Você está na página 1de 4

Chakrabarty – Antropocene Time

Há muitos sentidos do termo “Antropoceno” no debate contemporâneo. Trata-se, inclusive, do


único conceito de periodização geológica que foi disseminado entre os pesquisadores das
humanidades, isto é, sem formação ou treinamento em estratigrafia.

No campo da história, o debate sobre o antropoceno gera um “constante tráfico conceitual


entre Earth history e world history”. Segundo o autor, vivemos num tempo único na história,
em que eventos de escala geológica são conectados com acontecimentos da vida cotidiana dos
indivíduos, coletividades, instituições e nações. Assim, o debate sobre o antropoceno nos
exige pensar em duas escalas de tempo vastamente diferentes.

No entanto, é o tempo da world history que predomina nos debates. O “tráfico conceitual” na
verdade é unilateral, pois a tendência é ignorar a escala temporal geológica. Chakrabarty
referencia o geólogo Zalasiewicz, para quem o tempo geológico é “simply time”. Chakrabarty
interpreta positivamente essa afirmação como mote para propor uma tensão entre “human-
centered and planet-centered thinking”.

Nessa mesma linha, o debate sobre o Antropoceno apresenta um forte acento na questão
moral. Esse acento requer uma tradução de ideias e conceitos ligados às ciências da terra para
a “world history”. Isso se dá em dois pontos: a tradução de “força” (física) para “poder”
(categoria humana-existencial); e correlativamente o deslocamento do problema do
antropoceno do reino do tempo geológico para o tempo humano (world history).

“The displacement of the category of physical force onto the historical-existential category of
power is visible in the writings of two groups of scholars and/ or activists: those who want to
assign culpability for the offense of creating the global environmental crisis, and those who
seek in the crisis of global warming an ethical horizon for the future of humanity as a whole.
Sometimes, we may find both tendencies in the same text” (p.9).

A essa altura o autor destaca um tratado de dois ativistas indianos (Agarwal e Narain), que
segundo Chakrabarty foram os primeiros a apontar para o risco de um “colonialismo
ambiental”, que poderia perpetuar as desigualdades globais ao restrigirem o crescimento dos
países em desenvolvimento, além de ignorar o peso diferenciado que alguns países
(especialmente EUA) têm para a crise climática. Chakrabarty interpreta esse argumento como
uma estratégia para dar uma vida mais longa ao “developmental regime of historicity”, e que,
por outro lado, enquadra a questão do antropoceno dentro dos limites da world-history.

Esse é apenas um exemplo de vários que Chakrabarty menciona para ilustrar seu argumento,
qual seja, da tradução de força para poder e o enquadramento do debate do antropoceno nos
termos da world history. Essa tradução visa acentuar a dimensão ética do debate, pois só nos
termos do “tempo humano” (e não geológico) é que se pode falar de “esperança” ou
“desespero”. Assim, se a “humanidade” (entendida como um agente unificado) se tornou
capaz de exercer uma força em escala geológica, então a tarefa ética é tornar essa força
consciente. Aqui, a perspectiva de pensar a história da espécie é retomada através de outros
autores (citados positivamente).
O autor interpreta o tempo da world history nos termos de Koselleck. “The time of world
history is, ultimately, the same as what Reinhart Koselleck identified as the time of human
history” (p.15). Esse tempo engendra formas de afetividade que não são os mesmos no caso
do tempo geológico. “This is what climate change as “world history” is: a stage for the play of
various human emotions including those of hope and despair” (p.17). Já no caso do tempo
geologic, não haveria propriamente espaço para a produção de afetos e emoções.

Trata-se, então, de pensar essa dimensão do tempo que tende a ser obliterado nos debates
em história. “How then does the question of “simple” geological time—time to which Earth
system history with its million-year carbon cycles properly belongs—erupt in this landscape of
understanding that constantly relocates both the ideas of humans wielding a geophysical force
and the new geological epoch of the Anthropocene in the affective past, present, and future of
human power and responsibility?” (p.17).

Ainda assim, quando pensamos nos impactos que a ação humana impõe sobre o planeta, é
virtualmente impossível fugir completamente da discussão moral. “This is clearly the reason
why the Anthropocene, perhaps, is the only suggested name of a geological period that has
critically engaged—if not outraged—many scholars in the human sciences” (p.18). O autor cita
o exemplo da antropóloga Kathleen Morrison, que apontou a necessidade de “provincializar o
antropoceno”, no sentido de expor o eurocentrismo implícito do conceito – ou seja, que o
Antropoceno teria começado com a revolução industrial inglesa. Trata-se de pensar também
em outros começos do antropoceno. Chakrabarty cita também a proposta de dois geógrafos
ingleses, Lewis e Malsin, que propuseram a data de 1610 como o início, isto é, na era do
colonialismo, comércio global e início da utilização do carvão.

“But the Anthropocene, so long as it is seen as a measure of humans’ impact on the planet,
can have only plural beginnings and must remain an informal rather than a formal category of
geology, capable of bearing multiple stories about human institutions and morality.” (p. 20).
Esse problema, reforça o autor, não pode ser separado de uma discussão política e moral.

“Zalasiewicz’s paper, which I began with, is of interest in this debate for this very reason: it
removes—perhaps for the first time in the decade-old controversy about the Anthropocene—
the cobweb (or should I say, the human web) of world-historical time to bring into view what
he calls the time, “simply,” of geology” (p.20). Esse geólogo aponta como “tarefa primeira” a
questão de saber se há uma unidade estratigráfica que pode ser reconhecida como um corpo
material para a era antropocênica. Pois do ponto de vista do geólogo, a questão crítica não
passa pelo problema moral ou político, mas sim pelo problema de saber se o sistema
planetário está reconhecidamente (recognizably) mudando. Em suma: o importante não é
saber quem é o agente da mudança, mas sim se o impacto na litosfera está mudando.

Esse retorno a Zalasiewicz se inscreve na sua proposta de pensar o antropoceno a partir da


dualidade “human-centered” e “planet-centered” thinking. Pois as abordagens centradas no
homem (world history) ignoram a dimensão “simples” do tempo que converia à geologia.

O tempo geológico não é simplesmente tempo matemático, mas é fundamentalmente


material, pois não há tempo geológico sem objetos geológicos. Seja como for, essa dimensão
do tempo foi tradicionalmente visto como o oposto do tempo humano (o autor remete a
Agostinho, Buffon e Darwin aqui), no sentido de esse tempo se encontrar para além dos
limites da imaginação humana, isto é, onde a historicidade do tempo (que o autor entende
como a tensão entre experiência e expectativa) cessa de funcionar.

Um exemplo desse pensamento planetocêntrico se refere ao problema da habitabilidade do


planeta: o ser humano é realmente necessário para a evolução do sistema planetário? Ele
ocupa um lugar necessário para que o planeta se torne habitável? Com isso o autor quer
destacar que nessa maneira de pensar, o protagonista da história seja o próprio planeta como
sistema, não o homem. “The time of such history is the time of geology, vast and
incomprehensible in terms of the concerns of human history though it is available to our
cognitive and affective faculties.” (p.25). O Antropoceno, assevera o autor (seguindo
Zalasiewicz), pertence a essa ordem do tempo. Assim o autor contesta as abordagens
“antropocêntricas” sobre o antropoceno.

Esse antropocentrismo não é exclusividade dos discursos de cientistas humanos, mas também
aparece entre os cientistas da Terra. Estes, aliás, constroem os seus textos a partir de duas
vozes simultaneamente: human-centered e planet-centered. “There is the vast story of life on
this planet and the general questions of habitability of a planet, questions to which humans
are not central. But there is also the theme of the impact of human activities on the Earth.”
(p.25).

Chakrabarty aponta alguns críticos do discurso do aquecimento global como um evento


geológico e uma responsabilidade humana por trazer o perigo da destruição da política. Isso
porque a escala temporal do antropoceno transcenderia, segundo esses críticos, qualquer
possibilidade de ação política, isto é, anestesiaria a ação política. “What they overlook,
however, is that their indictment of consumerism and capitalism shares the same temporal
ground with arguments that look for a solution to the Anthropocene in policies advocated by
climate science and a collective sense of responsibility” (p.28). Com todas as suas diferenças, o
que é comum a ambos os discursos é o fato de estarem assentados exclusivamente na escala
temporal da world history.

Assim, mais uma vez, o tempo geológico se obscurece. Esse obscurecimento se dá quando se
deturpa a noção de agência implicada na ideia de antropoceno. Isto é, quando se substitui
uma agência bastante multifacetada por um tipo de agente autônomo (seja “único”, seja uma
classe particular) para o qual pode ser atribuído uma responsabilidade e culpabilidade.
Ocorreria aí uma espécie de sinédoque: “In other words, the mode of being in which humans
collectively may act as a geological force is not the mode of being in which humans—
individually and collectively—can become conscious of being such a force” (p.28).

Esse deslocamento passa pelo seguinte: se as ciências da Terra trata de observar processos
planetários e descrever não um sujeito mas um tipo de “se” (it) que é necessariamente plural
em sua constituição interna, a tradução desse “it” tende a ser feita por um “eu” (I) a quem se
poderia atribuir uma agência consciente portanto responsável. Uma consequência disso é
minimizar a possibilidade de pensar a partir do ponto de vista centrado no planeta e nos seus
sistemas, em favor de uma perspectiva estritamente antropocêntrica.
Assim, o Antropoceno tem o condão de desafiar a política, ou melhor, de fazer com que os
humanistas abracem o não-humano. Melhor ainda, o antropoceno coloca a possibilidade de
pensar uma história em que os humanos desempenham apenas uma parcela e que nem
sempre estão no comando. Como “habitar” essa outra narrativa é uma questão que
permanece, mas pode-se vislumbrar aí a possibilidade de reconfigurar a relação homem-
natureza.

Um dos obstáculos aí é a presença de uma concepção tradicional de política, antropocêntrica.


“Political thought has so far been human-centric, holding constant the “world” outside of
human concerns or treating its eruptions into the time of human history as intrusions from an
“outside.” This “outside” no longer exist” (p.29). A política não pode mais ser uma questão
exclusive dos humanos; mas ainda não somos capazes de pensar a política fora desse “limite”.

“Anthropocene time puts pressure on another question: What does it mean to dwell, to be
political, to pursue justice when we live out the everyday with the awareness that what seems
“slow” in human and world-historical terms may indeed be “instantaneous” on the scale of
Earth history, that living in the Anthropocene means inhabiting these two presents at the same
time? I cannot fully or even satisfactorily answer the question yet, but surely we cannot even
begin to answer it if “the political” keeps acting as an anxious prohibition on thinking of that
which leaves us feeling “out-scaled.” (p.30).

Tal tarefa coloca muitos desafios, inclusive o de reconsiderar toda a tradição filosófica. Husserl
falava da “certeza ôntica” do mundo, e que existir já pressupõe essa certeza. A crise climática
teria colocado em cheque essa certeza, na medida em que na própria cotidianidade ideias
como o antropoceno tendem a estar cada vez mais presente. “The Anthropocene disturbs that
certainty by bringing the geological into the everyday.” (p.31).

No parágrafo final, uma resposta (historiadora) a uma questão de Wittgenstein.

Você também pode gostar