidadania (TATAGIBA, 2006, p. 156). assegurar essas ações. O segundo refere-se
protagonismo do MNPR na discussão da Po- No entanto, em termos gerais, os resulta- à consolidação da perspectiva intersetorial,
lítica Nacional para a População em Situação dos ainda são incipientes. As transformações com a construção de caminhos para a efetiva
de Rua é fundamental para mudar o imaginário culturais, as mudanças na institucionalidade articulação das diferentes áreas das políticas
social predominante de discriminação e para democrática do Estado e os resultados em sociais no atendimento a essa população. Por
lutar para que as respostas do poder público termos de distribuição de bens, serviços e último, percebe-se que, apesar do crescimen-
sejam no sentido da inclusão social e não oportunidades ainda são insuficientes diante to econômico da última década, o número de
mais de criminalização e higienização social da gravidade da realidade da população em pessoas em situação de rua tem aumentado.
das pessoas em situação de rua. situação de rua. Em São Paulo, por exemplo, essa população
Por último, o fato de a coordenação do Diversos desafios se colocam daqui para somava 8.706 pessoas no ano 2000, pas-
CIAMPRua estar vinculada à área de direitos frente no que diz respeito à implementação sando a 13.666 pessoas em 2009, o que
humanos representa dois avanços significati- dessa política nacional. O primeiro deles nos representa crescimento de cerca de 57%.
vos. O primeiro deles é que ao sair do MDS remete à discussão sobre como garantir fi- Como pensar um modelo de desenvolvimento
e da área da assistência social, avança-se no nanciamento regular e partilhado para a sua econômico capaz de incluir social e econo-
sentido de concretizar uma perspectiva interse- implementação, já que a adesão por parte micamente os setores mais vulneráveis de
torial para as políticas destinadas à população de estados e municípios é voluntária. Em tal nossa sociedade?
em situação de rua. Enfocar a discussão sob o
prisma dos direitos humanos permite ampliar
o panorama e agregar diferentes áreas das po- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁficas
líticas sociais nessa construção. Em segundo BRASIL. Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Relatório do
lugar, estar centrado na Presidência da Repú- I Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua. Brasília: MDS, 2006.
blica permite ampliar a responsabilidade do ______. Meta Instituto de Pesquisa de Opinião. Pesquisa Nacional sobre População
Estado sobre a problemática, não cabendo a em Situação de Rua: Sumário Executivo. Brasília: MDS/META, 2008.
um ministério específico promover avanços, BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui
mas sim ao Governo como um todo. a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Política Nacional para a Poder Executivo, Brasília, 24 dez. 2009. n. 246, seção 1, p.16-17.
População em Situação de Rua ESCOREL, S. Vidas ao Léu: Trajetórias de exclusão social. (1. Reimpressão). Rio de
Sem dúvida, a construção da Política Na- Janeiro: Fiocruz, 2006.
cional para a População em Situação de Rua, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por
por meio do Decreto nº 7.053/2009, é uma Amostra de Domicílios 2008. Disponível em: <www.ibge.gov.br/home/estatistica/po-
iniciativa inédita e fundamental do Governo Fe- pulacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2009/indic_sociais2009.
deral. Ela colocou em pauta uma problemática pdf>. Acesso em: 15 set. 2011.
fortemente estigmatizada e que nunca antes ha- ROSA, C. M. Vidas de Rua. São Paulo: Hucitec/Associação Rede Rua, 2005.
via sido assumida pelo Estado brasileiro como ROSA, P. C; FERRO, M. C. Reproducción de la desigualdad: Las políticas sociales dirigidas
foco de suas políticas sociais. Nesse sentido, a las personas en situación de calle en Buenos Aires y San Pablo. In: CONGRESSO INTER-
representa um avanço significativo diante do NACIONAL DE ASSOCIAÇÃO LATINO-AMERICANA DE SOCIOLOGIA (ALAS), 28., 2001,
papel histórico de repressão, violência e cri- Recife. Anais... Recife: Alas, 2001.
minalização do Estado diante dessa população. SILVA, M. L. Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009.
Além disso, colocou a problemática no TATAGIBA, L. F. Os desafios da articulação entre sociedade civil e sociedade política sob o 39
contexto dos direitos e das políticas públicas marco da democracia gerencial: o caso do Projeto Rede Criança em Vitória/ES. In: DAGNI-
Revista Direitos Humanos

sociais, superando a concepção assistencia- NO, E; OLVERA, A. J; PANFICHI, A. (Org.). A disputa pela construção democrática na
lista e da “caridade aos mais necessitados”, América Latina. São Paulo/Campinas: Paz e Terra/Unicamp, 2006. p. 137-178.
historicamente predominante. Como política VIEIRA, M. A; BEZERRA, E. M; ROSA, C. M. População de Rua: quem é, como vive, como
pública, passa a ser direito do cidadão e dever é vista. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
do Estado. No lugar do necessitado, a quem se
Antônio JosÉ Ferreira, secretário nacional de
Candido Portinari
Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.

Plano Viver sem Limite:


40
a conquista de direitos
pelas pessoas com
Revista Direitos Humanos

deficiência no Brasil
D
ireitos humanos são direitos positivos, e todos sem exceção e a efetivação de uma A partir de 1966, a ONU passou a elaborar
históricos e culturais que encontram sociedade inclusiva, fica patente a partir da tratados vinculantes para efetivar algumas das
seu fundamento e conteúdo na dinâ- elaboração da Declaração Universal dos Di- principais demandas de grupos historicamente
mica das relações sociais e, por isso, são sus- reitos Humanos de 1948. excluídos e assegurar uma efetiva participação
cetíveis de transformação e ampliação. Dessa De lá para cá, as conferências da Orga- social. No caso das pessoas com deficiência,
maneira, o modo pelo qual são organizadas as nização das Nações Unidas (ONU) e suas apesar da garantia da universalidade dos di-
políticas públicas pode ser entendido como respectivas declarações mundiais apontaram reitos, passaram-se 40 anos até a edição de
uma resposta às demandas da humanidade, elementos e argumentos que enfraqueceram um tratado específico nesses moldes. Vale
em seus diferentes contextos. a noção de que quantidade e qualidade fun- resgatar, entretanto, que, em 1979, a própria
Assim, conservar, transformar e efetivar cionam como grandezas inversamente pro- ONU deu início a um movimento mundial desse
direitos humanos são ações que compõem porcionais. Ao sustentar a indissolubilidade segmento populacional instituindo o Ano Inter-
o movimento das políticas públicas cujas dos direitos humanos, tem-se consolidada a nacional das Pessoas Deficientes (AIPD), que,
prioridades vêm da sociedade organizada, no garantia de que deve ser para todas e todos no Brasil, resultou na articulação de grupos or-
intuito de garantir espaço às suas demandas e para cada uma e cada um, de maneira que ganizados e dirigidos por pessoas com defici-
nas agendas governamentais. Para garantir di- ninguém seja excluído. ência, cujo diferencial foi a representação pelas
reitos há, pois, que se realizar investimentos Para cada pessoa, existência social e in- próprias pessoas com deficiência e uma inten-
sociais, políticos e econômicos, ficando sua dividual estão articuladas, sendo que é a sua sa mobilização política, dando visibilidade ao
legitimidade estabelecida quando da formula- compreensão sobre o próprio contexto que tema, que até então recebia encaminhamento
ção de reivindicações voltadas ao bem comum permite transformar conhecimentos e marcos daqueles considerados especialistas no assun-
e à consolidação de uma sociedade cada vez legislativos em ações presentes no cotidiano, to, a partir de suas instituições especializadas.
mais participativa, tendo como desdobramento fortalecendo os vínculos sociais e a democra- O trabalho desses movimentos, dentro e
a permanente mobilização da sociedade para cia. A participação de todos nesses processos, fora do país, foi decisivo para que se alcan-
eliminar as características excludentes que por sua vez, consolida-se como direito das çasse uma das principais conquistas desta
sejam detectadas. novas gerações, relacionando-se com o rompi- luta travada na década de 1980 – a mudan-
Além de afirmar que a sociedade se orga- mento das formas de exclusão, num processo ça de postura em relação às pessoas com
niza de modo a responder às questões sociais, de “ganha-ganha”. deficiência fazendo com que o paternalismo
pode-se complementar que, a partir de novos Dessa forma, a inclusão passa a ser o desse lugar à equiparação de oportunidades,
pleitos característicos dos diferentes momen- movimento que envolve o ser humano e sua substituindo a tutela pelo reconhecimento da
tos, fundamentos de direito, que anteriormente relação com os outros, sendo sua definição cidadania plena. E foi segundo esse novo pa-
não eram entendidos como tais, passam a pro- determinada por formas de legitimação social râmetro que a Constituição Federal de 1988
mover continuamente a reorganização social, e individual, cuja construção e reconstrução foi promulgada. Considerada uma das mais
buscando garantir a todas as cidadãs e todos social e histórica se configuram em todas avançadas do mundo no assunto, ela transver-
os cidadãos dignidade, justiça e solidariedade. as esferas da vida. Inclusão, portanto, deixa salizou o tema e, em todos os capítulos que
Pode-se afirmar que, atualmente, o ob- de ser apenas o reverso de exclusão para se tratam do direito do cidadão e do dever do
jetivo das políticas públicas é a concretiza- configurar também como o processo de mo- Estado, trouxe artigos específicos em relação
ção de direitos para garantir a participação dificação da organização social, para ampliar às pessoas com deficiência.
social de todas e todos. Seu monitoramento sua capacidade de respostas eficazes a todas Em 2006, foi publicada pela ONU a Con-
torna-se, pois, imprescindível para que ações e a cada pessoa; ao mesmo tempo em que, venção sobre os Direitos das Pessoas com
governamentais gerem condições de vida como paradigma fundamentado nos direitos Deficiência1, que reafirmou a universalida-
melhores e que a exclusão, aqui entendida humanos, conjuga igualdade e diferença de, a indivisibilidade, a interdependência e
como descompromisso com o sofrimento do como valores indissociáveis e incita a so- a inter-relação de todos os direitos huma-
outro, perca espaço e força de diálogo. Esse ciedade a criar alternativas para superação nos e liberdades fundamentais, bem como 41
processo de elaboração e aprimoramento de da exclusão por meio da quebra de barreiras a necessidade de que todas as pessoas
Revista Direitos Humanos

direitos, que assegure a participação de todas historicamente construídas. com deficiência tenham a garantia de poder

1 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo foram promulgados pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 6 de de-
zembro de 2006. Até novembro de 2011, ela foi assinada por 153 países e ratificada por 106 destes. Em relação ao Protocolo Facultativo, há um total de 90 assinaturas e 63
ratificações.
Plano Viver sem Limite

deficiência e promover o respeito pela sua


Candido Portinari

inerente dignidade [...]”; na adoção e no reco-


nhecimento da deficiência como um conceito
em evolução; e na definição de “pessoas com
deficiência” como:
[...] aquelas que têm impedimentos de
longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem
obstruir sua participação plena e efetiva
na sociedade em igualdades de condições
com as demais pessoas.
Observe-se, ainda, que, diferentemente
dos tratados internacionais anteriores, no dia
9 de julho de 2008, a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu
Protocolo Facultativo foram ratificados, no Bra-
sil, segundo o rito contido na Emenda Constitu-
cional nº 45/2004, que criou a possibilidade de
se ratificar as convenções de direitos humanos
com equivalência de emenda constitucional,
desde que votada em dois turnos em cada Casa
do Congresso, com a aprovação de 3/5 dos
deputados e senadores, tornando-se o primeiro
tratado internacional com status constitucional
da história do Brasil2, por meio do Decreto
Legislativo nº 186/2008. Além disso, no ano
seguinte, o Decreto nº 6.949/2009, de mesmo
teor, foi assinado pelo presidente da Repúbli-
ca, para não deixar “brechas” legais, uma vez
que esse dispositivo constitucional havia sido
utilizado pela primeira vez.
Pode-se afirmar que tanto a elaboração
da Convenção pela ONU quanto o processo
de ratificação no Brasil e nos demais países
foram frutos dos movimentos sociais, os quais,
em conjunto com os governos, conseguiram
o estabelecimento desses marcos legais com
desfrutá-los plenamente, sem discriminação; É fato que essas afirmações “relembram” base nos direitos humanos.
ao mesmo tempo em que aponta, no cam- os acordos estabelecidos desde 1948 e ino- A partir de 2008, após a promulgação da
po das políticas públicas, a necessidade de vam, em seu artigo primeiro, ao fundamentar Convenção, os movimentos que lutam para
analisar cada parte desses direitos, a fim de seu propósito de “[...] promover, proteger e garantir que os direitos humanos sejam efe-
42 elaborar um conjunto de objetivos e metas assegurar o desfrute pleno e equitativo de tivados para todas as pessoas, com e sem
para se dar conta das responsabilidades im- todos os direitos humanos e liberdades fun- deficiência, continuaram estimulando o go-
Revista Direitos Humanos

plicadas nesse caminho. damentais por parte de todas as pessoas com verno brasileiro que tem respondido intensa

2 O Brasil foi o 34º país no mundo a ratificar a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o 20º a ratificar o Protocolo Facultativo pelo qual o país se
submete à ação de cortes internacionais caso não cumpra o disposto no documento, seja por não implementação de políticas públicas ou por conta de algum caso de violação
na área.
Candido Portinari
o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Estruturado em quatro eixos, o Viver sem
Deficiência – Viver sem Limite, no qual foram Limite envolve e integra ações de 15 ministé-
organizadas ações para concretizar a equipa- rios sob a coordenação da Secretaria de Di-
ração de oportunidades. Esse documento tem reitos Humanos da Presidência da República.
como um de seus objetivos centrais eliminar Para cada uma dessas ações estabelece metas
toda a forma de discriminação e garantir o e previsões orçamentárias para execução até
acesso de toda a população com deficiência 2014 subdivididas em: Acesso à Educação,
às políticas públicas, visando ultrapassar o Inclusão Social, Atenção à Saúde e Aces-
que na prática estabelece “hierarquização” sibilidade. Com essa estrutura, sinaliza um
de cidadania. Suas palavras-chave são: auto- significativo avanço em termos de concepção
nomia, inclusão, oportunidade e convivência. e execução de políticas articuladas, consti-
O Viver sem Limite reconhece as diferenças e tuindo-se possibilidade concreta de resposta
com elas a necessidade de apoios para que ao desafio colocado frente à organização tra-
os cidadãos e cidadãs que fazem parte desse dicional do governo e das instituições sociais
público tenham suas especificidades atendi- que, de uma forma geral, ainda têm realizado
das e provoquem o rompimento de barreiras, o trabalho de maneira “individual” para aten-
inclusive as atitudinais. der ao grau de especificidade que as ques-
Elaborado à luz da Convenção, o Plano tões apresentam. Pela sua intersetorialidade
reafirma e impulsiona uma postura proativa e articulação, induz à construção e ao uso de
frente à exclusão dos bens e serviços públi- “ferramentas para a mudança”, em direção
cos, pois, ao valorizar as diferenças, “provoca” a um modelo participativo de crescimento
a efetivação de ações que objetivem superar sustentável, econômico, social e ambiental,
as barreiras que impedem a participação ple- fortalecendo o diálogo constante, rotineiro e
na das pessoas com deficiência. Em síntese, sistemático.
pode-se dizer que o Plano Viver sem Limite é O avanço dessa perspectiva significa, pois,
a operacionalização da Convenção, cujos prin- o pleno exercício da cidadania e reflete o grau
cípios já estão garantidos na Constituição Fe- de amadurecimento da sociedade brasileira.
deral de 1988, alinhando-se ao aprimoramento Assim, ao se optar por essa estratégia, o que
do acesso aos direitos humanos a um grupo está posto é a capacidade da sociedade de rein-
que não o tinha plenamente, sustentando-se na ventar os processos, procedimentos e ações, do
perspectiva da equiparação de oportunidades, planejamento ao monitoramento, colocando-se
e prontamente com a elaboração de políticas, do apoio, da não discriminação por motivo sempre em movimento, eliminando barreiras
pareceres, decretos, resoluções e leis a fim de da deficiência e do rompimento de barreiras. impostas pelo meio e pela sociedade.
conseguir, de forma cada vez melhor, efetivar
os direitos humanos. Exemplo disso é o fato
de que o órgão nacional de coordenação das Referências Bibliográficas
políticas voltadas às pessoas com deficiência
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
no Governo Federal, a Coordenadoria Nacional
______. Decreto Legislativo nº 186, de 24 de dezembro de 2008. Aprova o texto da Con-
para Integração da Pessoa Portadora de Defici-
venção sobre os Direitos das pessoas com deficiência e do seu protocolo facultativo. Diário
ência (Corde), foi alçado à Secretaria Nacional
Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 2008.
de Promoção dos Direitos da Pessoa com De-
______. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, promulga a Convenção Internacional
ficiência, motivada pela importância assumida 43
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Diário Oficial da União, Poder Executivo,
pelo tema no Governo Federal, tendo como
Revista Direitos Humanos

Brasília, 2009.
uma de suas obrigações zelar pela implemen-
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos.
tação da Convenção.
Paris, 1948. Disponível em: <http://www.un.org>.
Mais recentemente, com o objetivo de ga-
______. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
rantir a efetivação da Convenção, no dia 17 de
Facultativo. Nova Iorque: Unesco, 2006.
novembro de 2011, o governo brasileiro lançou
Marilena Chauí
Fotos: Elizângela Pires Bindá

44
Revista Direitos Humanos
Como a senhora avalia o cenário E o Brasil, como se insere nesse No passado, o Brasil recorreu diver-
mundial no que se refere aos direitos contexto? sas vezes ao Fundo Monetário Interna-
humanos atualmente? Do ponto de vista internacional, a con- cional (FMI) para salvar a nossa econo-
Desanimador. Basta considerar o que duta brasileira tem sido de firmeza e inde- mia. Recentemente, a presidenta Dilma
se passa nos países da África Central, na pendência exemplares e o Itamaraty tem Rousseff recebeu da diretora-gerente do
base militar de Guantánamo, na Síria, merecido todo nosso reconhecimento. FMI um pedido de socorro para os paí-
na Palestina e na Chechena, ou o que Do ponto de vista interno, as dificul- ses em crise. Quem mudou, o Brasil ou
se passa com os imigrantes na Europa dades têm sido imensas (as discussões os países “ricos”?
e na fronteira dos Estados Unidos com sobre a Comissão da Verdade são uma Mudou o Brasil. A política macroeconô-
o México para que se tenha um quadro prova disso) tanto porque a estrutura oli- mica, voltada para o crescimento interno e o
pouco animador. Isso para não mencio- gárquica da sociedade brasileira se ergue desenvolvimento, e não para o famoso “déficit
narmos a ação da indústria médica de como obstáculo à efetivação dos direitos fiscal”, assim como a política microeconômica,
compra e venda de órgãos humanos para (os problemas da reforma agrária e do meio voltada para os programas de inclusão socio-
transplantes e clonagens ilegais, a da in- ambiente, o trabalho escravo, a exploração econômica, fizeram pela sociedade brasileira
dústria farmacêutica, que testa medica- das crianças são a prova disso) quanto uma mudança que não foi feita em 500 anos.
mentos em populações dos países pobres porque os governos neoliberais privatiza- No nível macroeconômico, o Brasil desmontou
ou comercia nesses países medicamentos ram os direitos sociais, transformando-os dois grandes dogmas da tradição econômica
proibidos em seus países de origem. E, em serviços a ser vendidos e comprados liberal e neoliberal: 1) o de que a estabilidade
evidentemente, a ação do crime organiza- no mercado, estimulando desigualdades e econômica decorre da desaceleração do setor
do tanto no tráfico de drogas, crianças e injustiças. Além disso, a violência brasileira produtivo e aceleração do setor financeiro para
mulheres quanto no tráfico de armas para não é percebida como forma de estruturação cobrir o “déficit fiscal”; 2) o de que o aumento
manter situações de guerra em quase todo de nossa sociedade e sim localizada apenas do emprego formal e do salário mínimo são in-
o planeta. E, finalmente, sob o controle nos fenômenos da criminalidade e da ação flacionários e desestabilizadores da economia.
das indústrias ligadas à energia, o pouco policial, de tal maneira que a lei não opera Provamos exatamente o contrário.
que os governos fizeram para atender ao como um polo referido à generalidade social O ministro Paulo Singer, em encontros
Protocolo de Kyoto (que expira agora, no e sim como privilégio para os dominantes internacionais na Europa, depois de expor
início de 2012) quanto à preservação do e repressão para os dominados. E, eviden- os programas socioeconômicos do Governo
planeta para as futuras gerações. Digamos, temente, prevalecem os preconceitos, que Lula e os projetos do Governo Dilma, ouviu
brevemente, que a atual direção da ONU discriminam do ponto de vista étnico, re- os demais participantes afirmarem que o
deixa muitíssimo a desejar... ligioso e de gênero e bloqueiam ações da Brasil se tornou o modelo para os que pro-
Penso também que não se tem dado cidadania (a questão do aborto, durante a curam uma democracia concreta orientada
a devida atenção à necessidade de iniciar última campanha eleitoral presidencial e, por uma perspectiva socialista.
uma reflexão e propor um conjunto de ações atualmente, a querela perversa em torno da Ao sancionar a Lei de Acesso à Infor-
de regulamentação e proteção aos direitos homofobia são provas disso). mação e a Comissão da Verdade, a presi-
dos cidadãos no que concerne à existência Todavia, com todos os percalços e bata- denta Dilma Rousseff afirmou que essas
do sistema de controle, vigilância e posse lhas, não há como negar avanços importan- legislações colocam o país num patamar
de informações por parte dos três únicos tes, de que as gestões do ministro Vannuchi em que o Estado deve subordinar-se aos
servidores planetários da internet (con- e, agora, da ministra Maria do Rosário, têm direitos humanos. Na sua opinião, que 45
trolados pelo Departamento de Comércio dado provas, uma vez que apostaram e apos- tipo de postura o Estado deve adotar para
Revista Direitos Humanos

dos Estados Unidos), que concentram em tam nos movimentos da sociedade auto- fazer valer essa determinação?
suas mãos a totalidade dos endereços e -organizada como o lugar em que direitos Três posturas: 1) realizar a reforma po-
das mensagens de todos os usuários, em são reivindicados, políticas são propostas e lítica que assegure aos parlamentos a ver-
escala planetária. ações governamentais podem ser realizadas. dadeira função representativa que garanta
Marilena Chauí

os direitos civis e socioeconômicos dos opera como um contrapoder social capaz Falando em Comissão da Verdade,
cidadãos; 2) realizar a reforma fiscal que de determinar direções e mudanças polí- 26 anos após a redemocratização, o
assegure a desmontagem da estrutura oli- ticas. Isso significa, no caso dos direitos país finalmente terá uma oportunidade
gárquica da sociedade brasileira, fundada humanos, que é a própria sociedade que de resgatar a história ainda oculta da
na polarização entre o privilégio extremo precisa se organizar para intervir na ação ditadura militar. Qual o significado his-
das classes dominantes e a carência extre- dos poderes judiciário, legislativo e execu- tórico disso para o Brasil?
ma das classes populares; 3) transformar tivo, uma vez que as políticas de cada um Comparado aos outros países da Améri-
em políticas de Estado os programas so- desses poderes podem estar em conflito ca Latina, nossa Comissão veio com atraso.
cioeconômicos, educacionais e culturais com as dos outros e a solução só pode vir O importante, porém, é que ela veio.
do governo, de maneira a assegurar sua da própria sociedade, que toma posição Numa bela passagem de sua obra, o
permanência no correr dos anos. no conflito e assume sua solução. Não se filósofo Walter Benjamin diz que a história
Além disso, sabemos que uma socie- pode esperar que o Estado opere sem a tem sido sempre a história dos vencedo-
dade democrática é aquela que legitima sociedade, não só porque isso seria uma res, que pisoteia a vida e a memória dos
os conflitos e os trabalha politicamente e ditadura, mas também porque isso supo- vencidos, e que por isso cabe aos que têm
que pode fazê-lo porque estimula as formas ria um Estado homogêneo e sem conflitos compromisso com a emancipação do gênero
de auto-organização da população, que internos, como é próprio da democracia. humano escovar a história a contrapelo e
resgatar a memória dos vencidos. Penso que
é este o significado histórico da Comissão
da Verdade.
Além disso, a Comissão pode ser
um instrumento decisivo para desfazer um
mito que percorre a sociedade brasileira,
o mito da não violência brasileira, nossa
autoimagem como um povo pacífico, or-
deiro, generoso, sensual, alegre, cordial e
destinado a um grande futuro porque vive
numa nação una, indivisa, sem discrimina-
ções nem preconceitos de classes, étnicos,
religiosos e sexuais. Compreender nossas
divisões e diferenças, nossas desigual-
dades e assimetrias, nossos conflitos e
esperanças é fundamental para que se
consolide a democracia no Brasil. Este
é também o significado histórico da Co-
missão da Verdade.

Muito se fala que remexer no passa-


46 do é inócuo e pode provocar reações de
revanchismo. A senhora concorda com
Revista Direitos Humanos

essa interpretação?
Discordo inteiramente dessa posição.
Aliás, eu gostaria de saber de onde se tirou
a perversa ideia de que a verdade é o que não
Um dos maiores desafios do nosso
país é vencer todas as formas de dis-
criminação e preconceito. Nos últimos
anos, muitas conquistas de segmentos
historicamente segregados foram alcan-
çadas, mas ainda convivemos com situ-
ações de intolerância e violência contra
esses grupos sociais, como pessoas com
deficiência, idosos, comunidade LGBT e
pessoas em situação de rua, por exem-
plo. Quais caminhos devemos trilhar para
avançarmos na conquista de direitos e
respeito à diversidade simultaneamente?
Enquanto não derrubarmos o mito da não
violência brasileira, enquanto não desfizer-
mos a polarização extrema entre privilégio e
carência (polarização que define a estrutura
de nossa sociedade), enquanto não fizermos
as reformas política e tributária, muito pouco
avançaremos no combate às discriminações
e aos preconceitos.
Há dois espaços estratégicos para esse
combate: a revalorização da educação pública
e a cidadania cultural. Tanto a escola quanto a
cultura podem operar no sentido do aumento
da discriminação e do preconceito quanto
no sentido inverso ou de sua desmontagem.
se deve ver nem dizer! O que pode ser uma informada, pois, sem informação, não só a A privatização da educação e da cultura, ope-
sociedade fundada na mentira e na ilusão a sociedade se torna um joguete dos poderes rada primeiro pela ditadura e, depois, pelos
respeito de si mesma? estabelecidos, como também não tem como governos neoliberais foram na direção do
tomar posição e interferir nas decisões polí- aumento da discriminação e do preconceito.
E a Lei de Acesso à Informação tam- ticas. A luta por esse direito sempre esteve Por isso mesmo, requalificar a escola públi-
bém contribui para o fortalecimento da no coração das lutas contra as monarquias ca em todos os níveis (fundamental, médio e
nossa democracia? O fim do sigilo de absolutas, as tiranias e ditaduras, que fazem superior) assim como assegurar que a cultura
documentos oficiais é um direito públi- da chamada “razão de Estado” o instrumen- é um direito dos cidadãos, me parece um ca-
co ou uma questão de preservação da to para vigiar, controlar, censurar e punir os minho promissor, na medida em que educação
soberania nacional? cidadãos, além de facultar aos governantes e cultura têm a capacidade de questionar e
A democracia, como se sabe, é a forma o poder de dirigir a sociedade sem o con- criticar ilusões, valores estabelecidos, dogmas 47
sociopolítica fundada na criação e preserva- sentimento dela. e, consequentemente, propor nova percepção
Revista Direitos Humanos

ção de direitos. Igualdade, liberdade e par- O direito à informação assegura a so- do trabalho do pensamento, da imaginação e
ticipação são direitos que deram origem à berania nacional em vez de impedi-la ou da sensibilidade nas ciências, técnicas e artes.
democracia. Ora, esses direitos só podem bloqueá-la. Afinal, numa democracia, quem Numa palavra, educação e cultura são pode-
ser exercidos por uma sociedade realmente é o soberano? A sociedade ou os governos?  rosos instrumentos de combate ideológico.
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Mirian Fichtner

© Mirian Fichtner
Revista Direitos Humanos

49
E
m 2005, uma análise do IBGE sobre o Censo de 2000, que colocava o Rio Grande do Sul como o estado
brasileiro com maior número de adeptos declarados de terreiros no Brasil, chamou-me a atenção.
Seis anos depois, um estudo sobre o Censo de 2010, divulgado pela FGV, confirmou Porto Alegre como
capital mais afrorreligiosa do país.
Fiquei e continuo perplexa com esses dados, com a invisibilidade e o ineditismo do assunto. Percebi que
enxergar o Brasil com a riqueza de sua diversidade cultural é fugir dos estereótipos que rotulam o diferente
como exótico, quebrar paradigmas e enfrentar preconceitos.
Depois de estudar cem terreiros, visitar mais de trinta casas de religião e escolher treze para documentar, per-
cebi que o tema não faz parte da cultura oficial gaúcha. Esta suspeita se materializou nas inúmeras recusas de
patrocínio ao projeto. Deste estremecimento cultural nasceu o projeto Cavalo de Santo – Religiões afro-gaúchas.
Realizar este trabalho foi um mergulho profundo num caleidoscópio de energias, cores, luzes e sons que
mudaram minha forma de fotografar e viver. De curiosa e encantada pela estética da cultura imaterial, passei
a cúmplice.

Mirian Fichtner*

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Revista Direitos Humanos

© Mirian Fichtner
© Mirian Fichtner

A intolerância religiosa é uma das mais antigas formas de discriminação e preconceito da humanidade. Tanto é assim que já nas primeiras
declarações de direitos modernas a liberdade de culto e de crenças religiosas aparece como marca de sociedades que buscam um horizonte de
tolerância e convivência com o diferente. A humanidade percebeu que o respeito pela diversidade religiosa é um pressuposto da democracia e da paz.
O Brasil carrega grande ambiguidade no tema, pois é uma pátria de inúmeras religiosidades que convivem na cena pública, se comparada
a outros países, com um bom nível de sincretismo e aceitação. Entretanto, é do Brasil profundo, não só do interior, mas também das grandes
cidades, que evanesce o preconceito com algumas crenças, como as religiosidades de matriz africana ou as vertentes indígenas e ciganas. Não
temos lutas e atentados entre grupos étnico-religiosos opostos, mas há aqui terreiros sendo violados e pessoas que têm receio de expressar
livremente sua confissão religiosa.
Muitos temas importantes da sociedade laica vêm tendo guarida na atuação das religiões, que agem como mobilizadoras em campanhas
pela erradicação do sub-registro civil de nascimento ou de combate ao trabalho escravo, por exemplo. Muitos outros, como o da obrigatoriedade
do ensino religioso ou a união homoafetiva, devem alcançar a possibilidade de um diálogo frutífero e respeitoso do Estado com as religiões e
destas entre si.
Aí está a razão para que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República tenha tomado a decisão de compor, numa primeira
formação, um Comitê Nacional de Promoção do Diálogo e da Diversidade Religiosa, instância precursora de um futuro Conselho Nacional. Este
terá a atribuição de ser uma esfera pública de trocas e amadurecimento das relações necessárias entre as diversas religiosidades (incluindo 51
representações agnósticas e ateias) e o Estado. Respeitadas a independência e a unicidade de cada crença, é no âmbito do debate que todos os
Revista Direitos Humanos

pontos em comum e aquilo que é de interesse universal poderão encaminhar-se para avanços e consensos que o Brasil, por sua história e pela
riqueza de seu povo, pode acenar para o mundo. É num tal fórum, também, que as dificuldades, intolerâncias e preconceitos que ainda persistem
poderão ser compreendidos e enfrentados.
O ensaio fotográfico que Mirian Fichtner gentilmente cedeu a esta edição da Revista ajuda a ressaltar a importância do tema para a Promoção
e Defesa dos Direitos Humanos, razão pela qual tem o agradecimento da SDH e da equipe de editoria da publicação.
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Legendas das fotos do ensaio fotográfico:

Foto 1, páginas 48 e 49:


Religiões Afro-Gaúchas - Os 12 Orixás mais cultuados no Batuque do Rio
Grande do Sul. Pai Cleon de Oxalá, ao centro, à margem do Rio Guaíba em
Porto Alegre, RS. No sentido da esquerda para a direita, estão representa-
dos os Orixás Bará, Xangô, Iansã, Oxum, Oxalá, Iemanjá, Ibejis, Ogum, Odé
e Otim, Obá, Ossanha e Xapanã.

Foto 2, página 50:


Religiões Afro-Gaúchas – Oferenda ao Bára do Mercado Público de Porto
Alegre, RS.

Foto 3, página 51:


Religiões Afro-Gaúchas - Ritual de Exu do Ilê Oni Elegbara - de Pai Neco de
Oxalá no Morro Santa Teresa em Porto Alegre, RS.

Foto 4, página 52:


Religiões Afro-Gaúchas - Oferenda para Xangô na praia da Pedra Redonda
em Porto Alegre, RS, com Baba Dyba de Iemanjá.

Foto 5, página 53:


Religiões Afro-Gaúchas - Mãe Graça de Oxum Taladê com seus filhos-de-
-santo em uma oferenda para Iemanjá na praia do Cassino na cidade de Rio
Grande, RS.

Foto 6, página 54:


Religiões Afro-Gaúchas - Preto Velho-Vovô Cipriano  de Baba Dyba de
Iemanjá em ritual  de Umbanda na Praia do Cassino, Rio Grande, RS.

Foto 7, página 55:


Religiões Afro-Gaúchas - Cigana Sara em Ritual de Prosperidade do Povo
Cigano do Ilê Oni Elegbará.

Foto 8, página 56:


Religiões Afro-Gaúchas - Oferenda para Iemanjá na Praia de Tramandaí, RS.

Foto 9, página 57:


Religiões Afro-Gaúchas - Detalhe da Festa de Iemanjá, Ritual de Candomblé
na Praia do Cassino, Rio Grande, RS.

Foto 10, página 57:


Religiões Afro-Gaúchas - Devotos assistem ao traslado da imagem de
Iemanjá na festa de Iemanjá na praia de Tramandaí, RS.

Foto 11, página 58 e 59:


Religiões Afro-Gaúchas - Caminhada contra a Intolerância Religiosa em
Porto Alegre, RS.

M
irian Fichtner nasceu em Porto Alegre, RS. Formou-se em jornalismo na PUC/RS e trabalhou nos principais jornais e revistas do Brasil,
59
entre eles: Zero Hora/RS, O Globo/RJ, O Dia/RJ, Jornal do Brasil/RJ, Folha de São Paulo/RJ e para as Revistas Isto É, Veja e Exame.
Revista Direitos Humanos

Foi editora de fotografia da Revista Época, no Rio de Janeiro, onde trabalhou de 1998 a 2005. Em 2006 criou a Pluf Fotografias, que
atua na área editorial e corporativa, além de desenvolver projetos autorais. Foi contemplada com os prêmios: Associação Riograndense de
Imprensa/1989 (1º lugar); 25º International Photo Contest Nikon 94/95; 26º International Photo Contest Nikon 96/97 (1º lugar); XXII Prêmio
Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos/2000 Prêmio Cláudio Abramo de Jornalismo/2000 (1º lugar); Prêmio Abril de Jor-
nalismo/2006; Prêmio Alexandre Adler de Fotografia/2006; Prêmio Abril de Jornalismo/2011. Os trabalhos aqui reproduzidos integram o projeto
Cavalo de Santo – Religiões afro-gaúchas, que deu origem a uma exposição e a um livro de mesmo nome.
2ª Conferência Nacional LGBT
Foi realizada em Brasilia, no período de 15 a 18 de dezembro, a 2ª Conferência Nacional LGBT, que
contou com a participação de cerca de mil pessoas. Com o tema Por um país livre da pobreza e da
discriminação: Promovendo a cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – LGBT,
governo e sociedade civil discutiram politicas públicas para a população LGBT. Informações e o resultado
da conferência estão disponíveis no site <www.direitoshumanos.gov.br/2cnlgbt>.

Encontro Brasileiro dos Programas


de Proteção a Vítimas e Testemunhas
Ameaçadas
De 7 a 10 de fevereiro de 2012 será realizado, em Brasília, DF, o Encontro Brasileiro dos Programas
de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.
Participarão do Encontro as equipes técnicas dos programas de proteção estaduais e federal, repre-
sentantes do Fórum Nacional de Entidades Gestoras do Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas
Ameaçadas, membros da equipe de monitoramento do programa, representantes das secretarias estaduais,
membros dos conselhos deliberativos dos programas estaduais e federal, e outros parceiros, como o
Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte e o Programa de Proteção a De-
fensores dos Direitos Humanos. O Encontro será aberto à participação de outros segmentos da sociedade
civil e de órgãos e ministérios parceiros.
Em 2011, o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas celebra 15 anos de sua criação
e 12 anos de sua institucionalização, por meio da Lei n° 9.807/99. Assim, esse Encontro, além de celebrar
o trabalho de proteção a pessoas ameaçadas, com respeito aos direitos humanos no Brasil, é um momento
60 de avaliação dos 15 anos dessa política pública.
Revista Direitos Humanos
Encontro Nacional de Gestores
da Política para Pessoas com
Deficiência
O Encontro Nacional de Gestores da Política para Pessoas com Deficiência foi realizado
pela SDH/PR, entre os dias 9 e 10 de agosto de 2011, com o objetivo de apresentar a
gestores estaduais e locais as atribuições da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos
da Pessoa com Deficiência (SNPDPD); o Plano Plurianual 2012-2015; o Disque Direitos
Humanos e o Projeto Caravanas: Direitos Humanos na Estrada.
O Encontro teve também por finalidade a construção de um fórum de gestores da
Política da Pessoa com Deficiência.

Enfrentamento à Violência
Sexual contra Crianças e
Adolescentes
Em 2011, foi lançada a Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual
de Crianças e Adolescentes, que traz a análise das ações intersetoriais na área, com
foco nos programas conduzidos pelo Governo Federal, atualmente presentes em 86%
dos municípios brasileiros.
Com a proximidade da realização de grandes eventos esportivos (Copa e Olimpíadas)
e a realização de grandes obras de infraestrutura pelo país, a SDH fortaleceu em 2011
as ações de mobilização do setor produtivo para a defesa dos direitos de crianças e
adolescentes, firmando novas pactuações com empresas, através da Declaração de
Compromisso Corporativo no Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Ado-
lescentes, processo iniciado em 2010, com 24 assinaturas. Também foram desenvolvidas
campanhas de prevenção à exploração sexual no ambiente corporativo, que alcançaram,
em 2011, um total de 23.630 trabalhadores nas grandes obras de desenvolvimento do
país, em Porto Velho (RO), Parauapebas (PA), Foz do Iguaçu (PR) e Itaboraí (RJ).

61
Revista Direitos Humanos
Mostra Cinema e Direitos
Humanos na América do Sul
Em 2011, a SDH/PR, em parceria com a Cinemateca Brasileira, realizou a 6ª edição
da Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul. O público foi de cerca de 45
mil pessoas e todas as cidades contaram com sessões com audiodescrição e closed
caption, garantindo o acesso a pessoas com deficiência visual ou auditiva. Os filmes da
mostra foram exibidos nas 27 capitais brasileiras e na capital da Guiné-Bissau, no âmbito
da Cooperação Sul-Sul.
Como nos anos anteriores, a programa-
ção contemplou a pluralidade de temas que
compõem o mosaico dos direitos humanos:
valorização da pessoa idosa, inclusão das
pessoas com deficiência, garantia dos direi-
tos da criança e do adolescente, população
de rua, saúde mental, igualdade de gênero,
diversidade sexual, preconceito racial, li-
berdade religiosa, acesso à terra, direito ao
trabalho decente, inclusão social, direito à
memória e à verdade.

Convivência Familiar e
Comunitária
No ano de 2011, foi elaborado e finalizado o Protocolo Nacional de Proteção Integral e
Instalação do Comitê para Proteção de Crianças e Adolescentes em Situação de Desastre,
Emergência ou Calamidade, que aguarda decreto presidencial. Foi também formalizada
a Rede Nacional de Busca e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos e
seu Comitê Gestor. Para 2012, está prevista a elaboração de um Protocolo Nacional de
Atendimento às Famílias de Crianças e Adolescentes Desaparecidos.

Sistema de Garantia de Direitos


Segundo dados da MUNIC (IBGE/2009), dos 5.565 municípios brasileiros, 98% já
62 implantaram Conselhos Tutelares. Todavia, o número desses conselhos em muitas cida-
des de grande e médio porte populacional ainda é insuficiente para a demanda existente
Revista Direitos Humanos

e mais da metade dessa rede no país funciona com precárias condições de trabalho.
Assim, para fortalecer o Sistema de Garantia de Direitos, em 2011, foram doados
866 computadores a 94 municípios, contemplando 323 Conselhos Tutelares, e entre-
gues 68 veículos aos Conselhos Tutelares, sendo 46 no estado de Minas Gerais e 22
no estado do Acre.
Registro Civil de Nascimento e
Documentação Básica
A iniciativa “Agenda Social Registro Civil de Nascimento e Documentação Básica: Comitês
Gestores”, coordenada pela SDH/PR, foi premiada no 15º Concurso Inovação na Gestão Pú-
blica Federal, organizado pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Essa Agenda
envolve uma rede de órgãos e instituições de diversos poderes da República nos três níveis
administrativos do Estado brasileiro, bem como instituições da sociedade civil e organismos
internacionais. Um dos resultados da implementação da Agenda é a queda do índice de sub-
-registro de nascimento, que em 2002 era de 20,9%, e em 2010 passou para 6,6%.
Para dar continuidade a esse trabalho, foi realizado, nos dias 7 e 8 de dezembro
passado, em Brasília, o II Encontro Nacional de Agentes Mobilizadores para Promoção
do Registro Civil de Nascimento e da Documentação Básica, com a finalidade de reiterar
os esforços do Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro de Nascimento
e Ampliação do Acesso à Documentação Básica.
Na oportunidade, foram apresentadas as peças da Campanha Nacional de Mobilização
pela Certidão de Nascimento e Documentação Básica, protagonizada, nesta edição, pela
cantora Ivete Sangalo, desenvolvida para dar suporte às ações de mobilização e incentivar a
população e os gestores a garantir o direito humano básico ao registro e à documentação civil.

Caravanas Direitos Humanos


pelo Brasil
O projeto Caravanas Direitos Humanos pelo
Brasil foi lançado em 2011 com o fim de criar
um canal de interação direta com a sociedade e
colaborar com a construção de uma cultura de
direitos humanos. A meta é que a temática dos
direitos humanos ganhe visibilidade em todo o país
e que o diálogo entre Estado e sociedade civil seja exercitado, potencializando as ações de
promoção, proteção e defesa desses direitos regionalmente.
O projeto consiste no deslocamento de setores da SDH/PR, com representantes de todas
as suas áreas temáticas, às diversas regiões do país para identificar e prevenir violações 63
de direitos e atuar para combatê-las, por meio da articulação de ações entre os diferentes
Revista Direitos Humanos

níveis de governo e os movimentos sociais.


Durante o evento, são realizados seminários, palestras, oficinas e audiências públicas,
com atividades voltadas à comunidade, entidades ligadas aos direitos humanos, ONGs,
gestores públicos e aos poderes Legislativo e Judiciário.
A primeira edição foi realizada em Fortaleza nos dias 18 e 19 de agosto passado. Para 2012,
está prevista a realização de Caravanas em pelo menos uma capital de cada região brasileira.
Seminário sobre os Direitos
Humanos das Pessoas com
Deficiência no âmbito da
Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa (CPLP)
De 25 a 27 de outubro de 2011 foi realizado, em Brasília, o Seminário sobre os
Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência no âmbito da Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa (CPLP). A finalidade do Seminário foi promover o intercâmbio de
experiências para o estabelecimento de uma agenda governamental transversal. Seus
objetivos foram: investir na formação de quadros governamentais e no diálogo social;
estabelecer uma agenda programática de cooperação, com foco na promoção dos direitos
das pessoas com deficiência; e definir conteúdos e mecanismos comunitários para a
apresentação de propostas.

Plano Viver sem Limite – Plano


Nacional dos Direitos da Pessoa
com Deficiência
No dia 17 de novembro de 2011 foi lançado pelo Governo Federal o Plano Viver
sem Limite – Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, com o objetivo
de articular as ações intersetoriais de inclusão e promoção social para as pessoas
com deficiência que são implementadas pelos diversos órgãos e instituições federais.
Espera-se, também, com esse Plano, garantir a inclusão social; fortalecer a par-
ticipação da pessoa com deficiência como cidadã efetiva; promover a autonomia e a
eliminação de barreiras, permitindo o acesso e o usufruto, em bases iguais, dos bens
e serviços disponíveis a todos.

64
Revista Direitos Humanos
IDENTIFICAÇÃO DAS OBRAS DE CANDIDO PORTINARI

Capa Pág. 8
Paz (1952-1956, Rio de Janeiro, RJ) Batedor de Arroz
Painel a óleo sobre madeira compensada, (1955, Rio de Janeiro, RJ)
medindo 1.400 x 953 cm (aproximadamente). Desenho a grafite e crayon colorido sobre
Assinada e datada no canto inferior esquerdo papel, medindo 26.5 x 12.3cm. Assinada na
“PORTINARI RIO 1952-1956”. United Nations. metade inferior à esquerda “Portinari”. Sem
Obra executada para decorar a sede da Orga- data. Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ.
nização das Nações Unidas (ONU), em Nova Estudo para o painel “Paz”.
York, EUA.

Pág. 2 e 81 Pág. 9
Mãos (1955, Rio de Janeiro, RJ) Mulher
Desenho a lápis de cor sobre papel, (05/1955, Rio de Janeiro, RJ)
medindo 18.5 x 18cm. Assinada e datada Desenho a grafite, crayon e crayon colorido
na metade inferior à direita “Portinari 55”, sobre papel, medindo 30 x 38cm. Assinada
com a inscrição na metade inferior à na metade inferior à direita “Portinari”.
direita “‘Paz’ estudo da roda”. Coleção Datada na inscrição na metade inferior à
particular, Rio de Janeiro, RJ. Estudo esquerda “guerra V 55”. Coleção particular,
para o painel “Paz”. Rio de Janeiro, RJ.

Pág. 4 e 5 Pág. 10
Paz Meninos no Balanço
(1955, Rio de Janeiro, RJ) (c.1955, Rio de Janeiro, RJ)
Desenho a grafite e lápis de cor sobre papel, Desenho a grafite e lápis de cor sobre
medindo 50 x 36.5cm (aproximadamente). papel, medindo 25 x 24.5cm (aproximadas).
Assinada na dedicatória no canto inferior direito Assinada na metade inferior à direita
“Para a Marina e Jayme, meus queridos ami- “Portinari”. Sem data. Coleção particular, Rio
gos, Portinari”. Datada na inscrição na metade de Janeiro, RJ. Estudo para o painel “Paz”.
inferior à direita “Paz VI 55”. Coleção particular,
Los Angeles,CA. Estudo para o painel “Paz”.

Pág. 6 Pág. 12
Mulheres Chorando Dança de Roda
(1956-1958, Rio de Janeiro, RJ) (06/1955, Rio de Janeiro, RJ)
Pintura a óleo sobre madeira compensada, Desenho a grafite, crayon, crayon colorido, 65
medindo 160 x 110cm. Assinada e datada sanguínea e sépia sobre cartão, medindo
Revista Direitos Humanos

na metade inferior à direita “PORTINARI 35.5 x 35.5cm (aproximadas). Assinada no


56 58”. Coleção particular, Rio de Janeiro, canto inferior esquerdo “Portinari”. Datada
RJ. Maquete para o painel “Guerra”. na inscrição no canto inferior esquerdo
“Paz O.N.U. VI-55”. Coleção particular, Rio
de Janeiro, RJ. Estudo para o painel “Paz”.
IDENTIFICAÇÃO DAS OBRAS DE CANDIDO PORTINARI

Pág. 13 Pág. 18
Coro (06/1955, Rio de Janeiro, RJ) Meninos Brincando
Desenho em técnica não identificada (c.1955, Rio de Janeiro, RJ)
sobre suporte não identificado, dimensões Desenho a grafite sobre papel, medindo
desconhecidas. Sem assinatura. Datada na 30 x 23.5cm. Sem assinatura e sem data.
inscrição na margem inferior à direita “Paz Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ.
VI 55”. Coleção desconhecida. Estudo para Estudo não utilizado para o painel “Paz”.
o painel “Paz”. Obra não localizada.

Pág. 14 Pág. 21
Guerra Paz
(1952-1956, Rio de Janeiro, RJ) (06/1955, Rio de Janeiro, RJ)
Painel a óleo sobre madeira compensada, Desenho a grafite, crayon, sanguínea e lápis de
medindo 1.400 x 1058cm (aproximadas, cor sobre papel, medindo 51 x 36.5cm.
irregular). Assinada e datada no canto inferior Assinada no canto inferior esquerdo “Portinari”.
esquerdo “PORTINARI RIO 1952 1956”. Datada na inscrição no canto inferior esquerdo
United Nations, New York, NY. Obra executada “paz VI 55”. Coleção particular, Rio de Janeiro,
para decorar a sede da Organização das RJ. Estudo para o painel “Paz”. Atestado de
Nações Unidas (ONU), Nova York, EUA. Autenticidade do Projeto Portinari nº 904.

Pág. 15 Pág. 25
Paz Figura com Carneiro
(1952-1956, Rio de Janeiro, RJ) (1955, Rio de Janeiro, RJ)
Painel a óleo sobre madeira compensada, Desenho a grafite, crayon e lápis de
medindo 1.400 x 953 cm (aproximadas, cor sobre papel, medindo 20.3 x 22cm
irregular). Assinada e datada no canto inferior (irregular). Sem assinatura e sem data.
esquerdo “PORTINARI RIO 1952-1956”. Coleção particular, Campinas, SP.
United Nations, New York, NY. Obra executa- Estudo para o painel “Paz”.
da para decorar a sede da Organização das
Nações Unidas (ONU), Nova York, EUA.

Pág. 16 Pág. 28
Paz Cabeça de Cavalo
(c.1955, Rio de Janeiro, RJ) (c.1955, Rio de Janeiro, RJ)
66
Desenho a grafite e lápis de cor sobre Desenho a grafite e sanguínea sobre
Revista Direitos Humanos

papel, medindo 101 x 70.5cm (aproxima- papel, medindo 20 x 30cm. Assinatura


das). Sem assinatura e sem data. Coleção estampada no canto inferior esquerdo
particular, São Paulo, SP. Estudo para o “Portinari*”. Sem data. Coleção parti-
painel “Paz”. Atestado de Autenticidade cular, Rio de Janeiro, RJ. Estudo para
do Projeto Portinari nº 882. o painel “Guerra”.
IDENTIFICAÇÃO DAS OBRAS DE CANDIDO PORTINARI

Pág. 31 Pág. 40
Feras Mãos Entrelaçadas
(1955, Rio de Janeiro, RJ) (c.1955, Rio de Janeiro, RJ)
Pintura a óleo sobre madeira compensada, Desenho a grafite e crayon colorido sobre
medindo 150 x 220cm. Sem assinatura e papel, medindo 10 x 10cm. Sem assinatura
sem data. Galleria d’Arte Moderna, Milão, e sem data. Coleção particular, Rio de
ITA. Maquete para o painel “Guerra”. Janeiro, RJ. Estudo para o painel “Guerra”.

Pág. 32 Pág. 42
Mulheres Chorando Pernas e Pés
(1955, Rio de Janeiro, RJ) (1955, Rio de Janeiro, RJ)
Pintura a óleo sobre madeira, medindo Desenho a grafite, sanguínea, sépia e
160 x 110cm. Sem assinatura e sem pastel sobre papel, medindo 29.5 x 14cm.
data. Ateliê do artista. Estudo para o Sem assinatura e sem data. Coleção
painel “Guerra”. particular, Campinas, SP. Estudo para o
painel “Paz”.

Pág. 35 Pág. 43
Homem Pés
(05/1955, Rio de Janeiro, RJ) (c.1955, Rio de Janeiro, RJ)
Desenho a grafite e lápis de cor sobre Desenho a guache, grafite, sanguínea
papel, medindo 36 x 18cm. Assinada e nanquim bico-de-pena sobre papel,
na metade inferior à direita “Portinari”. medindo 22 x 9cm. Rubricada no canto
Datada na inscrição na metade inferior inferior esquerdo “CP.” Sem data. Coleção
à direita “guerra V 55”. Museus Castro particular, Rio de Janeiro, RJ. Estudo para o
Maya, Rio de Janeiro, RJ. Estudo para o painel “Guerra”.
painel “Guerra”.

Pág. 38
Plantando Bananeira
(c.1955, Rio de Janeiro, RJ)
Desenho a lápis de cor sobre cartolina,
medindo 9.5 x 8.5cm. Assinada na 67
margem inferior à direita “Portinari”. Sem
Revista Direitos Humanos

data. Coleção particular, Rio de Janeiro,


RJ. Estudo para o painel “Paz”.
Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência

Os Estados Partes da presente Convenção, tudes e ao ambiente que impedem a plena m) Reconhecendo as valiosas contribui-
e efetiva participação dessas pessoas na ções existentes e potenciais das pessoas
a) Relembrando os princípios consagra- sociedade em igualdade de oportunidades com deficiência ao bem-estar comum e à
dos na Carta das Nações Unidas, que re- com as demais pessoas, diversidade de suas comunidades, e que
conhecem a dignidade e o valor inerentes f) Reconhecendo a importância dos prin- a promoção do pleno exercício, pelas
e os direitos iguais e inalienáveis de todos cípios e das diretrizes de política, conti- pessoas com deficiência, de seus direi-
os membros da família humana como o dos no Programa de Ação Mundial para as tos humanos e liberdades fundamentais
fundamento da liberdade, da justiça e da Pessoas Deficientes e nas Normas sobre a e de sua plena participação na sociedade
paz no mundo, Equiparação de Oportunidades para Pes- resultará no fortalecimento de seu senso de
b) Reconhecendo que as Nações Unidas, soas com Deficiência, para influenciar a pertencimento à sociedade e no significa-
na Declaração Universal dos Direitos Hu- promoção, a formulação e a avaliação de tivo avanço do desenvolvimento humano,
manos e nos Pactos Internacionais sobre políticas, planos, programas e ações em social e econômico da sociedade, bem
Direitos Humanos, proclamaram e concor- níveis nacional, regional e internacional como na erradicação da pobreza,
daram que toda pessoa faz jus a todos os para possibilitar maior igualdade de opor- n) Reconhecendo a importância, para as
direitos e liberdades ali estabelecidos, sem tunidades para pessoas com deficiência, pessoas com deficiência, de sua autono-
distinção de qualquer espécie, g) Ressaltando a importância de trazer mia e independência individuais, inclu-
c) Reafirmando a universalidade, a indi- questões relativas à deficiência ao centro sive da liberdade para fazer as próprias
visibilidade, a interdependência e a inter- das preocupações da sociedade como par- escolhas,
-relação de todos os direitos humanos e te integrante das estratégias relevantes de o) Considerando que as pessoas com
liberdades fundamentais, bem como a ne- desenvolvimento sustentável, deficiência devem ter a oportunidade de
cessidade de garantir que todas as pessoas h) Reconhecendo também que a discrimi- participar ativamente das decisões relati-
com deficiência os exerçam plenamente, nação contra qualquer pessoa, por motivo vas a programas e políticas, inclusive aos
sem discriminação, de deficiência, configura violação da digni- que lhes dizem respeito diretamente,
d) Relembrando o Pacto Internacional dos dade e do valor inerentes ao ser humano, p) Preocupados com as difíceis situa-
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, i) Reconhecendo ainda a diversidade das ções enfrentadas por pessoas com defi-
o Pacto Internacional dos Direitos Civis e pessoas com deficiência, ciência que estão sujeitas a formas múl-
Políticos, a Convenção Internacional so- j) Reconhecendo a necessidade de pro- tiplas ou agravadas de discriminação por
bre a Eliminação de Todas as Formas de mover e proteger os direitos humanos de causa de raça, cor, sexo, idioma, religião,
Discriminação Racial, a Convenção sobre todas as pessoas com deficiência, inclu- opiniões políticas ou de outra natureza,
a Eliminação de todas as Formas de Dis- sive daquelas que requerem maior apoio, origem nacional, étnica, nativa ou social,
criminação contra a Mulher, a Convenção k) Preocupados com o fato de que, não propriedade, nascimento, idade ou outra
contra a Tortura e Outros Tratamentos ou obstante esses diversos instrumentos e condição,
Penas Cruéis, Desumanos ou Degra- compromissos, as pessoas com deficiên- q) Reconhecendo que mulheres e meni-
dantes, a Convenção sobre os Direitos cia continuam a enfrentar barreiras contra nas com deficiência estão frequentemen-
da Criança e a Convenção Internacional sua participação como membros iguais te expostas a maiores riscos, tanto no lar
68 sobre a Proteção dos Direitos de Todos da sociedade e violações de seus direitos como fora dele, de sofrer violência, lesões
os Trabalhadores Migrantes e Membros humanos em todas as partes do mundo, ou abuso, descaso ou tratamento negligen-
Revista Direitos Humanos

de suas Famílias, l) Reconhecendo a importância da co- te, maus-tratos ou exploração,


e) Reconhecendo que a deficiência é um operação internacional para melhorar as r) Reconhecendo que as crianças com
conceito em evolução e que a deficiência condições de vida das pessoas com defici- deficiência devem gozar plenamente de
resulta da interação entre pessoas com ência em todos os países, particularmente todos os direitos humanos e liberdades
deficiência e as barreiras devidas às ati- naqueles em desenvolvimento, fundamentais em igualdade de oportunida-
des com as outras crianças e relembrando y) Convencidos de que uma convenção o propósito ou efeito de impedir ou impos-
as obrigações assumidas com esse fim internacional geral e integral para promo- sibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o
pelos Estados Partes na Convenção sobre ver e proteger os direitos e a dignidade exercício, em igualdade de oportunidades
os Direitos da Criança, das pessoas com deficiência prestará com as demais pessoas, de todos os direi-
s) Ressaltando a necessidade de incorpo- significativa contribuição para corrigir as tos humanos e liberdades fundamentais nos
rar a perspectiva de gênero aos esforços profundas desvantagens sociais das pes- âmbitos político, econômico, social, cultural,
para promover o pleno exercício dos di- soas com deficiência e para promover sua civil ou qualquer outro. Abrange todas as for-
reitos humanos e liberdades fundamentais participação na vida econômica, social e mas de discriminação, inclusive a recusa de
por parte das pessoas com deficiência, cultural, em igualdade de oportunidades, adaptação razoável;
t) Salientando o fato de que a maioria das tanto nos países em desenvolvimento “Adaptação razoável” significa as modifi-
pessoas com deficiência vive em condi- como nos desenvolvidos, cações e os ajustes necessários e adequados
ções de pobreza e, nesse sentido, reco- que não acarretem ônus desproporcional ou
nhecendo a necessidade crítica de lidar Acordaram o seguinte: indevido, quando requeridos em cada caso, a
com o impacto negativo da pobreza sobre fim de assegurar que as pessoas com defici-
pessoas com deficiência, Artigo 1 ência possam gozar ou exercer, em igualdade
u) Tendo em mente que as condições de Propósito de oportunidades com as demais pessoas,
paz e segurança baseadas no pleno respeito O propósito da presente Convenção é pro- todos os direitos humanos e liberdades fun-
aos propósitos e princípios consagrados na mover, proteger e assegurar o exercício pleno damentais;
Carta das Nações Unidas e a observância e equitativo de todos os direitos humanos e “Desenho universal” significa a concepção
dos instrumentos de direitos humanos são liberdades fundamentais por todas as pessoas de produtos, ambientes, programas e serviços
indispensáveis para a total proteção das com deficiência e promover o respeito pela sua a serem usados, na maior medida possível,
pessoas com deficiência, particularmen- dignidade inerente. por todas as pessoas, sem necessidade de
te durante conflitos armados e ocupação Pessoas com deficiência são aquelas que adaptação ou projeto específico. O “desenho
estrangeira, têm impedimentos de longo prazo de nature- universal” não excluirá as ajudas técnicas para
v) Reconhecendo a importância da za física, mental, intelectual ou sensorial, os grupos específicos de pessoas com deficiên-
acessibilidade aos meios físico, social, quais, em interação com diversas barreiras, cia, quando necessárias.
econômico e cultural, à saúde, à educa- podem obstruir sua participação plena e efetiva
ção e à informação e comunicação, para na sociedade em igualdades de condições com Artigo 3
possibilitar às pessoas com deficiência o as demais pessoas. Princípios gerais
pleno gozo de todos os direitos humanos Os princípios da presente Convenção são:
e liberdades fundamentais, Artigo 2 a) O respeito pela dignidade inerente, a
w) Conscientes de que a pessoa tem deve- Definições autonomia individual, inclusive a liberdade
res para com outras pessoas e para com a Para os propósitos da presente Convenção: de fazer as próprias escolhas, e a indepen-
comunidade a que pertence e que, portan- “Comunicação” abrange as línguas, a vi- dência das pessoas;
to, tem a responsabilidade de esforçar-se sualização de textos, o Braille, a comunicação b) A não discriminação;
para a promoção e a observância dos di- tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos c) A plena e efetiva participação e inclusão
reitos reconhecidos na Carta Internacional de multimídia acessível, assim como a lin- na sociedade;
dos Direitos Humanos, guagem simples, escrita e oral, os sistemas d) O respeito pela diferença e pela acei-
x) Convencidos de que a família é o nú- auditivos e os meios de voz digitalizada e os tação das pessoas com deficiência como
cleo natural e fundamental da sociedade modos, meios e formatos aumentativos e alter- parte da diversidade humana e da huma-
e tem o direito de receber a proteção da nativos de comunicação, inclusive a tecnologia nidade;
sociedade e do Estado e de que as pes- da informação e comunicação acessíveis; e) A igualdade de oportunidades; 69
soas com deficiência e seus familiares “Língua” abrange as línguas faladas e f) A acessibilidade;
Revista Direitos Humanos

devem receber a proteção e a assistência de sinais e outras formas de comunicação g) A igualdade entre o homem e a mulher;
necessárias para tornar as famílias capa- não falada; h) O respeito pelo desenvolvimento das
zes de contribuir para o exercício pleno e “Discriminação por motivo de deficiên- capacidades das crianças com deficiência
equitativo dos direitos das pessoas com cia” significa qualquer diferenciação, exclu- e pelo direito das crianças com deficiência
deficiência, são ou restrição baseada em deficiência, com de preservar sua identidade.
Artigo 4 moção, dispositivos e tecnologias assisti- tais direitos e liberdades ou que os reconhece
Obrigações gerais vas, adequados a pessoas com deficiência, em menor grau.
1. Os Estados Partes se comprometem dando prioridade a tecnologias de custo 5. As disposições da presente Convenção se
a assegurar e promover o pleno exercício de acessível; aplicam, sem limitação ou exceção, a todas as
todos os direitos humanos e liberdades funda- h) Propiciar informação acessível para as unidades constitutivas dos Estados federativos.
mentais por todas as pessoas com deficiência, pessoas com deficiência a respeito de aju-
sem qualquer tipo de discriminação por causa das técnicas para locomoção, dispositivos Artigo 5
de sua deficiência. Para tanto, os Estados Par- e tecnologias assistivas, incluindo novas Igualdade e não discriminação
tes se comprometem a: tecnologias bem como outras formas de as- 1. Os Estados Partes reconhecem que to-
a) Adotar todas as medidas legislativas, sistência, serviços de apoio e instalações; das as pessoas são iguais perante e sob a lei e
administrativas e de qualquer outra nature- i) Promover a capacitação em relação que fazem jus, sem qualquer discriminação, a
za, necessárias para a realização dos direi- aos direitos reconhecidos pela presente igual proteção e igual benefício da lei.
tos reconhecidos na presente Convenção; Convenção dos profissionais e equipes 2. Os Estados Partes proibirão qualquer
b) Adotar todas as medidas necessárias, que trabalham com pessoas com defici- discriminação baseada na deficiência e ga-
inclusive legislativas, para modificar ou ência, de forma a melhorar a prestação rantirão às pessoas com deficiência igual e
revogar leis, regulamentos, costumes e de assistência e serviços garantidos por efetiva proteção legal contra a discriminação
práticas vigentes, que constituírem discri- esses direitos. por qualquer motivo.
minação contra pessoas com deficiência; 2. Em relação aos direitos econômicos, 3. A fim de promover a igualdade e eliminar
c) Levar em conta, em todos os progra- sociais e culturais, cada Estado Parte se a discriminação, os Estados Partes adotarão
mas e políticas, a proteção e a promoção compromete a tomar medidas, tanto quanto todas as medidas apropriadas para garantir que
dos direitos humanos das pessoas com permitirem os recursos disponíveis e, quando a adaptação razoável seja oferecida.
deficiência; necessário, no âmbito da cooperação interna- 4. Nos termos da presente Convenção, as
d) Abster-se de participar em qualquer ato cional, a fim de assegurar progressivamente o medidas específicas que forem necessárias
ou prática incompatível com a presente pleno exercício desses direitos, sem prejuízo para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade
Convenção e assegurar que as autoridades das obrigações contidas na presente Conven- das pessoas com deficiência não serão con-
públicas e instituições atuem em confor- ção que forem imediatamente aplicáveis de sideradas discriminatórias.
midade com a presente Convenção; acordo com o direito internacional.
e) Tomar todas as medidas apropriadas 3. Na elaboração e implementação de Artigo 6
para eliminar a discriminação baseada em legislação e políticas para aplicar a presente Mulheres com deficiência
deficiência, por parte de qualquer pessoa, Convenção e em outros processos de tomada 1. Os Estados Partes reconhecem que as
organização ou empresa privada; de decisão relativos às pessoas com deficiência, mulheres e meninas com deficiência estão su-
f) Realizar ou promover a pesquisa e o os Estados Partes realizarão consultas estreitas e jeitas a múltiplas formas de discriminação e,
desenvolvimento de produtos, serviços, envolverão ativamente pessoas com deficiência, portanto, tomarão medidas para assegurar às
equipamentos e instalações com dese- inclusive crianças com deficiência, por intermé- mulheres e meninas com deficiência o pleno
nho universal, conforme definidos no Ar- dio de suas organizações representativas. e igual exercício de todos os direitos humanos
tigo 2 da presente Convenção, que exijam 4. Nenhum dispositivo da presente Con- e liberdades fundamentais.
o mínimo possível de adaptação e cujo venção afetará quaisquer disposições mais 2. Os Estados Partes tomarão todas as
custo seja o mínimo possível, destinados propícias à realização dos direitos das pes- medidas apropriadas para assegurar o pleno
a atender às necessidades específicas de soas com deficiência, as quais possam estar desenvolvimento, o avanço e o empodera-
pessoas com deficiência, a promover sua contidas na legislação do Estado Parte ou no mento das mulheres, a fim de garantir-lhes
disponibilidade e seu uso e a promover o direito internacional em vigor para esse Estado. o exercício e o gozo dos direitos humanos
70 desenho universal quando da elaboração Não haverá nenhuma restrição ou derrogação e liberdades fundamentais estabelecidos na
de normas e diretrizes; de qualquer dos direitos humanos e liberda- presente Convenção.
Revista Direitos Humanos

g) Realizar ou promover a pesquisa e o des fundamentais reconhecidos ou vigentes


desenvolvimento, bem como a disponibi- em qualquer Estado Parte da presente Conven- Artigo 7
lidade e o emprego de novas tecnologias, ção, em conformidade com leis, convenções, Crianças com deficiência
inclusive as tecnologias da informação e regulamentos ou costumes, sob a alegação 1. Os Estados Partes tomarão todas as me-
comunicação, ajudas técnicas para loco- de que a presente Convenção não reconhece didas necessárias para assegurar às crianças
com deficiência o pleno exercício de todos b) Fomentar em todos os níveis do siste- tos ao público ou de uso público levem
os direitos humanos e liberdades fundamen- ma educacional, incluindo neles todas as em consideração todos os aspectos rela-
tais, em igualdade de oportunidades com as crianças desde tenra idade, uma atitude de tivos à acessibilidade para pessoas com
demais crianças. respeito para com os direitos das pessoas deficiência;
2. Em todas as ações relativas às crianças com deficiência; c) Proporcionar, a todos os atores envol-
com deficiência, o superior interesse da crian- c) Incentivar todos os órgãos da mídia vidos, formação em relação às questões
ça receberá consideração primordial. a retratar as pessoas com deficiência de de acessibilidade com as quais as pessoas
3. Os Estados Partes assegurarão que as maneira compatível com o propósito da com deficiência se confrontam;
crianças com deficiência tenham o direito de presente Convenção; d) Dotar os edifícios e outras instalações
expressar livremente sua opinião sobre todos d) Promover programas de formação so- abertas ao público ou de uso público de
os assuntos que lhes disserem respeito, te- bre sensibilização a respeito das pessoas sinalização em Braille e em formatos de
nham a sua opinião devidamente valorizada com deficiência e sobre os direitos das fácil leitura e compreensão;
de acordo com sua idade e maturidade, em pessoas com deficiência. e) Oferecer formas de assistência huma-
igualdade de oportunidades com as demais na ou animal e serviços de mediadores,
crianças, e recebam atendimento adequado Artigo 9 incluindo guias, ledores e intérpretes
à sua deficiência e idade, para que possam Acessibilidade profissionais da língua de sinais, para
exercer tal direito. 1. A fim de possibilitar às pessoas com facilitar o acesso aos edifícios e outras
deficiência viver de forma independente e instalações abertas ao público ou de
Artigo 8 participar plenamente de todos os aspectos uso público;
Conscientização da vida, os Estados Partes tomarão as medidas f) Promover outras formas apropriadas de
1. Os Estados Partes se comprometem a apropriadas para assegurar às pessoas com assistência e apoio a pessoas com defici-
adotar medidas imediatas, efetivas e apropria- deficiência o acesso, em igualdade de opor- ência, a fim de assegurar a essas pessoas
das para: tunidades com as demais pessoas, ao meio o acesso a informações;
a) Conscientizar toda a sociedade, in- físico, ao transporte, à informação e comuni- g) Promover o acesso de pessoas com
clusive as famílias, sobre as condições cação, inclusive aos sistemas e tecnologias deficiência a novos sistemas e tecnologias
das pessoas com deficiência e fomentar da informação e comunicação, bem como a da informação e comunicação, inclusive
o respeito pelos direitos e pela dignidade outros serviços e instalações abertos ao pú- à internet;
das pessoas com deficiência; blico ou de uso público, tanto na zona urbana h) Promover, desde a fase inicial, a con-
b) Combater estereótipos, preconceitos e como na rural. Essas medidas, que incluirão cepção, o desenvolvimento, a produção e
práticas nocivas em relação a pessoas com a identificação e a eliminação de obstáculos a disseminação de sistemas e tecnologias
deficiência, inclusive aqueles relacionados e barreiras à acessibilidade, serão aplicadas, de informação e comunicação, a fim de
a sexo e idade, em todas as áreas da vida; entre outros, a: que esses sistemas e tecnologias se tor-
c) Promover a conscientização sobre as a) Edifícios, rodovias, meios de transporte nem acessíveis a custo mínimo.
capacidades e contribuições das pessoas e outras instalações internas e externas,
com deficiência. inclusive escolas, residências, instalações Artigo 10
2. As medidas para esse fim incluem: médicas e local de trabalho; Direito à vida
a) Lançar e dar continuidade a efetivas b) Informações, comunicações e outros Os Estados Partes reafirmam que todo ser
campanhas de conscientização públicas, serviços, inclusive serviços eletrônicos e humano tem o inerente direito à vida e tomarão
destinadas a: serviços de emergência. todas as medidas necessárias para assegurar
i) Favorecer atitude receptiva em relação 2. Os Estados Partes também tomarão o efetivo exercício desse direito pelas pessoas
aos direitos das pessoas com deficiência; medidas apropriadas para: com deficiência, em igualdade de oportunida-
ii) Promover percepção positiva e maior a) Desenvolver, promulgar e monitorar des com as demais pessoas. 71
consciência social em relação às pessoas com a implementação de normas e diretrizes
Revista Direitos Humanos

deficiência; mínimas para a acessibilidade das insta- Artigo 11


iii) Promover o reconhecimento das habi- lações e dos serviços abertos ao público Situações de risco e emergências huma-
lidades, dos méritos e das capacidades das ou de uso público; nitárias
pessoas com deficiência e de sua contribuição b) Assegurar que as entidades privadas Em conformidade com suas obrigações
ao local de trabalho e ao mercado laboral; que oferecem instalações e serviços aber- decorrentes do direito internacional, inclusive
do direito humanitário internacional e do direito ro, e assegurarão que as pessoas com defi- 1. Nenhuma pessoa será submetida à tor-
internacional dos direitos humanos, os Estados ciência não sejam arbitrariamente destituídas tura ou a tratamentos ou penas cruéis, desu-
Partes tomarão todas as medidas necessárias de seus bens. manos ou degradantes. Em especial, nenhuma
para assegurar a proteção e a segurança das pessoa deverá ser sujeita a experimentos médi-
pessoas com deficiência que se encontrarem Artigo 13 cos ou científicos sem seu livre consentimento.
em situações de risco, inclusive situações de Acesso à justiça 2. Os Estados Partes tomarão todas as
conflito armado, emergências humanitárias e 1. Os Estados Partes assegurarão o efetivo medidas efetivas de natureza legislativa, ad-
ocorrência de desastres naturais. acesso das pessoas com deficiência à justiça, ministrativa, judicial ou outra para evitar que
em igualdade de condições com as demais pessoas com deficiência, do mesmo modo que
Artigo 12 pessoas, inclusive mediante a provisão de as demais pessoas, sejam submetidas à tortura
Reconhecimento igual perante a lei adaptações processuais adequadas à idade, ou a tratamentos ou penas cruéis, desumanos
1. Os Estados Partes reafirmam que as a fim de facilitar o efetivo papel das pessoas ou degradantes.
pessoas com deficiência têm o direito de ser com deficiência como participantes diretos ou
reconhecidas em qualquer lugar como pessoas indiretos, inclusive como testemunhas, em Artigo 16
perante a lei. todos os procedimentos jurídicos, tais como Prevenção contra a exploração, a violência
2. Os Estados Partes reconhecerão que as investigações e outras etapas preliminares. e o abuso
pessoas com deficiência gozam de capacidade 2. A fim de assegurar às pessoas com de- 1. Os Estados Partes tomarão todas as
legal em igualdade de condições com as de- ficiência o efetivo acesso à justiça, os Estados medidas apropriadas de natureza legislativa,
mais pessoas em todos os aspectos da vida. Partes promoverão a capacitação apropriada administrativa, social, educacional e outras
3. Os Estados Partes tomarão medidas daqueles que trabalham na área de adminis- para proteger as pessoas com deficiência, tanto
apropriadas para prover o acesso de pessoas tração da justiça, inclusive a polícia e os fun- dentro como fora do lar, contra todas as formas
com deficiência ao apoio que necessitarem no cionários do sistema penitenciário. de exploração, violência e abuso, incluindo
exercício de sua capacidade legal. aspectos relacionados a gênero.
4. Os Estados Partes assegurarão que todas Artigo 14 2. Os Estados Partes também tomarão
as medidas relativas ao exercício da capaci- Liberdade e segurança da pessoa todas as medidas apropriadas para prevenir
dade legal incluam salvaguardas apropriadas 1. Os Estados Partes assegurarão que as todas as formas de exploração, violência e abu-
e efetivas para prevenir abusos, em conformi- pessoas com deficiência, em igualdade de so, assegurando, entre outras coisas, formas
dade com o direito internacional dos direitos oportunidades com as demais pessoas: apropriadas de atendimento e apoio que levem
humanos. Essas salvaguardas assegurarão que a) Gozem do direito à liberdade e à segu- em conta o gênero e a idade das pessoas com
as medidas relativas ao exercício da capaci- rança da pessoa; e deficiência e de seus familiares e atendentes,
dade legal respeitem os direitos, a vontade e b) Não sejam privadas ilegal ou arbitraria- inclusive mediante a provisão de informação e
as preferências da pessoa, sejam isentas de mente de sua liberdade, que toda privação educação sobre a maneira de evitar, reconhecer
conflito de interesses e de influência indevida, de liberdade esteja em conformidade com e denunciar casos de exploração, violência e
sejam proporcionais e apropriadas às circuns- a lei e que a existência de deficiência não abuso. Os Estados Partes assegurarão que os
tâncias da pessoa, apliquem-se pelo período justifique a privação de liberdade. serviços de proteção levem em conta a idade,
mais curto possível e sejam submetidas à 2. Os Estados Partes assegurarão que, se o gênero e a deficiência das pessoas.
revisão regular por uma autoridade ou órgão pessoas com deficiência forem privadas de 3. A fim de prevenir a ocorrência de quais-
judiciário competente, independente e impar- liberdade mediante algum processo, elas, em quer formas de exploração, violência e abuso,
cial. As salvaguardas serão proporcionais ao igualdade de oportunidades com as demais os Estados Partes assegurarão que todos os
grau em que tais medidas afetarem os direitos pessoas, façam jus a garantias de acordo com programas e instalações destinados a atender
e interesses da pessoa. o direito internacional dos direitos humanos e pessoas com deficiência sejam efetivamente
72 5. Os Estados Partes, sujeitos ao disposto sejam tratadas em conformidade com os objeti- monitorados por autoridades independentes.
neste Artigo, tomarão todas as medidas apro- vos e princípios da presente Convenção, inclu- 4. Os Estados Partes tomarão todas as me-
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priadas e efetivas para assegurar às pessoas sive mediante a provisão de adaptação razoável. didas apropriadas para promover a recuperação
com deficiência o igual direito de possuir ou física, cognitiva e psicológica, inclusive me-
herdar bens, de controlar as próprias finanças Artigo 15 diante a provisão de serviços de proteção, a
e de ter igual acesso a empréstimos bancários, Prevenção contra tortura ou tratamentos reabilitação e a reinserção social de pessoas
hipotecas e outras formas de crédito financei- ou penas cruéis, desumanos ou degradantes com deficiência que forem vítimas de qualquer
forma de exploração, violência ou abuso. Tais 2. As crianças com deficiência serão re- momento em que elas quiserem, e a custo
recuperação e reinserção ocorrerão em am- gistradas imediatamente após o nascimento acessível;
bientes que promovam a saúde, o bem-estar, e terão, desde o nascimento, o direito a um b) Facilitando às pessoas com deficiência
o autorrespeito, a dignidade e a autonomia da nome, o direito de adquirir nacionalidade e, o acesso a tecnologias assistivas, dispo-
pessoa e levem em consideração as necessi- tanto quanto possível, o direito de conhecer sitivos e ajudas técnicas de qualidade, e
dades de gênero e idade. seus pais e de ser cuidadas por eles. formas de assistência humana ou animal
5. Os Estados Partes adotarão leis e políticas e de mediadores, inclusive tornando-os
efetivas, inclusive legislação e políticas voltadas Artigo 19 disponíveis a custo acessível;
para mulheres e crianças, a fim de assegurar que Vida independente e inclusão na comu- c) Propiciando às pessoas com defici-
os casos de exploração, violência e abuso contra nidade ência e ao pessoal especializado uma
pessoas com deficiência sejam identificados, Os Estados Partes desta Convenção reco- capacitação em técnicas de mobilidade;
investigados e, caso necessário, julgados. nhecem o igual direito de todas as pessoas d) Incentivando entidades que produzem
com deficiência de viver na comunidade, ajudas técnicas de mobilidade, disposi-
Artigo 17 com a mesma liberdade de escolha que as tivos e tecnologias assistivas a levarem
Proteção da integridade da pessoa demais pessoas, e tomarão medidas efetivas em conta todos os aspectos relativos à
Toda pessoa com deficiência tem o direi- e apropriadas para facilitar às pessoas com mobilidade de pessoas com deficiência.
to a que sua integridade física e mental seja deficiência o pleno gozo desse direito e sua
respeitada, em igualdade de condições com plena inclusão e participação na comunidade, Artigo 21
as demais pessoas. inclusive assegurando que: Liberdade de expressão e de opinião e
a) As pessoas com deficiência possam acesso à informação
Artigo 18 escolher seu local de residência e onde e Os Estados Partes tomarão todas as medi-
Liberdade de movimentação e nacionali- com quem morar, em igualdade de oportu- das apropriadas para assegurar que as pessoas
dade nidades com as demais pessoas, e que não com deficiência possam exercer seu direito à
1. Os Estados Partes reconhecerão os di- sejam obrigadas a viver em determinado liberdade de expressão e opinião, inclusive à
reitos das pessoas com deficiência à liberdade tipo de moradia; liberdade de buscar, receber e compartilhar
de movimentação, à liberdade de escolher sua b) As pessoas com deficiência tenham informações e ideias, em igualdade de opor-
residência e à nacionalidade, em igualdade acesso a uma variedade de serviços de tunidades com as demais pessoas e por inter-
de oportunidades com as demais pessoas, apoio em domicílio ou em instituições médio de todas as formas de comunicação de
inclusive assegurando que as pessoas com residenciais ou a outros serviços comu- sua escolha, conforme o disposto no Artigo 2
deficiência: nitários de apoio, inclusive os serviços de da presente Convenção, entre as quais:
a) Tenham o direito de adquirir naciona- atendentes pessoais que forem necessários a) Fornecer, prontamente e sem custo adi-
lidade e mudar de nacionalidade e não como apoio para que vivam e sejam incluí- cional, às pessoas com deficiência, todas
sejam privadas arbitrariamente de sua das na comunidade e para evitar que fiquem as informações destinadas ao público em
nacionalidade em razão de sua deficiência; isoladas ou segregadas da comunidade; geral, em formatos acessíveis e tecnolo-
b) Não sejam privadas, por causa de sua c) Os serviços e instalações da comuni- gias apropriadas aos diferentes tipos de
deficiência, da competência de obter, pos- dade para a população em geral estejam deficiência;
suir e utilizar documento comprovante de disponíveis às pessoas com deficiência, b) Aceitar e facilitar, em trâmites oficiais,
sua nacionalidade ou outro documento de em igualdade de oportunidades, e atendam o uso de línguas de sinais, Braille, co-
identidade, ou de recorrer a processos rele- às suas necessidades. municação aumentativa e alternativa, e de
vantes, tais como procedimentos relativos todos os demais meios, modos e formatos
à imigração, que forem necessários para fa- Artigo 20 acessíveis de comunicação, à escolha das
cilitar o exercício de seu direito à liberdade Mobilidade social pessoas com deficiência; 73
de movimentação; Os Estados Partes tomarão medidas efeti- c) Urgir as entidades privadas que ofere-
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c) Tenham liberdade de sair de qualquer vas para assegurar às pessoas com deficiência cem serviços ao público em geral, inclu-
país, inclusive do seu; e sua mobilidade pessoal com a máxima inde- sive por meio da internet, a fornecer infor-
d) Não sejam privadas, arbitrariamente ou pendência possível: mações e serviços em formatos acessíveis,
por causa de sua deficiência, do direito de a) Facilitando a mobilidade pessoal das que possam ser usados por pessoas com
entrar no próprio país. pessoas com deficiência, na forma e no deficiência;
d) Incentivar a mídia, inclusive os prove- igualdade de condições com as demais aprendizado ao longo de toda a vida, com os
dores de informação pela internet, a tornar pessoas. seguintes objetivos:
seus serviços acessíveis a pessoas com 2. Os Estados Partes assegurarão os di- a) O pleno desenvolvimento do potencial
deficiência; reitos e responsabilidades das pessoas com humano e do senso de dignidade e auto-
e) Reconhecer e promover o uso de lín- deficiência, relativos à guarda, custódia, estima, além do fortalecimento do respeito
guas de sinais. curatela e adoção de crianças ou instituições pelos direitos humanos, pelas liberdades
semelhantes, caso esses conceitos constem fundamentais e pela diversidade humana;
Artigo 22 na legislação nacional. Em todos os casos, b) O máximo desenvolvimento possível da
Respeito à privacidade prevalecerá o superior interesse da criança. Os personalidade e dos talentos e da cria-
1. Nenhuma pessoa com deficiência, Estados Partes prestarão a devida assistência tividade das pessoas com deficiência,
qualquer que seja seu local de residência ou às pessoas com deficiência para que essas assim como de suas habilidades físicas
tipo de moradia, estará sujeita a interferência pessoas possam exercer suas responsabilida- e intelectuais;
arbitrária ou ilegal em sua privacidade, família, des na criação dos filhos. c) A participação efetiva das pessoas com
lar, correspondência ou outros tipos de comu- 3. Os Estados Partes assegurarão que as deficiência em uma sociedade livre.
nicação, nem a ataques ilícitos à sua honra e crianças com deficiência terão iguais direitos 2. Para a realização desse direito, os Es-
reputação. As pessoas com deficiência têm o em relação à vida familiar. Para a realização tados Partes assegurarão que:
direito à proteção da lei contra tais interferên- desses direitos e para evitar ocultação, aban- a) As pessoas com deficiência não se-
cias ou ataques. dono, negligência e segregação de crianças jam excluídas do sistema educacional
2. Os Estados Partes protegerão a priva- com deficiência, os Estados Partes fornecerão geral sob alegação de deficiência e que
cidade dos dados pessoais e dados relativos prontamente informações abrangentes sobre as crianças com deficiência não sejam
à saúde e à reabilitação de pessoas com de- serviços e apoios a crianças com deficiência excluídas do ensino primário gratuito e
ficiência, em igualdade de condições com as e suas famílias. compulsório ou do ensino secundário,
demais pessoas. 4. Os Estados Partes assegurarão que uma sob alegação de deficiência;
criança não será separada de seus pais contra b) As pessoas com deficiência possam
Artigo 23 a vontade destes, exceto quando autoridades ter acesso ao ensino primário inclusi-
Respeito pelo lar e pela família competentes, sujeitas a controle jurisdicional, vo, de qualidade e gratuito, e ao ensino
1. Os Estados Partes tomarão medidas efe- determinarem, em conformidade com as leis e secundário, em igualdade de condições
tivas e apropriadas para eliminar a discrimina- procedimentos aplicáveis, que a separação é com as demais pessoas na comunidade
ção contra pessoas com deficiência, em todos necessária, no superior interesse da criança. em que vivem;
os aspectos relativos a casamento, família, pa- Em nenhum caso, uma criança será separada c) Adaptações razoáveis de acordo com
ternidade e relacionamentos, em igualdade e dos pais sob alegação de deficiência da criança as necessidades individuais sejam provi-
condições com as demais pessoas, de modo ou de um ou ambos os pais. denciadas;
a assegurar que: 5. Os Estados Partes, no caso em que a fa- d) As pessoas com deficiência recebam
a) Seja reconhecido o direito das pessoas mília imediata de uma criança com deficiência o apoio necessário, no âmbito do sistema
com deficiência, em idade de contrair ma- não tenha condições de cuidar da criança, farão educacional geral, com vistas a facilitar sua
trimônio, de casar-se e estabelecer família, todo esforço para que cuidados alternativos efetiva educação;
com base no livre e pleno consentimento sejam oferecidos por outros parentes e, se isso e) Medidas de apoio individualizadas e
dos pretendentes; não for possível, dentro de ambiente familiar, efetivas sejam adotadas em ambientes
b) Sejam reconhecidos os direitos das na comunidade. que maximizem o desenvolvimento aca-
pessoas com deficiência de decidir livre e dêmico e social, de acordo com a meta
responsavelmente sobre o número de filhos Artigo 24 de inclusão plena.
74 e o espaçamento entre esses filhos e de ter Educação 3. Os Estados Partes assegurarão às pesso-
acesso a informações adequadas à idade e 1. Os Estados Partes reconhecem o direito as com deficiência a possibilidade de adquirir as
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a educação em matéria de reprodução e de das pessoas com deficiência à educação. Para competências práticas e sociais necessárias de
planejamento familiar, bem como os meios efetivar esse direito sem discriminação e com modo a facilitar às pessoas com deficiência sua
necessários para exercer esses direitos. base na igualdade de oportunidades, os Esta- plena e igual participação no sistema de ensino
c) As pessoas com deficiência, inclusive dos Partes assegurarão sistema educacional e na vida em comunidade. Para tanto, os Estados
crianças, conservem sua fertilidade, em inclusivo em todos os níveis, bem como o Partes tomarão medidas apropriadas, incluindo:
a) Facilitação do aprendizado do Brail- incluindo os serviços de reabilitação, que le- Artigo 26
le, escrita alternativa, modos, meios e varão em conta as especificidades de gênero. Habilitação e reabilitação
formatos de comunicação aumentativa e Em especial, os Estados Partes: 1. Os Estados Partes tomarão medidas efe-
alternativa, e habilidades de orientação e a) Oferecerão às pessoas com deficiência tivas e apropriadas, inclusive mediante apoio
mobilidade, além de facilitação do apoio programas e atenção à saúde gratuitos ou dos pares, para possibilitar que as pessoas
e aconselhamento de pares; a custos acessíveis da mesma variedade, com deficiência conquistem e conservem
b) Facilitação do aprendizado da língua de qualidade e padrão que são oferecidos o máximo de autonomia e plena capacida-
sinais e promoção da identidade linguística às demais pessoas, inclusive na área de de física, mental, social e profissional, bem
da comunidade surda; saúde sexual e reprodutiva e de programas como plena inclusão e participação em todos
c) Garantia de que a educação de pessoas, de saúde pública destinados à população os aspectos da vida. Para tanto, os Estados
em particular crianças cegas, surdocegas e em geral; Partes organizarão, fortalecerão e ampliarão
surdas, seja ministrada nas línguas e nos b) Propiciarão serviços de saúde que serviços e programas completos de habilitação
modos e meios de comunicação mais as pessoas com deficiência necessitam e reabilitação, particularmente nas áreas de
adequados ao indivíduo e em ambientes especificamente por causa de sua defici- saúde, emprego, educação e serviços sociais,
que favoreçam ao máximo seu desenvol- ência, inclusive diagnóstico e intervenção de modo que esses serviços e programas:
vimento acadêmico e social. precoces, bem como serviços projetados a) Comecem no estágio mais precoce
4. A fim de contribuir para o exercício para reduzir ao máximo e prevenir defici- possível e sejam baseados em avaliação
desse direito, os Estados Partes tomarão me- ências adicionais, inclusive entre crianças multidisciplinar das necessidades e pon-
didas apropriadas para empregar professores, e idosos; tos fortes de cada pessoa;
inclusive professores com deficiência, habi- c) Propiciarão esses serviços de saúde às b) Apóiem a participação e a inclusão na
litados para o ensino da língua de sinais e/ pessoas com deficiência, o mais próximo comunidade e em todos os aspectos da
ou do Braille, e para capacitar profissionais e possível de suas comunidades, inclusive vida social, sejam oferecidos voluntaria-
equipes atuantes em todos os níveis de ensino. na zona rural; mente e estejam disponíveis às pessoas
Essa capacitação incorporará a conscientiza- d) Exigirão dos profissionais de saúde que com deficiência o mais próximo possível de
ção da deficiência e a utilização de modos, dispensem às pessoas com deficiência a suas comunidades, inclusive na zona rural.
meios e formatos apropriados de comunicação mesma qualidade de serviços dispensa- 2. Os Estados Partes promoverão o desen-
aumentativa e alternativa, e técnicas e materiais da às demais pessoas e, principalmente, volvimento da capacitação inicial e continuada
pedagógicos, como apoios para pessoas com que obtenham o consentimento livre e de profissionais e de equipes que atuam nos
deficiência. esclarecido das pessoas com deficiência serviços de habilitação e reabilitação.
5. Os Estados Partes assegurarão que as concernentes. Para esse fim, os Estados 3. Os Estados Partes promoverão a
pessoas com deficiência possam ter acesso Partes realizarão atividades de formação disponibilidade, o conhecimento e o uso de
ao ensino superior em geral, treinamento pro- e definirão regras éticas para os setores dispositivos e tecnologias assistivas, projeta-
fissional de acordo com sua vocação, educa- de saúde público e privado, de modo a dos para pessoas com deficiência e relaciona-
ção para adultos e formação continuada, sem conscientizar os profissionais de saúde dos com a habilitação e a reabilitação.
discriminação e em igualdade de condições. acerca dos direitos humanos, da digni-
Para tanto, os Estados Partes assegurarão a dade, autonomia e das necessidades das Artigo 27
provisão de adaptações razoáveis para pessoas pessoas com deficiência; Trabalho e emprego
com deficiência. e) Proibirão a discriminação contra pes- 1. Os Estados Partes reconhecem o direito
soas com deficiência na provisão de se- das pessoas com deficiência ao trabalho, em
Artigo 25 guro de saúde e seguro de vida, caso tais igualdade de oportunidades com as demais
Saúde seguros sejam permitidos pela legislação pessoas. Esse direito abrange o direito à opor-
Os Estados Partes reconhecem que as nacional, os quais deverão ser providos de tunidade de se manter com um trabalho de 75
pessoas com deficiência têm o direito de gozar maneira razoável e justa; sua livre escolha ou aceitação no mercado
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do estado de saúde mais elevado possível, f) Prevenirão que se neguem, de maneira laboral, em ambiente de trabalho que seja
sem discriminação baseada na deficiência. discriminatória, os serviços de saúde ou aberto, inclusivo e acessível a pessoas com
Os Estados Partes tomarão todas as medidas de atenção à saúde ou a administração de deficiência. Os Estados Partes salvaguardarão e
apropriadas para assegurar às pessoas com alimentos sólidos ou líquidos por motivo promoverão a realização do direito ao trabalho,
deficiência o acesso a serviços de saúde, de deficiência. inclusive daqueles que tiverem adquirido uma
deficiência no emprego, adotando medidas j) Promover a aquisição de experiência quado, aconselhamento, ajuda financeira
apropriadas, incluídas na legislação, com o de trabalho por pessoas com deficiência e cuidados de repouso;
fim de, entre outros: no mercado aberto de trabalho; d) Assegurar o acesso de pessoas com
a) Proibir a discriminação baseada na de- k) Promover reabilitação profissional, deficiência a programas habitacionais
ficiência com respeito a todas as questões manutenção do emprego e programas públicos;
relacionadas com as formas de emprego, de retorno ao trabalho para pessoas com e) Assegurar igual acesso de pessoas com
inclusive condições de recrutamento, con- deficiência. deficiência a programas e benefícios de
tratação e admissão, permanência no em- 2. Os Estados Partes assegurarão que as aposentadoria.
prego, ascensão profissional e condições pessoas com deficiência não serão mantidas
seguras e salubres de trabalho; em escravidão ou servidão e que serão pro- Artigo 29
b) Proteger os direitos das pessoas com tegidas, em igualdade de condições com as Participação na vida política e pública
deficiência, em condições de igualdade demais pessoas, contra o trabalho forçado ou Os Estados Partes garantirão às pessoas
com as demais pessoas, às condições compulsório. com deficiência direitos políticos e oportuni-
justas e favoráveis de trabalho, incluindo dade de exercê-los em condições de igualdade
iguais oportunidades e igual remuneração Artigo 28 com as demais pessoas, e deverão:
por trabalho de igual valor, condições Padrão de vida e proteção social ade- a) Assegurar que as pessoas com defi-
seguras e salubres de trabalho, além de quados ciência possam participar efetiva e ple-
reparação de injustiças e proteção contra 1. Os Estados Partes reconhecem o direi- namente na vida política e pública, em
o assédio no trabalho; to das pessoas com deficiência a um padrão igualdade de oportunidades com as de-
c) Assegurar que as pessoas com de- adequado de vida para si e para suas famílias, mais pessoas, diretamente ou por meio
ficiência possam exercer seus direitos inclusive alimentação, vestuário e moradia de representantes livremente escolhidos,
trabalhistas e sindicais, em condições de adequados, bem como à melhoria contínua de incluindo o direito e a oportunidade de
igualdade com as demais pessoas; suas condições de vida, e tomarão as providên- votarem e serem votadas, mediante, entre
d) Possibilitar às pessoas com deficiência cias necessárias para salvaguardar e promover outros:
o acesso efetivo a programas de orienta- a realização desse direito sem discriminação i) Garantia de que os procedimentos,
ção técnica e profissional e a serviços de baseada na deficiência. instalações e materiais e equipamentos para
colocação no trabalho e de treinamento 2. Os Estados Partes reconhecem o direito votação serão apropriados, acessíveis e de fácil
profissional e continuado; das pessoas com deficiência à proteção social compreensão e uso;
e) Promover oportunidades de emprego e e ao exercício desse direito sem discriminação ii) Proteção do direito das pessoas com
ascensão profissional para pessoas com baseada na deficiência, e tomarão as medidas deficiência ao voto secreto em eleições e ple-
deficiência no mercado de trabalho, bem apropriadas para salvaguardar e promover a biscitos, sem intimidação, e a candidatar-se
como assistência na procura, obtenção e realização desse direito, tais como: nas eleições, efetivamente ocupar cargos eleti-
manutenção do emprego e no retorno ao a) Assegurar igual acesso de pessoas com vos e desempenhar quaisquer funções públicas
emprego; deficiência a serviços de saneamento bá- em todos os níveis de governo, usando novas
f) Promover oportunidades de trabalho sico e assegurar o acesso aos serviços, tecnologias assistivas, quando apropriado;
autônomo, empreendedorismo, desenvol- dispositivos e outros atendimentos apro- iii) Garantia da livre expressão de vontade
vimento de cooperativas e estabelecimento priados para as necessidades relacionadas das pessoas com deficiência como eleitores e,
de negócio próprio; com a deficiência; para tanto, sempre que necessário e a seu pe-
g) Empregar pessoas com deficiência no b) Assegurar o acesso de pessoas com dido, permissão para que elas sejam auxiliadas
setor público; deficiência, particularmente mulheres, na votação por uma pessoa de sua escolha;
h) Promover o emprego de pessoas com crianças e idosos com deficiência, a pro- b) Promover ativamente um ambien-
76 deficiência no setor privado, mediante gramas de proteção social e de redução te em que as pessoas com deficiência
políticas e medidas apropriadas, que po- da pobreza; possam participar efetiva e plenamente
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derão incluir programas de ação afirmativa, c) Assegurar o acesso de pessoas com na condução das questões públicas,
incentivos e outras medidas; deficiência e suas famílias em situação sem discriminação e em igualdade de
i) Assegurar que adaptações razoáveis de pobreza à assistência do Estado em oportunidades com as demais pessoas,
sejam feitas para pessoas com deficiência relação a seus gastos ocasionados pela e encorajar sua participação nas questões
no local de trabalho; deficiência, inclusive treinamento ade- públicas, mediante:
i) Participação em organizações não go- apoiada, incluindo as línguas de sinais e a as liberdades fundamentais e os princípios
vernamentais relacionadas com a vida pública cultura surda. éticos na coleta de dados e utilização de
e política do país, bem como em atividades e 5. Para que as pessoas com deficiência estatísticas.
administração de partidos políticos; participem, em igualdade de oportunidades 2. As informações coletadas de acordo
ii) Formação de organizações para re- com as demais pessoas, de atividades recre- com o disposto neste Artigo serão desagre-
presentar pessoas com deficiência em níveis ativas, esportivas e de lazer, os Estados Partes gadas, de maneira apropriada, e utilizadas para
internacional, regional, nacional e local, bem tomarão medidas apropriadas para: avaliar o cumprimento, por parte dos Estados
como a filiação de pessoas com deficiência a a) Incentivar e promover a maior participa- Partes, de suas obrigações na presente Con-
tais organizações. ção possível das pessoas com deficiência venção e para identificar e enfrentar as barreiras
nas atividades esportivas comuns em to- com as quais as pessoas com deficiência se
Artigo 30 dos os níveis; deparam no exercício de seus direitos.
Participação na vida cultural e em recrea- b) Assegurar que as pessoas com defici- 3. Os Estados Partes assumirão respon-
ção, lazer e esporte ência tenham a oportunidade de organizar, sabilidade pela disseminação das referidas
1. Os Estados Partes reconhecem o direito desenvolver e participar em atividades es- estatísticas e assegurarão que elas sejam aces-
das pessoas com deficiência de participar na portivas e recreativas específicas às defici- síveis às pessoas com deficiência e a outros.
vida cultural, em igualdade de oportunidades ências e, para tanto, incentivar a provisão
com as demais pessoas, e tomarão todas as de instrução, treinamento e recursos ade- Artigo 32
medidas apropriadas para que as pessoas com quados, em igualdade de oportunidades Cooperação internacional
deficiência possam: com as demais pessoas; 1. Os Estados Partes reconhecem a impor-
a) Ter acesso a bens culturais em formatos c) Assegurar que as pessoas com defici- tância da cooperação internacional e de sua
acessíveis; ência tenham acesso a locais de eventos promoção, em apoio aos esforços nacionais
b) Ter acesso a programas de televisão, esportivos, recreativos e turísticos; para a consecução do propósito e dos objetivos
cinema, teatro e outras atividades culturais, d) Assegurar que as crianças com defici- da presente Convenção e, sob este aspecto,
em formatos acessíveis; e ência possam, em igualdade de condições adotarão medidas apropriadas e efetivas en-
c) Ter acesso a locais que ofereçam servi- com as demais crianças, participar de jo- tre os Estados e, de maneira adequada, em
ços ou eventos culturais, tais como teatros, gos e atividades recreativas, esportivas e parceria com organizações internacionais e
museus, cinemas, bibliotecas e serviços de lazer, inclusive no sistema escolar; regionais relevantes e com a sociedade civil
turísticos, bem como, tanto quanto pos- e) Assegurar que as pessoas com defici- e, em particular, com organizações de pesso-
sível, ter acesso a monumentos e locais ência tenham acesso aos serviços presta- as com deficiência. Estas medidas poderão
de importância cultural nacional. dos por pessoas ou entidades envolvidas incluir, entre outras:
2. Os Estados Partes tomarão medidas na organização de atividades recreativas, a) Assegurar que a cooperação internacio-
apropriadas para que as pessoas com defici- turísticas, esportivas e de lazer. nal, incluindo os programas internacionais
ência tenham a oportunidade de desenvolver de desenvolvimento, seja inclusiva e aces-
e utilizar seu potencial criativo, artístico e Artigo 31 sível para pessoas com deficiência;
intelectual, não somente em benefício pró- Estatísticas e coleta de dados b) Facilitar e apoiar a capacitação, inclu-
prio, mas também para o enriquecimento da 1. Os Estados Partes coletarão dados apro- sive por meio do intercâmbio e compar-
sociedade. priados, inclusive estatísticos e de pesquisas, tilhamento de informações, experiências,
3. Os Estados Partes deverão tomar todas para que possam formular e implementar po- programas de treinamento e melhores
as providências, em conformidade com o di- líticas destinadas a por em prática a presente práticas;
reito internacional, para assegurar que a legis- Convenção. O processo de coleta e manuten- c) Facilitar a cooperação em pesquisa e
lação de proteção dos direitos de propriedade ção de tais dados deverá: o acesso a conhecimentos científicos e
intelectual não constitua barreira excessiva a) Observar as salvaguardas estabeleci- técnicos; 77
ou discriminatória ao acesso de pessoas com das por lei, inclusive pelas leis relativas à d) Propiciar, de maneira apropriada, as-
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deficiência a bens culturais. proteção de dados, a fim de assegurar a sistência técnica e financeira, inclusive
4. As pessoas com deficiência farão jus, confidencialidade e o respeito pela priva- mediante facilitação do acesso a tecno-
em igualdade de oportunidades com as de- cidade das pessoas com deficiência; logias assistivas e acessíveis e seu com-
mais pessoas, a que sua identidade cultural b) Observar as normas internacionalmente partilhamento, bem como por meio de
e linguística específica seja reconhecida e aceitas para proteger os direitos humanos, transferência de tecnologias.
2. O disposto neste Artigo se aplica sem pre- campo abrangido pela presente Convenção. Ao 9. Em caso de morte, demissão ou de-
juízo das obrigações que cabem a cada Estado designar seus candidatos, os Estados Partes claração de um membro de que, por algum
Parte em decorrência da presente Convenção. são instados a dar a devida consideração ao motivo, não poderá continuar a exercer suas
disposto no Artigo 4.3 da presente Convenção. funções, o Estado Parte que o tiver indicado
Artigo 33 4. Os membros do Comitê serão eleitos designará outro perito que tenha as qualifica-
Implementação e monitoramento nacionais pelos Estados Partes, observando-se uma ções e satisfaça aos requisitos estabelecidos
1. Os Estados Partes, de acordo com seu distribuição geográfica equitativa, represen- pelos dispositivos pertinentes deste Artigo,
sistema organizacional, designarão um ou mais tação de diferentes formas de civilização e para concluir o mandato em questão.
de um ponto focal no âmbito do Governo para dos principais sistemas jurídicos, represen- 10. O Comitê estabelecerá suas próprias
assuntos relacionados com a implementação tação equilibrada de gênero e participação de normas de procedimento.
da presente Convenção e darão a devida con- peritos com deficiência. 11. O Secretário-Geral das Nações Unidas
sideração ao estabelecimento ou à designação 5. Os membros do Comitê serão eleitos proverá o pessoal e as instalações necessá-
de um mecanismo de coordenação no âmbito por votação secreta em sessões da Confe- rios para o efetivo desempenho das funções
do Governo, a fim de facilitar ações correlatas rência dos Estados Partes, a partir de uma do Comitê segundo a presente Convenção e
nos diferentes setores e níveis. lista de pessoas designadas pelos Estados convocará sua primeira reunião.
2. Os Estados Partes, em conformidade Partes entre seus nacionais. Nessas sessões, 12. Com a aprovação da Assembleia Geral,
com seus sistemas jurídico e administrativo, cujo quórum será de dois terços dos Estados os membros do Comitê estabelecido sob a
manterão, fortalecerão, designarão ou estabe- Partes, os candidatos eleitos para o Comitê presente Convenção receberão emolumentos
lecerão estrutura, incluindo um ou mais de um serão aqueles que obtiverem o maior número dos recursos das Nações Unidas, sob termos
mecanismo independente, de maneira apro- de votos e a maioria absoluta dos votos dos e condições que a Assembleia possa decidir,
priada, para promover, proteger e monitorar representantes dos Estados Partes presentes tendo em vista a importância das responsabi-
a implementação da presente Convenção. Ao e votantes. lidades do Comitê.
designar ou estabelecer tal mecanismo, os 6. A primeira eleição será realizada, o mais 13. Os membros do Comitê terão direito
Estados Partes levarão em conta os princí- tardar, até seis meses após a data de entrada aos privilégios, facilidades e imunidades dos
pios relativos ao status e funcionamento das em vigor da presente Convenção. Pelo me- peritos em missões das Nações Unidas, em
instituições nacionais de proteção e promoção nos quatro meses antes de cada eleição, o conformidade com as disposições pertinentes
dos direitos humanos. Secretário-Geral das Nações Unidas dirigirá da Convenção sobre Privilégios e Imunidades
3. A sociedade civil e, particularmente, as carta aos Estados Partes, convidando-os a sub- das Nações Unidas.
pessoas com deficiência e suas organizações meter os nomes de seus candidatos no prazo
representativas serão envolvidas e participarão de dois meses. O Secretário-Geral, subsequen- Artigo 35
plenamente no processo de monitoramento. temente, preparará lista em ordem alfabética de Relatórios dos Estados Partes
todos os candidatos apresentados, indicando 1. Cada Estado Parte, por intermédio do
Artigo 34 que foram designados pelos Estados Partes, Secretário-Geral das Nações Unidas, subme-
Comitê sobre os Direitos das Pessoas com e submeterá essa lista aos Estados Partes da terá relatório abrangente sobre as medidas
Deficiência presente Convenção. adotadas em cumprimento de suas obrigações
1. Um Comitê sobre os Direitos das Pes- 7. Os membros do Comitê serão eleitos estabelecidas pela presente Convenção e sobre
soas com Deficiência (doravante denominado para mandato de quatro anos, podendo ser can- o progresso alcançado nesse aspecto, dentro
“Comitê”) será estabelecido, para desempe- didatos à reeleição uma única vez. Contudo, do período de dois anos após a entrada em
nhar as funções aqui definidas. o mandato de seis dos membros eleitos na vigor da presente Convenção para o Estado
2. O Comitê será constituído, quando da primeira eleição expirará ao fim de dois anos; Parte concernente.
entrada em vigor da presente Convenção, de imediatamente após a primeira eleição, os no- 2. Depois disso, os Estados Partes sub-
78 12 peritos. Quando a presente Convenção al- mes desses seis membros serão selecionados meterão relatórios subsequentes, ao menos a
cançar 60 ratificações ou adesões, o Comitê por sorteio pelo presidente da sessão a que se cada quatro anos, ou quando o Comitê solicitar.
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será acrescido em seis membros, perfazendo refere o parágrafo 5 deste Artigo. 3. O Comitê determinará as diretrizes apli-
o total de 18 membros. 8. A eleição dos seis membros adicionais cáveis ao teor dos relatórios.
3. Os membros do Comitê atuarão a título do Comitê será realizada por ocasião das elei- 4. Um Estado Parte que tiver submetido
pessoal e apresentarão elevada postura moral, ções regulares, de acordo com as disposições ao Comitê um relatório inicial abrangente não
competência e experiência reconhecidas no pertinentes deste Artigo. precisará, em relatórios subsequentes, repetir
informações já apresentadas. Ao elaborar os ou de assistência técnica, acompanhados de e recomendações gerais e de evitar dupli-
relatórios ao Comitê, os Estados Partes são eventuais observações e sugestões do Comitê cação e superposição no desempenho de
instados a fazê-lo de maneira franca e trans- em relação às referidas demandas ou indica- suas funções.
parente e a levar em consideração o disposto ções, a fim de que possam ser consideradas.
no Artigo 4.3 da presente Convenção. Artigo 39
5. Os relatórios poderão apontar os fato- Artigo 37 Relatório do Comitê
res e as dificuldades que tiverem afetado o Cooperação entre os Estados Partes e o A cada dois anos, o Comitê submeterá à
cumprimento das obrigações decorrentes da Comitê Assembleia Geral e ao Conselho Econômico
presente Convenção. 1. Cada Estado Parte cooperará com o Co- e Social um relatório de suas atividades e po-
mitê e auxiliará seus membros no desempenho derá fazer sugestões e recomendações gerais
Artigo 36 de seu mandato. baseadas no exame dos relatórios e nas infor-
Consideração dos relatórios 2. Em suas relações com os Estados Par- mações recebidas dos Estados Partes. Estas
1. Os relatórios serão considerados pelo tes, o Comitê dará a devida consideração aos sugestões e recomendações gerais serão in-
Comitê, que fará as sugestões e recomen- meios e modos de aprimorar a capacidade de cluídas no relatório do Comitê, acompanhadas,
dações gerais que julgar pertinentes e as cada Estado Parte para a implementação da se houver, de comentários dos Estados Partes.
transmitirá aos respectivos Estados Partes. presente Convenção, inclusive mediante co-
O Estado Parte poderá responder ao Comitê operação internacional. Artigo 40
com as informações que julgar pertinentes. O Conferência dos Estados Partes
Comitê poderá pedir informações adicionais Artigo 38 1. Os Estados Partes reunir-se-ão regu-
aos Estados Partes, referentes à implementação Relações do Comitê com outros órgãos larmente em Conferência dos Estados Partes
da presente Convenção. A fim de promover a efetiva implementa- a fim de considerar matérias relativas à imple-
2. Se um Estado Parte atrasar considera- ção da presente Convenção e de incentivar a mentação da presente Convenção.
velmente a entrega de seu relatório, o Comitê cooperação internacional na esfera abrangida 2. O Secretário-Geral das Nações Unidas
poderá notificar esse Estado de que examinará pela presente Convenção: convocará, dentro do período de seis meses
a aplicação da presente Convenção com base a) As agências especializadas e outros após a entrada em vigor da presente Con-
em informações confiáveis de que disponha, a órgãos das Nações Unidas terão o direito venção, a Conferência dos Estados Partes.
menos que o relatório devido seja apresentado de se fazer representar quando da conside- As reuniões subsequentes serão convocadas
pelo Estado dentro do período de três meses ração da implementação de disposições da pelo Secretário-Geral das Nações Unidas a
após a notificação. presente Convenção que disserem respeito cada dois anos ou conforme a decisão da
O Comitê convidará o Estado Parte inte- aos seus respectivos mandatos. O Comitê Conferência dos Estados Partes.
ressado a participar desse exame. Se o Esta- poderá convidar as agências especializa-
do Parte responder entregando seu relatório, das e outros órgãos competentes, segundo Artigo 41
aplicar-se-á o disposto no parágrafo 1 do julgar apropriado, a oferecer consultoria de Depositário
presente Artigo. peritos sobre a implementação da Conven- O Secretário-Geral das Nações Unidas será
3. O Secretário-Geral das Nações Unidas ção em áreas pertinentes a seus respecti- o depositário da presente Convenção.
colocará os relatórios à disposição de todos vos mandatos. O Comitê poderá convidar
os Estados Partes. agências especializadas e outros órgãos Artigo 42
4. Os Estados Partes tornarão seus rela- das Nações Unidas a apresentar relatórios Assinatura
tórios amplamente disponíveis ao público em sobre a implementação da Convenção em A presente Convenção será aberta à assi-
seus países e facilitarão o acesso à possibili- áreas pertinentes às suas respectivas ati- natura de todos os Estados e organizações de
dade de sugestões e de recomendações gerais vidades; integração regional na sede das Nações Unidas
a respeito desses relatórios. b) No desempenho de seu mandato, o em Nova York, a partir de 30 de março de 2007. 79
5.O Comitê transmitirá às agências, fun- Comitê consultará, de maneira apropria-
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dos e programas especializados das Nações da, outros órgãos pertinentes instituídos Artigo 43
Unidas e a outras organizações competentes, ao amparo de tratados internacionais de Consentimento em comprometer-se
da maneira que julgar apropriada, os relatórios direitos humanos, a fim de assegurar a A presente Convenção será submetida à
dos Estados Partes que contenham demandas consistência de suas respectivas diretrizes ratificação pelos Estados signatários e à con-
ou indicações de necessidade de consultoria para a elaboração de relatórios, sugestões firmação formal por organizações de integração
regional signatárias. Ela estará aberta à adesão 2. Para cada Estado ou organização de in- após a data na qual o número de instrumen-
de qualquer Estado ou organização de integra- tegração regional que ratificar ou formalmen- tos de aceitação tenha atingido dois terços do
ção regional que não a houver assinado. te confirmar a presente Convenção ou a ela número de Estados Partes na data de adoção
aderir após o depósito do referido vigésimo da emenda. Posteriormente, a emenda entrará
Artigo 44 instrumento, a Convenção entrará em vigor em vigor para todo Estado Parte no trigésimo
Organizações de integração regional no trigésimo dia a partir da data em que esse dia após o depósito por esse Estado do seu
1. “Organização de integração regional” Estado ou organização tenha depositado seu instrumento de aceitação. A emenda será vin-
será entendida como organização constituída instrumento de ratificação, confirmação formal culante somente para os Estados Partes que a
por Estados soberanos de determinada região, ou adesão. tiverem aceitado.
à qual seus Estados membros tenham dele- 3. Se a Conferência dos Estados Partes as-
gado competência sobre matéria abrangida Artigo 46 sim o decidir por consenso, qualquer emenda
pela presente Convenção. Essas organizações Reservas adotada e aprovada em conformidade com o
declararão, em seus documentos de confir- 1. Não serão permitidas reservas incompa- disposto no parágrafo 1 deste Artigo, relacio-
mação formal ou adesão, o alcance de sua tíveis com o objeto e o propósito da presente nada exclusivamente com os artigos 34, 38, 39
competência em relação à matéria abrangida Convenção. e 40, entrará em vigor para todos os Estados
pela presente Convenção. Subsequentemen- 2. As reservas poderão ser retiradas a qual- Partes no trigésimo dia a partir da data em que
te, as organizações informarão ao depositário quer momento o número de instrumentos de aceitação depo-
qualquer alteração substancial no âmbito de sitados tiver atingido dois terços do número de
sua competência. Artigo 47 Estados Partes na data de adoção da emenda.
2. As referências a “Estados Partes” na Emendas
presente Convenção serão aplicáveis a essas 1. Qualquer Estado Parte poderá propor Artigo 48
organizações, nos limites da competência emendas à presente Convenção e submetê- Denúncia
destas. -las ao Secretário-Geral das Nações Unidas. Qualquer Estado Parte poderá denunciar a
3. Para os fins do parágrafo 1 do Artigo 45 O Secretário-Geral comunicará aos Estados presente Convenção mediante notificação por
e dos parágrafos 2 e 3 do Artigo 47, nenhum Partes quaisquer emendas propostas, solici- escrito ao Secretário-Geral das Nações Unidas.
instrumento depositado por organização de tando-lhes que o notifiquem se são favoráveis A denúncia tornar-se-á efetiva um ano após
integração regional será computado. a uma Conferência dos Estados Partes para a data de recebimento da notificação pelo
4. As organizações de integração regio- considerar as propostas e tomar decisão a Secretário-Geral.
nal, em matérias de sua competência, poderão respeito delas. Se, até quatro meses após a
exercer o direito de voto na Conferência dos data da referida comunicação, pelo menos um Artigo 49
Estados Partes, tendo direito ao mesmo nú- terço dos Estados Partes se manifestar favo- Formatos acessíveis
mero de votos quanto for o número de seus rável a essa Conferência, o Secretário-Geral O texto da presente Convenção será co-
Estados membros que forem Partes da presente das Nações Unidas convocará a Conferência, locado à disposição em formatos acessíveis.
Convenção. Essas organizações não exercerão sob os auspícios das Nações Unidas. Qualquer
seu direito de voto, se qualquer de seus Es- emenda adotada por maioria de dois terços Artigo 50
tados membros exercer seu direito de voto, e dos Estados Partes presentes e votantes será Textos autênticos
vice-versa. submetida pelo Secretário-Geral à aprovação Os textos em árabe, chinês, espanhol,
da Assembleia Geral das Nações Unidas e, francês, inglês e russo da presente Convenção
Artigo 45 posteriormente, à aceitação de todos os Es- serão igualmente autênticos.
Entrada em vigor tados Partes. EM FÉ DO QUE os plenipotenciários abaixo
1. A presente Convenção entrará em vigor 2. Qualquer emenda adotada e aprovada assinados, devidamente autorizados para tanto
80 no trigésimo dia após o depósito do vigésimo conforme o disposto no parágrafo 1 do pre- por seus respectivos Governos, fir maram a
instrumento de ratificação ou adesão. sente Artigo entrará em vigor no trigésimo dia presente Convenção.
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Protocolo Facultativo à Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência

Os Estados Partes do presente Protocolo em apreço, salvo se os fatos continuaram na Convenção, o Comitê convidará o referido
acordaram o seguinte: ocorrendo após aquela data. Estado Parte a colaborar com a verificação da
informação e, para tanto, a submeter suas ob-
Artigo 1 Artigo 3 servações a respeito da informação em pauta.
1. Qualquer Estado Parte do presente Pro- Sujeito ao disposto no Artigo 2 do presente 2. Levando em conta quaisquer observa-
tocolo (“Estado Parte”) reconhece a competên- Protocolo, o Comitê levará confidencialmente ções que tenham sido submetidas pelo Esta-
cia do Comitê sobre os Direitos das Pessoas ao conhecimento do Estado Parte concernente do Parte concernente, bem como quaisquer
com Deficiência (“Comitê”) para receber e qualquer comunicação submetida ao Comitê. outras informações confiáveis em poder do
considerar comunicações submetidas por Dentro do período de seis meses, o Estado Comitê, este poderá designar um ou mais
pessoas ou grupos de pessoas, ou em nome concernente submeterá ao Comitê explicações de seus membros para realizar investigação
deles, sujeitos à sua jurisdição, alegando se- ou declarações por escrito, esclarecendo a e apresentar, em caráter de urgência, relatório
rem vítimas de violação das disposições da matéria e a eventual solução adotada pelo ao Comitê. Caso se justifique e o Estado Parte
Convenção pelo referido Estado Parte. referido Estado. o consinta, a investigação poderá incluir uma
2. O Comitê não receberá comunicação visita ao território desse Estado.
referente a qualquer Estado Parte que não seja Artigo 4 3. Após examinar os resultados da inves-
signatário do presente Protocolo. 1. A qualquer momento após receber uma tigação, o Comitê os comunicará ao Estado
comunicação e antes de decidir o mérito dessa Parte concernente, acompanhados de even-
Artigo 2 comunicação, o Comitê poderá transmitir ao tuais comentários e recomendações.
O Comitê considerará inadmissível a co- Estado Parte concernente, para sua urgente 4. Dentro do período de seis meses após
municação quando: consideração, um pedido para que o Estado o recebimento dos resultados, comentários
a) A comunicação for anônima; Parte tome as medidas de natureza cautelar e recomendações transmitidos pelo Comitê,
b) A comunicação constituir abuso do que forem necessárias para evitar possíveis o Estado Parte concernente submeterá suas
direito de submeter tais comunicações danos irreparáveis à vítima ou às vítimas da observações ao Comitê.
ou for incompatível com as disposições violação alegada. 5. A referida investigação será realizada
da Convenção; 2. O exercício pelo Comitê de suas facul- confidencialmente e a cooperação do Esta-
c) A mesma matéria já tenha sido exa- dades discricionárias em virtude do parágrafo do Parte será solicitada em todas as fases
minada pelo Comitê ou tenha sido ou 1 do presente Artigo não implicará prejuízo do processo.
estiver sendo examinada sob outro pro- algum sobre a admissibilidade ou sobre o
cedimento de investigação ou resolução mérito da comunicação. Artigo 7
internacional; 1. O Comitê poderá convidar o Estado Parte
d) Não tenham sido esgotados todos os Artigo 5 concernente a incluir em seu relatório, sub-
recursos internos disponíveis, salvo no O Comitê realizará sessões fechadas para metido em conformidade com o disposto no
caso em que a tramitação desses recur- examinar comunicações a ele submetidas em Artigo 35 da Convenção, pormenores a respeito
sos se prolongue injustificadamente, ou conformidade com o presente Protocolo. Depois das medidas tomadas em consequência da in-
seja improvável que se obtenha com eles de examinar uma comunicação, o Comitê envia- vestigação realizada em conformidade com o
solução efetiva; rá suas sugestões e recomendações, se houver, Artigo 6 do presente Protocolo. 81
e) A comunicação estiver precariamente ao Estado Parte concernente e ao requerente. 2. Caso necessário, o Comitê poderá, en-
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fundamentada ou não for suficientemente cerrado o período de seis meses a que se refere
substanciada; ou Artigo 6 o parágrafo 4 do Artigo 6, convidar o Estado
f) Os fatos que motivaram a comunicação 1. Se receber informação confiável indican- Parte concernente a informar o Comitê a res-
tenham ocorrido antes da entrada em vigor do que um Estado Parte está cometendo violação peito das medidas tomadas em consequência
do presente Protocolo para o Estado Parte grave ou sistemática de direitos estabelecidos da referida investigação.
Artigo 8 2. As referências a “Estados Partes” no a uma Conferência dos Estados Partes para
Qualquer Estado Parte poderá, quando da presente Protocolo serão aplicáveis a essas considerar as propostas e tomar decisão a
assinatura ou ratificação do presente Protocolo organizações, nos limites da competência de respeito delas. Se, até quatro meses após a
ou de sua adesão a ele, declarar que não re- tais organizações. data da referida comunicação, pelo menos um
conhece a competência do Comitê, a que se 3. Para os fins do parágrafo 1 do Artigo terço dos Estados Partes se manifestar favo-
referem os Artigos 6 e 7. 13 e do parágrafo 2 do Artigo 15, nenhum rável a essa Conferência, o Secretário-Geral
instrumento depositado por organização de das Nações Unidas convocará a Conferência,
Artigo 9 integração regional será computado. sob os auspícios das Nações Unidas. Qualquer
O Secretário-Geral das Nações Unidas será 4. As organizações de integração regio- emenda adotada por maioria de dois terços
o depositário do presente Protocolo. nal, em matérias de sua competência, pode- dos Estados Partes presentes e votantes será
rão exercer o direito de voto na Conferência submetida pelo Secretário-Geral à aprovação
Artigo 10 dos Estados Partes, tendo direito ao mesmo da Assembleia Geral das Nações Unidas e,
O presente Protocolo será aberto à assina- número de votos que seus Estados membros posteriormente, à aceitação de todos os Es-
tura dos Estados e organizações de integração que forem Partes do presente Protocolo. Es- tados Partes.
regional signatários da Convenção, na sede das sas organizações não exercerão seu direito 2. Qualquer emenda adotada e aprovada
Nações Unidas em Nova York, a partir de 30 de voto se qualquer de seus Estados mem- conforme o disposto no parágrafo 1 do pre-
de março de 2007. bros exercer seu direito de voto, e vice-versa. sente Artigo entrará em vigor no trigésimo dia
após a data na qual o número de instrumen-
Artigo 11 Artigo 13 tos de aceitação tenha atingido dois terços do
O presente Protocolo estará sujeito à rati- 1. Sujeito à entrada em vigor da Conven- número de Estados Partes na data de adoção
ficação pelos Estados signatários que tiverem ção, o presente Protocolo entrará em vigor da emenda. Posteriormente, a emenda entrará
ratificado a Convenção ou aderido a ela. Ele no trigésimo dia após o depósito do décimo em vigor para todo Estado Parte no trigésimo
estará sujeito à confirmação formal por orga- instrumento de ratificação ou adesão. dia após o depósito por esse Estado do seu
nizações de integração regional signatárias do 2. Para cada Estado ou organização de in- instrumento de aceitação. A emenda será vin-
presente Protocolo que tiverem formalmente tegração regional que ratificar ou formalmente culante somente para os Estados Partes que a
confirmado a Convenção ou a ela aderido. O confirmar o presente Protocolo ou a ele aderir tiverem aceitado.
Protocolo ficará aberto à adesão de qualquer depois do depósito do décimo instrumento
Estado ou organização de integração regional dessa natureza, o Protocolo entrará em vigor Artigo 16
que tiver ratificado ou formalmente confirmado no trigésimo dia a partir da data em que esse Qualquer Estado Parte poderá denunciar o
a Convenção ou a ela aderido e que não tiver Estado ou organização tenha depositado seu presente Protocolo mediante notificação por
assinado o Protocolo. instrumento de ratificação, confirmação formal escrito ao Secretário-Geral das Nações Unidas.
ou adesão. A denúncia tornar-se-á efetiva um ano após
Artigo 12 a data de recebimento da notificação pelo
1. “Organização de integração regional” Artigo 14 Secretário-Geral.
será entendida como organização constituída 1. Não serão permitidas reservas incompa-
por Estados soberanos de determinada região, tíveis com o objeto e o propósito do presente Artigo 17
à qual seus Estados Membros tenham dele- Protocolo. O texto do presente Protocolo será coloca-
gado competência sobre matéria abrangida 2. As reservas poderão ser retiradas a qual- do à disposição em formatos acessíveis.
pela Convenção e pelo presente Protocolo. quer momento.
Essas organizações declararão, em seus do- Artigo 18
cumentos de confirmação formal ou adesão, Artigo 15 Os textos em árabe, chinês, espanhol, fran-
82 o alcance de sua competência em relação 1. Qualquer Estado Parte poderá propor cês, inglês e russo e do presente Protocolo
à matéria abrangida pela Convenção e pelo emendas ao presente Protocolo e submetê- serão igualmente autênticos.
Revista Direitos Humanos

presente Protocolo. Subsequentemente, as -las ao Secretário-Geral das Nações Unidas. EM FÉ DO QUE os plenipotenciários abaixo
organizações informarão ao depositário qual- O Secretário-Geral comunicará aos Estados assinados, devidamente autorizados para tan-
quer alteração substancial no alcance de sua Partes quaisquer emendas propostas, solici- to por seus respectivos governos, firmaram o
competência. tando-lhes que o notifiquem se são favoráveis presente Protocolo.
Candido Portinari

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