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Perspectivas do capitalismo na actual crise económica

02/02/2009

Assistimos hoje não a uma crise do capitalismo mas a uma deslocação da hegemonia no
interior do capitalismo, e os problemas foram precipitados pela contradição entre o
âmbito transnacional das instituições nanceiras e o âmbito nacional dos órgãos
scalizadores o ciais. Por João Bernardo

Há algum tempo publiquei num site o artigo intitulado Sete re exões sobre a actual
crise, depois reproduzido noutros lugares, sendo fácil encontrá-lo na internet. Uma
versão ampliada foi publicada no Brasil pela Revista Textos de Economia (vol. 11, nº 2,
2008), editada pelo Departamento de Ciências Económicas da Universidade Federal de
Santa Catarina, também disponível em suporte electrónico. Perante a evolução dos
acontecimentos, parece-me que vale a pena retomar certos aspectos da análise e
desenvolvê-los. Não pretendo abordar a possível, ou pelo menos desejada, resposta dos
trabalhadores, que será tema de um artigo posterior. Limito-me agora às perspectivas
do capitalismo, porque antes de considerarmos as lutas é indispensável saber contra
quê se combate. (Devo prevenir os leitores de que, consoante o uso português, chamo
mil milhões ao que os brasileiros chamam bilhão, ou seja, 109, e bilião ao que no Brasil
se chama trilhão, um milhão de milhões, ou seja, 1012).

Alguns comentadores marxistas de assuntos económicos


atribuem a crise aos limites do poder de compra da maioria
da população. E assim, talvez sem o saber, situam-se na
tradição de Keynes, que propôs a superação da grande crise
da década de 1930 mediante o aumento do consumo das
camadas mais pobres, aquelas que gastam nas necessidades elementares uma maior
proporção dos seus rendimentos. A disseminação destas concepções na esquerda é um
indício da fusão − ou antes, da confusão − entre o marxismo vulgar e os temas
jornalísticos correntes, e é estranho que tais ideias encontrem defensores hoje, quando
foi precisamente o excesso do consumo das famílias norte-americanas, com o seu
consequente endividamento, que levou à derrocada das duas instituições vocacionadas
para o crédito hipotecário e, por aí, à crise do restante sistema nanceiro. Nos Estados
Unidos, entre 1950 e 1985 os consumidores pouparam em média 9% dos seus
rendimentos líquidos, mas nos últimos vinte anos esta taxa declinou até chegar
praticamente a zero no início de 2008. Ao mesmo tempo, as dívidas resultantes do
consumo e das hipotecas, que em 1990 representavam 77% dos rendimentos líquidos,
chegaram a 127% em 2008.

Porém, nos nossos dias os principais consumidores são as empresas, que adquirem um
volume crescente de meios de produção, e os Estados, que promovem infra-estruturas
e compram material bélico. É certo que, quanto mais activo for o mercado de consumo
particular, tanto mais pressionará as empresas e os governos a investir em meios de
produção e infra-estruturas, mas em muitos casos a relação é indirecta e ocorre sempre
um desfasamento [uma defasagem], de amplitude variável, entre o consumo pessoal e
os investimentos nos vários ramos de produção. A reactivação da economia somente
através da promoção do consumo individual é tanto mais difícil quanto mais aumenta o
volume dos bens destinados a ser directamente consumidos pelas empresas e pelo
Estado e quanto maior é a variedade destes bens e mais se multiplicam os ramos que os
produzem. Por isso a administração norte-americana e a Reserva Federal, que cumpre
nos Estados Unidos as funções desempenhadas noutros países pelos bancos centrais,
além de preverem a concessão de incentivos ao consumo das famílias, estão a esforçar-
se por reanimar a actividade económica através de empréstimos e incentivos scais
concedidos às empresas. Algo de equivalente se passa na China, onde o conjunto de
medidas anunciado pelo Conselho de Estado em Novembro de 2008 prevê não só o
estímulo ao consumo das camadas mais pobres, mas igualmente alterações scais
destinadas a diminuir em 120 milhares de milhões de yuans os impostos pagos pelas
empresas, o que corresponde a 4% dos lucros industriais de 2007.

Outros comentadores marxistas explicam as di culdades do capitalismo não pela


situação do consumo mas pela estrutura da actividade produtiva e invocam os conceitos
de Marx para analisar as variações na composição do capital e a taxa de lucro. Mas
também entre eles não são poucas as confusões. Partindo do princípio de que só o
esforço humano cria valor, Marx mostrou que, se a concorrência entre os capitalistas e
a concentração económica leva a aumentar a parte dos investimentos destinada às
matérias-primas, à maquinaria e às instalações em comparação com a parte destinada
ao assalariamento da força de trabalho, então há uma tendência a que, no capital total,
diminua relativamente a parte geradora de valor e, portanto, diminua a taxa de lucro.
Infelizmente, na maior parte dos casos os discípulos de Marx têm-se preocupado
apenas com quantidades materiais, quer dizer, o número de assalariados e o volume
dos meios de produção, esquecendo que a análise deve ser prosseguida no plano dos
valores, ou seja, que ela diz respeito ao tempo de trabalho gasto na produção de bens,
incluindo as matérias-primas, as máquinas e as instalações necessárias à obtenção dos
bens nais. A grande remodelação intelectual operada por Marx, que consistiu em
mostrar que as coisas mais não são do que a materialização de relações sociais, é
esquecida por muitos discípulos precisamente quando mais convinha que se
lembrassem dela. E assim o problema da baixa da taxa de lucro, que Marx formulou
como uma lei tendencial, ca convertido numa baixa real, dando lugar a uma concepção
catastro sta da crise iminente do capitalismo.

Para contrariarem a tendência à baixa da taxa de lucro os capitalistas aumentam a


produtividade, e é este facto que não devemos perder de vista. Por um lado, o acréscimo
em volume das matérias-primas, das máquinas e das instalações é muitíssimo maior
do que o seu aumento em valor, porque elas são extraídas, fabricadas ou construídas de
maneira cada vez mais produtiva. Por outro lado, cada hora de trabalho passa a valer
mais, não só porque os engenheiros de produção estudam as maneiras de intensi car o
esforço humano mas igualmente porque são aumentadas as quali cações dos
trabalhadores. Para empregar os conceitos de Marx, uma hora de trabalho complexo,
isto é, mais intensivo e mais quali cado, vale várias horas de trabalho simples,
residindo aqui o motor de toda a produtividade. Aliás, há uma estreita relação entre
estes dois factores, porque o progresso da produtividade requer o aumento das
quali cações dos trabalhadores. A automatização e em geral a inovação tecnológica
levam à multiplicação dos ramos de actividade e por isso, contrariamente a uma
opinião comum, não substituem trabalhadores por máquinas; substituem
trabalhadores menos quali cados por outros mais quali cados. Existe ainda um
terceiro aspecto. Aumentando a produtividade com que são fabricados os bens de
consumo corrente, os salários permitem adquirir uma maior quantidade de produtos,
mas estes produtos representam menos em termos de valor, porque são fabricados
num tempo menor e incorporam menos matérias-primas. O trabalhador dispõe de
maior quantidade de bens, mas, como eles representam menos em termos de valor, a
taxa de exploração é agravada; e mais ainda se agrava porque, mesmo que o horário de
trabalho diminua, o esforço dispendido numa hora de trabalho complexo representa
mais em termos de valor do que o esforço numa hora de trabalho simples. Este triplo
processo decorrente do aumento da produtividade tem como resultado a diminuição do
tempo de trabalho incorporado nos meios de produção e o aumento do tempo de
trabalho possível de extorquir aos assalariados. Assim, enquanto o desenvolvimento da
produtividade leva o acréscimo material dos meios de produção a ser cada vez maior do
que o seu acréscimo em valor, leva também os lucros da exploração a aumentarem
muito. É deste modo que os capitalistas contrariam a baixa da taxa de lucro. Trata-se de
uma lei tendencial, ou seja, uma lei que pressiona os capitalistas a seguirem
exclusivamente o caminho do incessante aumento da produtividade.

Sendo tendencial, esta lei não tem um efeito unívoco; ela limita-se a determinar o
sentido em que se orientam as inovações tecnológicas. Julgando que as relações de valor
se manifestam directamente na quantidade de matérias-primas e de máquinas e na
extensão das instalações, os arautos do apocalipse esquecem os resultados do aumento
da produtividade e imaginam que a taxa de lucro não tem outro caminho senão a
descida. Na opinião destes catastró cos optimistas, à falta de um vasto movimento
social que derrube o capitalismo, os mecanismos económicos fariam com que o
capitalismo caísse por si mesmo, o que seria de uma grande comodidade. A extrema-
esquerda revela nestas ocasiões a sua fragilidade, sem ter ainda conseguido decidir se o
capital se há-de autodestruir ou se hão-de ser os trabalhadores a acabar com ele.

É nesta perspectiva que devemos avaliar a capacidade do capitalismo para ultrapassar


as di culdades actuais. O declínio do sistema de produção fordista, encetado na
sequência da crise económica de 1974 e completado hoje, abriu uma nova era, assente
na exploração crescente da componente intelectual do trabalho. Trata-se de uma fonte
de acumulação de que ainda não conhecemos os limites. E como entretanto se
expandiram a subcontratação e a terceirização, instaurou-se uma nova maneira de
articular a exploração dos mais quali cados com a dos menos quali cados, conferindo
ao capitalismo uma enorme plasticidade.

Assim, se colocarmos em primeiro plano as relações sociais de trabalho e se as


considerarmos como motor do crescimento da produtividade e da acumulação do
capital, podemos integrar numa visão conjunta os mecanismos directamente
económicos e as lutas sociais e políticas. A actual crise de agrou numa época em que
estão muito longe de se esgotar as capacidades de exploração decorrentes dos sistemas
vigentes de organização do trabalho, por isso parece-me possível que o crescimento da
actividade produtiva seja retomado antes de se precipitar uma crise social.

Assistimos hoje menos a uma crise do capitalismo do que a uma crise no


capitalismo. Quero com isto dizer que não é a globalidade do sistema que
se encontra ameaçada e que se trata de uma deslocação dos centros de
poder no interior do sistema.

O facto de a crise se ter iniciado nos Estados Unidos não decorreu apenas
dos desequilíbrios resultantes do excessivo consumo particular e deveu-se
fundamentalmente ao declínio a longo prazo daquele país enquanto potência
económica. Sem espaço aqui para proceder a uma análise detalhada, vou cingir-me às
infra-estruturas, que ocupam o lugar central no sistema produtivo, e é esclarecedor
que, em percentagem do Produto Interno Bruto, os investimentos norte-americanos
em infra-estruturas de comunicação e transporte representem hoje menos de metade
(2,4%) dos veri cados na União Europeia (5%) e menos de um terço dos veri cados na
China (9%). Em 2005 a Sociedade Americana de Engenharia Civil considerou que,
mesmo sem levar em conta as necessidades futuras, seria necessário gastar 1,6 biliões
de dólares durante cinco anos só para reparar a infra-estrutura existente, e em Janeiro
de 2008 uma comissão convocada especialmente para estudar o problema dos
transportes nos Estados Unidos recomendou que o governo investisse neste âmbito
pelo menos 225 milhares de milhões de dólares por ano durante as próximas cinco
décadas, o que exigiria uma grande alteração nas prioridades, porque hoje é gasto
menos de 40% desse montante. A nova administração parece estar consciente das
necessidades, e em 6 de Dezembro de 2008, antes ainda de tomar posse, Barack Obama
anunciou que dedicaria às infra-estruturas o maior investimento desde a criação da
rede federal de auto-estradas nos meados da década de 1950.

Se passarmos da infra-estrutura material para a infra-estrutura intelectual o


panorama não é menos sombrio. A Academia Nacional de Engenharia publicou em 2007
um relatório onde a rma que «a segurança económica e estratégica» dos Estados
Unidos está em perigo por falta de investimentos no ensino da matemática e das
ciências e na investigação cientí ca. Idênticas preocupações foram expressas num
relatório de Novembro de 2008 pelo Council on Competitiveness, um in uente grupo de
pressão que reúne chefes de empresa, dirigentes sindicais e reitores de universidades.
Também o presidente (chairman) da Intel, Craig Barrett, tem ultimamente dito o
mesmo, e num discurso proferido em Novembro de 2008, Eric Schmidt, chief executive
da Google, a rmou que os subsídios governamentais concedidos aos laboratórios de
pesquisa universitários eram «o cerne da competitividade americana» e que se não
houver um aumento drástico do investimento nesta pesquisa, bem como no ensino da
matemática e das ciências, os Estados Unidos correm o risco de se tornarem
«consumidores cativos» à mercê das potências asiáticas emergentes. Ainda aqui Barack
Obama, enquanto presidente eleito, prometeu remediar a situação e disse que
duplicaria as verbas dedicadas no próximo decénio à pesquisa cientí ca fundamental.

Este declínio das potencialidades económicas explica o recurso à força das armas.
Avaliadas em dólares, aos preços de 2005, as despesas militares dos Estados Unidos
declinaram de mais de 400 milhares de milhões em 1992 para pouco mais de 300
milhares de milhões em 1999, e subiram desde então, atingindo cerca de 550 milhares
de milhões em 2007. Em comparação, as despesas militares russas, que seguiram a
mesma evolução e inverteram a tendência na mesma data, não chegaram em 2007 a 50
milhares de milhões de dólares. Ora, contrariamente ao sucedido nos grandes impérios
da Antiguidade, no capitalismo a base da expansão são os mercados, e quando os
generais avançam antes dos chefes de empresa é sinal de que a economia está com
sérios problemas. Uma das mais elucidativas e menos aproveitadas lições da guerra no
Iraque é o facto de uma administração norte-americana inteiramente obediente aos
interesses das grandes companhias petrolíferas, em vez de obter o controlo da
produção iraquiana através do mercado e das exportações de capital, ter pretendido
dominá-la por meios bélicos, o que levou à destruição de uma grande parte da
capacidade extractiva e transportadora. Em Julho de 1990, antes da primeira guerra dos
Estados Unidos contra o Iraque, este país produzia 3,5 milhões de barris de petróleo por
dia. As medidas de retaliação e o severo embargo económico que se seguiu zeram
baixar aquela produção, que entre 1999 e 2001 se manteve na média de 2,5 milhões de
barris por dia, sendo de 2,6 milhões antes da invasão norte-americana de 2003. Teria
sido por cobiçarem aquela riqueza que os Bush pai e lho lançaram as suas tropas em
campanha? Nos primeiros meses de 2008 as autoridades militares norte-americanas
contabilizavam em cerca de 600 milhares de milhões de dólares o custo da guerra no
Iraque, enquanto os especialistas da Agência Orçamental do Congresso situavam os
custos a longo prazo entre 1 e 2 biliões de dólares e o economista Joseph Stiglitz,
agraciado com o prémio Nobel em 2001, calculava que estes custos seriam superiores a
4 biliões de dólares. Apesar de tudo isto, só no segundo trimestre de 2008 a produção
petrolífera iraquiana atingiu uma média superior a 2,4 milhões de barris por dia, a mais
alta desde a invasão do país. Com custos incomparavelmente mais elevados, para não
falar sequer nas perdas humanas, o capitalismo norte-americano lucra hoje menos com
o petróleo iraquiano do que lucraria se não tivesse atacado, invadido e destruído o
Iraque.

Compare-se este paradoxo com a actuação dos capitalistas chineses, tanto privados
como de Estado, que nos últimos anos têm conseguido uma tão grande quanto discreta
penetração em África apenas pelo uso das armas económicas. Em 2007 a China era já o
terceiro maior parceiro comercial naquele continente, depois dos Estados Unidos e da
França. «As importações», comentou um diplomata chinês, «é esta a verdadeira
diplomacia, porque signi ca que somos atractivos para os outros. Signi ca que os
outros países precisam de nós, e não que nós precisamos deles».
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Assim como o declínio do poderio económico dos Estados


Unidos é um dos aspectos mais signi cativos da crise actual,
outro aspecto consiste na importância assumida pelas
economias emergentes. Em Abril de 2003 o Fundo
Monetário Internacional previu que o crescimento
económico mundial nos três anos seguintes caria, em média, abaixo dos 4% por ano.
Na realidade, porém, entre 2003 e 2007 a taxa foi de 4,5% anualmente, devendo-se a
diferença aos países emergentes, que cresceram a uma taxa média anual de 7,3%. Na
segunda metade de 2007 e em 2008 estes países foram responsáveis por cerca de 3/4 do
crescimento económico mundial, sendo a China responsável por 1/3 deste crescimento
no primeiro semestre de 2008. Aliás, desde 2000 a contribuição da China para o
aumento do Produto Interno Bruto mundial tem sido superior à dos Estados Unidos. Se
a actual crise económica mostrou, mesmo a quem não queria ver, a decadência norte-
americana, ela con rmou também a hegemonia da China, que se tornou a terceira
maior economia e possui as principais reservas de divisas estrangeiras. Como disse
recentemente o vice-primeiro-ministro chinês, aludindo aos representantes dos
Estados Unidos com quem entabulava negociações, «os professores estão agora com
alguns problemas». Não deixa de ser irónico que um país até há poucos meses
denunciado como a principal ameaça ao capitalismo ocidental seja hoje enaltecido
como a grande esperança de salvação deste capitalismo.

Para compreendermos o reequilíbrio das potências devemos ter uma noção, ainda que
sumária, do uxo dos investimentos externos directos, de nidos como os que
asseguram ao investidor, geralmente uma empresa, o controlo ou, pelo menos, uma
in uência decisiva na empresa onde o capital é aplicado. Na prática são os
investimentos característicos das rmas transnacionais. Entre 2/3 e 4/5 dos
investimentos externos directos circulam entre três pólos: o conjunto formado pelos
Estados Unidos e o Canadá, a Europa ocidental e o Japão. Na primeira metade da década
de 1980 os países em desenvolvimento receberam 25% dos investimentos externos
directos, baixando a proporção para 17% na segunda metade dessa década. Nos anos
seguintes assinalou-se um aumento, pois em 1991 os países em desenvolvimento
receberam 26% dos investimentos externos directos e 35% em 1992, mas isto deveu-se
ao facto de três dezenas desses países, entre eles a China e a Índia, que até então eram
hostis ao capital estrangeiro, lhe terem aberto as fronteiras. Ao mesmo tempo, o surto
de privatizações de empresas públicas nos países em desenvolvimento ampliou as
oportunidades oferecidas aos investidores. Em 1995 este grupo de países acolhia ainda
32% dos investimentos externos directos, mas em 1999 a proporção tinha já descido
para 25%. Nas vésperas da crise, em 2005, enquanto os investimentos externos directos
totais subiram 29%, aumentaram 38% em direcção aos países desenvolvidos e apenas
13% em direcção aos países em desenvolvimento.

O facto de as companhias transnacionais investirem mais nos países ricos do que nos
pobres explica-se porque, ao contrário do que muitas vezes se supõe, não é com a
miséria mas com a produtividade que os capitalistas obtêm lucros. Só para as operações
que exigem menor preparação tecnológica é que as companhias transnacionais
estabelecem liais em países menos desenvolvidos, onde a mão-de-obra pouco
quali cada corresponde ao que lhe é exigido. Mas como essas companhias se
caracterizam pela so sticação dos produtos nais, nas restantes fases da cadeia
produtiva é-lhes indispensável uma força de trabalho quali cada, capaz de laborar com
maquinaria complexa, e por isso a maior parte dos seus investimentos materiais e
salariais dirige-se para os países desenvolvidos. As grandes empresas não exploram
preferencialmente mão-de-obra barata e sim mão-de-obra quali cada, a mais
produtiva. Até as rmas transnacionais originárias de países em desenvolvimento, ao
atingirem uma certa dimensão começam a estabelecer liais em países desenvolvidos
ou mesmo a adquirir companhias baseadas nestes países. É certo que se a força de
trabalho em dois países tiver níveis de quali cação equivalentes e se, em termos de
dólares, uma for mais mal paga do que a outra, os investidores transnacionais preferi-
la-ão. Mas mesmo neste caso eles devem ponderar as condições materiais do país ou da
região, e as vantagens decorrentes dos menores custos salariais podem não compensar
a insu ciência das infra-estruturas.

A busca da produtividade explica que os investimentos externos directos que se


orientam para os países em desenvolvimento escolham sobretudo aqueles onde existe
com abundância uma força de trabalho quali cada, a China, a Índia e o Brasil. Estes
países chegam a ser apresentados como lugares onde se podem testar novos métodos
de aumento da produtividade, aplicáveis depois nos países desenvolvidos. Podemos
assim compreender o papel desempenhado pela China, onde, ao invés da opinião
corrente, o crescimento económico dos últimos anos se tem devido na maior parte à
modernização tecnológica. De 1996 até 2006 a ampliação da força de trabalho
contribuiu em média para apenas 10% do aumento do Produto Interno Bruto chinês, o
que mostra que a expansão económica do país não assenta na mão-de-obra barata mas
no avanço da produtividade. Na indústria chinesa a produtividade do trabalho
progrediu muito mais rapidamente do que o montante dos salários, a tal ponto que,
segundo cálculos de The Economist, embora os salários tivessem duplicado entre 2000
e 2006, os custos laborais unitários reduziram-se quase para metade. Foi assim que a
China conquistou uma posição sólida, e é este crescimento da produtividade que
procuram aproveitar as rmas estrangeiras interessadas em estabelecer ali liais. Isto
explica que no nal de 2008, ao mesmo tempo que ocorriam na China despedimentos
maciços de trabalhadores não quali cados, a procura dos quali cados excedesse a
oferta e os salários destes continuassem a aumentar, estando previsto que, apesar da
crise, tais aumentos fossem em 2009 praticamente idênticos aos veri cados no ano
anterior. O mesmo fenómeno registou-se, aliás, na Índia.

Mas em que medida conseguirá a economia chinesa resistir às di culdades mundiais? O


declínio do dólar teve como consequência imediata bene ciar as exportações dos
Estados Unidos e, ao mesmo tempo, pressionar à diminuição das suas importações em
termos reais, agravada ainda pela retracção do consumo interno. Estes efeitos
acumulados prometem sérias di culdades à expansão económica da China, arrastada
até uma data recente pelo crescimento das exportações. Apesar de tudo, as exportações
chinesas têm resistido melhor do que se imaginara, e avaliadas em dólares aumentaram
21% nos primeiros dez meses de 2008, uma descida pouco pronunciada relativamente
aos 26% de crescimento anual veri cados em média no período de 2000 a 2007. Aliás, o
acentuado declínio das importações chinesas − que caíram 18% em Novembro de 2008
relativamente à mesma data do ano anterior, enquanto as exportações caíram só 2,2%
− re ecte o declínio das exportações, já que mais de metade das importações se destina
ao fabrico de bens exportados. Ora, se por um lado o comércio externo da China
continua ameaçado − as últimas estatísticas indicam uma descida mais nítida das
exportações no quarto trimestre de 2008 − por outro lado o consumo interno tem-se
mantido. Em Outubro de 2008 as vendas a retalho [varejo] haviam subido 22%
relativamente ao mesmo mês do ano anterior, e embora esta taxa representasse uma
ligeira descida por comparação com os 23,2% entre Setembro de 2008 e Setembro de
2007, ela indica uma procura interna muito activa, situação que se prolonga, pois em
Dezembro de 2008 o comércio a retalho era ainda 18% superior ao que fora um ano
antes. Assim, é possível admitir que a economia chinesa conserve uma base
su cientemente dinâmica para contrariar in uências externas nocivas, e aliás uma
rma de pesquisa económica sediada em Pequim, Dragonomics, calculou que o
consumo interno, que contribuíra para 44% do crescimento do Produto Interno Bruto
em 2007, contribuiu para 2/3 desse crescimento no primeiro semestre de 2008. No
entanto, esta situação é contrária à política governamental, que pretende promover as
exportações mais do que o mercado interno. Com este objectivo as importações de
matérias-primas industriais são encorajadas desde que se destinem à produção de bens
de exportação e a taxa aduaneira que as onera é em grande parte reembolsada ao serem
exportados os artigos cujo fabrico incorporou aquelas importações. Aliás, nas zonas
económicas reservadas à produção para exportação as empresas gozam de um estatuto
scal ainda mais favorável. A contradição agora veri cada entre as pressões do
mercado e a orientação do governo tem levado muitos industriais a exportar para Hong
Kong, onde rmas especializadas encaminham os bens para o mercado interno chinês,
mas trata-se de uma solução onerosa. Conseguirá a China superar este dilema e
corresponder às previsões formuladas no nal de 2008 pelo Fundo Monetário
Internacional, que indicavam que em 2009 a economia do país seria responsável por
quase metade do crescimento da produção mundial?

Em Novembro de 2008 o Conselho de Estado chinês anunciou um conjunto de medidas


de reactivação da economia no montante de 4 biliões de yuans, equivalente a 586
milhares de milhões de dólares e correspondente a 14% do Produto Interno Bruto
calculado para 2008. Esta quantia destina-se a ser gasta em 2009 e 2010 em infra-
estruturas e construções, na agricultura e na promoção do bem-estar social. Além
disso, foram anunciadas reduções de impostos para as empresas e transferências de
rendimentos em benefício da população mais pobre e nomeadamente dos camponeses.
Mesmo que estas medidas não correspondessem ao montante anunciado porque
algumas delas já estivessem previstas anteriormente, trata-se talvez da maior
intervenção realizada até hoje por qualquer governo num período de dois anos.
Igualmente signi cativo é o facto de em Janeiro de 2009 o governo ter anunciado
despesas suplementares de 850 milhares de milhões de yuans num período de três
anos, destinadas a melhorar o sistema de saúde, e ter decretado descontos de 13% na
compra de electrodomésticos pela população rural, o que indica a disposição de
incentivar o mercado de consumo particular.
O facto de todo o mundo estar dependente do êxito deste conjunto de decisões revela
um duplo fenómeno, a globalização da economia e a reorganização dos centros de
poder no interior da economia globalizada. Nenhum país está imune à crise, mas
enquanto ela afecta alguns só negativamente, contribui a prazo para reforçar outros.

O quadro torna-se mais complexo porque nas últimas décadas


os países deixaram de constituir verdadeiras unidades
económicas e, portanto, os Estados e os respectivos governos
perderam a primazia.

Através dos investimentos externos directos, as companhias transnacionais


ultrapassaram todas e quaisquer barreiras alfandegárias, privando os governos de uma
das suas principais armas. Na primeira metade da década de 1980, quando a
administração Reagan decidiu proteger a indústria automobilística norte-americana da
concorrência nipónica e decretou um considerável aumento das tarifas aduaneiras, as
rmas japonesas passaram a investir nos Estados Unidos e começaram a fabricar lá os
seus veículos, apressando o declínio das congéneres norte-americanas. Aliás, bastou
que as grandes companhias japonesas receassem um aumento das taxas alfandegárias
para se anteciparem e começarem a produzir nos Estados Unidos, como sucedeu na
indústria de máquinas-ferramentas. E o mesmo se passou na segunda metade da
década de 1980 com o fabrico de computadores. Em consequência destes investimentos
o próprio conceito de comércio externo cou em boa medida desprovido de signi cado.
Segundo Dennis Encarnation, professor na Harvard Business School, no começo da
década de 1990 as vendas nos Estados Unidos por parte de fábricas, unidades
montadoras e armazéns existentes naquele país, mas de propriedade japonesa,
correspondiam ao dobro do valor total das exportações do Japão para os Estados
Unidos. O mesmo, aliás, ocorria em sentido contrário, pois já nos meados da década de
1980 eram muito numerosas as rmas ocidentais que, para evitar as barreiras
proteccionistas nipónicas, estabeleciam fábricas no Japão em vez de exportarem para lá
os seus produtos. Esta prática generalizou-se rapidamente em todo o mundo e é hoje a
norma comum. Além de evitar os efeitos das taxas aduaneiras, ultimamente o capital
transnacional tem conseguido também ultrapassar as medidas de controlo de capitais
instauradas por alguns governos. Como o crescimento do comércio requer o
desenvolvimento do suporte nanceiro, a expansão dos uxos comerciais torna mais
fácil iludir as restrições ao movimento de capitais, frustrando uma vez mais o
proteccionismo.

Assim, as vendas efectuadas pelas empresas nos países estrangeiros, que antes
assumiam a forma de exportação, passaram com as companhias transnacionais a poder
incluir-se no comércio interno daqueles países. Mas a transformação operada nos
uxos comerciais tem implicações ainda mais decisivas, porque a maior parte do que as
estatísticas continuam a considerar como transacções entre economias nacionais
ocorre no interior das rmas transnacionais. Segundo um estudo da economista e
gestora DeAnne Julius, no nal da década de 1980 o comércio entre sociedades e as suas
liais no estrangeiro foi responsável por mais de metade do comércio total entre os
países da OCDE. Na mesma data, 1/3 das exportações norte-americanas dirigiu-se para
empresas situadas no estrangeiro que eram propriedade de rmas sediadas nos Estados
Unidos e outro 1/3 foi constituído por bens que empresas estrangeiras com liais nos
Estados Unidos enviaram para os países onde tinham a sede. Em sentido inverso, em
1986 cerca de 1/5 das importações dos Estados Unidos proveio de companhias de
propriedade norte-americana localizadas no estrangeiro e cerca de 1/3 compôs-se de
bens que companhias de propriedade estrangeira situadas nos Estados Unidos
adquiriam aos países onde tinham a sede. Num livro publicado em 1992, Dennis
Encarnation a rma que o comércio no interior das companhias transnacionais era
responsável por mais de 2/5 das importações totais dos Estados Unidos e por mais de
1/3 das suas exportações totais. Segundo o mesmo autor, mais de 2/3 das importações
norte-americanas provenientes do Japão ocorreram no interior de companhias, e este
tipo de transacções contribuiu para praticamente metade das exportações dos Estados
Unidos em direcção ao Japão. Aliás, as liais japonesas instaladas nos Estados Unidos
eram os maiores exportadores deste país para o Japão. Se adoptarmos uma visão global,
os cálculos de DeAnne Julius estabelecem que no nal da década de 1980 as vendas
totais efectuadas pelas sociedades de propriedade norte-americana, tanto sedes como
liais, às sociedades de propriedade estrangeira teriam sido cinco vezes superiores ao
valor convencionalmente atribuído às exportações dos Estados Unidos; ao mesmo
tempo, as aquisições por sociedades estrangeiras teriam sido três vezes superiores às
importações realizadas pelos Estados Unidos. E naquela data, dos doze principais países
da OCDE, onze teriam vendido mais nos Estados Unidos através das liais norte-
americanas de transnacionais sediadas nesses países do que através de exportações.
Estas características acentuaram-se nas duas últimas décadas, e embora as estatísticas
divulgadas pelos grandes órgãos de comunicação alimentem uma anacrónica visão
nacionalista da economia, os números indicados mostram que devemos hoje re ectir
mais em termos do uxo de bens entre companhias transnacionais e no seu interior do
que em termos das relações comerciais entre países. A transformação da China numa
grande potência económica con rma esta perspectiva. Tanto pela relação entre o
comércio externo e o Produto Interno Bruto como pela quantidade de investimentos
que recebe do exterior a economia chinesa é uma das mais abertas, e em 2000 as
empresas resultantes de investimentos estrangeiros foram responsáveis por 56,8% do
crescimento das exportações, uma taxa que aumentou para 63,3% em 2004. A
participação das companhias transnacionais no desenvovimento económico da China é
tanto maior quanto mais so sticados são os ramos de actividade, e a análise das
exportações chinesas de produtos de alta tecnologia no período de Janeiro a Agosto de
2003 mostra que 84,6% provieram de empresas de propriedade estrangeira. Referindo-
se aos lucros originados por este tipo de exportações, a prof ª. Fang Xin, da Academia
das Ciências da China, avaliou em 2006 que mais de 60% cabiam a rmas estrangeiras.
Em todos estes casos, o que a opinião vulgar considera como exportações da China são
na realidade vendas de companhias transnacionais.

É um novo mapa que se desenha, diluindo as antigas fronteiras. No nal de 2005 as


quarenta maiores companhias transnacionais empregavam em média 55% da sua força
de trabalho e obtinham 59% dos seus lucros fora do país onde possuíam a sede. Neste
contexto deixam de ter signi cado as noções de nacional e de estrangeiro. E quando
uma crise atinge alguns dos países onde essas companhias estão estabelecidas, elas
podem compensar os prejuízos graças às empresas que possuem noutros países menos
afectados. A velha relação entre a prosperidade de um país e a prosperidade das suas
empresas deixou de funcionar, em ambos os sentidos. Um estudo realizado em 2007
por Eswar Prasad, Raghu Rajan e Arvind Subramanian mostrou que os países pobres
que se basearam na poupança interna para nanciar o investimento conseguiram uma
taxa de crescimento superior à dos que recorreram sobretudo a capitais estrangeiros.

Esta cisão chegou a um ponto tal que diversos governos transnacionalizaram a sua
actividade económica, rompendo ainda mais profundamente a relação entre a riqueza
empresarial e a riqueza nacional. Nos últimos anos os fundos de investimento
possuídos pelos governos de vários países em desenvolvimento atingiram enormes
dimensões. Só na Ásia, no nal de 2007 eles montavam a 4,6 biliões de dólares. Estes
fundos soberanos operam por todo o mundo e adquirem participações em rmas tanto
noutros países em desenvolvimento como nos países desenvolvidos. Num artigo
publicado em 2007, Larry Summers, da Universidade de Harvard, que foi secretário do
Tesouro na administração Clinton e que Barack Obama pôs à frente do Conselho
Económico Nacional, chamou a atenção para um facto que considera paradoxal, o de
nas últimas décadas os governos terem privatizado a maior parte das empresas
nacionais que detinham e estarem agora, através dos fundos soberanos, a adquirir
participações em empresas estrangeiras. A aparente contradição resulta da conversão
de economias de base nacional em economias transnacionais. Referindo-se à actuação
dos fundos soberanos, Laura Tyson, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, que na
administração Clinton presidiu ao Conselho dos Assessores Económicos e foi depois
directora do Conselho Económico Nacional, declarou em 2008 que «a dicotomia
simples entre privado e estatal deixou de ser signi cativa». A acção do capital
transnacional estatal reforçou a acção do capital transnacional privado na diluição das
fronteiras políticas.

A nova geopolítica foi sistematizada por Sam Palmisano, presidente (chairman e


president) e chief executive o cer da IBM, numa conferência proferida em 2006 no
INSEAD, um reputado instituto francês de administração de empresas. Numa primeira
fase, no século XIX, disse Palmisano, as rmas de vocação internacional tinham a sede
no país de origem e vendiam os seus produtos através de agências estabelecidas
noutros países. A segunda fase, que prevaleceu até uma época recente, caracterizou-se
por companhias multinacionais cujas liais no estrangeiro reproduziam em escala
reduzida o modelo da empresa matriz. A terceira fase, concluiu Palmisano, singulariza-
se pela «empresa integrada globalmente». Em vez de se basearem numa relação entre
sede e liais, este tipo de companhias constitui uma única entidade, integrada
horizontalmente. Algumas rmas, por exemplo a Lenovo, que no nal de 2004
comprou à IBM a divisão de computadores portáteis e de secretária e cujo maior
accionista é o governo chinês, dispensam até a noção de sede e os principais
administradores reunem-se rotativamente nas várias bases implantadas pelo mundo.
Já o World Investment Report 1993, publicado pelo Programme on Transnational
Corporations da ONU, calculara que em 1989 cerca de 1/4 ou mais dos bens produtivos
dos Estados Unidos e do Japão, cerca de 1/3 da produção no caso norte-americano e
cerca de 1/4 das vendas no caso nipónico faziam potencialmente parte de uma
estratégia transnacional de integração das actividades produtivas entre matriz e liais.
Segundo este relatório, cerca de 1/3 da produção mundial estava potencialmente sujeita
àquele tipo de integração.

Desde então a tendência integradora não parou de se desenvolver e a nova geogra a


determinada pela evolução das companhias transnacionais está por sua vez a reordenar
as relações entre os países. Por exemplo, a maior parte do comércio realizado no âmbito
da Associação das Nações do Sudeste Asiático, onde as exportações representam quase
70% do Produto Interno Bruto, não consiste em produtos acabados mas em partes e
componentes e em tarefas relativas a fases das cadeias produtivas, numa vasta rede
fabril e de serviços que se estende também à China, à Coreia do Sul e ao Japão. Deste
modo, é a própria região que funciona como um conjunto produtivo integrado. Parece-
me ser este o per l de um comércio aparentemente internacional e que na realidade é
intratransnacional.

Uma economia em que as nações e os respectivos governos


perderam a primazia e em que as companhias
transnacionais tendem a assumir a forma de uma rede de
pólos interligados e com per l mutável não pode depender
de moedas nacionais. Em 1970, enquanto as instituições
o ciais norte-americanas dispunham no estrangeiro de
cerca de 24 milhares de milhões de dólares, os particulares
dispunham já de aproximadamente 22 milhares de milhões. À força de emitir a moeda
mundial, a administração norte-americana deixara de controlá-la. Foi este facto que
ditou o desmantelamento dos acordos de Bretton Woods, reconhecido pelo
Smithsonian Agreement no nal de 1971, a data inaugural do longo processo de
reorganização nanceira que continua ainda hoje por completar. O desequilíbrio entre a
emissão nacional de moeda e a sua utilização internacional agravou-se desde então, e
nos nossos dias não se trata só de uma questão de dólares e da comparação entre os
depósitos o ciais e os particulares. Com o actual volume das transacções nanceiras, é
impossível um banco central sustentar a sua moeda se houver movimentos
sistemáticos contra essa moeda. Explícitos ou tácitos, são necessários acordos com as
companhias transnacionais.
Um segundo aspecto contribuiu para remodelar as operações nanceiras. Como os
administradores das grandes companhias transnacionais plani cam a longo prazo e é
imperioso articular entre si estes vários planos e articulá-los também com as
actividades económicas prosseguidas a curto prazo, tornou-se indispensável criar
instrumentos nanceiros que antecipem transacções futuras. Estes instrumentos
existiam nos Estados Unidos desde os meados do século XIX para os cereais, permitindo
aos agricultores precaverem-se contra a baixa dos preços das colheitas, mas só em
1972, em Chicago, o sistema se aplicou pela primeira vez ao mercado internacional de
divisas, desenvolvendo-se e expandindo-se desde então até chegar aos complexos
derivativos dos nossos dias.

Finalmente, um terceiro aspecto explica a imaginação fértil de que os gestores das


instituições nanceiras deram mostras para multiplicar o dinheiro bancário e ampliar o
crédito. A partir do começo da década de 1980 a política moderadamente in acionista,
que constituíra um dos instrumentos do keynesianismo, foi substituída pela
estabilização dos preços e pelo controlo mais estrito da emissão de moeda, que tem sido
um dos instrumentos do neoliberalismo. Esta nova política destinou-se a acompanhar
a reorganização do mercado de trabalho e as mudanças na relação entre o emprego e o
desemprego. Parece-me muito discutível que a baixa da taxa de in ação se devesse à
nova orientação seguida pelos bancos centrais, porque entretanto chegaram ao
mercado de trabalho globalizado muitos milhões de pro ssionais quali cados e
produtivos, mas com salários, em termos de dólares, bastante inferiores aos praticados
nos países desenvolvidos, o que contribuiu para uma redução mundial dos preços de
numerosos bens. Seja como for, o certo é que as autoridades monetárias adoptaram
uma política restritiva. Ora, já há meio século, em 1958, Nicholas Kaldor havia
prevenido, num memorando apresentado ao Comité Radcli e, que se as autoridades
monetárias reduzissem a emissão de dinheiro abaixo do nível requerido pela expansão
da actividade económica, as instituições bancárias privadas recorreriam a um conjunto
de medidas que deixaria sem efeito as pretensões governamentais, nomeadamente
acelerando a velocidade da circulação monetária e aumentando a criação de crédito,
tanto às empresas como aos consumidores particulares. É curioso considerar que foi
precisamente a este resultado que conduziram as teorias de Milton Friedman, o
inspirador do monetarismo neoliberal, porque ao mesmo tempo que ele defendia uma
política monetária restritiva e anti-in acionista defendia também a redução do papel
dos governos e a liberdade de actuação das empresas. Numa situação em que a
economia crescia, em que a emissão monetária central não acompanhava esse
crescimento e em que as empresas dispunham de grande liberdade de actuação, era
inevitável que o dinheiro bancário e o crédito atingissem níveis sem precedentes.

É nesta perspectiva que devemos compreender a remodelação dos mecanismos de


crédito e dos instrumentos nanceiros ocorrida nos últimos anos. Fala-se muito de
«capital especulativo», mas não existem capitais úteis e capitais inúteis, pois a função
do crédito é agilizar a produção. Em vez de ter inaugurado uma «economia de casino»,
a banca adaptou-se às necessidades do sistema produtivo actual. É certo que existem
especuladores nos meios nanceiros, mas eles existem sempre, tal como há
falsi cadores na indústria e carteiristas nos centros comerciais. Não é por aí que
podemos compreender o funcionamento da economia.

A actual crise mostrou que até instituições não bancárias foram levadas a usar os
mesmos instrumentos nanceiros empregues pelos bancos mais ousados. Deste modo,
um banco de investimentos que se limitava a ser uma unidade secundária do American
International Group, AIG, uma das maiores seguradoras mundiais, contribuiu a certa
altura para mais de 1/4 dos lucros da companhia, acabando nalmente por precipitá-la
na crise. E embora esta seguradora não fosse uma instituição bancária, se ela falisse,
arrastaria na voragem todo o sistema nanceiro, a tal ponto que a Reserva Federal
norte-americana, apesar de ter abandonado à sua sorte o banco Lehman Brothers, se
viu obrigada em Setembro e Outubro de 2008 a tomar várias iniciativas que, somadas,
resultaram no adiantamento de 153 milhares de milhões de dólares ao AIG a troco de
uma participação de 79,9% nas suas acções.

Ainda mais revelador da interpenetração da actividade bancária e dos restantes ramos


económicos é o sucedido com a General Motors, o maior fabricante de automóveis dos
Estados Unidos e até ao nal de 2007 o maior fabricante mundial, uma posição que
ocupara durante setenta e sete anos. As di culdades da General Motors datam de há
muito e resultam fundamentalmente de não ter sido capaz de se adaptar aos novos
sistemas produtivos desenvolvidos pelas rmas japonesas, que ditaram o m do
fordismo. Mas se esta companhia sentiu tão velozmente a crise, isto deve-se talvez ao
facto de só o seu departamento de crédito ao consumidor ter sido verdadeiramente
rentável. Foi em 1919 que a General Motors começou a oferecer nanciamento para a
compra dos seus automóveis, e nos meados da década de 1980 os departamentos de
crédito ao consumidor da General Motors, da Ford e da Chrysler nanciavam mais de
1/3 dos carros vendidos por estes três fabricantes, obtendo tal volume de lucros que
adquiriram outras rmas, expandiram a actividade nanceira e começaram a proceder
a hipotecas. Em 1985, se o departamento de crédito ao consumidor da General Motors
estivesse registado como banco, seria o quinto maior dos Estados Unidos. Nos
primeiros anos da década de 1990, quando a General Motors sofria um prejuízo de cerca
de 1.500 dólares por cada veículo vendido nos Estados Unidos e no Canadá, o
departamento nanceiro era um dos poucos rentáveis e contribuía para assegurar a
sobrevivência da companhia. Esta situação continuava a veri car-se em 2002, sendo
todo o rendimento líquido proveniente do ramo nanceiro. Tecnicamente, a General
Motors já não era um fabricante de automóveis, mas uma instituição bancária que
fabricava automóveis para proceder a operações de crédito. Nos dois anos seguintes a
produção de veículos voltou a ser rentável, mas sem que por isso os lucros da
companhia deixassem de depender sobretudo do departamento nanceiro. Ora, em
2008, quando entrou em crise o consumo das famílias norte-americanas e as dívidas
começaram a não ser pagas, o departamento nanceiro da General Motors sentiu as
mesmas di culdades das instituições hipotecárias, cando a companhia sem a muleta
habitual. Embora pertença à «economia real» que tantos comentadores gostam de
mencionar, a indústria automobilística nem por isso deixou de ser atingida como uma
instituição nanceira.

Uma curiosa miopia levou boa parte da esquerda a protestar contra a intervenção dos
governos e dos bancos centrais para salvar instituições nanceiras cuja falência
colocaria a globalidade da economia em perigo, juntando-se assim aos que na direita
liberal invocaram a liberdade de mercado e consideraram que seria preferível deixar os
bancos falirem. Ora, mesmo tendo em conta a expansão da subcontratação na produção
de bens materiais e não materiais, a interdependência das rmas é ainda maior no
sector nanceiro, onde a queda brusca de um banco, em vez de representar um
aumento da clientela dos concorrentes, é considerada como uma ameaça para todos
eles. E como o crédito é indispensável às restantes actividades, o agravamento da crise
nanceira teria precipitado toda a economia na catástrofe, com custos muitíssimo
superiores aos que resultaram das intervenções governamentais. O plano apresentado
em Setembro de 2008 pelo secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Hank Paulson, e
pelo presidente da Reserva Federal, Ben Bernanke, previa originariamente o emprego
de 700 milhares de milhões de dólares para socorrer o sistema nanceiro do país, uma
quantia que representa cerca de 6% do Produto Interno Bruto; mas é preciso recordar
que, segundo um estudo realizado por dois economistas do Fundo Monetário
Internacional, Luc Laeven e Fabian Valencian, as crises bancárias têm em média
implicado um custo equivalente a 16% do Produto Interno Bruto. Como qualquer aluno
do primeiro ano de Economia sabe que os bancos centrais foram criados precisamente
para impedir os pânicos nanceiros e os colapsos bancários, e também não ignora com
que consequências catastró cas a Reserva Federal norte-americana deixou que
falissem centenas de bancos no começo da grande depressão da década de 1930, admito
que os políticos que tomaram aquela atitude, tanto os que se reclamam do marxismo
como os adeptos do livre mercado, o zessem não por incompetência mas por
demagogia. Se em vez de estarem na oposição estivessem no governo o seu discurso
seria outro, mas isto di cilmente os quali ca para delinearem os termos da nova
regulamentação requerida pela actividade bancária.

Existem hoje os meios económicos, existem os


instrumentos nanceiros, mas falta-lhes a coordenação. Os
mecanismos reguladores mostram-se inadequados às
necessidades.

A criação dos novos tipos de crédito e de dinheiro bancário


ocorreu inevitavelmente no mesmo âmbito transnacional da
actividade produtiva. E se bem que a desregula- mentação a
que se procedeu gradualmente desde o Smithsonian Agreement de 1971 tivesse
representado a superação dos limites nacionais, como não se foram ao mesmo tempo
estabelecendo no plano supranacional instituições supervisoras o ciais, os órgãos
nacionais remanescentes não cumpriram cabalmente a sua função. Ao contrário do que
é comum a rmar, não creio que a actual crise tivesse sido precipitada pelo carácter
demasiado ousado dos instrumentos nanceiros mas, em vez disso, pelo carácter
demasiado arcaico a que se têm circunscrito as instituições o ciais. Ficou patente a
inadequação dos organismos de base nacional perante uma actividade económica
transnacional. Igualmente grave é o facto de as Agências de Avaliação do Crédito de
escopo supranacional, como a Moody’s e a Standard & Poor’s, serem empresas privadas
estreitamente ligadas às administrações dos bancos e terem tanto mais lucros quanto
maior é a prosperidade do sistema bancário.
Desde há vários anos que o Banco de Pagamentos Internacionais, estabelecido em
Basileia em 1930 para funcionar como banco dos bancos centrais, tem insistido na
necessidade de os governantes levarem em consideração os indicadores económicos
globais e não apenas nacionais e de a supervisão bancária se preocupar com o conjunto
do sistema nanceiro e não só com rmas isoladas. No entanto, a regulamentação da
actividade bancária proposta em 2004 no âmbito deste Banco e comummente
denominada Basileia 2 ilustra mal estas preocupações, em primeiro lugar porque a sua
implementação, embora visasse o sistema nanceiro transnacional, foi con ada às leis
de cada país e em segundo lugar porque atribuiu aos próprios administradores dos
bancos o encargo de avaliarem os riscos. Mais recentemente, Andrew Gracie, um
especialista britânico de regulamentação bancária, declarou que a principal de ciência
consistiu no facto de os órgãos scalizadores terem considerado que, se cada
instituição bancária parecesse segura, o sistema estaria livre de risco. Ora, argumentou
Gracie, como todos os bancos tendem a deter o mesmo tipo de activos, a crise de um
banco pode arrastar a dos demais, sendo portanto necessário instaurar uma
regulamentação que leve em conta, além da posição de cada banco, as vulnerabilidades
da globalidade do sistema. Análises deste tipo têm implicações profundas, porque a
admissão de que a macroeconomia não consiste numa mera soma de microeconomias
constitui uma renúncia a um dos postulados fundamentais do neoliberalismo.

Gerir nas fronteiras nacionais uma economia transnacionalizada teria como resultado a
adopção de medidas proteccionistas que, se hoje se generalizassem, provocariam uma
profunda depressão económica. A crise só pode ser superada numa escala global, e o
impasse agravar-se-á se a recente intervenção dos governos destinada a impedir a
falência das instituições nanceiras acentuar as clivagens entre países em vez de criar
órgãos de regulamentação supranacionais. Nestas circunstâncias, o que sucederá se o
crédito bancário não obedecer aos estímulos governamentais e, tendo recebido fundos
colossais, persistir em usá-los exclusivamente na solução dos seus próprios problemas
de liquidez a curto prazo? Assumirão os Estados uma posição neste sector? Se o
zerem, não agravarão a discrepância entre os limites nacionais e a
transnacionalização da economia? Nos Estados Unidos a Reserva Federal encarregou-
se agora pela primeira vez de proceder directamente ao crédito a consumidores
individuais, ainda que estes possam não saber a quem na realidade estão a pagar os
juros das hipotecas. E a dimensão atingida pelas participações governamentais nas
instituições nanceiras intervencionadas impedirá que, debelada a crise, os Estados
possam colocar rapidamente no mercado esse enorme volume de acções sem as
depreciar. Na perspectiva de um prolongamento desta modalidade de capitalismo de
Estado, fala-se agora em reforçar a acção reguladora dos governos, e até a Reserva
Federal norte-americana aumentou discretamente a sua capacidade de intervenção.
Mas é necessário não esquecer que se a actual crise pôde de agrar devido à
insu ciência dos órgãos nacionais para scalizar um sistema nanceiro que os
ultrapassava, a atribuição de maiores poderes a esses órgãos não resolve o problema
dos seus limites nacionais.

Para o capitalismo a questão é ainda mais grave porque, estando as nações caducas
enquanto quadro económico e, portanto, estando secundarizados os governos
nacionais, ca posta em causa a base das instituições interestatais. Algumas delas
subsistem tal como foram delineadas nos acordos de Bretton Woods, outras sofreram
adaptações que não lhes alteraram a substância, enquanto o grande capital as
ultrapassou todas no seu desenvolvimento. Na verdade, as companhias transnacionais
pretenderam aproveitar o melhor de dois mundos, assumindo na prática um papel de
instituições públicas mas continuando nos termos da lei a apresentar-se como
privadas. Em 1992 o Banco Mundial adoptou as Guidelines on the Treatment of Foreign
Direct Investment, um documento aceite pelas administrações do Banco Mundial e do
Fundo Monetário Internacional após consultas com os governos interessados, outras
organizações internacionais, grupos de homens de negócios e associações jurídicas
internacionais. Mas além de se tratar de um conjunto de recomendações de base
meramente voluntária, visava regular apenas a actividade dos governos e não a das
rmas transnacionais. Nessa ocasião o Banco Mundial esclareceu que as Guidelines
constituem «princípios gerais propostos para orientar o comportamento dos governos
relativamente aos investidores estrangeiros; não incluem regras de boa conduta por
parte dos investidores estrangeiros». Este segundo aspecto vinha então a ser negociado
desde há década e meia no quadro do United Nations Code of Conduct on Transnational
Corporations, mas depois de contactos informais em Julho de 1992 as delegações
concluíram que era impossível chegar a um consenso e cancelaram todo o esforço
negocial. Ficou assim criado deliberamente o vazio jurídico em torno das companhias
transnacionais, e esta situação permitiu que a actual crise assumisse grandes
proporções.
A gura-se-me que para o capitalismo o caminho mais viável consiste numa articulação
entre as maiores rmas transnacionais e novos órgãos supranacionais saídos das
instituições internacionais actualmente existentes. Os bancos centrais podem aqui
servir de modelo, porque nasceram da necessidade de conjugar de uma maneira
discreta a acção dos Ministérios das Finanças com a acção dos bancos privados. Aliás, a
independência dos bancos centrais relativamente aos respectivos governos continua a
ser um requisito desse objectivo, e é possível conceber que alguma coisa semelhante
venha a surgir numa escala supranacional. De certo modo, tratar-se-ia de fazer o que a
China faz já no âmbito da sua economia, juntando o capitalismo de Estado e as
empresas privadas num único mecanismo de tomada de decisões, consagrado pela
admissão dos capitalistas privados como membros de um Partido que continua,
evidentemente, a chamar-se Comunista. Também aqui parece que é o capitalismo
chinês a indicar o rumo.

O certo é que os governantes, se por um lado adoptaram nos respectivos quadros


nacionais medidas para debelar a crise, por outro lado reconheceram também a
necessidade de tomar iniciativas no plano supranacional. É signi cativo que em 29 de
Setembro de 2008 o Banco Central Europeu, o Banco de Inglaterra e o Banco do Japão
tivessem ajudado a Reserva Federal norte-americana a ampliar a sua intervenção nos
mercados monetários. E pouco depois, a 8 de Outubro, numa semana em que o sistema
nanceiro mundial quase deixou de funcionar, as principais instituições bancárias
centrais, incluindo a dos Estados Unidos, as da União Europeia e a da China,
coordenaram a baixa das suas taxas de juro. Mas as decisões a meu ver mais
importantes referem-se ao plano directamente supranacional, não apenas
internacional, e neste sentido é notável que a 15 de Novembro de 2008, em Washington,
a reunião dos governantes das vinte maiores economias, representando em conjunto
quase 90% do Produto Interno Bruto mundial, tivesse emitido um comunicado nal
que, nas palavras de The Economist, constituiu «um reconhecimento pragmático da
tensão existente entre um mercado de capitais globalizante e uma regulação nacional».
Com efeito, decidiu-se criar conselhos de supervisores destinados a inspeccionar as
maiores instituições nanceiras transnacionais, e para facilitar a tarefa decidiu-se
instaurar um padrão de contabilidade único em todo o mundo. Igualmente marcante foi
a decisão de ampliar o escopo dos participantes do Fórum de Estabilidade Financeira,
um organismo criado em 1999 no quadro do Banco de Pagamentos Internacionais, que
reúne as principais autoridades nanceiras de uma dúzia de países bem como várias
organizações económicas internacionais e se encarrega de aspectos técnicos da
supervisão nanceira. Com a mesma inspiração aquela reunião anunciou a necessidade
de reorganizar o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

Já antes se falava em aumentar as verbas de que dispõe o Fundo Monetário


Internacional, preparando-o para enfrentar os mercados globais, e também é verdade
que na presente crise o Fundo se tem mostrado mais exível e menos exigente do que
foi no passado. Mas os problemas aqui não decorrem só da escassez de verbas, e
sobretudo da estrutura interna do Fundo, que a hegemonia norte-americana impede de
ser verdadeiramente internacional e muito menos supranacional. Nas circunstâncias
actuais é impossível ampliar as somas à disposição do Fundo sem recorrer à China. Ora,
a reorganização operada no Fundo em Abril de 2008 aumentou o poder de voto da China
para apenas 3,81%, um estatuto ridículo quando comparado com a importância
económica do país, e as autoridades chinesas pronunciaram-se discretamente quanto à
necessidade de pôr cobro ao controlo de facto exercido por Washington sobre aquela
instituição. Mas depois da reunião dos vinte países em 15 de Novembro de 2008 a
administração norte-americana continuou a mostrar-se avessa a qualquer
remodelação do Fundo Monetário Internacional.

Tudo somado, talvez esta não seja já a época das grandes reformas sistemáticas do
capitalismo, ao estilo do New Deal implementado nos Estados Unidos durante a
administração do presidente Franklin Delano Roosevelt ou do Welfare State instaurado
em alguns países europeus após a segunda guerra mundial, quando prevalecia a
autoridade dos governos nacionais. É possível que agora o capitalismo resolva os seus
problemas através de medidas que, embora pontuais e dispersas, visem aspectos
decisivos e sejam tomadas de maneira discreta, em resultado de acordos entre os
administradores das maiores empresas e os tecnocratas dos Ministérios das Finanças e
da Economia, dos bancos centrais e do Banco de Pagamentos Internacionais, longe dos
olhos do público. Se assim for, então nós, cidadãos comuns, teremos de aprender a ver
através das paredes se não quisermos padecer de cegueira.

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