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jatrice Pavis vale-se, em O Teatro no Cruzamento de OTe OR eeu Rene cc gia para identificar, no teatro, os elementos intrinsecos da Pee eee oe eT ccc Lae PU Re Pu Rese ek CO en ocak ec Cie Cre ne yee urea desempenho, disposi¢ao plastica ou sonora etc.) — e vai Be eae eee ee ny Ce Tce eRe ane oe) Co Re Co eee ed Cree rod eee Dee ene tad teatro ocidental e europeu mais representativo na virada do século xx, pesquisando textos classicos e mademos do Fee ue Lu eon ae eee ec te ec td teatral (transposicao intergestual e intercultural) nos casos concretos das montagens de Peter Brook (Mahabharata), Ariane Mnouchkine (Indiade e Noite de Refs) e Eugenio Bar- PO eee Me ENS ene Fee eC ores DCU Se RCM ea especialmente a visdo e o pendor interculturalist Dc ee cee OC pois Ihe abre veredas instigantes para novas abordagens Crete ieee Rae Re Mn CTE) sua inclusdo na colegdo Estudos da editora Perspectiva, NR eae ot) See ‘siaed ‘d Patrice Pavisfocaliza neste livro um tema ‘ental da vida contemporinea, sob um EO een ace ker ee Cea ee er ns Ce ee eee Dee Re eee Pe erect ce Serrated eee ene Eee ce een a Cer ee cee es ee ee er Pee eee eee en ee BO eee ees pect ee cn ee ca Pe ete eae ae tem ma 1a explosiva e da colagem inexticivel de suas linguagens, na quase infinita poten- cialidade de sua poliglossia, como nos dias que correm. E, sob este angulo, para a interscegio apontada, 0 teatro con: ee eee ec ¢gico. Sobserudo na sua Forma viva, a do one nee eer ee eee ce ee ee ees te em uma plataforma, onde as culuras Ree ee ee Cee eee ee een eer te Rene ee ery ¢ audigo, na relagio viva entre ator ¢ Patrice Pavis O TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS SV, As 2 praspecriva tuto do original ances Le thedive au croisement sles cultures © Livraisie dost Conti, 1990 Dados Internacionais de Catalogayao na Publicagte (CIP) (Camara iratloira de Livre, SP, Hrs) vravis, Patrice ‘0 teatro no cruzamento de culturas / Pawiee Pavis + [taduyio Nanci Fernandes}. ~ Sae Paulo > Perspectiva, 2008, (Estados ; 247 / divigida por 1. Guinsbara) ‘Finulo original: Le thaitee ay ctoisement cles cultures ISHN O78-RS-273-0800-0 1, Comunicagao intercultural 2. Cubura 3, Teatto, esociedade 1. Guinsbury, J. 1, Titulo. Ul. Série, eons cpp-206.484 ge om atiC! Sociologia 306.484 Wale cullund Sociologia $06,484 ireitos reservados em lingua pormguesa & DITORA PERSPECTIVA S.A, Av. Brigadeito Luts AniOaio, 3025 01401-000 Sao Pauto SP Brosil ‘Telefian: «011) 3885-8388 swmneditoraperspectiva.com-be Sumario Proticio 4 Edigao Brasileira ss . ix Para uma ‘Teoria de Cultura e de Encenagao Do Texto para o Palco: Um Parte Difieil Algumas Raz6es Sociolégicas do Sucesso dos Classicos no Teatro na Franga depois de 1945 A Heranga Clissica do Teatro Pos-Modern0 sone “Mal-Estar na Civilizagao”: A Representayao da Catastrofe no Teatro Franco-Alemao Contempordnco « sie TD Da Teoria Considerada como uma das Belas-artes © de sua Influéneia Limitada na Dramaturgia Contemporainea, Majoritaria ou Minoritaria. se 99) Eespecificidacle da Tradugae Teatral: A Tradugao, Hnteryestaal ¢ Intercultural wo 123 8. “Dangar com Fausto”: Reflexdes sobre uma Encenagao Intercultural de Barba... 155 9. © Interculturalismo na Encenago Contemporanea! Almagem da india em O Mahabharata, A Indlada, A Nolte de Reis © Fausto von a WT Bibliografia 209 Prefacio 4 Edi¢ao Brasileira J4 se passaram vinte anos desde a escritura do meu livro O Teatro no Cruzamento das Culturas. F muito tempo considerando-se um mun- do que muda de um dia para o outro. Ocorreram, especialmente, a queda do muro de Berlim em 1989 ¢ os atentados de 11 de setembro: dois acontecimentos certamente imprevisiveis, mas que entretanto cram imagindveis. Para um teatro que esta situado no cruzamento '= caminhos politicos, culturais e interculturais, tais acontecimentos 86 poderiam deixar feridas mal cicatrizadas. Se a cultura é uma realidade que parece, na atualidade, desapare- cer a olhos vistos e sem remissito, por que também nao deveria o teatro intercultural sofrer uma completa mutago, em constante desagreg: 0? Mas se trata, realmente, de espeticulos que se tornaram ilegiveis ‘ou que no sAo politicamente corretos o suficiente? Nao 6, antes de lo, a sua apreenstio teérica que motiva o problema, a dificuldade de se utilizar uma teoria que engloba a imensa produgdo intercultural? Deve-se recordar que a categoria do teatro intercultural € muito recente: remonta quando muito aos anos de 1970, particularmente com Peter Brook, Esquece-se que cada cultura tem sua propria de! higiio de cultura ¢ de intercultural. Aquilo que se faz passar no mun- do ocidental por uma grande descoberta aureolada de mistério, e até ransgresitio, haveria de parecer evidente no contexte japonés, chines on ev vel, portanto, espe- F sempre ent qual Context € CoM Ue objetivo Se al juljany as produgdes eénicas intercultra x (© TEATRO NO CRLZAMENTO DE CULTURAS. Hi vinte anos, tem-se a tendéneia de atribuir a mundializagao (glo~ balizagao) todos os males do mundo, Ela seria a responsavel pela uni- formizactio das praticas culturais, como se tal fendmeno j4 ndo Fosse observavel em outros periodos ¢ como se as culturas tivessem sido algum dia puras ¢ auténticas. Muito mais preocupante parece ser a derivagao da cultura seja rumo a uma concepgao comunitarista, seja rumo a uma visio congelada e essencialista. No primeiro caso, um grupo, fregilentemente religioso, arroga-se o dircito de decidir qual ¢ ‘a boa cultura © como esta deve aprisionar seus membros nas regras opressoras ¢ eliminar qualquer liberdade individual; no segundo caso, a cultura tende a congelar-se dogmaticamente num pretenso modelo universal, mas que somente aproveita a mesma classe esclarecida © jé no poder: “Tudo isso nos convida a uma revisio epistemologica do intercul- turalismo. Uma teoria universal de trocas talvez nao seja possivel, na medida em que visar-se-ia uma previsao global de todas as trocas, ne- las incluindo-se consideragdes econdmicas c politicas. Entretanto, ¢ este nariz de cera teérico que deve ser mantido. A falta dele, caso se yenuncie a teria reduzindo-a a alguns casos particulares para espetii- culos site-specific, ligados a um contexto muito particular, perde-se a faculdade de compara-los € analisa-los em outras produgdes, renun- ciando-se assim a qualquer avalingao, a qualquer visdo de conjunto, a qualquer reflexao, ‘A perda de prestigio da (eoria, tanto nas Américas quanto na Europa, a dificuldade em fundar-se um modelo verificavel, a comple- xidade de um sistema provido do minimo de cocréncia ¢ exemplari- dade, conduziram a uma visio globalizada e globalizante das culturas ©, portanto, dos espeticulos. Como explicar esta simplificagao ¢ esta Freqdentemente, (ei-se reprovade a primeira onda da pratica tcoria intercultural (a de Brook e a deste livro) 0 sucumbir a uma tendéncia essencialista e a negligenciar a andlise socioccondmiea dos espetaculos em proveito apenas de uma dimensio estética. Com ete to, a dificuldade ¢ mais a de se langar um olhar de cconomista ou de historiador sobre a obra intercultural analisada. No entanto, se niio nos faltam excelentes economists € socidlogos, a dificuldade & aplicar o sen saber ao objeto estético, ao invés de reescrever 0 mesmo capitulo da histéria do colonialismo. E por isso que, até prova em contrario, exatamente na dimensao of the “inter-corporeal work which an actor confronts his/her technique and professional identity with those of the others” (do trabalho intercorporal, no qual um ator confronta sua identidade técnica ¢ profissional com as dos demais) ¢ que podemos esperar apreend © corpo, os da (roca, Com efeito, po de contradigoes socials © pol eno apena’ PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA x Para nova época, novas questées. As objegOes A teoria freqiien- jemente se encontram levantadas na prittica recente do interculturalis~ tno. A partir do momento em que se assumiu mais como performer dio que como encenador, a pritica foi, apesar disso, reconduzida a ina experiéncia pessoal caracteristica da evolugao de uma socieda~ dle. O exemplo de Guillermo Gomez-Pefia impde-se como modelo desta tendéneia de reconduzir as grandes trocas de géneros teatrais a wna série de identidades miiltiplas. Com ele, no decorrer destes vinte Hltimos anos, passamos “from a static sense of identity to a repertoire | of identities” (de um sentido estitico de identidade para um reperté- iio de identidades). ‘A multiplicagio de identidades ¢ infinita: para além das identida- dos sexuais, étnicas, histérieas, religiosas etc., podem-se imaginar as fomunidades que multiplicam as marcas de pertencimento e, portan- fo, de exclusaa. “O isolamento identitério traz 4 luz a recusa do ou- fo", Porém, o que sera pior: 0 isolamento identitirio comunitarista 6\\ « multiplicagao ao infinito ¢ a absurdidade das identidades que Mecompem o ser humano? Nao é, no fundo, a mesma coisa? Quais as novas tarefas que se apresentardo 4 eneenagao inter- eultural se temos, ainda, vinte anos 4 nossa frente para fazer a teo- i? Sob a égide de Gomez-Pena, retornar-se-ia 4s fronteiras entre culturas, as pessoas, os tipos de identidade: seria 0 caso de rede~ ;n\-los constantemente, transp0-los, contrabanded-los, reconecti-los. econsiderar-se-ia a pratica européia ou americana — do Norte ¢ do al recorrendo-se a8 nogdes chinesa, japonesa ou coreana a fim de sificar se elas nos ajudariam melhor a abordar as nossas produgdes. h, procedimento certamente metaférico! O Kean nos mostraria atra~ 4 de um relato enigmatico entre mestre ¢ aluno de zen-budismo que puro raciocinio légico ¢ insuficiente; somente 0 Koan pode provo- Wo Sateri, o estada de ihiminagao. Para explicar as obras pos-mo- nas, estas duas nogdes paradoxais e imprevisiveis nao seriam uma, inasia. O mais importante, porém, é que aprenderiamos dessas cul fs como criar e analisar as obras que se acreditam ser ocidentais ie no 0 sao mais, ou que verdadeiramente jamais o foram, Ha winta anos desenvelveu-se uma tcoria pés-colonial, Como Jos os “pos”, ela nao significa outra coisa sendo que a sua matéria lo depois da colonizagao, depois daquilo tudo que existia antes, em. mma, © pos-colonialismo 6, por outro lado, necessariamente critico, ticolonialista c intercultural? Nem mais nem menos do que as outras uinits cle Leatro contemporaneo, as quais se inscrevem naturalmente nirechoque das culturas ¢ dos discursos. Certamente, os estudos w-coloniais podem ter parecido injustamente negligenciados, mas J Pronk Miche, artige Smétissaze” (mestigagem), em Michela Marzano (ed), elas existem desde o momento em que nos interessamos pelas formas extra-européias de espetéculos, sob outros nomes evidentemnente. Muitos debates de ma fé sobre a culpabilidade ¢ 0 arrependimento dos descendentes dos coionizadores nos teriam sido poupados se de- termindssemos quem e qual época esti em julgamento. Tanto quanto 0 individuos ou os regimes politicos, dever-se-iam poder mudar as mentalidades: “Descolonizar o pensamento nao significa dar razao ao colonizado da atualidade contra o colonizador de ontem, € instaurar um diélogo, ou mais exatamente, conceber 0 pensamento como in- trinsecamente dialégico, ou seja, interconectado™ E uma honra para mim que este livro dedicado ao teatro intercul- tural seja editado no Brasil, pats da mestigagem, do contato entre as culturas, pais onde Lévi-Strauss tornou-se ele mesmo. Esta tradugao, chega num momento em que © mundo se interroga sobre o futuro fisico do planeta e no qual a reflexdo sobre a mestigagem das cultu- ras assume nova importineia, sem poder permanecer separada das condigdes econdmicas mundiais. O Brasil sera, talvez, 0 laboratério em escala mundial onde se testarao as solugdes para a nossa sobrevi- véncia. Que 0 teatro, o espeticule, os produtos culturais de todas as ordens sejam as condigGes, tanto quanto a aposta em nossa sobrevi- véncia natural e cultural, eis af © que nao nos deve assustar, mas que ao contrario deve nos encorajar @ perseguir ¢ a aprofundar a reflexto sobre © empreendimento intercultural 1. Para uma Teoria de Cultura e de Encenagao Este livro tem como objetivo 0 cruzamento das culturas no trabalho teatral contemporanco. Este cruzamento, pelo qual passam em rajada culturas estrangeiras, discursos estranhos e milhares de efeitos arti licos de extranhamento, & um lugar muito ineerto, porém nos proxi- mos anos ele poderia fi s como © de um fearro de Cultura(s), allernando-se assim com aquilo que se denominou Teatro de Arte © substituindo a encenago historicizada dos clissicos, ‘© momento 6, ao mesmo tempo, propicio € dificil. Em nenhuma uta epoca a humanidade contemplou ¢ manipulou tanto ar vérias culturas mundiais, porém jamais se deu conta Go mal de sua inesz0- tivel tagarelice, de sua mistura explosiva, da inextrieavel colagem de suas linguagens. A encenagao teatral talvez seja, hoje em din, 0 timo refiigio desse cruzamento e, por tabela, o seu mais rigoroso laboratério: ela interroga todas essas representagdes culturais, as da a ver ea entender, avalia-as ¢ apropria-se delas por meio da interprs io do palco e do piblivo. Nao obstante, © acesso a este laboratério excepcional permanece dificil; isso se deve tanto aos artistas, que nao gosta muito de falar sobre suas criagdes, quanto aos espectadores, indefesos diante de fendmenos to complexos e inefiveis, quais se- jam os fenémenos interculturais. Serd que isto nlo é devido a uma fa das culturas, que acredita po- socioecondmica ¢ antropolégica? Ou que pretenderia jogar a antropologia contra a semiologia e a sociologia? Visio puramente estética © consumis UMA TEORIA SATURADA Quando se procure o homem, encontra.se a st mesma, Toda teoria envotve umn poco de auto-retrato [ANDRE LEROL-GOURHAN A teoria tem costas largas. Costuma-se reprovar-Ihe ora a sua comple: xidade, ora a sua parciulidade, Ao se querer conceber o teatro no cruza- mento das culturas arrisca-se, de fato, a perdler-se todo o controle sobre ele, a remové-lo de um universo para outro esquecendo-o no meio do caminho, a ponto de nio se ter mais os meios para observar todas as manobras que acompanham essa transferéneia ¢ essa apropriagao, No entanto, a teoria que haveria de permitir o entendimento desse deslizamento de culturas esta, ela prépria, em constante evoli- sao... O modelo da intertextualidade, proveniente do estruturalismo € da semiologia, cede seu lugar ao da interculturalidade. Com efeito, nao basta mais descrever as relagGes dos textos (ou mesmo dos espe- tdculos), entender o seu funcionamento interno: é preciso da mesma forma, ¢ acima de tudo, compreender a sua insergao nos contextos & culturas, bem como analisar a produgao cultural que resulta desses destocamentos imprevistos. O termo inferculturalismo parece-nos adequado, melhor ainda que os de multiculnuratlisma ou transeultura- lismo, para nos darmos conta da dialética de trocas dos bons procedi- mentos entre as culturas. Ao se expandir para a troca intercultural, a pratica teatral contem- pordinea — de Artaud a Wilson, de Brook a Barba, de Heiner Maller 4 Mnouchkine ~ nao age estabanadamente: ela confronta ¢ interro; as tradigdes, os estilos de representagdo € de culturas, que nunca se leriam reencontrado sem estes siibitos apelos de inspiragiio. Tal inte- resse repentino pelas relayOes interculturais explica-se, igualmente, pela presse palitien muito forte exercida sobre as artes, com o intuito: de que assumam a fungao de lazer, de animagiio ou negécio cultural © contribuindo para resolver as tensdes sociopoliticas dos grupos nicos em eontato. A teoria, como décil servigal da pritica, nao sabe mais o que fazer: a semiologia descritiva ¢ asséptica nao satisfaz mais, 0 so ciologismo foi devolvido aos fogareiros formais melhor afinados, a antropologia & compreendida em todos os seus estados — fisico, eco- némico, politico, filoséfico e cultural — sem que nunca saibamos a na- tureza de suas verdadeiras relagées. Contudo, a unitio mais dificil de se fazer continua sendo a do modelo sociossemiética com o enfoque antropol6gico, durante muito tempo considerados como exclusivos © incompativeis. Ora, esse encontro torna-se te mais imperative, por- que leva a produgio teatral de vanguarda a procurar superar 0 modelo de historicidade por meio de um confronto de culturas as mai versas, através do recurso (1 0) 40) 16 sem algum risco de Folelori PARA UMA TEORIA DE CULTURA F DE ENCENAGAO ritual, ao mito ¢ & antropologia enquanto modelo integrador de todas esas experiéncias (Barba, Grot6vski, Brook, Schechner). Para abarcar essa vasta gama de cxperiéncias, o tedrico necessita de um modelo que possua a paciéncia ¢ a minticia da ampulheta. UMA AMPULHETA VERSATIL Contamos os minttos que max faltam pear viver e dat char couthamos a ampullicts para aceleréos Uma ampulheta? O que € que uma ampulheta, meu querido Alfred, tem a ver com a jovem geragho de reldgios a quartzo? Ela € um esiranho objeto que tem um funil e o molinete. Na bola superior encontra-se a cultura estrangeira, a cultura-fonte que esta mais ou menos codificada ¢ solidificada em diversas modelizagdes antropolégicas, socioculturais ou artisticas. Essa cultura deve passar, para podermos absorvé-la, através de um estreito gargalo de afunila- mento. Se os gros da cultura, o seu conglomerado, forem suficien temente finos, escoardo sem problemas, ainda que lentamente, para a bola inferior, a da cultura destinataria, ou cultura-alvo, a partir da qual observamos o lento escoamento, Tais grdos se incorporario a um agrupamento que pareceria gratuito, mas que no entanto € regulado, em parte, pela passagem por entre a dezena de filtros colocados pela cultura-alvo e pelo observador, Com efeito, a transferéncia cultural nao apresenta um escoamento automdtico, passive, de uma cultura para outra, Ao contratio, é uma atividade comandada muito mais pela bola “inferior” da cultura-alvo e que consiste em ir procurar ativa~ Fonte, come que por imantagho, aqnile de que ne- nente na cultues- cessita para responder ds suas necessidades conere! De outra parte, a ordem dos filtros reconstituides na cultura-alvo nao € forgada, niio € absolutamente linear. O modelo é, antes de mais Ja, interativo: eada etapa pode projetar-se e deslizar nas outras, Logicamente, seria preciso antes de mais nada reconstituir, na cullura-fonte, as diversas etapas (3 2 9) que podem ser distinguidas na cultura-alvo, Na verdade, a determinagao dessas etapas poderia ser consideravelmente influenciada e modelizada pelo nosso conhe- cimento © pela vinculaggo com a cultura-alvo, na qual nos situamos enqui 10 observadores. Dois perigos espreitam a ampulheta, Se nada mais for do que um. cela triturars a cultura-fonte, ao destruir toda especificidade molinete © ao deixar cair na bolt receptora uma matéria inerte e disforme, que ent perdiclo as sas: modelizagdes de origem sem ter conseguide mo- dolar-sic nay da culturs-alve, Pelo contrario, se nada mais for do que 4 © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENACAO 5 um funil, entao absorvera indistintamente a subs de origem sem reconstrui-la e adapti-la por intermédio da série do filtros. Este livro destina-se ao estudo dessa ampulheta e dos filtros in- terpostos, entre a “nossa” cultura c a dos outros, a esses obsticulos de acothida que freiam e fixam os grfios da cultura, a0 reconstituir as ca- madas sedimentares que configuram outros tantos aspectos, © as con- es atisticas eretizagdes da cultura. Para melhor demonstrar a relatividade da nogao. —= de cultura € a correspondente relago complexa que mantemos com ela, abordamos aqui (bem como no capitulo 9 e, mais genericamente, ao longo de todo o livro) o caso da transferéncia intercultural entre cultura-fonte © cultura-alve. Examinar-se- a maneira pela qual uma cultura-alvo analisa e se apropria de uma cultura estrangeira ao filtrar € ao ressaltar determinados tragos culturais em fungo de seus proprios interesses ¢ pressupostos. Observar-se-i de que forma essa apropriagao ativa se faz acompanhar de uma série de operagdes teatrais, Essa apropriagao da outra cultura nfo & jamais, entretanto, defi- nitiva. Ela vai inverter-se Wo logo o utilizador de uma cultura estran- geira se questione, por scu lado, de que forma poderia comunicar a sua propria cultura para uma outra cultura-alvo; ou, muito simples mente, como € que projetamos, a partir desse momento, a posicao do receptor (ocidental), as nossas categorias, na cultura-fonte que temos a pretensao de apropriar, A ampulheta & feita para ser virada, para remeter de volta toda a sedimentago, a fim de que se escoe indefini- damente de uma cultura para outra. __ CULTURA FONTE a a Model Modelizagbes culturais Objetivo dos adsptadores “Trabatho de adaptato Trabatho preparatério dos atores Escotha de uma forma teatral CAVIDADE, CADINHO, ENCRUZILHADA, Representago teatra da cultura ES SUA NARI 2 teatro & uma encrusithada de ctv Adaptadores da reeepes0 es. E vm hngan de Lewibitidade victor Hue Modelizasdes sociokigicns A areia esta tanto na parte de cima como na de baixe. Sim, natu- ralmente; mas somente na aparéncia. Isso porque ndo devemos nos ami importar somente com os gréios isolados, delgados dtomos do sentid Modelizagoes cultarais € preciso examinar a sua combinatoria, a sua faculdade de associar-se em conglomerados e em camadas de espessura e composigao vari Veis, mas nunca arbitrarias. CULTURA-ALVO ‘Aareia impede-nos de acreditar ingenuamente no melting pot, no cadindio em que as culturas seriam miraculosamente fundidas e redu- Seqigneins dadas © antecipadas zidas a uma substincia radicalmente distinta. Nao existe teatro — que hiio se chateie Victor — no ccufinho de uma humanidade na qual toda a especificidade basear-se-ia numa substéneia universal: no existe vol de cr Inmchirida para © portupniés. (N. dat) 6 © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS ~ teatro na cavidade reconfortante de uma mao familiarmente entrea berta. Ena eneruzithada dos caminhos que se cruzam, das tradigoes & Praticas artisticas, que talvez possamos perecber a hibridagao distinta das culturas, bem como onde se reencontraro os tortuosos caminhos da antropologia, da sociologia e das praticas artisticas, © eruzamento é tanto um entrecruzar de caminhos, quanto a hi- bridagao de ragas ¢ tradices. Essa ambigilidade ajusta-se maravilho- samente para a descrigo dos lagos que existem entre as culturas: isso porque as mesmas se interpenetram, seja uma passando para o lado da outra, seja reproduzindo-se e reforgando-se gracas A mestigagem. Ao escolher por objeto o teatro e a encenagao interculturais, este liyro elegeu o caso de uma figura ao mesmo tempo classica € pos-mo- derna, eterna © nova. Eterna no sentido de que a representagao teatral tem misturado, desde sempre, tradigdes e estilos os mais diversos, traduzidos de uma lingua ou de uma linguagem para outra, percor- rendo espago e tempo em todos os sentidos: move no sentido de que f@ encenagao ocidental, nogao esta recente, pratica tais cruzamentos de representagdes ¢ tradigdes de forma consciente, afirmativa € es tética, somente a partir das experigneias das vanguardas (Meierhold, Brecht, Artaud, Claudel), ¢ mais radicalmente, apds os grupos multi- culturais de Barba, Brook ou Mnouchkine (para citar apenas os cria- dores ocidentais mais vis que sito os que aqui nos interessam), A motivagdo da visao oriental de tais artistas (de Brecht ou Artaud a Mnouchkine ou Brook) certamente foi originada mais pela crise do teatro ocidental e pelo desejo de vivificaglio do que por uma preocupa- gio ctnolégica de conhecimento do outro: tais equivocos siio aquilo que Barba chama de “mal-entendidos produtives” na pritica teatral européia. Estudaremos neste livro apenas os easos de permuta no sen- ido a partir da cultura-fonte ~ para nds (ocidentais) estrangeira — em diregao a uma culturmalvo, isto & a cultura ocidental na qual traba- Iham os artistas € na qual se situa 0 publico-alvo. © corpus destes estudos encontra-se, em sua maior parte, facil- fe circunscrito: a Franga de 1968 a 1988, com alguns desborda- mentos temporais ou geograficos. Apés a abertura maior de 1968, estes foram os “anos de chumbo” do bloqueio ideolégico e artisti co, da liquidagao de um pensamento dialético e de uma dramaturgia historicizada — os iiitimos lampejos da paixdo teérica, o fim de um Pensamento radical da cultura que ainda era a de Freud e Artaud. De 1973 a L981, 0 recuo das ideologias ¢ da historicidade acentuou-se ainda mais, os consclheiros em comunicagao ¢ os patrocinadores nos dando 0 pao nosso de cada dia, a crise econémica freando as inicia- tivas; as culturas estrangeiras Sendo percebidas mais como ameaga ou objeto de exploragao do que como séeias na troca; esse entor pecimento geral. esse inde! rico nao impedindo, contudo, que alguns eriadores, na entimento entediado, esse ronrom PARA UMA TEORIA DE CULTURA E BE ENCENACAO 7 subvencionados, ensaiassem uma permuta de culturas; a geografia ¢ a antropologia substituindo a histéria desfalecida. J4 nao se tratava mais de encenar as obras do passado nacional, porém de tornar as culluras estrangeiras mais familiares. De 1981 a 1988, a experienc socialista francesa fez. soterrar um dltimo tabu (o assim chamado caos socialista), porém defrontou-se com as duras realidades da admini: tragdo, saboreando a social-democracia das idéias; o debate sobre a relatividade das culturas e sobre La défaite de la pensée (A Derrota do Pensamento)', acabou por abater toda a perspectiva historicizan- te e redescobri os horizontes geogrdficos e culturais, que recuperou com um ceticismo e funcionalismo pos-modermos, A cultura esti no centro de todos os debates: tudo & cultural, mas onde é que foi parar, enttio, a cultura, especialmente a cultura teatval’? SEUS DUPLOS Jamais, no exato momento em que a propria vida se vai falousse tanto de civilizacaa e cultura. E carne wm extra nnho paraletismo entre exte desmoronamento seneralizade dda vide, que estd na bave da desmorattzagsia tial, © a Preoeupacdo com un cultura que munca colncidie com a ila, © que no entarto foi fewta para governar ex vide A CULTURA E OS Reconhegamos (nao sem um pedido de desculpas a Artaud): a nossa cultura ocidental, seja ela moderna ou pés-moderma, esta cansadis- ia; em vio a {eoria aspira englobar © conjunto dos problemas tr zidos pela extensio do conceito. Os conceitos aos quais ela se ops o totalmente variados, sejam eles a vida (Artaud), a natureza (Lé Strauss), a tecnologia (McLuhan), a civilizagdo (Elias, Marcuse), © ca0s, a cntropia ou a ngu-cullurs (Lounat), INO teatro, 2 definigao ain- da é mais truncada e a exclusio mais manifesta, visto que o primeiro ato cultural consiste em tragar um circulo ao redor do evento cénico, © como conseqiiéncia separar 0 jogo do nao-jogo, a cultura da nao- cultura, o interior do exterior, o observade do observador. Antes de acompanhar o encaminhamento da areia de uma bola para a outra, balizando-se os filtros © sedimentos, talvez nao seja de todo initil trazer a baila, para o teatro e a encenagao, algumas defini- yes © problematicas da nogao de cultura propostas pela antropologii © pela sociologia, Inspirar-nos-emos na excelente sintese de Camille Camilleri? ¢ mos sucessivamente concepgdes culturalistas © enfoques ‘cos antes de analisar de que forma podemos detecti-los em cada um dos niveis da ampulheta, bern como, igualmente, como & va a (entativa de dissocid-los. ACEPCOES CULTURALISTAS A antropologia cultural “classica”, notadamente a americana (Bene- dict, Mead, Kardiner), interroga a cultura através da relagio com a coeréneia do grupo, no conjunto de suas normas e simbolos que es- truturam as emogdes ¢ os instintos individuais; “procura descobrir as caracteristicas de uma cultura pelo estudo de suas manifestagdes através dos individues ¢ de suas influéncias no seu comportamento” (@anov ¢ Perrin: art. “Culturalisme”), Globalmente, dir-se-a que a cultura é um sistema de significagao (um sistema modelante, no en- foque de Lotman), gragas a0 qual uma sociedade ou um grupo com- preende-se a si mesmo na sua relacao com 0 mundo. “A cultura”. escreve Clifford Geertz, um dos atuais representantes da interpretative anthropology (antropologia interpretativa), um sistema de simbolos gragas 208 quais © homem fexperignela, Os sistemas de simbolos eriades pelo homem, compartihados, conven Clonais, ordenados &, evidenteaente, apreendids, fornecem aos hemiens win exquernt ‘Contendo sentido para se orientarem tus em relagio aos outros, oM atraves da relago com 0 mundo ambiente © consigo mesos! nore significado & sua propria Definicoes mais especificas, inspiradas pela reflexdo de Camilleri, permitirdo que se tome conscigneia das ramifieagdes da cultura cor todos os niveis do empreendimente teatral DEFINIGAO (1): “A cultura é uma espécie de modos de clinagSes* determindveis que as nossas representag tos € condutas assumem, em geral de forma breve, considerados todos os aspectos de nosso psiguisme © mesmo do nosso organismo biolégi sob influéneia do grupo™. ‘Transposto para a cena, pode-se observar que qualquer elemento, vo ou animado, do espeticulo é submetido a um determinado Feitio, € retrabalhado, cultivado, inserido num conjunto significante. O tex- to dramético compreende inumeraveis sedimentos que, igualmente, possticm tragos desses feitios: no corpo do ator, nos ensaios ou na representagiio, ele é como que penetrado pelas “técnicas corporais” proprias de sua cultura, de uma tradigao de representagao ou de uma aculturagao. Impossivel, ou quase, “expandir” esse corpo complexo & compacto, cuja origem ignoramos. 3. The Interpresation of Cultures. 9.250. PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENAGRO ° DEFINICAO (2): “Esta inclinagdo € comum acs membros de um mesmo grupo”. O ator também possui uma cultura, que é a do seu gru po e que adquire prineipalmente na fase preparatoria da encenagio. Es processo de enculturagdo, consciente ou inconsciente, faz com que assi- mile as tradigdes e as técnieas (especialmente corporais, vocais e retori- cas) do seu grupo. O ator pertence a uma determinada cultura, a partir da qual possui certezas © expectativas, técnicas ¢ hibitos de interpretagao, dos quais nao pode mais prescindir. Ele se define pelas “técnicas do corpo” (Marcel Mauss), das quais dificilmente poder se desembaragar © que Sao a inserieao corporal da cultura no seu préprio corpo, posterior- mente no seu desempenho. Uma parte de seu trabalho consiste, segundo Barba, em se desfazer desta “enculturacdo” natural, dese comporta- mento cotidiano. a fim de adquirir uma nova “técnica de corpo”, Mesmo © ator naturalista, que deveria estar livee de tal dominio por conta de seu mimetismo ¢ de sua pretensa “espontancidade”, esta submetide a todo um repertorio de signos, atitudes, efeitos de autenticidade. DEFINIGAO (3): “A ordem cultural é artificial no proprio sentido do termo, quer dizer, é produzida pela arte do homem. Ela é distin- ta da ordem natural”. A cultura oposia & natureza, 0 adquirido a0 inato, o artificial e a criagdo a espontancidade. Este célebre oposigdo Iévi-straussiana: “Tudo que € universal, no caso do homem, depende da ordem natural’e se caracteriza pela espontanei- dade: tudo aquilo que se disciplina por uma norma pertence a cultura © apresenta os atributos do relativo ¢ do particular”. “O que a heredi- tariedade determina no homem ¢ a aptidao geral de adquirir uma cul- tura qualquer, porém aquela que se tornard sua dependera dos azares de seu nascimento e da sociedade na qual recebera a sua educagao’ No teatro, 6 palco ¢ 6 ator representam sob a mesma ambigtidade do meio natural € do objeto artificial construfdo. Tudo tem a tendéncia transformar-se em signo, a semiotizar-se. Inclusive, a utilizagao na- tural do corpo do ator insere-se numa preserigao de sentido que exige dda carne hesitante a sua parte de artificialidade e codificagao, » sentide da DEFINIGAO (4): “A cultura se transmite através daquilo que, des- de entao, chamamos “heranga cultural”, ou seja, de determinado n fo de técnicas por meio das quais cada geragdo faz interiorizar, seguinte, a inclinagio comum do psiquismo e do organismo na qual consiste a cultura, ©. Levitan, Lev sterctires émentaives te ta prarenté. 1 W 10 © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. No caso da encenagao, é impossivel constatar-se muito claramente a intcriorizagao das técnicas. Ao contrério, certas tradigdes de imterpreta- ‘gdlo em géneros muito codificados e estabilizados transmitem essas téc- nicas € os comediantes ja tm interiorizado, ja “incorporaram” um estilo de intorpretacao (como a Commedia dell’Arte ou a Opera de Pequim), DEFINIGAO (5): Algumas culturas se definem essencialmente pelas caracteristicas nacionais que se opdem, algumas vezes, as culturas ™) noritirias com o objetivo de melhor se afirmarem (ef. capitulo 6). Tais culturas majoritarias so, por vezes, tio poderosas que so capazes de se apropriar —no sentido negativo do termo, desta vez —das culturas es- trangeiras, transformando-as para os seus préprios fins. Estamos de tal modo presos na tein de nossas modelizagdes culturais nacionais— curo- centristas, no nosso caso —, que temos dificuldade em conceber o estudo da interpretagiio ou de um género teatral sob uma perspectiva alternativa em relagao aquela de nosso conhecimento na pratica européia do teatro. A partir dessas definigdes, inspiradas pela antropologia cultural, decorre uma série de conseqtiéncias ligadas @ hipétese geral seguinte’ “As culturas sfo, sem divida, o principal meio inventado pelos homens para regular 0 seu psiquismo plistico e pouco determinado, com o in- tuito de conseguir uma homogeneidade psiquica minima que permita a vida em grupo". A. Esta regulagiio pela cultura é ao mesmo tempo uma repressao da espontaneidade individual ¢ pulsional ¢ uma expresso da eriativida- de humana, S. FREUD: © edlifieio da eivilizagie repousa no prine tivas [...] ¢ postula precisamente a no a pulses instin~ atisfag (repress, reealque ou outro mecca ais existiu um document de cultura que nie tenha sido igual tum documento de barbaric (Sétima Tese sobre a Filosofia da Historia) No teatro, esta regulagaio é especialmente assegurada pela enc naga, que impede qualquer sistema de signos de assumir uma im- portancia desmesurada ¢ unilateral. A propria fungao do encenador 6 relegar-se a uma auséncia fisica, a um superego que no se mostra nunca diretamente. A autoridade real foi, portanto, “internalizada™ “civilizada”. E “o charme discreto da boa direeao”, B. O principio de internalizagio da autoridade consiste em fazer-se aceitar a fungao repressiva e expressiva da cultura. A encenagiio rea- 10. Idem, p. 18 M1. Maat dans tr Chottisation, pA. PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENACAO, u grupa as diretrizes para fazer representar 0 espetaculo, ao aceitar as imposigdcs do sentido. Da mesma forma, 0 ator internaliza um con- junto de regras de comportamentos, de habitos de representagiio. Ele aceita a efemeéride do teatro, 0 seu cariter nao armazenavel, intan- givel, nto memorizavel. Estas so as suas leis no escritas que tudo comandam e que perduram. “O que dura pouco”, escreve Eugenio Barba, “nao 6 0 teatro, é 0 espeticulo. O teatro é feito de tradigdes, convengdes, instituigdes, habitos que tém uma permanéncia ao longo do tempo", Fenémeno de internalizagao da autoridade, em que seria conveniente inspirar-se uma semiologia “negativa”, que deveria ser capaz de apontar aquilo que, no signo, esti escondido, aquilo que parece signo sem ser signo, aquilo que mostra o ator ou a cena ao escondé-los. ‘Todas estas definigdes acentuam a unidade cultural do homem, po- rém tendem a isoli-lo do seu contexto sécio-histérico para apreendé- lo apenas sob um Angulo antropolégico muito abstrato. Elas devem, portanto, ser complementadas (¢ ndo substituidas) por um enfoque sociolégico, melhor ancorado na histéria e no contexto ideolégico. ACEPGOES SOCIO-HISTORICAS © enfoque idcolégico, especialmente 0 marxista, tende a ser elimi- hado devido a sta propria abertura para as culturas estrangeiras © a0 slargamento da nogao antropoldgica de cultura. Na operagao, as no- ges de grupo, subgrupo, subcultura ow minoria substituem muitas Yores as de classes om luta, E verdade, inversamente, que a sociologia marxista tem simplificado muito freqiientemente o debate © proposto respostas sem tm conhecimento completo de todas as implicagses do debate cultural. Dizer, por exemplo, que “em termos marxistas, a cul= turn € a superestrutura ideologica relativa, numa dada civilizagao, na infracestrutara material da sociedade” (Dictionnaire Marabout, att. “Culture”) nao contribui, convenhamos, para esclarecer os mor cultursis em jogo. Seria preciso mostrar que a cultura a0 m (cmpo condiciona e é condicionada pela ago social, sendo-the causa © conseqiiéneia Propusemos, em outro trabalho, uma teoria dos ideologemas e de un fungio na constituigdo ideolégica e ficcional do texto dramatico ur), Isto dava-se, porém, na perspectiva da inscrigao do texto dramiitico na historia, mais do que na cultura. Os fenémenos so, evidentemente, ainda muito mais complexos na medida em que forem ubordidos em contextos culturais os mais diversos, notadamente ex- tra-curopeus, Deve-se, po Lo, imawinar uma teoria de nediagio, de frova. de transferénein intercultural, wins “cultura de lagos”, no sentida Uc Brook, de “relagdcs cntre o homem ¢ a sociedade, entre uma raca F outra, entre o mierocosmo e 0 macrocormo, entre a humenidade © a maquina, o visivel © © invisivel, entre as categorias. as linguagens, o5 géneros', A imagem da ampulheta foi aos inspiruda pela necessidade de compreender a dinamica do excoumento e do depésito dos scdi- mentos sncessives. Pus ia, dese modo, cada etapa da translerencia cultural, observance gual cuncepeao de cultura esté pressuposta por cada uma das operagdes em cada afvel da wupullicta, (DO) Modetizagtio socintigice eeu urtivtics Uma primeira dificuldade, particularmente em nossas socieda- des ocideutais, cousiste em deseobrir, na culura-fonte, em (1) © em @), assim cnme na culluralve em (10 A) e (10 B), modelizagies que sujain clurumente especifieas, quer no caso da atividade arlisti quer no caso da codificagho propria de um subgrupo on de determi nada cultura, Com 1 multiplicagao dos subprupos e das subculturas. & cultura, particularmente a cultura nacional, tem muita dificuldade om integrar e refletir © conjunto das cociheacces particulares € minorit vias, Fla tande, esereve Camilleri, a “tornarse aquilo que permanece- ria comum aos subgrupes que constituem a sociedade, wma ver. que se teria deseartudo das diferengas. Porém, tal coutetialy unautis Wanna Se cada vex mais difieil de defini". Para a ences contemparinea < praticamente impossivel cuimpicenderse o que € que ura peg Ue bulevar, uma opereta, uma pega de vanguarda on um espeticulo de Dumaku, (1 er comuin. no sumente devido as codificagoes arts ticas em jogo, qne so de uma extrema vuriedade, mas sobretide por ayuilo que faz parte de sua fingao Ideoldgica e estética Em suma, a dificuldade em todos estes exemplos é perceber se a ligagao ¢ a diferenga entre as modelizagous artusticas ¢ as Model: ges sociolégicns cou antropoligicus, Constate se que a comprecn= sa0 dos codigos espeviticamente artisticos produz um mteresse pela compreensiio dos cédigos culturais © que, inversamente, ¢ conheei- mento dos codigos culturais gerais & indispensivel para a compreen- silo des cAdigos ortisticus esperitivus, © faty de se U1 funcionamenty simbélico de uma sociedade (1) convida 4 pereepoao. das codificagSes artisticas em particulit (2). Av se aboruar a cullura- Fonte ea eulmra-alvn ect saempenen go a relagaio de (1) © (2) espeeifica em cada cultura, bem came o desi vamenio que se prodnz qnande 9 culturn-fonte € recebida na culture alvo, daf us relagoes entre (1) ¢ (2), tanto quanto uquelas entre (10 A). (ay aoc, Jat, (av Paitin AA, Gera 14. F rook, He Siyting Points p. 139, 15.€. Camilleri, op. eit. p. 25 GB) Misdo dos adaptacores A partir do momento em que se trata de dar conta deste esta- mento das modelicugdes por exemplo, ae oe tentar communicar cullura estrangeira & nossa tradigdo ocidental ~, lorma-se dilicil neontrar ura ponto de vista unificador; disso decorre um relativisme ue concepedes do real e das culturas vy sucicdiades inlusieis, pelo meHOS a ELEM, intense ua ele to dos sisiemus de pensamenta, Como no € possivel erie, no cus, virias Vonades ohre @ mesma ponte, hahiniama nas eensdleran qin eens store (rm fiver clow proprins, Aa anbenitucas de sdifercnece wubgripe sim pow icos) 820 simplesmente pontos de vista sobre o real, a0 ligar de forma abran iente on sujeitos penumtes Diao resulta « apariqio do espirio do relativisins, que nila «in paralale com © prontssre da demacralieagho © relativisino esti evidente de forma especial naquilo que » (capitulo 4) Ue eurenayay pér-snudeiua Jus Clissivus. a retusa de {qualquer leimea centralizadora @ enpajada, 0 nivelamenta dos cédigns, a esienanguiangay cas ns, a recuse Ue Hom! SepREAAO CLEE CULL 4 “cultivnda” ¢ cultura de massa, sia em grunde parte sintomas da ze inivizagao des pontos de vista. Nao nos constrangemos mais diante dos ‘oscrtipulos de Marx, a0 ver na arte eldesica (erega, por exemsplo), certa- inente, uma cultura “cultivada” deturpada por uma classc, mas, acim dle tudo urns umiversalidade potencial » que deve, poranta, sar praser Yoda. Atualmente, a clivagem entre valores classicos provactos e valores inoxlemos « soren provadas no existe mnis: nda se acredita mais na \niversalidade ecoerafica. temporal ¢ ternatica dos elassicus. A sua en- Senayto opta por urna alitude decieiclamemie relalivistst commumiden ‘em conseqiiéncia pés-modema, visto que o seu th Yonte, na sua integragzo a um disewso que nfo esta mais obceeado nem elo sentido, nem pela vertae «nem pela tolalidade on coerencia ) A Vien dae Ardaptadares (3) 4.0 cen trabathes de adaptagae f& interpretagao (4) sto infinenciados pola cule “oultivada”, a sa bee. ura de um subgeupo restrilo que possui (ou arroga-se) 0 sonhecimento, a instrugao, 0 saber ¢ 0 poder de decisao. Essa cul- “transforma ce nm cddigo merodolégico, que a competeneia permite aprofundar 0 conhectmento: PAdquitimos escuemas de pensamente, in equipumento que, a par- HF dlessas informacoes, permite nos descobrir Oulros tantos, e através isso aprofunds Tal coneepeao nfio esti muito Longe da Soneepelo semidtica de cultura segundo Lounan, a de uma “hierar has saiticantes pareiaisy Ue wine suid de leads @ de Biull sinte ‘ ( HEATRO NO CIRUZAMENTO DE CULTURAS unbinagho de fungdes que Ihes correspondem, e por fim de um mo que pera os seus textos”, Pole codigo metodoldgico, este saber, € muitas vezes uma “cifra cultural” (Piette Bourdieu) que toma possivel 0 ato de deciframento; ele ¢ assim, por vezes, o instrumento de um subgrupo contra outros. 0 homem cultivado é, neste caso, como observa Michel de Certeau, “se- nelhante a6 modelo elaborado nas sociedades estratificadas por uma categoria, que introduziu as suas normas 14 onde impés o seu poder”, A dificuldade, geralmente, reside em adivinhar onde o saber se instau- ra enquanto poder: em perceber as flutuagdes de cédigo e poderes a ele conferidos. Tomemos como exemplo o tratamento dos chissicos: na época do “teatro popular” de Vilar, os clissicos cram apresenta- dos implicitamente como um bem universal, porém represemtayam, na realidade, muito mais um bem cultural cuja aquisi¢ao conduz a uma promogao social (ef. capitulo 3). Atualmente, a utilizagao pos-moder- na desses mesmos bens classicos nao visa mais dar ao ptiblico uma bagagem cultural ou armas politicas, mas manipular os cédigos e rela- tivizar todas as mensagens, especialmente as politica (5) O wrabatho preparatorio dos atores no envolve simplesmen- te os preparativos dos ensaios ou a escotha de uma forma teatral (6), mas sim toda a cultura do comediante, ou seja, © seu “saber teatral, que transmite, de geragiio em geragao, a obra de arte viva, que é 0 ator”. O ator realiza © projeto semidtico da cultura concebida como relembranga das informagdes passadas e de geracao das informagoes, futuras. A cultura &, neste sentido, sempre de acordo com Barba, a ‘capacidade de adaptar-se ¢ de modificar 0 meio ambiente, como forma de organizar e alterar as numerosas atividades individuais & coletivas, como capacidade de transmitir a ‘sabedoria’ col de experiencias distintas, de saberes técnicos diferentes” ra do comediante, especialmente a do comediante ocidental, nao & sempre legivel e codificada de acordo com um conjunto de regras © priticas estiveis ¢ recorrentes. No entanto, mesmo ele nfo esti a salvo de um estilo dominante ou uma moda, técnicas corporais ou codificagdes especificas. Ele também esti impregnado de receitas, de habitos de trabalho que sao o motor das codificagdes antropolgicas © sociolégicas do seu meio, codificagdes essas imperceptiveis que, certamente, fazem de tudo para ser esquecidas ¢ para melhor realgar © génio original do ator, porém que, na verdade, esto onipresentes © sao facilmente perceptiveis ¢ parodiaveii A cultu- 18, CPJ. Lotman, Travanx sun les sustémes de signe 19. La eure au plurtel, p. 235, 20, B. Barba, Le thédtre eurasien, Jew, 1.49, p. 64. 21. arehapol da shire, 122. PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DI ENCENAGAO, 1s (2) A represemtacao teatral da euluira forga a busca de meios es- pecificamente cénicos para poder-se representar (ou atwar —¢o perform) tima cultura estrangeira ou domestica, que se utilize 0 teatro como ins trumento para transmitir e produzir informagdes sobre a cultura veicu lada, O teatro pode redundar numa das dificuldades da antropologia, a saber: traduzir/visualizar os elementos abstratos de uma cultura como tm sistema de erengas ou valores, utilizando-se dos meios eoncretos: por exemplo, ao invés de explicar um ritual, realiza-lo; em vez de dis Sertar sobre as condigdes socinis dos individuos, mostri-las através de-um gestus imediatamente legivel. E verdade: um ritual perde 0 set. sentido assim que for extraido do seu contexto e transposto para o palco, porém nada impede o teatro de se autodeclarar como 0 lugar flo uma outra ceriménia, na qual o ritual procurara a sua validade. A fencenasao ca representacao teatral sao sempre uma tradugto eénien (aragas a0 ator e a todos os elementos do espetaculo) de um conjunto cultural distinto (am texto, uma adaptagzo, um corpo). Quando nos damos conta, com Lotman, de que a apropriagao cultural da realidade se faz sob a forma da traduca0 de uma parcels da realidade em um texto, compreende-se que, «fortiori, a encenacao ow a transposi¢ao intercultural sao uma tradugio sob a forma de apeopriagsa da cultura estrangeira, a qual possui as suas préprias modelizagdes. (8) O limite de apropriagao indica, suficientemente, que 0 adap- Jor € © receptor apoderam-se da cultura-fonte segundo a sua pré pria perspectiva, fato do qual decorre o risco do ctnocentrismo — do eurecentrismo, no caso presente. Este eurocentrismo é menos uma recusa das formas orientais do que uma miopia em relagio as outras formas © a outros instrumentos conceituais com exclusao daqueles conhecidos na Europa; do que uma ineapacidade de se pensar, teé- rica © globalmente, as modelizagGes culturais, ocidentais ¢ orientais. A espera da instauragao de tais instrumentos conceituais (alids, mui- to problemiticos na sua hibridagao mesma) ¢ que dizem respeito ao contexto ocidental ¢ oriental, a Comunicagao intercultural precisa de ‘fidapiadoras derecepeaa (8), de *corpos condutores” que organizern \ passagem de um universo para outro. Esses adaptadores permitem reconstituir uma série de prinefpios metodolégicos a partir da cultura~ , adapti-los & cultura-alvo. fonte e, asst cdo de alumna dana exdtica fascinante nao significa que se pos ilase- antes de mais mada, ¢ preciso captar umn inspirasso, 1. mais exatamente, uma série de prineipios metodalogicos, os quais sera ‘ninuie centre do esquctna da nossa cut 16 (0 TRATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. Seja qual for a natureza dessa adaptagaio — um personagem, uma dramaturgia (Shakespeare como modelo dramaturgico para a Indiade [Indiada] ou para a adaptagio do Mahabharata) —, esses adaptado- res eolocam-se sempre na perspectiva dos receptores ao simplifiear e modelizar alguns elementos-chave da cultura-fonte. Neste sentido, eles tém necessariamente uma posigao etnocentrista, porém, estando conscientes dessa perspectiva deformante, podem relativizar tal defa- sagem e procurar uma tomada de consciéncia das diferengas. (9) As legibilidades esto encarregadas, também clas, de relativi- zar a produgao de sentido e o nivel de leitura variével de uma cultura para outra, Sdo uma resposta A crise do sujeito transcendental © uni versal que pretenderia, em nome da razao universal cartesiana ¢ da razao-de-Fstado centralizadora, reduzir a totalidade das diferengas “Todas as formag6es humanas ‘gerais’ voltam-se contra 0 homem, caso nfio sejam quotidianamente reapropriadas pelo sujeito concreto, por meio das operagoes quotidianas™ ‘A teoria dos niveis de legibilidade (capitulo 9) explica como 0 receptor escolhe, com maior ou menor liberdade, com qual nivel deve ler (por exemplo: narrative, tematico, formal, ideol6gico, sociocultu- ral etc.) os fatos culturais que Ihe so apresentados pela encenagio, Esta teoria pressupde uma preocupagao epistemolégica, qual seja a de proporcionar os meios de conhecer o outro, e guid, do outro. Atransfe~ réncia cultural realiza-se, na maioria das vezes, gragas a uma mudan- ca de nivel de legibilidade, o que modifica profundamente a recepgao da obra em (10). Essa mudanga do nivel da legibilidade corresponde freqientemente a uma luta idcolégica entre cultura dominante ¢ cul- tura dominada, Na transferéncia de (1)-(2) para (10), determinados elementos sito assimilados ¢ desaparecem — 0 que Darlrymple chama de uma ideologia residual, a saber, aquilo que sobra das idgias e das praticas de uma cultura pertencente 4 outra formagao social. Outros elementos, ao contririo, aparecem e sto integrados & ideologia domi- nante em (10); essa ideologia emergente pede tornar-se um modelo normative de codificacao socioldgica (108) ou cultural, num sentide amplo (10 C}* (10) Ao examinar o confronto cultural entre (1)-(2) ¢ (10), esco~ Iheu-se comparar, avaliar, fazer dialogar a cultura-fonte ¢ a cultura- alvo, porém tal enfrentamento foi, por assim dizer, atenuado pelos filtros que, de (3) a (9), preparam o terreno e transformam gradual- mente a cultura-fonte, ou cuftura-referente, na cultura de recep¢! qual nos situamos. Ao invés de fugir dessa confrontacao, julgamo’ 23. C. Camilleri, Culture et soeigics \¢ PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENAGAO "7 ir ao seu encontro. Isto porque é preciso prevenirmo-nos da demago- gia, que consiste em recusar a comparagdo, para nfo nos arrisearmos ahierarguizar © a valorizar as culturas confrontadas, demagogia que conduz ao relativismo cultural e, acima de tudo, a indiferenciagao. Tzvetan Todorov eriticou suficientemente essa recusa, razio pela qual torna-se iniitil voltar a ela®*. Encorajados por Todorov ¢ Finkielkraut, imulados per Montaigne ¢ Lévi-Strauss, ousamos ~ na excelente companhia de Brook, Barba e Mnouchkine —, comparar duas culturas fortemente dispostas em dessimetria, na medida em que uma se apro~ pria da ovtra, eno momento em que a cena-alvo acolhe todas estas misturas de cruzamento de linguagens ¢ culturas. Deixamos a outros julgar se esse confronto teatral vai desembocar numa aculturagio seneralizada, numa interdestiuiysu ou, pelo contrario — como pensa mos nés—, num “reencontro amoroso” (escolhemos de propésito esta metifora deliciosamente suave), numa “bricolagem” (Lévi-Strauss), hum teatro eurasiano (no caso de Barba), numa “cultura de lagos"** ou huma “influéneia” do “teatro oriental”’. Na realidade, esta ampulheta, 6 um objeto suficientemente complexo para evitar, exatamente, uma confrontagao direta de povos, linguas ou valores éticos. Comparamos de preferéncia, acima de tudo, as priticas ¢ as formas teatrais [entre (2) (10 A)], a8 medelizagdes € as codificagdes suscetiveis de se atre- lare de se entrecruzar (ao invés de se perderem umas das outras). (UD Seqiiéncias dadas e antecipadas ‘Ao fim da translagao de uma bola da ampulheta para a outta, © espectador a tiltima e nica garantia que a cultura tem, quer seja estrangeira ou familiar, de que sucesso acontecera. Terminado 0 espeticulo, toda a areia repousa, doravante, sobre os seus frigeis om- bros,,. Mado de dizer, Tudo se deposita nas lembrangas © naquilo fe ele esqueceu. (A este prupisito, lembramo-nes da tirada profun damente acertada de Edouard Henriot: “A cultura é 0 que sobra de- pois de nos esquecermos de tudo, é 0 que falta quando ja aprendemos judo”!), Ao término deste escoamento incessante dos gros de cultura, quando os castelos de areia que sao as encenagdes jit desmoronaram, espectador estar, com efeito, em condigdes de accitar que o espeta oul se metamorfoseie nele, quer este o beneficie ou se evapore, quer se anule para melhor renascer. E preciso que aceite o esquecimento, que escotha tudo para si; que o enterre vivo sob a areia, esquecimento que, por si s@, acaba por atenuar o sofrimento. Esse esquecimento & galvador e sabe Deus 0 qu & que se pode esquecer no teatro. (Gragas Dew « cultura que © espectador reconstitui © y Assim send. 18 (© TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS que 0 constitui como sujeito espectatorial esta em perpétua mutagao: passa por uma amnésia seletiva: “A dimensdo essencial do espetdicu- lo teatral resiste ao tempo, nilo se congelande numa gravacao, mas transformando-se™", Assim, torna-se dificil acompanhar as transformagdes da memé- ria, prever de que forma 0 espectador organizaré a sua leitura, de que forma aceitaré ou recusard a série dos filtros que foram predispostos € selecionados da matéria cultural, muito especialmente a maneira estrangeira. F ainda mais problematico determinar como o espetéculo, prosseguira nele: “Os espectadores, em sua unicidade, decidem aqui- Io que concerne A profundidade: ou scja, até que ponto o espeticulo conseguiu fin s raizes em algumas memGrias individuais Poderiamos observar, alias, no que Wange aus criauses do espetieule, semelhante transformagdo: eles terao sido transformados também, ou. pelo menos redirecionades, pelo seu trabalho. Malgrado esta relatividade de aprofundamento do espetéculo em nés, culturalmente é sempre pertinente observar 0 que 0 espectador retém © 6 que exclui, como define a cultura e a ndo-cultura, o que The parece signo, 0 que descarta. © receptor — 0 qual consideramos cliente-rei, um leitio de festa, uma “porgao de vitela” (Cyrano de Bergerac, 1, 2) ou, mais raramente, um parceiro — é, atualmente, obje- to de muitas pretensoes tedricas, No entanto, esta siibita preocupacao, esta descoberta de sua liberdade de escola, de sua produtividade, desemboca muitus vezes numa concepgao antiteériea ¢ antiexplica~ tiva da arte: “Nés devemos”, afirma Susan Sontag, “redescobrir os nossos sentimentos. Devemos aprender a ver mais, a entender mais, a sentir mais’. E verdade, porém como? © sentimento encontra-se no dominio do self-service, énos repetido. 5 possivel; no entanto, & gente ndo tem que, pelo menos, passar no caixa? “O teatro niio deve interpretar, deve nos dar a possibilidade de coutempl refletir sobre ela”, nos previne o grande Bob". Que s contemplemos. Todos esses testemunhos revalorizam, aparentemente, a fungae do espectador © do receptor, porém desembocam também num rela- tivismo © num ceticismo tebrico. A teoria da recepgao anula-se a si mesma caso confira ao receptor 0 poder absoluto de produzir o seu percurso critico sem se dar conta suficientemente dos dados objeti- vos da obra, sob © pretexto de que, liberado ao grato prazer do texto, ele poderia servir-se 4 vontade no se/fservice do sentido. Teremos wna obia © Ne: so, 28. Quatre spectateurs, op. cit, p. 27. 29. fdem, ibidern = No original: cochon de payer (N. da T) 30. Kunst und Antikunst p. 18. 31. Wilson, Spiegel Gesprich mic Robert Wilson ber Haren, Sehen Dat Spiclen, Der Spieseh 1. 1. p, 208 PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENACKO, » a oportunidade, no corpo deste livro, de retornar a este relativismo pés-moderno, que veste muitas vezes os trajes do intercultural a fim de melhor disfargar um diseurso anti-historico e relativista, 10 qual as obras ¢ seus contextos nada mais sao do que pretextos amavei para os divertimentos indiferenciados, encontros transferides para os cruzamentos da nebulosa pés-moderna, Os ensaios reunidos neste volume foram escritos a0 longo dos liltimos anos, de 1983 a 1988, tendo como perspectiva central a ques~ to, evitada artificiosamente durante muito tempo pela semiologia, da relasaio do teatro com as onéras cultures. Tratava-sc, no eas0, de propor uma (coria materialista da apropriagao intereultural que no se deixasse intimidar, nem por um sociologismo pouco cuidadoso com as formas, nem por um terrorismo antitedrico. Tratava-se também de aventurar-se para fora do hexégono — no sem riscos! Num momento em que, na Europa central, a teoria nao mais apa renta ser oportuna, em que se enterram os conflitos e a luta de classes. as ideologias © as utopias, em que se esquece a relagao da cultur com os dados socioecondmicos, em que 0 Ocidente se apressa pi engolir 0 ex-Oriente, em que a antropologia € muitas vezes brandida como uma teoria funcional da harmonia e do consenso para melhor enaltecer a indiferenciaao ¢ a indiferenga ‘anything goes”), tude isso parecen salutar, ainda que intempestivo, para provocar reagdes;, também tentamos refazer 0 percurso do texto para o paleo. a partir de um modelo cldssico relativamente simples (qual seja, o do texto dra- mitico e da encenagio ocidental) para um modelo ampliado ¢ global de intereulturalisme. ‘0 estabclccimento deste modelo sociossemiético da cultura © da encenagSo intercultural foi feito — ¢ tanto a organizagao, quanto a cronologia dos capitulos deste Tivro embutem esse trago ~ por meio dc uma seqiéncia de aprofundamentos do modelo de funcionamento da encenagito (capitulo 2), visando uma teoria da tradugio (capitulo 6) € de intercuituralidade (capitulo 9). Este modelo € prova, alids, da extrema dificuldade de teorizagaio em relagao as formas sucessivas € distintas de teatro: 0 teatro de texto (o texto dramatico & encenaga0); (ro eenografica"™, no qual © visual ¢ 0 visivel sao fundamentais © 0 texto fica reduzido a “servir de apoio”: o teatro intercultural, pro- duto do contato entre as culturas, Tais estudos foram apresentados sob formas as mais diversas, como conferéneias ou coléquios internacionais, 0 que me permitiu, 1 varias ocasides, ajustar e aprimorar as minhas idéias, transportar juicring: Problem ihrer Analyse, Zetsednif lie Semtortt 20 (O-TEATRO No CRUZAMENTO DB CULTURAS para outros contextos, para outros auditérios, uma problematica inter Cultural em constante evolugao. Nao quis igualmente, ao retrabalhar essas conferencias sobre o interculturalismo, suavizar o seu eardter de enunciagio as cireunstincias particulares que as suscitaram IE uum prazer agradecer ais pessons que me pediram esses textos © gue me ajudaram com seus conselhos e sua amizade. Tenho também @ sentimento de empreender em pensamento um iltimo percurso para lem das fronteiras muito estreitas da Franga, em diregao ao interior Ga Europa (onde se haven de respirar seguramente melhor) e, mais, Tonge ainda, no vasto mundo do intercultural em cuja diregao ¢ som- pre muito bom escapar, O meu reconhecimento vai especialmente {na mesma ordem dos eapitulos) a Desiderio Navarro (La Havana) © Francisco Javier (Buenos Aires), Michae! Issacharoft (Londres), Karl Bliher e Alfonso de Toro (Kiel), Michael Hays (Ithaca), Wilfried Floeck (Mayence), José-Angel Gomez (Barcelona), Hanna Scolnicov Gerusalém), Eugenio Barba (Holstrebro), Erika Fischer-Liebte (Frankfurp, Gay McAuley (Sydney), Marianne Kénig Jegenstorf, Suiga), Mary © Hector Mactean (Melbourne) © Hyun-Sook Shi (Seu). 2. Do Texto para o Palco: Um Parto Dificil” Pare Eugenio Bara e particpantes do Ista (Salerno, 1987) |, OBSERVAGOES PRELIMINARES Levar um texto para o paleo € um dos partos mais diffe to momento em que 0 espectador estiver assistindo a0 sera demasiado tarde para conhecer o trabalho pi > do en. eenador; o resultado ja esta ali: um pequeno ser sorridente ou am gurado, ou seja, um sslo mais ou menos bem sucedido, mais ‘ou menos compreensivel, no qual o texto nada mais € que um dos. contigue aos ateres, a0 cspazo, ao ritmo temporal esse momento, ja nAto é mais possivel apreciar, através de uma des~ brigao cronolégica, os fatos gestos dos atores c/ou do encenador, pois a encenagao, tal como a examinamos aqui, é 0 ato de colocar & Vista, sincronicamente, todos os sistemas significantes cuja interagao © produtora de sentido para o espectador. Portanto, ndo falaremos mais de encenador — a pessoa privada due esta encarregada pela instituipgo teatral de assinar com seu pro~ prio nome © trabalho eénico —, porém da encenagdo, definida como bolocar em relagio, num espago e tempe determinados, materiais os inuis diversos (sistemas significantes) em fungaio de um piblico. A é ogao estrutural, um objeto tedrico € um objeto de lor, esse pai desconhecido da nossa pard: peticulo, jf aration 2 (©-TRATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. bola, nao nos interessa aqui diretamente, e assim sendo o substitui- remos, nao antes de nos desculparmos junto aos artistas © técnicos pela nogdo estrutural de encenagio. Esta nogAo, no entanto, & também, histériea, pois aparece nao somente num momento determinado da his- téria, como também é determinada pela sua inscrig%io no contexto. Vejamos, dessa forma, se uma teoria da encenagao ocidental é pos- sivel ¢ sobre quais bases. Este ensaio ¢, de forma mais geral, este livro, constituem uma tentativa de elaborar uma teoria materialista de eneenagio, teoria que se arroga a tarefa de descrever os mecanismos de constituigdo de sentido do texto dramiitico © da encenagao — neste caso, uma teoria que apela, como o seu duplo, para uma abordagem histérica que descreva as condigSes materiais da pratica teatral. ‘Ouliy exclaceinenie vocaliular. Parece-nos importante distinguir: O texto dramédtico: © texto linghistico tal como & lide enquanto texto escrito, ou tal como © ouvimos pronunciar no decorrer da repre: sentagao (atentemos para esta diferenga de estatuto). O easo que aqui ‘amente o de um teatro de texto, no qual o texto como por se considera ¢ exeh pré-existe & encenagao como trago escrito, e que nao vezes acontece escrito ou reescrito apés os ensaios, \edes ow representagdes (MARGEM 1). Situamo-nos decididamente, portanto, sob a dtica logocéntrica, ji que temos sempre presente na memoria que a encenagdo esti li- gada a um texto dramatico escrito pré-existente, numa perspectiva tipicamente acidental A representacao: tudo aquilo que & visivel e audivel sobre © palco, porém que ainda nfo foi recebido © descrito como um sistema de sentido, como um sistema pertinente de sistemas cénicos signifi cantes, Por fim, « encenagdo ou a colocagao em relagao de todos os sisteinas siguificantes, em particular da cnunciagao do texto dramé tico na representagao, Assim sendo, esta encenagao nao € © objeto empirico, a reuniao incoerente de materiais, nem muito menos a ati- vidade mal definida do encenador e de sua equipe antes da entrega do, espeticulo, E um objeto de conhecimento, 0 sistema das relacdes que tanto 2 produgao (os atores, o encenador, a cena em geral), quanto a recepeao (os espectadares) estabelecem entre os materiais cénicos a partir dai constituidos por sistemas significantes. Essa distingao, entre a representagio considerada como objeto em- pitico ¢ a encenagsio como objeto de conhecimento, permite ponderar e, acima de tudo, ultrapassar outra oposigio: a de uma estética da pro: dugao © de uma estética da recepgdo'. Com efeito, a encenacho ~ e e 1. Ch: P Pavis, Production et riception au théatre: ta conerdtisation du texte dra matique ot specticulaine, Revue dex Setences Humans, 189, Retamade em Vis et mange ie lar sete 9, 28-290 DO TEXTO PARA 0 PALCO: UM PARTO DIFICIL 23 sera a nossa hipétese principal — nfo existe no que tange ao sistema estrutural sendo quando recebida ¢ reconstituida por um espectador a partir da produgao, pela equipe artistica, da colocagao em relagao d sistemas significantes. Decifrar a encenagao consiste em receber ¢ in- terpretar o sistema que se encontra na base da produgio (no sentido inglés da palayra) da equipe artistica, Nao se trata de reconstituir as in- tengdes do encenador, mas sim de emitir uma hipétese sobre o sistema escolhido pelos produtores, através daquilo que o espectador recebe. Dedicar-nos-emos, na seqiiéncia, a estabelecer uma teoria da en- cenagiio, pelo menos na nossa tradi¢do ocidental, ou seja, a colocagdo em jogo, numa abordagem estética ¢ subjetiva, de um texto dramati- vo pré-existente, A encenagao ocidental é reveladora da maneira pela qual uma cultura pensa a fabricacao do sentido, especialmente como intereambio de sentido na co-presenga dos sistemas de sig 2, DENEGAGOES Bvitaremos as imilar a semiologia do texto dramatic ao a da repre- sentagao. Estaremos alertas para manter separados a sua metodologia © seu objeto de estudo, para nilo situar no mesmo plano ou no mesmo espago tedrico o texto © a representagdo, bem como para nao reduzir um ao outro. A falta do que, chegaremos rapidamente a assimilagaio da elo texto/representagio, as velhas oposigdes entre significado ¢ icante, alma € corpo, fundo € forma, literario ¢ teatral ete, No estudo do texto dramatico. destacaremos sempre o fato de se estar abordando o texto antes ou independentemente de uma enuncia- (lo cénica, ou se 0 estamos analisando como um dos componentes de uma encenagao concreta, levando sempre em conta, nesse caso, 8 enunciagaio ea “coloragso” que Ihe imprime a cena, se as duas Semiologias devem guardar a sua autonomia, isto se dleve ao fato de que texto e representagao respondem a sistemas se- miolégicos diferentes e que a encenayio nao significa a redugaio ou tiansformagao de um em outro, mas pelo contrario, © scu confronto, Antes de definir esta relagao delicada entre texto e representagao, co ‘garemos por afirmar aguilo que a encenacao nao & © dessa forma fecusara maneira pela qual cla é ainda, algumas vezes, definida abu- sivamente. Ao invés de dizer aquilo que a encenagio nao deve ser (vi- alo normativa demais), gostariamos de estabelecer aquilo que a teoria da eneenagaio nao pode, ou ndo pode mais, afirmar. Seguramente, ao {iuerermos estabelecer no abstrato a teoria da encenagao, arriscamo- fox em todos os momentos a fazer, na descrigao dessas operagdes prineipay meros julgamentos normatives sobre sua fungao e seu particularmente por aquilo que & a construgsio de senti- Formulame 1c de denega desempenhe do resultante que serdo tpualme icdes dlestacada

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