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02/02/2009
Assistimos hoje não a uma crise do capitalismo mas a uma deslocação da hegemonia no
interior do capitalismo, e os problemas foram precipitados pela contradição entre o
âmbito transnacional das instituições nanceiras e o âmbito nacional dos órgãos
scalizadores o ciais. Por João Bernardo
Há algum tempo publiquei num site o artigo intitulado Sete re exões sobre a actual
crise, depois reproduzido noutros lugares, sendo fácil encontrá-lo na internet. Uma
versão ampliada foi publicada no Brasil pela Revista Textos de Economia (vol. 11, nº 2,
2008), editada pelo Departamento de Ciências Económicas da Universidade Federal de
Santa Catarina, também disponível em suporte electrónico. Perante a evolução dos
acontecimentos, parece-me que vale a pena retomar certos aspectos da análise e
desenvolvê-los. Não pretendo abordar a possível, ou pelo menos desejada, resposta dos
trabalhadores, que será tema de um artigo posterior. Limito-me agora às perspectivas
do capitalismo, porque antes de considerarmos as lutas é indispensável saber contra
quê se combate. (Devo prevenir os leitores de que, consoante o uso português, chamo
mil milhões ao que os brasileiros chamam bilhão, ou seja, 109, e bilião ao que no Brasil
se chama trilhão, um milhão de milhões, ou seja, 1012).
Porém, nos nossos dias os principais consumidores são as empresas, que adquirem um
volume crescente de meios de produção, e os Estados, que promovem infra-estruturas
e compram material bélico. É certo que, quanto mais activo for o mercado de consumo
particular, tanto mais pressionará as empresas e os governos a investir em meios de
produção e infra-estruturas, mas em muitos casos a relação é indirecta e ocorre sempre
um desfasamento [uma defasagem], de amplitude variável, entre o consumo pessoal e
os investimentos nos vários ramos de produção. A reactivação da economia somente
através da promoção do consumo individual é tanto mais difícil quanto mais aumenta o
volume dos bens destinados a ser directamente consumidos pelas empresas e pelo
Estado e quanto maior é a variedade destes bens e mais se multiplicam os ramos que os
produzem. Por isso a administração norte-americana e a Reserva Federal, que cumpre
nos Estados Unidos as funções desempenhadas noutros países pelos bancos centrais,
além de preverem a concessão de incentivos ao consumo das famílias, estão a esforçar-
se por reanimar a actividade económica através de empréstimos e incentivos scais
concedidos às empresas. Algo de equivalente se passa na China, onde o conjunto de
medidas anunciado pelo Conselho de Estado em Novembro de 2008 prevê não só o
estímulo ao consumo das camadas mais pobres, mas igualmente alterações scais
destinadas a diminuir em 120 milhares de milhões de yuans os impostos pagos pelas
empresas, o que corresponde a 4% dos lucros industriais de 2007.
Sendo tendencial, esta lei não tem um efeito unívoco; ela limita-se a determinar o
sentido em que se orientam as inovações tecnológicas. Julgando que as relações de valor
se manifestam directamente na quantidade de matérias-primas e de máquinas e na
extensão das instalações, os arautos do apocalipse esquecem os resultados do aumento
da produtividade e imaginam que a taxa de lucro não tem outro caminho senão a
descida. Na opinião destes catastró cos optimistas, à falta de um vasto movimento
social que derrube o capitalismo, os mecanismos económicos fariam com que o
capitalismo caísse por si mesmo, o que seria de uma grande comodidade. A extrema-
esquerda revela nestas ocasiões a sua fragilidade, sem ter ainda conseguido decidir se o
capital se há-de autodestruir ou se hão-de ser os trabalhadores a acabar com ele.
O facto de a crise se ter iniciado nos Estados Unidos não decorreu apenas
dos desequilíbrios resultantes do excessivo consumo particular e deveu-se
fundamentalmente ao declínio a longo prazo daquele país enquanto potência
económica. Sem espaço aqui para proceder a uma análise detalhada, vou cingir-me às
infra-estruturas, que ocupam o lugar central no sistema produtivo, e é esclarecedor
que, em percentagem do Produto Interno Bruto, os investimentos norte-americanos
em infra-estruturas de comunicação e transporte representem hoje menos de metade
(2,4%) dos veri cados na União Europeia (5%) e menos de um terço dos veri cados na
China (9%). Em 2005 a Sociedade Americana de Engenharia Civil considerou que,
mesmo sem levar em conta as necessidades futuras, seria necessário gastar 1,6 biliões
de dólares durante cinco anos só para reparar a infra-estrutura existente, e em Janeiro
de 2008 uma comissão convocada especialmente para estudar o problema dos
transportes nos Estados Unidos recomendou que o governo investisse neste âmbito
pelo menos 225 milhares de milhões de dólares por ano durante as próximas cinco
décadas, o que exigiria uma grande alteração nas prioridades, porque hoje é gasto
menos de 40% desse montante. A nova administração parece estar consciente das
necessidades, e em 6 de Dezembro de 2008, antes ainda de tomar posse, Barack Obama
anunciou que dedicaria às infra-estruturas o maior investimento desde a criação da
rede federal de auto-estradas nos meados da década de 1950.
Este declínio das potencialidades económicas explica o recurso à força das armas.
Avaliadas em dólares, aos preços de 2005, as despesas militares dos Estados Unidos
declinaram de mais de 400 milhares de milhões em 1992 para pouco mais de 300
milhares de milhões em 1999, e subiram desde então, atingindo cerca de 550 milhares
de milhões em 2007. Em comparação, as despesas militares russas, que seguiram a
mesma evolução e inverteram a tendência na mesma data, não chegaram em 2007 a 50
milhares de milhões de dólares. Ora, contrariamente ao sucedido nos grandes impérios
da Antiguidade, no capitalismo a base da expansão são os mercados, e quando os
generais avançam antes dos chefes de empresa é sinal de que a economia está com
sérios problemas. Uma das mais elucidativas e menos aproveitadas lições da guerra no
Iraque é o facto de uma administração norte-americana inteiramente obediente aos
interesses das grandes companhias petrolíferas, em vez de obter o controlo da
produção iraquiana através do mercado e das exportações de capital, ter pretendido
dominá-la por meios bélicos, o que levou à destruição de uma grande parte da
capacidade extractiva e transportadora. Em Julho de 1990, antes da primeira guerra dos
Estados Unidos contra o Iraque, este país produzia 3,5 milhões de barris de petróleo por
dia. As medidas de retaliação e o severo embargo económico que se seguiu zeram
baixar aquela produção, que entre 1999 e 2001 se manteve na média de 2,5 milhões de
barris por dia, sendo de 2,6 milhões antes da invasão norte-americana de 2003. Teria
sido por cobiçarem aquela riqueza que os Bush pai e lho lançaram as suas tropas em
campanha? Nos primeiros meses de 2008 as autoridades militares norte-americanas
contabilizavam em cerca de 600 milhares de milhões de dólares o custo da guerra no
Iraque, enquanto os especialistas da Agência Orçamental do Congresso situavam os
custos a longo prazo entre 1 e 2 biliões de dólares e o economista Joseph Stiglitz,
agraciado com o prémio Nobel em 2001, calculava que estes custos seriam superiores a
4 biliões de dólares. Apesar de tudo isto, só no segundo trimestre de 2008 a produção
petrolífera iraquiana atingiu uma média superior a 2,4 milhões de barris por dia, a mais
alta desde a invasão do país. Com custos incomparavelmente mais elevados, para não
falar sequer nas perdas humanas, o capitalismo norte-americano lucra hoje menos com
o petróleo iraquiano do que lucraria se não tivesse atacado, invadido e destruído o
Iraque.
Compare-se este paradoxo com a actuação dos capitalistas chineses, tanto privados
como de Estado, que nos últimos anos têm conseguido uma tão grande quanto discreta
penetração em África apenas pelo uso das armas económicas. Em 2007 a China era já o
terceiro maior parceiro comercial naquele continente, depois dos Estados Unidos e da
França. «As importações», comentou um diplomata chinês, «é esta a verdadeira
diplomacia, porque signi ca que somos atractivos para os outros. Signi ca que os
outros países precisam de nós, e não que nós precisamos deles».
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Para compreendermos o reequilíbrio das potências devemos ter uma noção, ainda que
sumária, do uxo dos investimentos externos directos, de nidos como os que
asseguram ao investidor, geralmente uma empresa, o controlo ou, pelo menos, uma
in uência decisiva na empresa onde o capital é aplicado. Na prática são os
investimentos característicos das rmas transnacionais. Entre 2/3 e 4/5 dos
investimentos externos directos circulam entre três pólos: o conjunto formado pelos
Estados Unidos e o Canadá, a Europa ocidental e o Japão. Na primeira metade da década
de 1980 os países em desenvolvimento receberam 25% dos investimentos externos
directos, baixando a proporção para 17% na segunda metade dessa década. Nos anos
seguintes assinalou-se um aumento, pois em 1991 os países em desenvolvimento
receberam 26% dos investimentos externos directos e 35% em 1992, mas isto deveu-se
ao facto de três dezenas desses países, entre eles a China e a Índia, que até então eram
hostis ao capital estrangeiro, lhe terem aberto as fronteiras. Ao mesmo tempo, o surto
de privatizações de empresas públicas nos países em desenvolvimento ampliou as
oportunidades oferecidas aos investidores. Em 1995 este grupo de países acolhia ainda
32% dos investimentos externos directos, mas em 1999 a proporção tinha já descido
para 25%. Nas vésperas da crise, em 2005, enquanto os investimentos externos directos
totais subiram 29%, aumentaram 38% em direcção aos países desenvolvidos e apenas
13% em direcção aos países em desenvolvimento.
O facto de as companhias transnacionais investirem mais nos países ricos do que nos
pobres explica-se porque, ao contrário do que muitas vezes se supõe, não é com a
miséria mas com a produtividade que os capitalistas obtêm lucros. Só para as operações
que exigem menor preparação tecnológica é que as companhias transnacionais
estabelecem liais em países menos desenvolvidos, onde a mão-de-obra pouco
quali cada corresponde ao que lhe é exigido. Mas como essas companhias se
caracterizam pela so sticação dos produtos nais, nas restantes fases da cadeia
produtiva é-lhes indispensável uma força de trabalho quali cada, capaz de laborar com
maquinaria complexa, e por isso a maior parte dos seus investimentos materiais e
salariais dirige-se para os países desenvolvidos. As grandes empresas não exploram
preferencialmente mão-de-obra barata e sim mão-de-obra quali cada, a mais
produtiva. Até as rmas transnacionais originárias de países em desenvolvimento, ao
atingirem uma certa dimensão começam a estabelecer liais em países desenvolvidos
ou mesmo a adquirir companhias baseadas nestes países. É certo que se a força de
trabalho em dois países tiver níveis de quali cação equivalentes e se, em termos de
dólares, uma for mais mal paga do que a outra, os investidores transnacionais preferi-
la-ão. Mas mesmo neste caso eles devem ponderar as condições materiais do país ou da
região, e as vantagens decorrentes dos menores custos salariais podem não compensar
a insu ciência das infra-estruturas.
Assim, as vendas efectuadas pelas empresas nos países estrangeiros, que antes
assumiam a forma de exportação, passaram com as companhias transnacionais a poder
incluir-se no comércio interno daqueles países. Mas a transformação operada nos
uxos comerciais tem implicações ainda mais decisivas, porque a maior parte do que as
estatísticas continuam a considerar como transacções entre economias nacionais
ocorre no interior das rmas transnacionais. Segundo um estudo da economista e
gestora DeAnne Julius, no nal da década de 1980 o comércio entre sociedades e as suas
liais no estrangeiro foi responsável por mais de metade do comércio total entre os
países da OCDE. Na mesma data, 1/3 das exportações norte-americanas dirigiu-se para
empresas situadas no estrangeiro que eram propriedade de rmas sediadas nos Estados
Unidos e outro 1/3 foi constituído por bens que empresas estrangeiras com liais nos
Estados Unidos enviaram para os países onde tinham a sede. Em sentido inverso, em
1986 cerca de 1/5 das importações dos Estados Unidos proveio de companhias de
propriedade norte-americana localizadas no estrangeiro e cerca de 1/3 compôs-se de
bens que companhias de propriedade estrangeira situadas nos Estados Unidos
adquiriam aos países onde tinham a sede. Num livro publicado em 1992, Dennis
Encarnation a rma que o comércio no interior das companhias transnacionais era
responsável por mais de 2/5 das importações totais dos Estados Unidos e por mais de
1/3 das suas exportações totais. Segundo o mesmo autor, mais de 2/3 das importações
norte-americanas provenientes do Japão ocorreram no interior de companhias, e este
tipo de transacções contribuiu para praticamente metade das exportações dos Estados
Unidos em direcção ao Japão. Aliás, as liais japonesas instaladas nos Estados Unidos
eram os maiores exportadores deste país para o Japão. Se adoptarmos uma visão global,
os cálculos de DeAnne Julius estabelecem que no nal da década de 1980 as vendas
totais efectuadas pelas sociedades de propriedade norte-americana, tanto sedes como
liais, às sociedades de propriedade estrangeira teriam sido cinco vezes superiores ao
valor convencionalmente atribuído às exportações dos Estados Unidos; ao mesmo
tempo, as aquisições por sociedades estrangeiras teriam sido três vezes superiores às
importações realizadas pelos Estados Unidos. E naquela data, dos doze principais países
da OCDE, onze teriam vendido mais nos Estados Unidos através das liais norte-
americanas de transnacionais sediadas nesses países do que através de exportações.
Estas características acentuaram-se nas duas últimas décadas, e embora as estatísticas
divulgadas pelos grandes órgãos de comunicação alimentem uma anacrónica visão
nacionalista da economia, os números indicados mostram que devemos hoje re ectir
mais em termos do uxo de bens entre companhias transnacionais e no seu interior do
que em termos das relações comerciais entre países. A transformação da China numa
grande potência económica con rma esta perspectiva. Tanto pela relação entre o
comércio externo e o Produto Interno Bruto como pela quantidade de investimentos
que recebe do exterior a economia chinesa é uma das mais abertas, e em 2000 as
empresas resultantes de investimentos estrangeiros foram responsáveis por 56,8% do
crescimento das exportações, uma taxa que aumentou para 63,3% em 2004. A
participação das companhias transnacionais no desenvovimento económico da China é
tanto maior quanto mais so sticados são os ramos de actividade, e a análise das
exportações chinesas de produtos de alta tecnologia no período de Janeiro a Agosto de
2003 mostra que 84,6% provieram de empresas de propriedade estrangeira. Referindo-
se aos lucros originados por este tipo de exportações, a prof ª. Fang Xin, da Academia
das Ciências da China, avaliou em 2006 que mais de 60% cabiam a rmas estrangeiras.
Em todos estes casos, o que a opinião vulgar considera como exportações da China são
na realidade vendas de companhias transnacionais.
Esta cisão chegou a um ponto tal que diversos governos transnacionalizaram a sua
actividade económica, rompendo ainda mais profundamente a relação entre a riqueza
empresarial e a riqueza nacional. Nos últimos anos os fundos de investimento
possuídos pelos governos de vários países em desenvolvimento atingiram enormes
dimensões. Só na Ásia, no nal de 2007 eles montavam a 4,6 biliões de dólares. Estes
fundos soberanos operam por todo o mundo e adquirem participações em rmas tanto
noutros países em desenvolvimento como nos países desenvolvidos. Num artigo
publicado em 2007, Larry Summers, da Universidade de Harvard, que foi secretário do
Tesouro na administração Clinton e que Barack Obama pôs à frente do Conselho
Económico Nacional, chamou a atenção para um facto que considera paradoxal, o de
nas últimas décadas os governos terem privatizado a maior parte das empresas
nacionais que detinham e estarem agora, através dos fundos soberanos, a adquirir
participações em empresas estrangeiras. A aparente contradição resulta da conversão
de economias de base nacional em economias transnacionais. Referindo-se à actuação
dos fundos soberanos, Laura Tyson, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, que na
administração Clinton presidiu ao Conselho dos Assessores Económicos e foi depois
directora do Conselho Económico Nacional, declarou em 2008 que «a dicotomia
simples entre privado e estatal deixou de ser signi cativa». A acção do capital
transnacional estatal reforçou a acção do capital transnacional privado na diluição das
fronteiras políticas.
A actual crise mostrou que até instituições não bancárias foram levadas a usar os
mesmos instrumentos nanceiros empregues pelos bancos mais ousados. Deste modo,
um banco de investimentos que se limitava a ser uma unidade secundária do American
International Group, AIG, uma das maiores seguradoras mundiais, contribuiu a certa
altura para mais de 1/4 dos lucros da companhia, acabando nalmente por precipitá-la
na crise. E embora esta seguradora não fosse uma instituição bancária, se ela falisse,
arrastaria na voragem todo o sistema nanceiro, a tal ponto que a Reserva Federal
norte-americana, apesar de ter abandonado à sua sorte o banco Lehman Brothers, se
viu obrigada em Setembro e Outubro de 2008 a tomar várias iniciativas que, somadas,
resultaram no adiantamento de 153 milhares de milhões de dólares ao AIG a troco de
uma participação de 79,9% nas suas acções.
Uma curiosa miopia levou boa parte da esquerda a protestar contra a intervenção dos
governos e dos bancos centrais para salvar instituições nanceiras cuja falência
colocaria a globalidade da economia em perigo, juntando-se assim aos que na direita
liberal invocaram a liberdade de mercado e consideraram que seria preferível deixar os
bancos falirem. Ora, mesmo tendo em conta a expansão da subcontratação na produção
de bens materiais e não materiais, a interdependência das rmas é ainda maior no
sector nanceiro, onde a queda brusca de um banco, em vez de representar um
aumento da clientela dos concorrentes, é considerada como uma ameaça para todos
eles. E como o crédito é indispensável às restantes actividades, o agravamento da crise
nanceira teria precipitado toda a economia na catástrofe, com custos muitíssimo
superiores aos que resultaram das intervenções governamentais. O plano apresentado
em Setembro de 2008 pelo secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Hank Paulson, e
pelo presidente da Reserva Federal, Ben Bernanke, previa originariamente o emprego
de 700 milhares de milhões de dólares para socorrer o sistema nanceiro do país, uma
quantia que representa cerca de 6% do Produto Interno Bruto; mas é preciso recordar
que, segundo um estudo realizado por dois economistas do Fundo Monetário
Internacional, Luc Laeven e Fabian Valencian, as crises bancárias têm em média
implicado um custo equivalente a 16% do Produto Interno Bruto. Como qualquer aluno
do primeiro ano de Economia sabe que os bancos centrais foram criados precisamente
para impedir os pânicos nanceiros e os colapsos bancários, e também não ignora com
que consequências catastró cas a Reserva Federal norte-americana deixou que
falissem centenas de bancos no começo da grande depressão da década de 1930, admito
que os políticos que tomaram aquela atitude, tanto os que se reclamam do marxismo
como os adeptos do livre mercado, o zessem não por incompetência mas por
demagogia. Se em vez de estarem na oposição estivessem no governo o seu discurso
seria outro, mas isto di cilmente os quali ca para delinearem os termos da nova
regulamentação requerida pela actividade bancária.
Gerir nas fronteiras nacionais uma economia transnacionalizada teria como resultado a
adopção de medidas proteccionistas que, se hoje se generalizassem, provocariam uma
profunda depressão económica. A crise só pode ser superada numa escala global, e o
impasse agravar-se-á se a recente intervenção dos governos destinada a impedir a
falência das instituições nanceiras acentuar as clivagens entre países em vez de criar
órgãos de regulamentação supranacionais. Nestas circunstâncias, o que sucederá se o
crédito bancário não obedecer aos estímulos governamentais e, tendo recebido fundos
colossais, persistir em usá-los exclusivamente na solução dos seus próprios problemas
de liquidez a curto prazo? Assumirão os Estados uma posição neste sector? Se o
zerem, não agravarão a discrepância entre os limites nacionais e a
transnacionalização da economia? Nos Estados Unidos a Reserva Federal encarregou-
se agora pela primeira vez de proceder directamente ao crédito a consumidores
individuais, ainda que estes possam não saber a quem na realidade estão a pagar os
juros das hipotecas. E a dimensão atingida pelas participações governamentais nas
instituições nanceiras intervencionadas impedirá que, debelada a crise, os Estados
possam colocar rapidamente no mercado esse enorme volume de acções sem as
depreciar. Na perspectiva de um prolongamento desta modalidade de capitalismo de
Estado, fala-se agora em reforçar a acção reguladora dos governos, e até a Reserva
Federal norte-americana aumentou discretamente a sua capacidade de intervenção.
Mas é necessário não esquecer que se a actual crise pôde de agrar devido à
insu ciência dos órgãos nacionais para scalizar um sistema nanceiro que os
ultrapassava, a atribuição de maiores poderes a esses órgãos não resolve o problema
dos seus limites nacionais.
Para o capitalismo a questão é ainda mais grave porque, estando as nações caducas
enquanto quadro económico e, portanto, estando secundarizados os governos
nacionais, ca posta em causa a base das instituições interestatais. Algumas delas
subsistem tal como foram delineadas nos acordos de Bretton Woods, outras sofreram
adaptações que não lhes alteraram a substância, enquanto o grande capital as
ultrapassou todas no seu desenvolvimento. Na verdade, as companhias transnacionais
pretenderam aproveitar o melhor de dois mundos, assumindo na prática um papel de
instituições públicas mas continuando nos termos da lei a apresentar-se como
privadas. Em 1992 o Banco Mundial adoptou as Guidelines on the Treatment of Foreign
Direct Investment, um documento aceite pelas administrações do Banco Mundial e do
Fundo Monetário Internacional após consultas com os governos interessados, outras
organizações internacionais, grupos de homens de negócios e associações jurídicas
internacionais. Mas além de se tratar de um conjunto de recomendações de base
meramente voluntária, visava regular apenas a actividade dos governos e não a das
rmas transnacionais. Nessa ocasião o Banco Mundial esclareceu que as Guidelines
constituem «princípios gerais propostos para orientar o comportamento dos governos
relativamente aos investidores estrangeiros; não incluem regras de boa conduta por
parte dos investidores estrangeiros». Este segundo aspecto vinha então a ser negociado
desde há década e meia no quadro do United Nations Code of Conduct on Transnational
Corporations, mas depois de contactos informais em Julho de 1992 as delegações
concluíram que era impossível chegar a um consenso e cancelaram todo o esforço
negocial. Ficou assim criado deliberamente o vazio jurídico em torno das companhias
transnacionais, e esta situação permitiu que a actual crise assumisse grandes
proporções.
A gura-se-me que para o capitalismo o caminho mais viável consiste numa articulação
entre as maiores rmas transnacionais e novos órgãos supranacionais saídos das
instituições internacionais actualmente existentes. Os bancos centrais podem aqui
servir de modelo, porque nasceram da necessidade de conjugar de uma maneira
discreta a acção dos Ministérios das Finanças com a acção dos bancos privados. Aliás, a
independência dos bancos centrais relativamente aos respectivos governos continua a
ser um requisito desse objectivo, e é possível conceber que alguma coisa semelhante
venha a surgir numa escala supranacional. De certo modo, tratar-se-ia de fazer o que a
China faz já no âmbito da sua economia, juntando o capitalismo de Estado e as
empresas privadas num único mecanismo de tomada de decisões, consagrado pela
admissão dos capitalistas privados como membros de um Partido que continua,
evidentemente, a chamar-se Comunista. Também aqui parece que é o capitalismo
chinês a indicar o rumo.
Tudo somado, talvez esta não seja já a época das grandes reformas sistemáticas do
capitalismo, ao estilo do New Deal implementado nos Estados Unidos durante a
administração do presidente Franklin Delano Roosevelt ou do Welfare State instaurado
em alguns países europeus após a segunda guerra mundial, quando prevalecia a
autoridade dos governos nacionais. É possível que agora o capitalismo resolva os seus
problemas através de medidas que, embora pontuais e dispersas, visem aspectos
decisivos e sejam tomadas de maneira discreta, em resultado de acordos entre os
administradores das maiores empresas e os tecnocratas dos Ministérios das Finanças e
da Economia, dos bancos centrais e do Banco de Pagamentos Internacionais, longe dos
olhos do público. Se assim for, então nós, cidadãos comuns, teremos de aprender a ver
através das paredes se não quisermos padecer de cegueira.