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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL


AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA

Revista Brasileira de Inteligência

ISSN 1809-2632
REPÚBLIC
REPÚBLICA A FEDERA
FEDERATIVTIV
TIVAA DO BRASIL
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL
Ministro Jorge Armando Felix
AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA
Diretor-Geral Wilson Roberto Trezza
SECRET ARIA DE PL
SECRETARIA ANEJAMENTO
ANEJAMENTO,, ORÇAMENTO E ADMINISTRAÇÃO
PLANEJAMENTO
Secretário Luizoberto Pedroni
ESCOL
ESCOLA A DE INTELIGÊNCIA
Diretora Luely Moreira Rodrigues

Comissão Editorial da Revista Brasileira de Inteligência


Ana Beatriz Feijó Rocha Lima; Eliete Maria de Paiva; Osvaldo Pinheiro; Olívia Leite Vieira; Paulo P. Sousa; Saulo
Moura da Cunha; G. Oliveira; Delanne Novaes de Souza; Paulo Roberto Moreira
Jornalista Responsável
Osvaldo Pinheiro – SJPDF 20369
Capa
Wander Rener de Araujo e Carlos Pereira de Sousa
Editoração Gráfica
Jairo Brito Marques
Revisão
Lúcia Penha Negri de Castro; Caio Márcio Pereira Lírio; Geraldo Adelano de Faria
O texto “Os Fundamentos do Conhecimento de Inteligência” foi revisado por Denise Goulart
Catalogação bibliográfica internacional, normalização e editoração
Coordenação de Biblioteca e Museu da Inteligência - COBIM/CGPCA/ESINT
Disponível em: http://www.abin.gov.br
Contatos:
SPO Área 5, quadra 1, bloco K
Cep: 70610-905 Brasília – DF
Telefone(s): 61-3445.8164 / 61-3445.8427
E-mail: revista@abin.gov.br
Tiragem desta edição: 3.000 exemplares.
Impressão
Gráfica – Abin

Os artigos desta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões emitidas não exprimem, necessariamente,
o ponto de vista da Abin.
É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta revista, desde que citada a fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Revista Brasileira de Inteligência / Agência Brasileira de Inteligência. – n. 5


(out. 2009) – Brasília : Abin, 2006 -
102p.
Semestral
ISSN 1809-2632
1. Atividade de Inteligência – Periódicos I. Agência Brasileira de
Inteligência.

CDU: 355.40(81)(051)
Sumário
5 Editorial

7 CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A INTELIGÊNCIA E


SEUS USUÁRIOS
Leonardo Singer Afonso

21 DECORRÊNCIAS DA UTILIZAÇÃO DA INTERNET POR ORGANIZA-


ÇÕES TERRORISTAS: o recurso da comunicação tecnológica como pro-
posta de mudança não-democrática de poder
Romulo Rodrigues Dantas

29 BRAZIL’S ROLE IN THE FIGHT AGAINST TERRORISM


Delanne Novaes de Souza

39 MUDANÇAS CLIMÁTICAS : Inteligência e Defesa


Uirá de Melo

57 A ATIVIDADE OPERACIONAL EM BENEFÍCIO DA SEGURANÇA


PÚBLICA: o combate ao crime organizado
Cristina Célia Fonseca Rodrigues

65 DESCRIMINALIZAÇÃO DO DELITO DE POSSE DE ARMAS NO BRASIL


Douglas Morgan Fullin Saldanha

75 A SOBERANIA BRASILEIRA, A GRÃ-BRETANHA E A QUESTÃO DO


ESCRAVISMO DURANTE A GUERRA DO PARAGUAI: um caso de
Contrainteligência?
Miguel Alexandre de Araújo Neto

87 OS FUNDAMENTOS DO CONHECIMENTO DE INTELIGÊNCIA


Josemária da Silva Patrício

101 Resenha
The Last Forest: The Amazon in the age of globalization
Romulo Rodrigues Dantas
Editorial

Desde a instituição do Sistema Brasileiro de Inteligência e a criação da Agência Brasilei-


ra de Inteligência em 1999, está em curso, com a participação de órgãos integrantes do
Sistema, um processo de construção de caminhos que conduzam à efetividade e eficá-
cia da atividade de Inteligência no país.

Assim, como parte de um projeto de consolidação do Sistema, fortalecimento da atividade


de Inteligência e concretização do papel de coordenação da ABIN, várias ações são
desenvolvidas pela Direção-Geral, Departamentos e demais unidades da instituição.

Dentre elas insere-se a edição da Revista Brasileira de Inteligência – RBI, cuja proposta
principal é disseminar conhecimento sobre os diversos temas inerentes ao desempenho
da atividade de Inteligência e proporcionar espaço aos profissionais para a exposição e
compartilhamento de suas ideias. Espera-se ainda que a publicação desperte em seus
leitores a reflexão sobre muitos aspectos que envolvem uma atividade tão complexa
quanto antiga e estratégica como é a atividade de Inteligência.

O filósofo romano Sêneca afirmou: “Não há vento favorável para aquele que não sabe
aonde vai”. A Inteligência deve ser a bússola do decisor. E assim tem sido desde as
épocas mais remotas até os dias atuais. A atividade perpassa toda a história e se
contextualiza conforme fatores predominantes: as guerras, as estratégias nacionais, os
fenômenos sociais, as relações internacionais, a economia.

Tal fato comprova a vitalidade da atividade e impõe que os profissionais que escolhe-
ram laborar na Inteligência estejam sempre empenhados em enriquecer seus conheci-
mentos em prol do incremento da qualidade do trabalho, aqui compreendido todo o
processo de produção do conhecimento de Inteligência – planejamento, ações
operacionais, análise, difusão.

A Revista Brasileira de Inteligência, desde o seu primeiro número, constitui-se em ins-


trumento para essa melhoria, na medida em que busca trazer para um público variado,
artigos de servidores e colaboradores que se debruçaram sobre temas que proporcio-
nem a aquisição ou o acréscimo de conhecimento sobre Inteligência.

E é dentro dessa proposta que se insere esta edição da Revista, por meio de textos que
tratam da relação entre a Inteligência e seus usuários; da utilização da internet por
organizações terroristas; do papel do Brasil na luta contra o terrorismo; da ação da
Inteligência e da Defesa em decorrência das mudanças climáticas; da atividade operacional
em favor da segurança pública; da descriminalização do delito de posse de armas no

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 5


Brasil; das relações entre a Grã-Bretanha, o Brasil e o escravismo na Guerra do Paraguai;
e, dos fundamentos do conhecimento de Inteligência; além de resenha do livro The last
forest: the Amazon in the age of globalization.

Esta edição também inaugura uma nova fase da RBI, marcada pela inovação, que vai
desde a elaboração de uma capa totalmente remodelada até a diagramação e o leiaute
interno da obra, sempre buscando tornar agradável a experiência de ler a Revista Brasi-
leira de Inteligência. É por isso que as inovações não vão parar neste número: as próxi-
mas edições trarão mais novidades e o compromisso de periodicidade semestral que,
por motivos alheios à RBI, não foi possível manter no biênio 2008/09.

Por isso, conclamo todos aqueles que já participaram da elaboração da Revista Brasilei-
ra de Inteligência e aqueles que pretendem colaborar com as edições futuras para con-
tinuarem alimentando este projeto, que tem o especial propósito de difundir conheci-
mento de qualidade e, por conseguinte, obter reconhecimento à atividade e aos profis-
sionais de Inteligência. Aproveite a leitura e, se desejar, envie comentários para
revista@abin.gov.br.

Luely Moreira Rodrigues


Diretora da Escola de Inteligência/Abin

6 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


CONSIDERAÇÕES SOBRE A REL AÇÃO ENTRE
RELAÇÃO
A INTELIGÊNCIA E SEUS USUÁRIOS

Leonardo Singer A
Leonardo fonso
Afonso

Resumo

O nível em que se apresentam a importância e a qualidade do serviço de inteligência para o


Estado reflete-se na consolidação de um relacionamento intenso, porém prudente, abrangendo
produtores e usuários de inteligência. Tecer tal relação requer cautela, uma vez que ela deverá
esta alicerçada em um distanciamento ideal entre os atores envolvidos, capaz de preservar a
imparcialidade das análises e a oportunidade dos temas tratados.

Introdução
Introdução apontam o estudo das patologias que re-
sultam do relacionamento entre Inteligên-

D esde os primórdios da
institucionalização da atividade de In-
teligência, foram insuficientes os esforços
cia e seus usuários como fundamental para
a formação dos profissionais deste ramo
e para garantir o aperfeiçoamento gradu-
para teorizá-la. Provavelmente, tal ausên-
cia de produção acadêmica foi efeito ema- al da atividade. Levando-se em conta que
nado da aura de secretismo que envolveu a atividade é um ofício de assessoria,
este ramo governamental durante todo o depreende-se que não haveria uso para a
período da Segunda Guerra Mundial e da Inteligência sem que ela estivesse apro-
Guerra Fria. Não obstante, países que vis- priadamente incluída no processo
lumbram a Inteligência além do estigma da decisório, o que só é possível caso a rela-
espionagem e das operações clandestinas, ção entre produtores e usuários seja in-
como os Estados Unidos e Grã-Bretanha, centivada e gerida de maneira eficaz e
produziram importantes autores, em sua
responsável. Não obstante, a discussão
maioria membros e ex-membros da comu-
sobre o tema é preterida em benefício de
nidade de Inteligência, que, a partir da dé-
cada 90, iniciaram a conceituação do tema tópicos relacionados à esfera da coleta,
e o estudo de suas peculiaridades com o da análise e dos métodos de análise.
objetivo de teorizá-lo.
Os benefícios provenientes da manuten-
Entre uma variada gama de assuntos, as ção de certa distância ou do esforço pela
principais referências acadêmicas na área aproximação entre Inteligência e

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 7


Leonardo Singer Afonso

policymakers1, têm sua fundamentação parte das concepções que utilizei origi-
lógica, que explicita a necessidade da bus- na-se da experiência norte-americana no
ca por um equilíbrio entre a relevância e setor devido à suas relativas similaridades
a independência das análises. Todavia, com a conformação do Sistema Brasileiro
também apontam para riscos inerentes tais de Inteligência e os propósitos da Agên-
como a politização da atividade e a ame- cia Brasileira de Inteligência, em termos
aça de torná-la irrelevante. estruturais2 e conceituais3.

A intenção deste trabalho não é eleger 1 Dois atores em cena


um posicionamento ideal, em que riscos
e benefícios estejam equilibrados a ponto Sob o ponto de vista norte-americano, o
de tornar a Inteligência um exemplo de que se denomina “atividade de Inteligên-
virtuosidade institucional, mas apresentar cia” - no âmbito governamental - está in-
a questão e os problemas que gravitam trinsecamente relacionado à idéia de pro-
em seu entorno, com a finalidade de in- dução de conhecimento com o objetivo
centivar a reflexão e o debate sobre a ati- de assessorar o processo decisório de um
vidade e, concomitantemente, ampliar o ou mais policymakers. Tal posicionamento
entendimento dos usuários dos produtos está claramente expresso no parágrafo de
de Inteligência. abertura do Guia do usuário de Inteligên-
cia, publicado pela Agência Central de
Em primeiro lugar, cabe contextualizar a Inteligência (CIA) dos Estados Unidos:
Inteligência como atividade de assessoria
ao processo decisório, identificar os prin- Grosso modo, Inteligência é o
cipais atores na interação entre Inteligên- conhecimento e a presciência sobre o
cia e centro decisório e observar como e mundo que nos cerca. Do ponto de vista
em que medida a Inteligência pode influ- dos policymakers, é o prelúdio da decisão
enciar a decisão e vice-versa. O objetivo e da ação. As organizações de Inteligência
desta parte inicial é destacar a importân- provêm informação trabalhada e formatada
cia da manutenção de uma relação para auxiliar usuários, sejam eles líderes
simbiótica entre produtor e usuário para, civis ou comandantes militares, a
em seguida, na parte final, podermos considerarem linhas de ação e resultados
analisá-la mais a fundo e apontar tendên- alternativos.4
cias, vantagens e desvantagens.
Alguns acadêmicos restringem
É importante destacar que o conceito de conceitualmente a atividade de Inteligên-
Inteligência como atividade acessória não cia ao campo tático-estratégico dos as-
é comum a todas as nações, e menos ain- suntos militares e de segurança nacional.
da é a configuração da estrutura na qual Para eles, o cerne dos serviços de Inteli-
esta atividade é inserida. Por isso, grande gência consistiria na ‘disputa silenciosa’

1
Evitei traduzir o termo policymaker. No decorrer do texto referir-me-ei a ele também como
‘usuário’, ‘cliente’ e ‘decisor’, substantivos que definem o papel do policymaker em relação à
inteligência e o posicionam dentro do processo de produção de conhecimento.
2
Modelo constituído por comunidade de Inteligência com a presença de agência central.
3
Visão de Inteligência como instrumento de assessoria que transcende o sigilo, as atividades
de espionagem e as operações clandestinas, e com escopo que alcança além das questões
imediatas de segurança nacional.
4
Guia do usuário de Inteligência, Central Intelligence Agency - USA (2003).

8 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Considerações sobre a relação entre a Inteligência e seus usuários

entre as nações e enfatizaria a espiona- Sherman Kent (1949), que serviu como
gem, as ações clandestinas, a contra-in- analista de Inteligência no Office of
teligência e a desinformação5. Todavia, a Strategic Services e no Office of National
atuação dos serviços de Inteligência pode Estimates (CIA), foi também um pioneiro
extrapolar o campo da defesa em função no estabelecimento de métodos para a
análise de informações. Diz o autor, criti-
das prioridades dos policymakers6. Inde-
cando um eventual descaso do decisor
pendente da delimitação do escopo de
pela análise de Inteligência, que “... não
suas análises, os serviços de Inteligência pretendo desqualificar todo tipo de intui-
são basicamente organismos de assesso- ção e de palpite com o pretexto de que
ria e têm como propósito influenciar re- são todos igualmente arriscados, pois exis-
motamente a ação governamental com a tem intuições baseadas em conhecimen-
finalidade de torná-la racional. Neste sen- to que são objetos da mais pura verdade.
tido, para dar bases sólidas ao processo O que desejo rejeitar é a intuição basea-
decisório, demanda-se Inteligência traba- da em nada, partida de um desejo”. No
lhada e oportuna, que será provida na contexto do Estado moderno, espera-se
forma de contextos, informações lapida- que em seu cotidiano o policymaker
das, alarmes, tendências e análises de ris- muna-se de ingredientes que o permiti-
co e de oportunidades. rão deliberar sobre uma decisão, até mes-
mo o rumo de uma política, de maneira
Depreende-se a existência de pelo me- mais apropriada do que se dispusesse
nos dois atores essenciais que dão vivaci- apenas de pistas vagas ou visões pré-con-
dade à atividade de Inteligência e cujo cebidas dos fatos. O produto de Inteli-
gência é um desses ingredientes.
relacionamento é imprescindível para a
inserção dela no processo decisório: o Na mesma direção, o ex-analista da Inte-
produtor (o profissional de Inteligência), ligência britânica e acadêmico Michael
que interpreta demandas e se insere no Herman (1996) afirma que a “ação base-
ciclo de elaboração do produto de Inteli- ada em Inteligência é a antítese da lide-
gência, e o usuário (o policymaker), que rança baseada na ideologia”. Na opinião
aciona e utiliza Inteligência como mais um desse autor, “o mero fato da incorpora-
dos diversos subsídios que o auxiliarão a ção de subsídios de Inteligência no pro-
tomar uma decisão otimizada. Logo, cabe cesso decisório confirma o compromisso
visualizarmos mais detalhadamente a de um governo com a racionalidade e a
sua preocupação com a realidade”. Em
interação entre esses atores, a fim de ten-
vista disso, o analista de Inteligência, no
tarmos entender como a atividade de um
exercício de suas funções finalísticas, não
influencia a do outro. planeja nem sugere linhas de ação7; tenta

5
Abram Shulsky (2002), autor do livro ‘Silent warfare: understanding the world of intelligence’,
assim define inteligência.
6
A comunidade de Inteligência dos Estados Unidos, também se ocupa de temas bastante
amplos como os acordos internacionais sobre comércio e meio-ambiente.
7
Eventualmente o analista de Inteligência poderá ser convocado por órgãos executores (ministé-
rios, comitês, gabinetes de crise) para opinar em um planejamento. No entanto, deve estar claro
que, nesse caso, não estará exercendo a função de oficial de Inteligência e sim de colaborador.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 9


Leonardo Singer Afonso

atingir um grau elevado de imparcialida- ou processo que demandaria a produ-


de em suas análises e seus trabalhos8 ção de conhecimento.
abarcarão o nível de confirmação dos fa-
tos analisados e o levantamento de hi- Os papéis de produtor e de decisor tam-
póteses que podem inspirar ou não o bém adquirem semelhança no estágio ini-
decisor a elaborar e adotar novas táticas cial da metodologia de produção de co-
e estratégias relacionadas aos rumos do nhecimento proposta por Kent, em razão
Estado em uma área específica. de o que o autor chama de ‘problema
substantivo’11 surgir de três maneiras: a)
Esse processo, que resultará na produ- como resultado das reflexões de um ho-
ção de conhecimento, é técnico, envol- mem de dentro da organização de Inteli-
ve necessariamente a participação ativa gência, cuja única função é prever pro-
de produtor e usuário, e consubstancia- blemas12; b) quando os levantamentos de
se no chamado “ciclo de Inteligência9”. dados sobre determinado assunto reve-
Kent (1949) demonstra que o ponto de lam algo fora do comum; e c) de uma
contato inicial entre Inteligência e pro- solicitação do usuário dos produtos de
cesso decisório dá-se no início da ação Inteligência.
do produtor e identifica duas possibili-
dades para que o ciclo comece: a) o apa- Ao longo do ciclo de Inteligência, possivel-
recimento de uma nova linha de ação mente os caminhos do analista e do decisor
sobre dado assunto desencadearia um se cruzarão algumas outras vezes. Além de
pedido de antecedentes para a Inteligên- ser uma importante fonte de dados e de
cia por parte do decisor10 ou b) os pro- expertise sobre um dado assunto, o usuário
fissionais de Inteligência, no decorrer de pode ser responsável pela renovação do ci-
suas atividades de acompanhamento de clo ao questionar informações e análises
determinado tema, assinalariam um fato recebidas sobre as quais ainda se sente in-

8
O produto de Inteligência, cuja confecção fica sob a responsabilidade analista, é fruto da apli-
cação do conhecimento deste profissional sobre um tema à informação trabalhada ao longo de
um minucioso método de tratamento de dados e de fonte.
9
Processo técnico de confecção do produto de Inteligência que abrange etapas específicas a
serem seguidas a fim de organizar a produção do conhecimento. Segundo Cepik (2003), em
‘Espionagem e Democracia’, a idéia de ciclo de Inteligência deve ser entendida como uma
metáfora, “um modelo simplificado que não corresponde exatamente a nenhum sistema de
Inteligência realmente existente”. “A principal contribuição da idéia de ciclo de Inteligência é
justamente ajudar a compreender essa transformação da informação e explicitar a existência
desses fluxos informacionais entre diferentes atores”.
10
Mark M. Lowenthal (2003) explica que, idealmente, a formulação de prioridades da Inteligência
quanto ao acompanhamento de determinado assunto deveria ser feito pelos usuários dessa
atividade. No entanto, devido à escassez de tempo e até mesmo à falta de uma cultura de
Inteligência por parte do cliente, este poderá eximir-se dessa tarefa. A responsabilidade de
apontar prioridades ficará, portanto, a cargo dos “gerentes” de Inteligência, que para tal finali-
dade se aproveitarão da expertise inerente à atividade em relação aos assuntos acompanha-
dos. Neste caso, a Inteligência corre o risco de ser, posteriormente, acusada de equívoco ou
de manipular o processo decisório.
11
Quando Sherman Kent (1949) se refere a “problema objetivo”, refere-se ao problema que é o
objeto real da Inteligência, como a necessidade de estimar a capacidade produtiva máxima do
setor metalúrgico de determinado país em um cenário pré-definido de racionamento energético.
12
Segundo Kent (1949), “um desastre como Pearl Harbor deve ser atribuído em grande parte à
ausência de uma pessoa desagradável e persistente que, sabedora da crescente animosida-
de do Japão, se mantivesse a perguntar quando e como viria o ataque japonês”.

10 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Considerações sobre a relação entre a Inteligência e seus usuários

suficientemente seguro para absorver, ou mais complexa. Os subsídios proporciona-


ainda desdobrar as análises em novos re- dos pela Inteligência aos policymakers po-
querimentos informacionais (re-orientação dem conter previsões que desencadeari-
de coleta e análise), dando início a um novo am ações capazes de alterar os próprios
esforço analítico. fatos por ela previstos. Ademais, aqueles
subsídios podem também levar o consu-
2 Medindo a importância e o alcance da midor à inércia, uma vez constatado que a
Inteligência nas decisões ação de menor risco para o caso analisado
consistiria na inação. Se em princípio a fi-
De acordo com o que foi anteriormente
nalidade da Inteligência é informar e auxili-
descrito, o policymaker que necessite de-
ar na orientação das ações do Estado, e
cidir amparado em argumentos mais sóli-
se, muitas vezes, essas ações impedem os
dos do que os disponíveis pode optar por
acontecimentos previstos em relatórios de
recorrer aos setores de informações.
Inteligência – ou até mesmo permitem que
Quando o faz, acatar ou não um argu-
ocorram sem limitações –, a pergunta em
mento levantado pela Inteligência é ação
discricionária própria. E ainda que um questão continuaria sem resposta.
relatório tenha sido levado em conside-
ração, em alguns casos é útil de maneira ... como mensurar a
seletiva; ou seja, a análise pode não ser importância e o alcance dos
integrada em sua totalidade às decisões odutos de Inteligência no
produtos
do usuário, que absorveria apenas alguns
pr
parágrafos constantes em um produto de processo de tomada de
processo
Inteligência. decisões?
Apesar de alertado para esses importan- A inexistência de uma estrutura formal
tes detalhes desde os primeiros momen- para a tomada de decisão desfavorece a
tos de sua formação profissional, o ana- tarefa. Parafraseando Michael Herman
lista tende a superestimar o valor do seu (1996), as decisões são como ‘caixas-pre-
ofício para o usuário e cria expectativas tas’, que não possuem nenhuma indica-
com relação aos resultados concretos de ção externa de seus circuitos. Tudo que é
seu trabalho, muitas vezes ignorando o decidido sofre ação direta e indireta tan-
fato de que a influência da Inteligência no to de elementos externos quanto de sub-
processo decisório costuma ser (ainda que sídios formais de informações advindas ou
nem sempre o seja) bastante sutil. Então, não do aparato de Inteligência. Lembre-
como mensurar a importância e o alcan- mos que a atividade dos decisores envol-
ce dos produtos de Inteligência no pro- ve fatores alheios à atividade do produ-
cesso de tomada de decisões? tor, como julgamento, interesses políti-
cos, liderança e determinação. Por isso,
Em princípio, a resposta a essa pergunta “o processo decisório racional ou analíti-
estaria condicionada à comparação entre co constitui um ideal ao qual o sistema
o que foi analisado pela Inteligência e o que o executa aspira”.
desenrolar futuro das situações analisa-
das e, em alguns casos, o resultado da Possivelmente, o impacto dos efeitos da
ação tomada tendo como base a Inteli- Inteligência para as decisões será mais
gência provida. A tarefa não poderia ser bem visualizado avaliando-se o estado da

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 11


Leonardo Singer Afonso

reputação que ela goza perante os seus (2003), que “os decisores existirão e tra-
usuários. Neste caso, a aceitação e a in- balharão sem a existência da Inteligência,
clusão institucional da atividade no pro- porém o oposto não é verdadeiro”. Por-
cesso decisório será o referencial por ex- tanto, a demanda deve ser estimulada,
celência. Quanto mais houver interação pois nem todo governante compreende-
responsável13 entre instituições e entre rá ou verá benefício na utilização dos pro-
produtor e decisor, mais sadio será o ci- dutos de Inteligência até que se prove o
clo de Inteligência, provocando um gran- contrário.
de fluxo de requerimentos
14
informacionais , análises e re-orienta- A maioria dos decisores exerce uma fun-
ções. Conseqüentemente, serão fortes as ção tão técnica quanto política e possui
evidências de que os produtos de Inteli- convicções particulares, as quais
gência estão recebendo atenção apropri- permearão suas atitudes profissionais.
ada e tendo algum alcance no processo Seus projetos e sua situação como
decisório. policymaker podem depender de um
posicionamento político a ser seguido, por
3 A relação entre os atores: proximidade
pro exemplo. Caso o modo como os assun-
tos de sua competência são conduzidos
Ao percorrermos a literatura voltada para entre em desconformidade com as con-
as questões de Inteligência, percebemos clusões atingidas pelas análises de Inteli-
que é recorrente a idéia de que o estabe- gência, o usuário tenderia a – e teria po-
lecimento de boas relações entre o usuá- der para isso, se desejasse – diminuí-las
rio e o cliente é responsabilidade quase em importância no âmbito de suas deli-
exclusiva dos serviços de Inteligência. Essa berações, pois o planejamento e a execu-
afirmação torna-se evidente diante do ar- ção de políticas, inclusive a escolha dos
gumento de que a atividade é acessória argumentos que as embasarão, cabem
e, portanto, precisa mostrar-se útil e apenas a ele. Ainda que trabalhe com ados
confiável para que seja aproveitada no confiáveis, a Inteligência não é panacéia
processo decisório15. Como usuários de – mas acessório, ainda que diferenciado16.
um produto, os decisores terão de ser
convencidos de que suas ações não a Não se pode condenar o fato de um
deveriam dispensar, sob o risco de per- policymaker desagradar de uma análise
derem um importante input. Vale lembrar que não reforça suas opiniões. O proble-
ainda, como coloca Mark Lowenthal ma ocorre quando ele a desconsidera

13
Sobre “interação responsável” ou “relação responsável”, refiro-me à relação entre o usuário e
o produtor de Inteligência conduzida de maneira que leve em conta e proceda de acordo com
as benesses e mazelas a respeito das conseqüências da proximidade e do distanciamento
entre os dois atores.
14
Os requerimentos informacionais, assim como a pró-atividade do profissional de Inteligência,
iniciam o ciclo de Inteligência e são compostos por pedidos sobre informações sujeitas a
aprofundamento, dados não conhecidos e temas a serem elaborados. Cepik (2003) critica a
noção de que o ciclo é integralmente dirigido pelos requerimentos informacionais do usuário
final, apontando que esse pensamento “induz expectativas exageradas sobre o tipo de
racionalidade que orienta os processos decisórios governamentais e sobre o próprio papel da
Inteligência”.
15
Para Herman (1996), “o efeito da Inteligência, por isso, depende de sua reputação institucional
e da química pessoal entre produtores e usuários”.
16
Para autores especializados e profissionais da área, o diferencial da Inteligência encontra-se nas
análises especializadas a partir de fontes diversificadas, na maior imparcialidade de um órgão
assessor em relação a um órgão executor, e no fato de acessar tecnicamente fontes sigilosas.

12 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Considerações sobre a relação entre a Inteligência e seus usuários

imediatamente depois de constatada uma usuário. No mesmo sentido, ainda que em


contradição ou não a aprecia por saber tom ortodoxo, Kent (1949) afirma que “os
tratar-se de documento que potencialmen- analistas, mesmo os mais inexperientes,
te não corroborará seus planos. Um exem- têm que carregar o pesado fardo de ad-
plo clássico provém da antiga União das ministrar as relações com seus clientes”,
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e que esta interação é criada “por meio
quando Stalin ignorou os avisos da Inteli- de um grande empenho consciente e per-
gência britânica que o alertavam da sistente, e que estará sujeita ao desapa-
iminência do ataque de Hitler a seu país. recimento caso o esforço seja relaxado”.
Na ocasião, a URSS era signatária de um
tratado bilateral de não-agressão com a Existem, todavia, limites que não devem
Alemanha nazista. Os motivos que leva- ser ultrapassados nessa interação. Ainda
ram Stalin a ignorar os avisos da Inteli- que a proximidade seja necessária, a inti-
gência podem ter sido muitos, entre eles midade entre os dois atores poderá cau-
a desconfiança de que a Grã-Bretanha o sar danos sérios ao papel da Inteligência
queria a seu lado contra Hitler, mas tam- no processo decisório. Se a distância exa-
bém o detalhe de que provavelmente Stalin cerbada entre eles tem a capacidade de
tinha uma simpatia exagerada pelo bem inutilizar as análises de Inteligência, a si-
sucedido – até aquele momento – trata- tuação diametralmente oposta traz con-
do de não-agressão que ele mesmo tinha sigo o perigo da politização e da unifor-
engendrado. Tomar providências a partir mização dos discursos. Então, qual é o
do subsídio recebido da Inteligência bri- limite de proximidade e de distanciamento
tânica evidenciaria sua ingenuidade na desejável para que as relações entre ana-
ocasião, o que possivelmente nenhum lí- listas de Inteligência e policymakers não
der na posição de Stalin desejaria. comprometam a utilidade e a
confiabilidade da Inteligência produzida?
... qual é o limite de
Com o intuito de tornar-se proveitosa, é
pro
pr oximidade e de importante que a Inteligência se permita
distanciamento desejável aproximar dos decisores, pois somente o
para que as relações entre diálogo entre produtor e usuário poderá
balizar e municiar a análise de modo a
analistas de Inteligência e torná-la oportuna diante de questões ime-
policymak ers não
policymakers diatas aos policymakers. É necessário que
ometam a utilidade
comprometam
compr o profissional de Inteligência conheça a
agenda de seu cliente, seu histórico, sua
e a confiabilidade da atuação atual e ofício. Portanto, um ana-
Inteligência pr
produzida?
oduzida? lista deve conscientizar-se de que é ne-
cessário, em primeiro lugar, estudar e
Michael Herman (1996) constata que, na compreender seu interlocutor para não o
busca de criar um ambiente simbiótico encarar como um recipiente vazio, que
entre os dois atores, a Inteligência, sujei- pode ser preenchido com qualquer tipo
ta às atitudes imprevisíveis dos de material.
policymakers, faz uso de “persuasão, re-
lações pessoais e marketing”, o que auxi- O usuário espera da Inteligência algo que
liaria na aproximação entre produtor e contribua para a atitude que tomará em

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 13


Leonardo Singer Afonso

relação a uma questão17. Não obstante, argumentos e lugares-comuns como o que


por melhor que seja a maneira de um define a Inteligência como uma duplica-
policymaker usar e pedir o que quer à In- ção dos esforços do usuário20. Garantin-
teligência, nem sempre os requerimentos do que o decisor saiba o que é, para o
informacionais incluirão circunstâncias que é, o que pode fazer e como se faz
detalhadas a ponto de orientar perfeita- uso da Inteligência, todo produto prove-
mente o processo de análise18. Para Kent, niente dessa atividade lhe será potencial-
documentos cujo conteúdo se encontra mente útil em algum momento21. Neste
“à deriva” – sem orientação – certamen- sentido, o ciclo de Inteligência será dina-
te não agregarão valor às suas decisões. mizado, dado que possivelmente haverá
Por isso, o analista deverá estar prepara- orientação adequada, volume de requeri-
do para detectar, ainda que por si só, o mentos informacionais e continuidade do
que o decisor necessita saber. Isto somen- fluxo de análises22. Em resumo, a Inteli-
te será possível se houver a combinação gência ganhará a confiança e o respeito
de dois fatores fundamentais: a) a expertise de quem ela propõe a auxiliar.
do analista de Inteligência na área que se
propõe a analisar, e b) a existência de uma Alguns usuários, no entanto, poderão
interação responsável com os usuários de enxergar na Inteligência um instrumento
seus produtos. político para uso próprio e certamente
tentarão aproveitar-se da sua proximida-
Com relação ao policymaker, a aproxima- de com o analista para que este tendencie
ção entre os atores garantirá sua partici- as conclusões dos seus trabalhos, o que
pação efetiva no processo de produção caracteriza a politização da Inteligência,
de conhecimento, pois será educado nos ou, como denominavam os nazistas,
procedimentos da Inteligência. Ao longo kämpende Wissenschatf 23. Neste senti-
do tempo, o usuário tenderá a adquirir a do, as análises poderão ser vir ao
noção de como a atividade lhe pode ser policymaker como um poste de luz pode
útil, de como se recorre a ela, bem como servir a um homem embriagado – mais
afastará dúvidas causadas pela pouca fa- como um mero apoio do que como ilu-
miliaridade com o assunto19 – fragilizando minação para seu caminho. Da mesma

17
Ainda que a análise o inspire a não tomar atitude alguma ou mudar de atitude.
18
Na verdade, muitas vezes os requerimentos são extremamente vagos, segundo Kent (1949).
19
A CIA, por exemplo, prepara vídeos e cartilhas para seus usuários no intuito de educá-los nos
procedimentos da Inteligência.
20
Tal argumento é extremamente prejudicial e seus efeitos são desastrosos, pois o policymaker
passará a enxergar os analistas como competidores diretos que lhe estariam furtando a atribui-
ção de raciocinar. Neste contexto, a cooperação entre os dois e a desejada relação simbiótica
estará seriamente comprometida, o que demandará esforços muito maiores em direção a uma
solução.
21
Cabe ressaltar que parto do princípio de que todos os profissionais de Inteligência compreen-
dam perfeitamente o que é, para o que é, o que pode fazer e como se faz uso da Inteligência.
Do contrário, o risco de desvio de função é grande e, neste caso, analistas e policymakers
certamente entrarão em conflito.
22
Não se pode encarar sempre a manufatura de um relatório de Inteligência sobre um determi-
nado assunto como produto final ou como a apreciação incontestável para o problema do
usuário, pois normalmente um requerimento informacional deve desencadear um processo
que resultará em diversos novos questionamentos e requerimentos, que gerará novas análi-
ses e assim por diante, ultrapassando o momento em que o decisor se satisfaça, até que o
assunto torne-se desimportante a partir da ótica do analista.
23
Kent (1949) traduz esta expressão como “conhecimentos que embasam a política do estado”. No
caso, tais conhecimentos eram cuidadosamente elaborados pelos intelectuais do partido nazista
para fundamentar conceitos tais como a supremacia ariana, o destino alemão, o Vesailles Diktat etc.

14 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Considerações sobre a relação entre a Inteligência e seus usuários

forma, a proximidade exacerbada entre tivou analistas dispostos a embasar suas


analista e decisor – principalmente um pretensões, o que teria constituído um dos
decisor de vulto – pode criar distorções principais meios através dos quais teria
analíticas, uma vez que o oficial de Inteli- se dado a suposta manipulação da análise
gência estará sujeito a pressões mais di- de Inteligência.
retas ou à sedução, caso troque a impar-
cialidade inerente ao seu trabalho pela O outro problema apresentado pela má
admiração por seu interlocutor. condução da relação entre produtor e
usuário é a uniformização dos discursos.
Exemplos claros de manipulação das aná- A função do analista não abarca a
lises de Inteligência são difíceis de serem contraposição aos vieses políticos
encontrados. A suposta manipulação dos adotados e às decisões tomadas pelo
relatórios da CIA sobre a existência de policymaker. Mas conflitos de idéias sur-
armas de destruição em massa no Iraque girão rotineiramente e é possível que de-
pela Casa Branca ainda não foi provada e les nasçam novas hipóteses e opções viá-
a simples constatação de que houve co- veis que se encontrem além das vistas dos
erção para que analistas de Inteligência dois atores. Também abundarão casos em
relatassem o que o governo queria ouvir que as análises de Inteligência e as pre-
sobre o Iraque seria desastrosa. O fato, tensões do decisor coincidirão. E haverá
porém, proporciona uma idéia de como a momentos nos quais a confiança do usu-
politização poderia ser gerada quando a ário na assessoria da Inteligência chegará
relação entre produtor e usuário se torna a um nível tão elevado que as idéias de
instável. Em outubro de 2002, uma esti- ambos tenderão a, insistentemente, não
mativa produzida pela comunidade de apresentar contradições.
Inteligência norte-americana considerou
que o Iraque continuava com a sua políti- A falta de eventuais contraposições entre
ca de produção de armas de destruição usuário e produtores cria uma barreira que
em massa. O documento, que se tornou simplifica o ciclo de Inteligência de uma
público em 2003, previa inclusive a cons- maneira tão perversa que pode inspirar o
trução de um dispositivo nuclear iraquiano policymaker a cometer erros graves. De-
para esta década (ESTADOS UNIDOS, vido à poderosa confiança que se origina
2002). A discrepância no processo de da similaridade entre os argumentos dos
produção do conhecimento poderia ser decisores e da Inteligência, potenciais
encontrada na falta de vontade dos questionamentos às análises, contra ou a
decisores norte-americanos para criticar favor de informações que fundamentam
o embasamento de afirmações tão cate- uma argumentação, permanecerão inde-
góricas quanto aquelas encontradas na finidamente latentes. Nesse contexto, in-
citada estimativa, que supostamente formações que necessitem de agregação
embasava uma vontade do governo Bush. de valor (confirmação) carecerão de aten-
Numa mesma linha especulativa, um arti- ção, o que comprometerá todo o resulta-
go publicado por Seymour Hersh para a do final da confecção do produto de In-
revista ‘The New Yorker’, em 2003, insi- teligência24. Criar-se-á um círculo vicioso
nua que o governo norte-americano cul- difícil de ser quebrado.
24
Insisto na idéia de que um relatório não é o produto final da Inteligência, pois esta consiste em
um processo materializado na repetição indefinida do ciclo de Inteligência.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 15


Leonardo Singer Afonso

Para ilustrar essa argumentação, dades, bastava posicionar um pelotão de


retornemos a 1973, em Israel. Nessa épo- paratroopers e dois tanques em cima de
ca, as Inteligências civil e militar israelen- uma colina para que todos os inimigos de
ses gozavam de um alto conceito entre seu país fossem sobrepujados. O resulta-
os decisores daquele país. Com relação à do foi um ataque surpresa dos vizinhos
ameaça de uma nova guerra com seus vi- contra Israel, ocorrido no dia 6 de outu-
zinhos árabes, os policymakers e analis- bro de 1973, em pleno “Dia do Per-
tas israelenses dividiam o mesmo pensa- dão26”, e uma vitória à custa de sacrifíci-
mento formulado no final da década de os que, em outras circunstâncias, poderi-
60, que ficou conhecido como am ter sido evitados.
‘kontzeptziya’ 25. Este se baseava em três
linhas de argumentação para concluir que, 4 A relação entre os atores:
para árabes e israelenses, a guerra estava distanciamento
fora de cogitação naquele momento: a)
após a guerra de 1967, Israel havia al- Um dos motivos pelos quais a Inteligên-
cançado uma posição de superioridade cia existe como atividade de estado apar-
militar capaz de dissuadir qualquer inten- tada das demais instâncias executivas é a
ção belicista de seus vizinhos; b) a Síria sua capacidade de se pronunciar de ma-
não estava disposta nem preparada para neira independente. Essa separação pre-
se engajar em uma guerra solitária contra tende evitar que todo o magnetismo con-
Israel; c) o Egito não estava preparado tido no jogo político intrínseco ao pro-
militarmente, principalmente em termos cesso decisório logre atrair a Inteligência
de capacidade aérea ofensiva e defensi- em maior ou menor grau, desde a fase de
va, para atacar Israel. Por isso, os rela- coleta até a etapa da análise (SHULSKY,
tórios da Inteligência militar, até o dia 5 2002). Agindo dessa forma, busca-se
de outubro de 1973, véspera do Yom preservar a imparcialidade das conclusões
Kippur e do ataque egípcio e sírio, con- do analista, evitando hábitos como o de
sideravam a iminência de uma guerra “eliminar o mensageiro”27 – obviamente
como fato “altamente improvável” aquele que porta más notícias.
(BLACK; MORRIS,1991).
A própria justificativa para a criação de
A crença na kontzeptziya estava tão ar- agências centrais de Inteligência seria pro-
raigada em Israel que as reiteradas de- porcionar-lhes o máximo de independên-
monstrações de disposição para a guerra cia possível. Como a CIA, elas estão nor-
por parte de Síria e Egito não convence- malmente vinculadas ao mandatário do
ram nem governo nem Inteligência. Um Poder Executivo, mas não aos maiores
comandante israelense chegou a comen- consumidores de produtos de Inteligên-
tar que, caso fossem iniciadas as hostili- cia, como as Relações Exteriores, os
26
Tradução em português para Yom Kippur.
27
Shulsky (2002) se refere à “killing the messenger” syndrome, e nos proporciona um ótimo
exemplo extraído de “Antony and Cleopatra” de Shakespeare. Na obra, após ameaçar de mor-
te o mensageiro que lhe trouxe a notícia de que Marco Antônio havia se casado com Otávia,
Cleópatra se explica: “Tough it be honest, it is never good to bring bad news: give to a gracious
tiding a host of tongues; but let ill tidings tell themselves when they be felt.” – “Não obstante seja
honesto, nunca é bom trazer más notícias: alardeie as boas novas; todavia, deixe as más
notícias anunciarem a si mesmas quando forem sentidas.” (tradução livre).

16 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Considerações sobre a relação entre a Inteligência e seus usuários

Ministérios e Departamentos de Defesa. das vezes, a situações que apenas ela con-
Isso não exclui o fato de que primeiros- sidera importante.
ministros e presidentes sejam eles mes-
mos os principais clientes28 da Inteligên- Uma das funções de um
cia, com virtudes, vícios e opiniões pró-
prias. Por isso, o problema em questão
ser viço de Inteligência é
serviço
tende a reaparecer em outro nível, e a identificar novas ameaças,
garantia de que haverá objetividade ocessar novas questões e
processar
pr
satisfatória nas análises dependerá da pre-
disposição dos líderes da Inteligência a alertar sua contraparte para
manter a finalidade original da atividade tópicos que lhes serão
(SHULSKY, 2002).
potencialmente úteis...
Além de poder apontar coerências e dis-
O insulamento da Inteligência pode ocor-
crepâncias em políticas em curso, a ativida-
rer pelo medo das conseqüências da pro-
de de Inteligência deve ser suficientemente ximidade do usuário ou pela simples trans-
independente a ponto de não centrar suas formação de uma prática viciosa em um
atenções apenas em assuntos e áreas geo- axioma. Sem entender as razões e as con-
gráficas que interessem aos seus clientes. seqüências do distanciamento entre o pro-
Uma das funções de um serviço de Inteli- dutor e o usuário, os doutrinadores de In-
gência é identificar novas ameaças, proces- teligência podem se tornar pregadores tão
sar novas questões e alertar sua contraparte radicais que acabariam fazendo a atividade
para tópicos que lhes serão potencialmente viver por si e para si, esquecendo-se de
úteis, porém que permanecem inobservados que sua função real é assessorar de uma
devido ao direcionamento do foco sobre maneira específica. Conseqüentemente,
assuntos que o caminhar das políticas ofici- isso eliminaria qualquer traço de relevân-
ais de governo impõe. cia da Inteligência para seu Estado.

O desequilíbrio no distanciamento Na opinião de Sherman Kent (1949), en-


institucional e físico da Inteligência em tre o isolamento e a proximidade, o pri-
relação aos seus usuários pode resultar meiro causaria os piores danos, uma vez
entendendo-se que o processo de cons-
na irrelevância da atividade para o gover-
truir um ambiente simbiótico partindo do
no, já que será muito difícil educá-lo so-
zero é bastante difícil. Além disso, o
bre a função e os processos da Inteligên- distanciamento, quando exacerbado,
cia, bem como definir o que é e o que comprometeria desde seu princípio a
não é interessante para os decisores, produção de Inteligência, que depende
inviabilizando a produção de subsídios de orientação adequada para fluir. A ex-
delineados e direcionados. O efeito é ne- clusão se torna mútua, porque o ciclo de
fasto, principalmente para a atividade Inteligência não mais contaria com a par-
acessória, que tenderá a criar e a viver ticipação sine qua non do policymaker,
em seu próprio mundo, tal como se so- bem como a força que a Inteligência pode
fresse de um autismo institucional, pelo representar nas deliberações do proces-
qual a Inteligência seria desligada da rea- so decisório seria desconhecida até que
lidade exterior e se limitaria, na maior parte a situação se invertesse.

28
Não necessariamente o maior consumidor.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 17


Leonardo Singer Afonso

Conclusão e a se consolidar em função da realidade


nacional, por meio de consultas mútuas
Os exemplos proporcionados pelas duas entre os dois atores.
situações não admitem que a Inteligência
faça concessões e opte pela proximidade Profissionalizar cada vez mais a Inteligên-
exagerada ou pelo distanciamento conser- cia é uma necessidade que se impõe a
vador de seus usuários. O esforço deveria cada dia. Esse esforço passa pela perfeita
estar voltado sempre para o equilíbrio que visualização do ofício do profissional da
cada situação exigisse. Qualquer escolha área, cujas funções vão além da manufa-
extremada condenaria a atividade ao exer- tura de relatórios e abrangem desde a
cício de uma função viciada e construiria sensibilização dos usuários para as ques-
um exemplo de ineficácia institucional e tões de Inteligência até o estudo das pa-
desperdício de recursos públicos. tologias institucionais derivadas de sua
própria existência, com o objetivo de ela-
Da mesma forma, por parte de um decisor borar e aperfeiçoar contrapesos e con-
conhecedor e usuário costumeiro da In- troles externos da atividade. É fundamen-
teligência, a tentativa de manipulá-la vi- tal que a Inteligência tome consciência
sando interesses próprios causaria o completa de si para que possa educar e
mesmo efeito. Ainda assim, esta é uma se impor de maneira benéfica, ocupando
opção – censurável, ressalta-se – do um lugar exclusivamente seu.
policymaker, que só virá à tona caso os
controles externos da atividade procedam Por mais que estejamos conscientes, fa-
eficientemente na fiscalização da mesma. lhas ocasionalmente ocorrerão, devido à
má administração da interação entre pro-
Para o potencial usuário que não tem ci- dutores e usuários, principalmente aque-
ência do valor que a atividade pode agre- las falhas derivadas do aspecto da proximi-
gar a seu ofício e a ignora por completo, dade e da distância entre os dois atores.
atribui-se a responsabilidade sobre essa Em lugar nenhum no mundo se alcançou
condição à própria comunidade de Inteli- um modelo perfeito de inserção da Inteli-
gência, que tem como obrigação aproxi- gência no processo decisório que a previ-
mar-se de seus clientes e educá-los no na totalmente contra os vícios apresenta-
que diz respeito às atribuições e contri- dos. Entretanto, os aparatos de Inteligên-
buições da atividade. O policymaker tam- cia atuais são relativamente eficientes na
bém pode ter interesse em conservar um identificação e reversão das mazelas e suas
relacionamento responsável com a Inteli- causas, incentivando o aprimoramento da
gência, o que só se concretizará com ins- discussão em torno desse tema e colocan-
trução adequada. do idéias em prática. É necessário que pro-
fissionais de Inteligência e governantes
Educar usuários e produtores com a fina- conscientizados, em conjunto, desenvol-
lidade de criar uma cultura de Inteligên- vam continuamente meios cada vez mais
cia forte não somente oxigenaria o ciclo capazes de minimizar as patologias que
de Inteligência, no âmbito do processo surjam da inexorável relação entre produ-
decisório, tornando-o mais eficiente, tor e usuário, bem como nunca baseiem
como também estimularia a reprodução suas relações em axiomas e práticas sem
de vários modelos de Inteligência que, ao alicerce teórico, mas em conceitos bem
longo do tempo, tenderiam a se adequar fundamentados e oxigenados pelo debate.

18 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Considerações sobre a relação entre a Inteligência e seus usuários

Referências

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––––– . Tensions in analyst-policymaker relations: opinions, facts, and evidence – unclassified. The
Sherman Kent Center for Intelligence analysis: Occasional papers, New York, v. 2, n. 2, jan. 2003.
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KENT, Sherman. Strategic Intelligence for American world policy. Princeton: Pricenton University Press,
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LOWENTHAL, Mark M. Intelligence: from secrets to policy. Washington, DC: CQ Press, 2003.
SHULSKY, Abraham N. Silent warfare: understanding the world of Intelligence. Washington, DC: Brassey’s
INC, 2002.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 19


DECORRÊNCIAS D DAA UTILIZAÇÃO D DAA INTERNET
POR ORGANIZAÇÕES TERRORIST
TERRORISTAS:AS:
o recurso da comunicação tecnológica como pr oposta
proposta
de mudança não -democrática de poder1
não-democrática

Romulo Rodrigues Dantas

“Estamos em uma batalha e mais da metade dessa batalha é travada na


mídia, à distância. Essa batalha tem por alvo os corações e as mentes do
nosso povo”.2
Ayman al-Zawahiri

Resumo

Gerar publicidade e propaganda é axioma fundamental do terrorismo, que, historicamente,


vale-se de recursos também à disposição da sociedade contemporânea. A internet é um desses.
Com a união do efeito de demonstração do fanatismo do século XII com o alcance da comuni-
cação do século XXI, as palavras ‘terrorismo’ e ‘cibernética’ fundem-se e geram nova expressão
– terrorismo cibernético ou ciberterrorismo – e capitalizam efeitos psicológicos decorrentes do
temor do desconhecido e da imprevisibilidade do ato, embasados na dependência das socieda-
des nas redes de informação. A Convenção de Budapeste estabelece o que constitui crime
cibernético, mas é pouco provável que o Brasil vincule-se automaticamente ela. O momento
histórico, os referenciais internacionais e a disposição do Brasil em aprimorar sua legislação
sobre crimes cibernéticos ensejam prever tipificar a utilização da internet por organizações
terroristas e dotar a atividade de Inteligência de Estado brasileira com os recursos jurídicos
necessários para o acompanhamento analítico, estratégico e sistemático dessas organizações.

Apresentação

E m 7 de outubro de 2001, algumas


horas após o inicio da reação militar
dos Estados Unidos da América (EUA)
divulgado por meio da internet e, depois,
pela televisão. Nele, um homem magro,
de barba longa e desarrumada, vestindo
contra instalações do regime Talibã e da jaqueta militar camuflada, com turbante
al Qaeda no Afeganistão, um vídeo foi na cabeça, um fuzil AK-47 a seu lado e
1
Texto originalmente apresentado no Seminário Internacional: Crimes Cibernéticos e Investiga-
ções Digitais, organizado pela Câmara dos Deputados, em 28 de maio de 2008.
2
Carta de 2005 de Ayman al-Zawahiri, vice-chefe da al Qaeda, para Abu Mussab al-Zarqawi,
então comandante militar da organização no Iraque.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 21


Romulo Rodrigues Dantas

tendo montanhas ao fundo, falava de disposição da sociedade contemporânea.


modo pousado, mas firme, olhando dire- A internet é um desses.
tamente para a câmara. De modo desafi-
ador, Osama bin Laden declarou, naque- As decorrências de tal constatação im-
le momento, o começo da segunda etapa põem a governos e sociedades a necessi-
da guerra que iniciara em 11 de setem- dade de dispor e se valer de dispositivos
bro do mesmo ano. legais e de segurança capazes de confron-
tar a ameaça, porém sem restringir o aces-
A mensagem de bin Laden evidenciou que so à informação. Essa dicotomia traz de-
a internet também estava à disposição da safios crescentes ao modelo tradicional de
al Qaeda, com qualidade, segurança, al- monopólio da comunicação por entida-
cance global e oportunidade, e que as des estatais e comerciais, na medida em
armas à disposição da organização não que organizações não-governamentais e
mais se resumiam a fuzis e bombas, mas de natureza não-democrática também se
agora incluíam computadores, seus aces- valem desses recursos para lograr fins
sórios e periféricos. políticos violentos.

A pr opaganda é técnica
propaganda A propaganda é técnica essencial de que
se valem organizações extremistas, espe-
essencial de que se valem cialmente com a finalidade de atrair se-
organizações
or xtremistas,
ganizações eextremistas, guidores. Por décadas, material impres-
especialmente com a so, vídeos com operações e treinamen-
tos, discursos, história e realizações têm
finalidade de atrair estado à disposição de interessados, em
seguidores. redes de distribuição difusas, clandesti-
nas e de acesso limitado. Entretanto, no
Um dos axiomas mais duradouros do ter- século XXI, pessoa interessada em conhe-
rorismo o considera fundamentalmente cer, apoiar ou aderir a esse tipo de orga-
destinado a gerar publicidade e atrair a nização pode individualmente e de ma-
atenção para os terroristas, as causas que neira aberta se valer da internet e obter a
defendem e a mensagem que objetivam informação desejada, tanto por meio de
divulgar. páginas estáticas quanto interativas, como
salas e fóruns de discussão.
Poucas palavras têm carga política ou
emotiva semelhante a ‘terrorismo’. Estu- Ao unir o efeito de demonstração do fa-
do do final da década de 90 constatou natismo do século XII com o alcance glo-
mais de cem definições do fenômeno, com bal da comunicação do século XXI, as pa-
22 elementos conceituais diferentes. O lavras ‘terrorismo’ e ‘cibernética’ fundem-
ponto de convergência entre estes é que
se e geram nova expressão, dimensão e
terrorismo é uma forma de ação não-tra-
conceito – terrorismo cibernético ou
dicional, que considera o uso da violên-
ciberterrorismo –, que capitaliza efeitos
cia ou a ameaça de seu uso.
psicológicos decorrentes do temor do
Ao se analisar a história do terrorismo, desconhecido e da imprevisibilidade do
constata-se que é fenômeno em evolu- ato, embasados na dependência das so-
ção, que se vale de recursos também à ciedades nas redes de informação.

22 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Decorrências da utilização da internet por organizações terroristas

Igualmente, por se caracterizar como fenô- da estratégia incluem tarefas relacionadas


meno recente, o terrorismo cibernético ou a: facilitar sua implementação; fazer fren-
ciberterrorismo também carece de defini- te a ações radicais e extremistas que pos-
ção consolidada e universalmente aceita. sam resultar em atos terroristas; impedir
o uso da internet com finalidades terro-
Isso decorre, provavelmente, do entendi- ristas; proteger os direitos humanos, mes-
mento tradicional de que as expressões mo ao se combater o terrorismo; prote-
ter
terrrorismo e internet aparentemente não ger e fortalecer alvos vulneráveis; apoiar
coexistem nem se complementam. Mas o e destacar as vítimas do terrorismo; e com-
certo é que essa combinação ainda é pou- bater o financiamento do terrorismo.
co estudada pela ciência política.
No que se refere à utilização da internet
Com essa percepção, objetiva-se discor- com finalidades terroristas, os Estados-
rer sobre a relação entre essas expressões. membros acordaram que a estratégia te-
Apesar de serem apresentadas definições ria por objetivo identificar e proporcionar
operacionais3 para se estabelecer bases o debate com atores públicos e privados
de entendimento, não se terá por objeti- sobre o assunto e identificar maneiras
vo a busca de definição ideal ou satisfatória possíveis de combater essa ação, nos ní-
para elas, mas, apenas, ater-se a entendi- veis global, regional e sub-regional.
mentos que se fundamentam no senso
comum da variedade de definições aca- Ainda que se tenha incluído tópico sobre
dêmicas e governamentais sobre o tema. a prevenção ao uso criminal, é escasso o
conhecimento sobre a ameaça represen-
Trata-se, assim, de percepção acadêmica tada pela utilização da internet por terro-
e não se deve atribuir a ela valor ristas, que a têm utilizado para recrutar
institucional. adeptos, arrecadar fundos e estabelecer
ações de propaganda, em escala global.
Estratégia Global das Nações Unidas de
Contraterrrorismo
Contrater Utilização da internet por Organizações
Organizações
Ter
errroristas
A Estratégia Global das Nações Unidas
de Contraterrorismo foi adotada pela As- O estudo da conexão entre terrorismo e
sembléia-Geral em 8 de setembro de internet – ou, conforme proposto neste
2006. Esta estratégia estabelece ações ensaio, – tem sido objeto de interesse de
concretas que devem ser implementadas, acadêmicos e especialistas, dos setores
individual ou coletivamente, pelos Esta- privado e público, a partir da segunda
dos-membros em matéria de terrorismo. metade da década de 90 e, especialmen-
Atividades de coordenação e cooperação
3
Conforme estabelecido por Portaria de 2004 do Conselho Consultivo do Sistema Brasileiro de
Inteligência (Sisbin), para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e os demais órgãos deste
Sistema, terrorismo é a ameaça ou emprego da violência física ou psicológica, de forma preme-
ditada, por indivíduos ou grupos adversos, apoiados ou não por Estados, motivado por razões
políticas, ideológicas, econômicas, ambientais, religiosas ou psicossociais, e objetiva coagir ou
intimidar autoridades ou parte da população, para subjugar pessoas ou alcançar determinado fim
ou propósito (SISTEMA...,2004, grifo nosso). Terrorismo cibernético ou ciberterrorismo, aca-
demicamente, é definido pela Escola de Inteligência, como o uso premeditado de ações de
interrupção ou ameaça de interrupção de serviços com base em computadores ou redes de
informação, com motivação criminal ou ideológica e visando a provocar danos ou intimidação.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 23


Romulo Rodrigues Dantas

te, após os ataques de 2001. Walter sentam, respeitados competências espe-


Laqueur (2000) foi um desses visionários. cíficas e limites estabelecidos.

No âmbito acadêmico, artigos têm sido Vive-se em uma Era em que a tecnologia
produzidos, vislumbrando supostos esfor- da informação é parte integrante dos va-
ços de organizações terroristas – sobre- riados aspectos que compõem a socieda-
tudo a al Qaeda – para a aquisição de de contemporânea. A internet é a ‘face’
meios técnicos, destinados à realização mais conhecida do processo de
de ataques com super-alta tecnologia con- globalização. As vantagens que compu-
tra infraestruturas críticas ocidentais, par- tadores, redes computacionais e
ticularmente dos EUA, por meio de re- tecnologia associada oferecem à socieda-
des de computadores. de e ao comércio também auxiliam orga-
nizações criminosas a realizar suas ativi-
Especialistas em áreas de Inteligência de dades, o que é facilitado pela ainda
Estado, inclusive no Brasil4, avaliam que, incipiente capacidade de resposta dos
atualmente, é pouco provável que a al Estados, como parte de estratégia univer-
Qaeda ou qualquer outra organização ter- sal concertada. O Brasil não é exceção.
rorista conhecida tenha capacidade de re-
alizar ações que demandem emprego de Tipicamente, as páginas-web terroristas
recursos de alta tecnologia. Entretanto, há apresentam história e feitos da organiza-
concordância de que fatores críticos para ção; biografia de líderes, fundadores e
a continuidade da al Qaeda incluem plane- heróis; informações sobre objetivos alme-
jamento operacional aprimorado; ênfase no jados; e críticas aos opositores. De modo
sigilo das informações; uso planejado de geral, o uso considera a internet para ar-
técnicas de comunicação e propaganda; recadar fundos, recrutar adeptos, obter
exploração de lacunas legais, além de informações e coordenar ações.
criatividade e inovação na utilização de tá-
ticas convencionais de ataque. Muitas das condutas cometidas com o uso
de computadores e redes computacionais
Organizações criminosas, movimentos surgiram em função desses objetivos,
radicais e a tendência deles à violência não como invasão de sistemas e interceptação
representam novidade no cenário dos de comunicações eletrônicas sem autori-
países. Governos têm continuadamente zação judicial. Naturalmente, a internet
buscado formas de aprimorar sua capaci- se constitui ambiente ideal para organi-
dade de confrontar a ameaça. Para tanto, zações terroristas, em decorrência: do
é fundamental dotar organismos de segu- fácil acesso; da carência de legislação
rança e de Inteligência de Estado com trei- universalmente aceita; do pouco contro-
namento e recursos legais e materiais le ou de crítica governamental ou de ór-
compatíveis com demandas que se apre- gãos de autorregulamentação; do alcan-
4
Nos termos do art. 3º da Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999, cabe exclusivamente à Abin,
órgão de assessoramento direto ao Presidente da República, que, na posição de órgão central
do Sistema Brasileiro de Inteligência, tem, exclusivamente a seu cargo, planejar, executar,
coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência do País, obedecidas a políti-
ca e as diretrizes estabelecidas em lei.
O acompanhamento de manifestações do terrorismo de bases científica ou tecnológica integra
a relação de assuntos acompanhados sob ótica analítica e estratégica pela Abin – especifica-
mente, por meio do Departamento de Contraterrorismo –, com a finalidade de prevenir o terro-
rismo e seu financiamento, no Brasil ou contra interesses brasileiros no exterior.

24 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Decorrências da utilização da internet por organizações terroristas

ce global a públicos-alvo imediato e po- O acompanhamento de atividades terro-


tencial; da instantaneidade da comunica- ristas pela internet requer que agências
ção; dos razoáveis anonimato e seguran- de Inteligência de Estado disponham dos
ça; do baixo custo de operação e manu- instrumentos legais imprescindíveis para
tenção; do ambiente multimídia; da sim- a obtenção, em bases racionais, de dados
plicidade, entre outros fatores. e conteúdo relacionados à interceptação,
análise e avaliação de tendências de ativi-
A internet é espécie de biblioteca digital, dades terroristas e conexas a ela, com fis-
onde informações são obtidas a custo calização e limites estabelecidos,
baixo e podem dizer respeito a serviços proativamente. Entretanto, não deve com-
de transporte, imagens de infraestruturas petir a essas agências executar tarefas de
críticas, horários e regras de acesso a natureza processual, forense ou de polí-
edifícios públicos, aeroportos e portos; cia judiciária.
rotinas e procedimentos de segurança,
inclusive contra ações terroristas. O primeiro acordo multilateral sobre cri-
me cibernético foi firmado entre países
Em 2003, Dan Verton descreveu entre- europeus em 23 de novembro de 2001,
vistas de organizações terroristas, sobre- em Budapeste, Hungria, sem a participa-
tudo a al Qaeda, que operam com o auxi- ção do Brasil. O acordo é conhecido como
lio de bases de dados com detalhes de Convenção do Conselho Europeu sobre
objetivos potenciais ao redor do mundo o Cibercrime, ou Convenção de Budapes-
e se valem da internet para obter Inteli- te. Essencialmente, esse instrumento ob-
gência sobre tais objetivos. Com progra- jetiva proteger a sociedade contra crimes
mas computacionais comerciais ou espe- na internet, por meio da adoção de legis-
cificamente concebidos, identificam de- lação adequada e do avanço da coopera-
bilidades, projetam resultados desejados, ção internacional, decorrentes da
avaliam impactos econômicos decorren- conscientização acerca das mudanças do
tes e resultados nos direitos civis. processo de comunicação digital.

Desafio Legal O acordo entrou em vigor em 1º de julho


de 2004, depois que cinco países o rati-
Sob a ótica da Inteligência de Estado, as ficaram, sendo três integrantes do Con-
tarefas de responder a condutas crimino- selho Europeu. Quarenta e sete países já
sas envolvendo recursos computacionais ratificaram o tratado. Os EUA são o úni-
não são triviais nem teóricas e impõem co país de fora do Conselho Europeu que
desafios: Técnicos – relativos à capaci- o ratificou, em 29 de setembro de 2006.
dade de se identificar fatos e situações de O Japão e o Canadá o assinaram.
interesse; Legais – capazes de prover o
embasamento jurídico de resposta ao A uniformização da lei internacional
delito; e Operacionais – para assegurar centrada na convenção ainda é limitada e
capacidade a profissionais de organizações precisa ter a participação de maior núme-
especializadas de analisar de forma célere ro de países, além de sofrer adição de
e com abordagem estratégica a vinculação outras modalidades de delitos
entre terrorismo e internet, até mesmo no cibernéticos. Entretanto, para ser eficaz,
exterior. necessita ter adesão universal, no âmbito

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 25


Romulo Rodrigues Dantas

das Nações Unidas, para poder O Legislativo brasileiro tem buscado apri-
potencializar suas chances de sucesso. morar o debate sobre o tema e incorpo-
rar contribuições ao substitutivo que o
A convenção estabelece o que constitui senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG)
crime cibernético e permite que as polí- apresentou ao Projeto de Lei nº 76/2000,
cias de cada país cooperem nas investi- em tramitação no Senado. O substitutivo
gações desses delitos, podendo até pren- define e tipifica os delitos da área de
der suspeitos de crimes cometidos fora informática e aglutinou três projetos de
de seu território. Críticos do documento lei que já tramitavam no Senado,
questionam os poderes atribuídos à polí- enfocando crimes e condutas realizados
cia, que, segundo eles, poderiam com- mediante uso de sistema eletrônico, digi-
prometer a preservação da liberdade na
tal ou similares, de redes de computado-
internet. Muitos países já dispõem de le-
res, ou que sejam praticadas contra redes
gislações que permitem que organismos
de computadores, dispositivos de comu-
de segurança monitorem a internet, mas
nicação ou sistemas informatizados e si-
especialistas temem que esses poderes
milares.
sejam ampliados nos países que adota-
rem o tratado. Nesse sentido, em 10 de junho de 2008,
a Comissão de Assuntos Econômicos
Não há, entretanto, pr ovisão
provisão (CAE) do Senado aprovou a proposta do
com o objetivo de senador Eduardo Azeredo para tipificar e
opor
propor
pr cionar o debate com
oporcionar punir os crimes cometidos com o uso das
tecnologias da informação.
atores públicos e privados
sobre o uso da internet com Com base nessa proposta, os novos tipos
penais são: 1) acesso não-autorizado a
terrrorista e
finalidade ter dispositivo de informação ou sistema
identificar maneiras possíveis informatizado; 2) obtenção, transferência
de combater essa ação, nos ou fornecimento não-autorizado de dado
ou informação; 3) divulgação ou utiliza-
níveis global, regional e ção indevida de informações e dados pes-
sub-regional. soais; 4) destruir, inutilizar ou deteriorar
coisa alheia ou dado eletrônico alheiro;
Discute-se no Brasil a agregação de no- 5) inserção ou difusão de vírus;
vos paradigmas relativos ao delito eletrô- 6) agravamento de pena para inserção ou
nico, de forma a adequar o ordenamento difusão de vírus seguido de dano;
jurídico brasileiro para responder a essa 7) estelionato eletrônico; 8) atentado con-
nova modalidade de crime e a possibilitar tra segurança de serviço ou utilidade pú-
ao País se inserir em um modelo de coo- blica; 9) interrupção ou perturbação de
peração internacional – provavelmente, a serviço telegráfico, telefônico, infor-
Convenção de Budapeste –, para preve- mático, telemático, dispositivo de comu-
nir e combater crimes cibernéticos. A nicação, rede de computadores ou siste-
análise e o monitoramento do uso da ma informatizado; 10) falsificação de da-
internet com finalidades terroristas deve- dos eletrônicos públicos; e 11) falsifica-
ria ser uma dessas adequações. ção de dados eletrônicos particulares.

26 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Decorrências da utilização da internet por organizações terroristas

Não há, entretanto, provisão com o obje- significativo na matéria, considera-se que
tivo de proporcionar o debate com ato- sua eficácia é diretamente proporcional à
res públicos e privados sobre o uso da adesão que obtiver.
internet com finalidade terrorista e iden-
tificar maneiras possíveis de combater essa Como principio e tradição da diplomacia
ação, nos níveis global, regional e sub- do País, os sucessivos governos brasilei-
regional, contrariando o que dispõe a ros aderem aos tratados cujo processo de
Estratégia Global das Nações Unidas de elaboração considera interesses e percep-
Contraterrorismo. ções nacionais, posteriormente acordados
no âmbito das Nações Unidas.
Também na Europa, já foram adicionados
à Convenção de Budapeste, pelo Conse- Assim, ao se cotejar princípios que
lho Europeu, três novos delitos norteiam a ação governamental brasileira
cibernéticos: propaganda, recrutamento e com a gênesis do referencial jurídico dis-
treinamento terroristas, com a intenção de, ponível, refuta-se como pouco provável
posteriormente, harmonizar o combate ao que o Brasil vincule-se jurídica e automa-
ciberterrorismo no continente. O Comitê ticamente à Convenção de Budapeste,
de Especialistas em Terrorismo (Codexter, sem que o País seja convidado pelo Co-
em espanhol) estuda o tema e pesquisa nos mitê de Ministros do Conselho Europeu
países as modificações necessárias no con- ou que a Convenção seja discutida uni-
junto normativo existente, para combater versalmente para ser legitimada. A segun-
essa forma emergente de crime. da hipótese representaria reforço ao prin-
cípio do multilateralismo no combate ao
Considerações Finais crime cibernético, numa evidência de
compromisso e disposição dos 192 Esta-
O continuado interesse no aprimoramen- dos-membros das Nações Unidas para en-
to da legislação brasileira sobre o tema frentar o problema.
dos delitos digitais e a busca por incor-
porações de atores públicos e privados A utilização da Internet por grupos ter-
sobre a matéria ensejam legitimidade, efi- roristas transcende o mero uso da
cácia e identificação de ameaças para a tecnologia e alcança dimensões
ação do Estado brasileiro. Adicionalmen- organizacional e de transformação estra-
te, criam oportunidades para considerar tégica, além de constituir método e meio
novas contribuições, que potencializam a capazes de disseminar informação origi-
capacidade de se adequar às novas mo- nal desses grupos, sem interpretações ou
dalidades criminais que se apresentam nos censura, de modo instantâneo e com al-
níveis global, regional e sub-regional, en- cance global.
tre elas, a utilização da internet por orga-
nizações terroristas. Essa nova modalidade de crime terrorista
depende da revolução da informação e
Internacionalmente, o referencial propor- da tecnologia associada e tem foco na
cionado pela Convenção de Budapeste é relevância do debate livre para o funcio-
reconhecido como marco da tentativa de namento das instituições democráticas.
harmonização da legislação de combate
às manifestações de crime cibernético. O momento histórico, os referenciais in-
Apesar de esse fato representar passo ternacionais e a disposição do Brasil em

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 27


Romulo Rodrigues Dantas

aprimorar sua legislação sobre crimes Proativamente, essa ação previne a capa-
cibernéticos ensejam prever tipificar a cidade que têm as organizações terroris-
utilização da internet por organizações tas de potencializar, por meio da internet,
terroristas e dotar a atividade de Inteli- não mais apenas o consumo de ideologi-
gência de Estado com os recursos jurí- as não-democráticas, bem como de pro-
dicos necessários para o acompanhamen- duzi-las e de usar os recursos de comu-
to analítico, estratégico e sistemático nicação tecnológica como proposta de
dessas organizações. mudança de poder.

Referências
BRASIL. Congresso. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 76/2000, de 27 de março de 2000.
Define e tipifica os delitos informáticos, e dá outras providências. Disponível em: <http://
www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp? p_cod_ mate=43555>. Acesso em: 12 fev 2008.
BRASIL. Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a
Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, e dá outras providências. Disponível em: < http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9883.htm>. Acesso em: 12 fev. 2008.
CONVENÇÃO DE BUDAPESTE (2001). Convenção do Conselho da Europa sobre o Cibercrime.
Budapeste, 23 de novembro de 2001. Disponível em: <http://conventions.coe.int/Treaty/Commun/
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LAQUEUR, Walter. The new terrorism: Fanaticism and Arms of Mass Destruction. New York: Oxford
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SISTEMA BRASILEIRO DE INTELIGÊNCIA. Conselho Consultivo. Manual de Inteligência: Doutrina
Nacional de Inteligência; bases comuns. Brasília: Abin, 2004. 44p. (Manual aprovado pela Portaria nº 5/
GSI/PR, de 31 de março de 2005).
VERTON, Dan. Black Ice: The invisible threat of cyberterrorism. Osborne, McGraw-Hill Osborne
Media, 2003.

28 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


’S ROLE IN THE FIGHT AGAINST TERRORISM
BRAZIL’S
BRAZIL

Delanne Novaes de Souza

Abstract

Although Brazil has accomplished all international obligations on terrorism, strategic and executive
measures are still to take place. Diplomacy does not seem to be an insurance policy against
terrorism. Brazilian foreign policy on terrorism is a necessary but not a sufficient tool against the
threat. Additionally, domestic legislation does not guarantee institutional readiness.

Resumo

Embora o Brasil tenha cumprido todas as obrigações internacionais quanto à prevenção e ao


combate ao terrorismo, medidas de cunho estratégico e institucional quanto à matéria são ainda
necessárias ao País. O cumprimento de acordos diplomáticos não representa imunidade à
ameaça terrorista. A política externa brasileira acerca do tema é instrumento necessário, mas
não suficiente contra tal ameaça. Ademais, leis domésticas não garantem eficiência nem eficácia
às instituições.

1 The perception of the threat in Brazil


perception There is no empirical data concerning
terrorism in Brazil’s territory. As a result,
any attempt to analyze terrorism
Brazilians in general, and even most
strategically in Brazil is more related to
Brazilian authorities, consider terrorism as
policy-making per se than any other
an exogenous threat. It is something approach taken by the US, the United
distant from the Brazilian mindset. As Kingdom (UK) or Spain, countries that
Salvador Raza (2006, p.61) argues, this were attacked by terrorism and, as a
state of mind is not derived by specific consequence, have different and more
government’s policies, but by national developed tools to face it. Certainly, Brazil
culture.1 Brazilians view terrorism as has a lot to learn from them.
something intrinsically and geographically
associated with the Middle East and, in Although international terrorism has not
terms of its targets, with Israel and the taken place in Brazil, Brazilian citizens
United States of America (US). have been indirect victims of it. Brazilians
1
In respect of terrorism, Raza relates this Brazilian cultural trait as a cognitive break.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 29


Delanne Novaes de Souza

were among the victims of the World Trade In general, there is not much strategic
Center (WTC) terrorist attacks in 2001;2 thinking on the subject in Brazil (SILVA,
of the bombings of tourist sites in Bali in 2006). Despite the overall lack of
2002; of the United Nations (UN) office concern, it is worth mentioning the efforts
in Baghdad in 20033, and of the bombings of the Committee on Monitoring and
in Madrid in 2004. More recently, in July Institutional Studies (SAEI) and of the
2005, following the bus bombings in Brazilian Intelligence Agency (Abin), both
London, a Brazilian, Jean Charles de
subordinated to the Institutional Security
Menezes, was mistakenly killed by a British
Ministry (GSI) of the Presidency of
counter-terrorism officer. No authority in
Republic. The former promoted two
the country, therefore, should ever
consider terrorism as something distant meetings on terrorism. One took place in
from Brazilian reality. July 2004, and the other in september
2005. More recently, on november, 30
Brazilian authorities are not totally and december, 1, 2006, Abin promoted
unaware of the fact that no country is its Second Seminar on Intelligence (State,
immune to the potential threat posed by Media and Terrorism).5
international terrorism.4 It is not, however,
a perception shared by some of the highest At the Sixth Summit on National Strategic
authorities in the government. This Studies (ENEE), held in Rio de Janeiro, at
misperception reflects a pattern not only the Naval War School (EGN), from
present in Brazil, but also in other Latin november 8 to november 10, 2006, Aldo
American countries, if one takes the Rebelo, then president of the Câmara dos
current threat posed by terrorism into Deputados of Brazil, the equivalent of the
account. As Salvador Raza (2005) points US House of Representatives, addressed
out, the recent terrorism is strategic, the interaction between the Legislative
distinct from the conspirational terrorism Branch of the Federal Government and
typical of the seventies and mostly
the Armed Forces. He stated that Brazil
associated with the leftist movements of
is not a territory currently subject to
that period. This work focuses on the
former, not the latter. Based on two international terrorist acts. His opinion is
hundred interviews made in Latin America, very significant due to two reasons: first,
Raza (2006, p. 43) argues that Latin under the Federal Constitution, the
American businessmen, students and President of the House of Deputies (Câ-
politicians are not prepared to mara dos Deputados ) assumes the
comprehend the instrumental use of Presidency in the absence of the President
violence, such as terrorism. and the Vice-President of the Republic;

2
One hundred and sixty citizens of thirty different countries lost their lives in the attacks against
the WTC.
3
Sérgio Vieira de Mello, the UN Special Representative for Iraq, was killed in a bomb attack on the
UN headquarters in Baghdad in October, 2003. He was well-known for his work in East Timor.
4
Therefore, the Federal government, under the National Defense and Foreign Affairs Chamber
(CREDEN), elected terrorism as one of the most prominent issue on its agenda.
5
Several officials and experts participated in the Seminar. Among them, Israeli and American
Intelligence officials, diplomat Carol Fuller, Secretary of the Inter-American Committee against
Terrorism of the Organization of the American States (CICTE) and Steven Monblatt, former
Secretary of CICTE, Professors Daniel Pipes and Thomas Bruneau.

30 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Brazil’s role in the fight against terrorism

therefore, Rebelo was at the time one of specific aspects: first, a minor perception
the highest authorities in the country6; of interstate threat since the settlement of
and, second, he is a politician not out of all disputes on international borders8 and
the circle of national strategic thinking. For the development of confidence-building
instance, his very participation in the event and a strategic alliance with Argentina,
mentioned above and his writings on through several mechanisms, such as the
security and defense prove the opposite.7 Brazilian-Argentine Agency for
He is not only a high political (legislative Accounting and Control of Nuclear
and potential executive) authority, but Materials (ABACC) and the Common
someone whose ideas are accepted by Market of the South (Mercosur)9, and,
scholars and experts in international second, the potential spillage over
relations, security and defense studies. Brazilian territory of the conflict between
Moreover, Aldo Rebelo seems not to the Colombian Armed Forces and the
agree with the ideas of imbalance Colombian Revolutionary Armed Forces
underlined in this work. Asked about (FARC)10, which could ultimately represent
Brazilian intelligence and defense a threat to Brazilian territorial integrity and
capabilities to fight terrorism, he does not institutional stability. Due to the potential
notice any discrepancy or gap between threat posed by FARC and mainly by the
Brazil’s international obligations and great strategic relevance to Brazil, the
accomplishments, and its institutional major Brazilian strategic vulnerability is the
capabilities. Amazon (VIDIGAL, 2004, v.2, p.25). The
implementation of the Surveillance System
Even when security and defense are taken of the Amazon (SIVAM)11 and of the
into consideration in a broad, strategic Destructive Shooting Law (BRASIL,
perspective, most Brazilian civil and 2004), nicknamed ‘Lei do Abate’ is a
military strategic thinkers contemplate a result of this threat perception.
general strategic approach to security and
defense, related to the classic guarantee Two arguments serve the interests of those
of national sovereignty and multilateralism. who perceive the country out of the reach
This approach can be associated with two of international terrorism: first, the general

6
The current President of the House of Deputies was Arnaldo Chinaglia, a member of the same
Party of President Luis Inácio Lula da Silva, the Worker’s Party.
7
See Rebelo (2003, 2004); see also SEMINÁRIO DE POLÍTICA... (2003).
8
In this sense, for over 100 years Brazil has considered itself a ‘geopolitically satisfied’ country.
See Lima & Hirst (2006, p. 21-40); see also Vizentini (2007) and Cervo (2002). Particularly
regarding the Baron of Rio Branco and his role on Brazilian foreign policy, especially in respect
of Brazil’s peaceful settlement of its borders, see Lins (1995) and Ricupero (2000).
9
Currently, the Mercosur is comprised of Argentina, Brazil, Paraguay, and Uruguay. Venezuela
was accepted by the other members as a full member of the Bloc, though it still awaits the
ratification of its membership by the Brazilian and Paraguayan Parliaments. Bolivia, Chile and
Peru are associate members of the Bloc; Mexico is an observer. In respect of the perspectives
of Brazil and Argentina concerning nuclear weapons, see the Treaty of Tlatelolco (1967), which
established the region as a nuclear-free zone. For a brief history of Argentine-Brazilian relations,
that comes back to the Portuguese and Spanish Empires in South America, see Jaguaribe
(2005, p. 42-52).
10
For security and defense issues, see Vidigal (2004, v.2, p.13-36). For an overview of security in
South America, see Rojas Aravena (2005, p. 53-77).
11
A project developed by Raytheon, worth of US$ 1.7 bi.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 31


Delanne Novaes de Souza

and traditional perception that Brazil is a (DINIZ, 2004, p.30). For instance, in
peaceful, hospitable, tolerant, happy and 1998, when a suicide bombing of the US
united country.12 The second is the very Embassy took place, was Tanzania a par-
nature of Brazilian foreign policy,13 a product ticular target of terrorist acts? It does not
of the values and principles of Brazilian seem so. The fact that Brazil was never
society. Brazilian foreign policy traditionally threatened by any terrorist individual or
seeks peace by peaceful means14. organization does not necessarily mean
that acts of terrorism will never occur in
Several arguments confront the previous the country. Hope is not a method.15
perception, which ultimately seems to be
a misperception of the threat posed by ole in the fight
Brazil’s rrole
terrorism. The perception that the country
and its people are traditionally peaceful against international
and open to different cultures does not terrrorism has focused on
ter
necessarily imply that Brazil’s society and international cooperation,
state are immune to terrorist attacks
against interests and nationals of countries the signing and ratification
frequently taken as targets, such as the of international conventions
US and Israel. The very possibility of being terrrorism and the
on ter
a stage of terrorism, due to the existence
of visible and vulnerable spots in its adaptation of national laws
territory and the presence of American to these instruments.
and Israeli interests in the country,
augments the magnitude of the threat to The problem seems to be graver if one
Brazil’s homeland security and to Brazilian considers some specific vulnerabilities
foreign policy. Vulnerability and visibility Brazil faces. It is quite impossible to su-
are the most basic and important elements pervise and control 16,884.4 km of land
for a terrorist action to take place. In this boundaries, with nine tri-border areas,
sense, the stage where the target is located and 7,491 km of coastline.16 Besides, as
is not necessarily relevant. Any country then Director of Abin, Márcio Paulo
has sites of great visibility and symbolism Buzanelli, highlights, intelligence actions,
that if targeted by terrorists would cause even if international cooperation is taken
great repercussions throughout the world into account, are limited (by nature).17
12
For Darc Costa (2004, v.2, p.40), former vice-president of the Brazilian Economic and Social
Development Bank (BNDES), this is the true (sic) Brazilian discourse.
13
A brief overview of the current Brazilian foreign policy, even when considered the date published,
can be found in Amorim (2004, p. 40-47). See also Lima & Hirst (2006). For an overview of
Brazil’s international agenda, see Souza (2002).
14
As stated by Lima & Hirst (2006, p.38), Brazilian political and intellectual circles do not value
military deterrence as a source of international and/or regional prestige. Since the nineteenth
century, Brazil’s presence in South America has represented for the most part a factor of stability
and peace that has contributed to the region’s profile as a zone of relative peace. Brazilian pacifism,
nevertheless, as the current Brazilian Ambassador to the US, Antônio de Aguiar Patriota (1998,
p.193), states, does not exclude the engagement of troops and materials in the troubled conflict
theaters of Southern Africa, Central America and East Europe. The Peacekeeping operation in
Haiti (MINUSTAH), under the military command of Brazil, also corroborates to this fact.
15
Although it seems to be an American cliché, especially in military circles, it also seems to be an
appropriate idea here.
15
For an assessment of the vulnerability of Brazilian ocean waters, see Medeiros (2006).
17
For instance, by law (Law nº 9296/1996), Abin cannot do eavesdropping (BRASIL, 1996).

32 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Brazil’s role in the fight against terrorism

Brazil also lacks material, technological, international cooperation, the signing and
financial and human resources. In ratification of international conventions on
addition, the very inexistence of an terrorism and the adaptation of national
effective body to coordinate the actions laws to these instruments. The feeling that
of the different sectors of the Brazilian the international and legislative roles are
government responsible for fighting very pro-active could potentially reduce
terrorism is a gap to be considered. interest in further steps, such as the
(BUZANELLI, 2004, p. 7-13)18. development of a national strategy and
structures to fight terrorism. Although
Even when all measures taken by Brazilian Brazil has accomplished all international
foreign policy are taken into consideration, obligations on terrorism, strategic and
terrorism does not seem to be a priority executive measures are still to take place.
for the Brazilian authorities. When Diplomacy does not seem to be an
compared with economic issues, such as insurance policy against terrorism.
trade, for instance, it is quite clear that Brazilian foreign policy on terrorism is a
security and defense, in general, and necessary but not a sufficient tool against
terrorism, in particular, have a the threat. Additionally, legislation does
disproportionately reduced role in not guarantee institutional readiness
Brazilian foreign affairs (DINIZ, 2004, (CEPIK, 2004).
p.38). If social and economic development
is one of the pillars of Brazilian foreign In respect to international cooperation,
policy, it is reasonable that trade has a intelligence sharing has improved the
crucial role in the international agenda of perception of the threat and the
the country. It would be, nevertheless, one possibilities to fight terrorism. Doubts,
of the greatest strategic mistakes if the however, persist. Are they a reasonable –
misperception of terrorism as a threat not to say sufficient – tool to address the
prevented a more pro-active role in the potential threat?
fight against terrorism, consistent with the
global threat the international community In the absence of a national strategy and
currently faces. Would not a terrorist act an effective institutional apparatus for
in Brazil be a tremendous setback for its preventing and combating terrorism, the
social and economic development and accomplishment of international
other permanent aspirations of its foreign obligations and the improvement of
policy? It seems so. international cooperation do not
guarantee a rational deterrent against
2 A reflection on some international terrorism. Given the potential threat
challenges posed by Brazil’s rrole
ole in the terrorism poses to the international
fight against ter
terrrorism community and to Brazil, despite recent
institutional efforts and improvement in
Brazil’s role in the fight against international cooperation, Brazil still lacks
international terrorism has focused on two elements in its fight against

18
Eugênio Diniz (2004, p.35) also states that difficulties in the Brazilian security and intelligence
apparatus augment the vulnerability of possible targets. In this sense, he argues, the inexistence
of any terrorist acts in Brazil so far could be a result of low probability of occurrence or a low
detection capability, i.e., a greater vulnerability.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 33


Delanne Novaes de Souza

international terrorism: a national strategy active participation of Brazil in the UNSC


and a better institutional apparatus for highlights its pro-active role as a player at
fighting it. the UN. For Brazil, the current UN system
should not reflect the Cold War politics.
Being prioritized as they have been in the To achieve its aim, Brazil has fully engaged
Brazilian fight against terrorism, in strategic diplomatic talks with countries
diplomatic and legislative decisions can that support its candidacy to a permanent
generate a sense of security and a feeling seat, such as Germany, India and Japan (with
that the job of preparing for the threat is Brazil, they comprise the so-called G4).
done. As Marco Cepik (2004, p.58)
argues, in the debates on international The G4 seeks to increase the number of
security matters in Brazil, there is a UNSC members, from fifteen to twenty-
persistent trend to restrict the issues to five in total. Six would be permanent, and
normative and legal aspects. four would be non-permanent members.
Regarding the veto power, the group has
The imbalance between international and proposed not to have the right to veto for
national components can pose at least two fifteen years. Additional discussions
international challenges to Brazil: first, the concerning reforms of the UNSC will take
absence of a national strategy and an place in the end of 2007.20
effective institutional apparatus for
preventing and combating terrorism could This work has sought to emphasize the
negatively affect Brazil’s aspirations to a potential challenges Brazil could face due
permanent seat in the United Nations to its foreign policy on terrorism, and the
Security Council (UNSC), and second, the implications of its actions for Brazil’s
imbalance could jeopardize Brazil’s bila- aspirations to UNSC permanent
teral and multilateral relations, particularly membership. Since the emphasis here is
with the US, the EU and the other on the need for a national strategy for
members of the Mercosur. combating terrorism and not the UNSC
permanent membership, all international
Brazil has historically pursued a permanent geopolitical and geo-economic conditions
seat in the Security Council, and this goal and implications related to Brazilian
has been one of the major objectives of candidacy are not being considered. The
its foreign policy. This aim is not recent19. main point here is that given the current
Being the non-permanent member that threat to international peace and security
participated in UNSC more than any other posed by terrorism, Brazil could
non-permanent member, Brazil sees the strengthen its candidacy for a permanent
permanent membership as a democratic seat on the UNSC by adopting a more
shift in the international arena. The very pro-active role in the fight against

19
See Lampreia & Correa (1995). The book is a collection of all statements made by Brazil at the
UN General Assembly, from 1946 to 1995. It is particular useful to see the consistency of Brazilian
foreign policy. Brazil aims a better position at international organizations in general. See Garcia
(2000).
For an additional account of the Brazilian aspiration to UNSC permanent membership and a
sharp analysis of the changes the Council has undergone since the Gulf War (1991), the
humanitarian intervention in Somalia, in the ex-Yugoslavia, in Rwanda and in Haiti, see Patrio-
ta, (1998).
20
For a more comprehensive analysis of all proposals for reforms of the UNSC, see Souza (2007).

34 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Brazil’s role in the fight against terrorism

terrorism, particularly concerning the Brazil would give an important signal to


development and adoption of a national the international community.
strategy and an effective coordinating body
for preventing and combating terrorism. Moreover, two other points should be
considered regarding Brazil’s aspirations
All current permanent members (the US, for a permanent seat in the UNSC: first,
China, the UK, France and Russia) have according to Chapter VII of the UN
adopted a national strategy for fighting Charter, the UNSC is the very body that
terrorism. Although the development and addresses threats to international peace
adoption of strategies by the so-called P5 and security and, second, members of the
reflect an obvious response to terrorism UNSC, especially the permanent ones,
by the majority of the most threatened take part in the specific committees
states in the international community, it created to confront international terrorism,
could indicate a gap in Brazil’s aspiration such as the Committee against Al Qaeda
to a permanent seat in the Council. Since and the Taliban (1267 Committee), the
the US is a permanent member of the Counter Terrorism Committee (CTC), the
UNSC, it is particularly important
1540 Committee and the 1566 Working
regarding Brazil-US relations.21
Group. Hence, under the Charter, by
definition, permanent membership in the
Another challenge Brazilian UNSC implies a very pro-active role in
foreign policy faces is the the fight against terrorism, which is
frequent per ception of the
perception ultimately and practically a threat to
international peace and security.
xistence of
supposed eexistence Furthermore, membership also implies
terrrorism in the T
ter ri-Bor
ri-Border
Tri-Bor der participation in the Committees
gentina,
(Argentina,
(TB) region (Ar mentioned before, which were established
due to the increased perception of the
Brazil and Paraguay) by the threat after September 11, 2001.
community..
international community
As Brazilian Ambassador Rubens Ricupero
Taken Brazil’s aspiration to a permanent (apud RAZA, 2006, p.59) emphasizes,
seat in the UNSC into account, besides Brazil, as an aspirant to a permanent seat
its economic and political influence in the UNSC, has to have a pro-active role
globally and regionally, concerning its role in the conventions and strategies on
on international security and peace, a pro- terrorism developed in the UN. However,
active role in the fight against terrorism he does not take the lack of a Brazilian
domestically could be added to, for strategy into consideration. Therefore,
instance, Brazil’s participation in the UN concerning its aspirations, Brazil should
peace operations, such as the current not only actively participate in all
Mission of the United Nations for developments taking place in the UN on
Stabilization of Haiti (Minustah). More terrorism, but also consider the very fact
than addressing its own homeland security, that it has no strategy to counter terrorism.

21
So far, the US supports only Japan.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 35


Delanne Novaes de Souza

The argument advanced herein thus goes bombing in 1994, Hezbollah has
beyond that of Ambassador Ricupero. maintained networks in the tri-border area
of Paraguay, Brazil, and Argentina—
Another challenge Brazilian foreign policy primarily focusing on fundraising and
faces is the frequent perception of the recruitment” (Ibid).
supposed existence of terrorism in the Tri-
Border (TB) region (Argentina, Brazil and The two statements above reflect an
Paraguay) by the international community. apparent contradiction. All joint
There has been a plethora of studies that statements by the 3 + 1 Group underline
take the existence of terrorism in the that there is no evidence of any terrorist
region for granted.22 Fortunately, most are activity in the TB area. All members of
based on mere speculation and wishful the Group agreed to share intelligence that
thinking. They lack one of the most could lead to any evidence of terrorist
important tools of any analysis, namely, activity in the region. In addition, it is worth
good sources, and thus analytical value. mentioning that all statements made by
Dogma and political interests seem to play the Group are binding. Thus, while
a role here. common people, scholars and even
authorities claim that terrorist individuals
Instead, two official documents, among or organizations have been acting in the
several others, are important in relation region, intelligence and diplomatic officials
to what has been discussed about the of Argentina, Brazil, Paraguay and the US
region in the 3 + 1 Group on Tri-Border deny vehemently that there is any evidence
Area Security, particularly related to US- related to terrorist activities in the area.
Brazil relations. One is the US Department Authorities of those countries have
of State (DOS) Country Reports on consistently denied the existence of
Terrorism, 2005, released in April 2006 terrorism in the TB through the 3 + 1
(UNITED STATES, 2006). The other is Group since 2002.24 Given all authorities
the Resolution 338 proposed in February that participate in the Group, it seems to
2006 by US Representative Ileana Ros- be a much more prudent and rational,
Lehtinen, among others.23 The DOS although political, approach than dogmatic
Report underlined that “the United States statements made by scholars with no
remained concerned that Hizballah and realistic information on what is really
HAMAS were raising funds among the happening in the TB.
sizable Muslim communities in the region
and elsewhere in the territories of the The very fact that the Group has not
Three, although there was no provided any evidence related to terrorism
corroborated information that these or in the area, however, does not represent,
other Islamic extremist groups had an in any way, a guarantee that there will not
operational presence in the area ” be terrorism in the region. Because of that,
(UNITED STATES, 2005, p. 157-158). even though the 3 + 1 Group represents
The proposed resolution, in turn, states the very forum to address the problem
that “Whereas since at least the AMIA politically based on intelligence, its
22
As one of several works on the TB and its supposed association with terrorism, see Raza (2005).
23
The Resolution was sent to the Senate and referred to the Committee on Foreign Relations in
June, 2006. (UNITED STATES…, 2006).
24
The Group meets once a year.

36 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Brazil’s role in the fight against terrorism

declarations should not be considered because Brazil is not only fighting


insurance policies. Brazil should avoid any unreasonable comments on one of the
possibility of confronting the dogmatic most important regions for its international
arguments made by common citizens, trade and tourism, but also terrorism, an
scholars and even authorities with similar international threat that seeks to kill and
dogmatic approaches. All institutional destroy its targets by exploiting
measures yet to be taken, should be taken, vulnerability and visibility.

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38 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


ANÇAS CLIMÁTIC
MUDANÇAS
MUD AS: Inteligência e Defesa1
CLIMÁTICAS:

Uirá de Melo

Resumo

Este artigo traça breve histórico da institucionalização internacional da problemática sobre ‘mu-
danças do clima’. A partir das contribuições de outros autores e das evidências encontradas nos
estudos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), publicados em 2006
e 2007, delineia, por fim, tendências para a Inteligência e os Sistemas de Defesa brasileiros.

Antecedentes ternacional se voltaram para questões


ambientais, formalizadas pela Assembléia
Geral das Nações Unidas em 1972. Nes-

A s primeiras percepções do fenômeno


da influência antrópica sobre o equilí-
brio climático da Terra constaram em estu-
sa oportunidade, os países estabeleceram
as bases para a criação do arcabouço
institucional que formaria o órgão de co-
dos científicos na década de 1960. Os mo- ordenação das ações das Nações Unidas,
delos pioneiros de análise temporal da vari- o Programa das Nações Unidas para o
ação da temperatura demonstravam tendên- Meio Ambiente (PNUMA). O PNUMA
cia de elevação anormal em comparação firmou em 1988 o tratado para a
com parâmetros observados em períodos mitigação da emissão de gases danosos à
anteriores. Esta constatação foi o estopim camada de ozônio, principalmente os clo-
para o início de estudos sobre o tema. ro-fluor-carbonos. O sucesso dessa inici-
ativa alimentou os anseios pela adoção de
A comunidade científica se dividia em dois medidas semelhantes em relação aos ga-
grupos: aqueles que acreditavam na in- ses do efeito estufa (dióxido de carbono
fluência do homem como modificador do (CO2); metano (CH4); óxido nitroso
equilíbrio climático e aqueles que nega- (N2O) e outros).
vam o protagonismo humano e acredita-
vam que as variações observadas eram Apesar da indefinição teórica sobre os
fenômenos cíclicos naturais do planeta. resultados das ações humanas sobre o
clima, os países reunidos no sistema ONU
Concomitantemente à polêmica entre ci- decidiram, durante a Conferência das
entistas, as atenções da comunidade in- Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e

1
Artigo escrito em outubro de 2007.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 39


Uirá de Melo

o Desenvolvimento, a ECO-92, pela cri- • considerar a mudança do clima nas po-


ação da Convenção-Quadro das Nações líticas sociais, econômicas e
Unidas sobre Mudança do Clima (United ambientais;
Nations Framework Convention on
Climate Change (UNFCCC)), delineando, • promover pesquisa científica em mu-
assim, as bases legais sobre as quais se dança do clima; e
estabeleceu o Protocolo de Quioto (PQ)
• educar, treinar e conscientizar a po-
em 1997, no Japão.
pulação acerca do tema.
A Conferência das Partes da Convenção- Essas determinações foram contempladas
Quadro, órgão gestor da UNFCCC, defi- no Protocolo de Quioto, que criou o ar-
niu mudança climática como “uma mu- ranjo institucional operacional para o cum-
dança de clima que possa ser direta ou primento das metas acima descritas. A
indiretamente atribuída à atividade huma- adoção destas medidas pressupõe mudan-
na, que altere a composição da atmosfera ças amplas, principalmente no arranjo
mundial e que se some àquela provocada tecnológico sobre o qual transcorrem as
pela variabilidade climática natural obser- atividades econômicas.
vada ao longo de períodos comparáveis”;
firmou-se como um tratado universal; Antecipando a Rodada de Doha da Or-
determinou como meta estabilizar a con- ganização Mundial do Comércio (OMC)
centração atmosférica de gases de efeito e sob pressão da Assembléia Geral da
estufa; e criou, por conseguinte, a neces- ONU, os textos aprovados no Japão ino-
sidade de se limitar e manter em níveis varam ao estabelecer como princípios pri-
suportáveis as emissões líquidas globais mordiais:
de gases de efeito estufa.
• o direito ao desenvolvimento;
A Convenção-Quadro possibilitou a cria-
ção de protocolos que regulamentassem • a responsabilidade histórica das na-
a maneira pela qual se alcançariam as ções mais desenvolvidas por terem
metas estabelecidas para a manutenção processo industrial desenvolvido mais
da estabilidade climática, listadas abaixo: antigo;

• inventariar as emissões antrópicas de • a responsabilidade comum de todos


gases de efeito estufa (GEEs); os países para a manutenção do equi-
líbrio climático do planeta, contudo le-
• elaborar programas de mitigação e vando em conta as diferentes condi-
adaptação; ções sociais, econômicas e históricas
de cada nação;
• desenvolver tecnologias para redução
e prevenção de emissões; • a necessidade de recursos financeiros
adicionais e transferência de tecnologia
• proteger sumidouros (áreas de absor- para combater os processos agravan-
ção de gases do efeito estufa); tes do efeito estufa.

40 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa

Aberto para adesões em 1997, o Proto- A comparação entre a evolução da con-


colo de Quioto entrou em vigor em feve- centração de dióxido de carbono na at-
reiro de 2005. O texto do acordo trouxe a mosfera e a evolução da temperatura re-
diferenciação entre países desenvolvidos e vela relação diretamente proporcional
em desenvolvimento, delimitando para cada entre as duas variáveis, como mostram os
grupo obrigações diferenciadas. Os primei- gráficos seguintes, apresentados por Mar-
ros, membros do Anexo I do Protocolo, cos Freitas (2007):
têm a obrigação de reduzir suas emissões
EVOLUÇÃO ANUAL D
EVOLUÇÃO A
DA
5% abaixo do nível inventariado em 1990.
CONCENTRAÇÃO DE CO2 NA
Os países em desenvolvimento são incen-
ATMOSFERA
tivados a participar dos mecanismos de
desenvolvimento limpo (MDL).

Apesar de a produção de relatórios pelo


Painel Intergovernamental sobre Mudan-
ças Climáticas (Intergovernmental Panel on
Climate Change (IPCC))2 ser contínua des-
de a década de 1990, as discussões sobre
o aquecimento global continuaram contro-
versas até 2006 e os dados da influência
do homem sobre o clima ainda não tinham
sido largamente divulgados. As informa-
ções produzidas pelo IPCC passaram a ser
intensamente veiculadas nos últimos dois
anos, aumentando a
conscientização sobre o PADRÕES DE EVOLUÇÃO D
EVOLUÇÃO AS
DAS
problema e apresentando TEMPERATURAS GLOBAIS
TEMPERATURAS
argumentos científicos que
atestavam a influência
antrópica sobre o equilíbrio
climático. Segundo os últi-
mos documentos apresen-
tados pela comunidade ci-
entífica e os relatórios do
órgão da ONU, a tempera-
tura da Terra teria aumen-
tado 0,74 graus Celsius,
nos últimos cem anos, e
demonstra tendência de
elevação para os próximos
anos.

2
Instituto criado no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas, formado por especialis-
tas de diversas áreas, para avaliar os impactos das atividades humanas sobre o clima. O IPCC
divulga, desde a década de 1990, relatórios sobre as condições climáticas e projeta cenários
futuros.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 41


Uirá de Melo

Segundo os cientistas, a manutenção da te pela articulação de iniciativas para a


temperatura em 15 graus Celsius, em mitigação das emissões de GEEs e es-
média, pelo efeito estufa, torna o meio forços adaptativos das populações do
ambiente propício às atividades humanas globo, tendo em vista o aumento da tem-
e à vida de outros seres vivos. Os dados peratura já constatado e a impossibilida-
apresentados, reforçados ainda pela mai- de de solução imediata.
or incidência de calamidades naturais nos
últimos 50 anos – como indica o gráfico Mudanças tecnológicas
abaixo –, apontam para a modificação
dessa média com a geração de conseqü- As iniciativas a serem adotadas pelos pa-
ências graves, até o momento, não total-
íses para a mitigação e a adaptação (M&A)
mente previsíveis. elevarão custos dos processos produtivos.
Os projetos em
PADRÕES DE EVOLUÇÃO
EVOLUÇÃO M&A influem dire-
DO NÚMERO DE DESASTRES tamente no nível
NA TURAIS
NATURAIS tecnológico, desde
a atividade
extrativista madei-
reira à produção
de chips. Mudan-
ças nesse parâ-
metro necessitam e
provocam uma re-
ação em cadeia em
toda a sociedade;
modificam, inclusi-
ve, comportamen-
tos.

• Mitigação

O Protocolo de
Quioto previu a
possibilidade da
troca comercial de
Data analysis: UNEP/DEWA/GRID-Europe
créditos de carbo-
Data sources: EM-DAT, Centre for Research on the Epidemiology of no entre países de-
Disasters (CRED), 2004. senvolvidos – com
obrigação de redu-
A elevação da temperatura, segundo o ção de emissões – e países em desenvol-
Protocolo de Quioto, impõe aos países vimento. Esses créditos são gerados pe-
problemas globais, solucionáveis somen- los projetos de MDL3 implantados em
3
Os projetos de MDL devem ser monitoráveis, de longa duração e promover o desenvolvimento
sustentável.

42 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa

países fora do Anexo I e por empreendi- Convenção-Quadro sobre Mudança do


mentos conjuntos (joint implemen-tation) Clima. Os EUA detêm o centro financei-
para redução de emissões entre países de- ro mundial, de onde virá grande parte do
senvolvidos. Criou-se, a partir dessa ini- financiamento a iniciativas de contenção
ciativa, um mercado global de carbono, e redução de emissões. A escolha políti-
complementado na Europa pelo comér- ca estadunidense sobre este tema tem in-
cio de redução de emissões certificadas
fluência global.
entre os membros da União Européia.
A política estadunidense de energia está
O Brasil é pioneiro em projetos de MDL,
baseada em três princípios fundamentais:
tem empresas especializadas neste setor segurança de suprimento; eficiência eco-
e desponta como o terceiro maior em nômica; e compatibilidade ambiental. Atu-
número de projetos (222) e taxas de re- almente, o primeiro fator tem peso maior
dução de emissões, conforme o gráfico que os demais. A política externa dos EUA
abaixo, apresentado por Marcelo Theoto dedica extrema relevância à segurança de
(2007): suas fontes de energia, e o carvão mine-

tCO2e

• Adaptação ral desponta como solução nacional de


médio prazo para possíveis crises no su-
Os institutos internacionais em funciona- primento de petróleo ou elevação exces-
mento para as partes que já ratificaram o siva dos preços desta commodity. Os da-
Protocolo de Quioto ainda carecem de dos da Organização para Cooperação e
força política e instrumentos suficientes e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da
eficientes para estabilizar as emissões de Agência Internacional de Energia dos EUA
GEEs. A não-ratificação pelos Estados e da British Petroleum apontam para au-
Unidos da América (EUA), atualmente mento na demanda primária mundial por
maior emissor de GEEs, impõe restrições energia, com intensidade maior para a
à eficiência dos esforços previstos pela demanda de carvão mineral (Anexo A).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 43


Uirá de Melo

Os cenários político e econômico para o ções climáticas extremas (maior número


período 2008-20124 indicam, segundo de furacões, aumento do nível do mar,
as projeções mais conservadoras, eleva- maior número de secas em áreas de tem-
ção na temperatura da Terra de até 2ºC peratura já elevada, inundações maiores
decorrente da elevação das emissões de e em maior quantidade).
carbono (Anexo B), apesar da manuten-
ção de esforços em pesquisas de outras As projeções do IPCC estimam tendência
fontes de energia mais limpas e aumento destrutiva dos efeitos provocados pelo au-
da eficiência energética5. mento da temperatura em todas as regi-
ões do planeta. Especificamente para a
Essas previsões associadas aos impactos América Latina, o Grupo de Trabalho II –
climáticos já constatados pelos cientistas parte da equipe responsável pelos estu-
impõem aos países a necessidade de pre- dos dos impactos das mudanças climáti-
paração para as conseqüências econômi- cas para o 4º Relatório do IPCC – en-
cas e sociais do que Nicholas Stern, eco- controu as seguintes conseqüências
nomista inglês, classificou como condi- (INTERGOVERNMENTAL, 2007):
Probabilidade Forte Histórico e Projeções
- Chuvas intensas na Venezuela em 1999
e 2005
- Inundação nos Pampas argentinos em
Variabilidade Climática e maior
2000 e 2002
ocorrência de eventos climáticos
extremos - Seca no rio Amazonas em 2005
- Chuvas de granizo na Bolívia em 2002 e
na Grande Buenos Aires/Argentina 2002
- O furacão Catarina no Atlântico Sul
- Temporada recorde em número de
furacões no Car ibe
- Chuvas mais intensas na região
Sudeste brasileira, no Paraguai, no
Uruguai, nos Pampas argentinos e em
partes da Bolívia influenciaram o cultivo
de grãos e aumentaram a intensidade e a
freqüência de inundações
- queda nas precipitações no sudeste
Mudanças em precipitação e argentino, sul do Chile, sul do Peru e
aumento da temperatura oeste da América Central
- aumento de temperatura em 1º C na
Mesoamérica 1 e na América do Sul e 0,5º
C no Brasil
- como conseqüência da elevação da
temper atura, a diminuição da neve nos
Andes r esulta em menor disponibilidade
de água para uso doméstico e geração
de energia para porções consideráveis da
Bolívia, do Equador, da Colômbia e do
Peru

4
Primeiro período obrigatório de redução das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) pre-
visto para os países do Anexo I do Protocolo de Quioto.
5
Realizar o mesmo trabalho com menor gasto de energia e menor desperdício.
6
Termo que define a região do continente americano que compreende aproximadamente o sul
do México, os territórios da Guatemala, El Salvador, Belize e as porções ocidentais de Honduras,
Nicarágua e Costa Rica.

44 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa

Probabilidade Forte Histórico e Projeções


- mudança da vegetação do semi-árido
em partes do Nordeste brasileiro e no
centro e norte mexicanos para cobertura
Extinção de espécies em áreas vegetal árida, com reflexos nas espécies
tropicais da América Latina animais
- desflorestamento maior de florestas
tropicais com extinção de espécies
animais e substituição deste bioma pelas
savanas
- desertificação e salinização de solos
agricultáveis com efeitos adversos para
os microorganismos
- nos últimos 10-20 anos, o nível do
Atlântico subiu entre 1,2-3 mm/ano no
Elevação acelerada do nível do mar, sudeste sul-americano. O continuado
variabilidade climática e eventos aumento do nível do mar afeta
populações costeiras, reduzindo a
climáticos extremos devem afetar as quantidade de água potável, extinguindo
costas da América Latina
mangues, pressionando áreas habitadas,
degradando reservas de corais e,
conseqüentemente, o estoq ue de
pescado

Futuro incerto para o Brasil


uturo Pesquisas Metereológicas e Climáticas
Aplicadas à Agricultura (Cepagri-
Unicamp), traz projeções dos efeitos da
O Brasil não estará imune às conseqüênci- elevação da temperatura para as princi-
as das mudanças do clima. Segundo o pais culturas agrícolas no País. Para o
IPCC, o País já vivencia muitas delas. A cultivo da soja, no estado do Mato Gros-
elevação do nível do mar, o aquecimento so, os gráficos gerados prevêem redução
de áreas da Amazônia, a transformação do expressiva de área de plantio (Anexo C).
semi-árido em árido e inundações no Su-
deste provocam reações em cadeia, que Na América do Sul, área de influência
vão desde o deslocamento de populações político-econômica do Brasil, os fenôme-
para regiões menos secas à movimentação nos ocasionados pela elevação continua-
de culturas agrícolas para outras áreas à da da temperatura indicam eventos climá-
procura de condições climáticas ideais. ticos extremos, como secas nos Andes
bolivianos, chuvas torrenciais e perda de
O sítio Agritempo7, disponível na rede áreas agricultáveis na Argentina, na Bolí-
mundial de computadores, integrante do via, na Colômbia, nas Guianas, no
programa de Zoneamento Agrícola insti- Paraguai, no Peru, no Suriname, no Uru-
tuído pelo governo federal, gerido pela guai e na Venezuela. Essas ocorrências
Empresa Brasileira de Pesquisa poderão pressionar contingentes
Agropecuária (Embrapa) e pelo Centro de populacionais contra os marcos fronteiri-

7
http://www.agritempo.gov.br

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 45


Uirá de Melo

ços e provocar migração ilegal, principal- Internacionalmente, Abbott (2008), Cleo


mente, para áreas da Amazônia Legal. Paskal (2007) e a German Advisory Board
for Global Change (Wissenchaftlicher
Segurança e Mudanças Climáticas Beirat der Bundesregierung Globale
Unweltveranderungen (WBGU)) destacam
O Coordenador de Programas e pesqui- que, além da pressão sobre as fronteiras
sador do Oxford Research Group, Chris provocada pela migração decorrente das
Abbott (2008), baseado em apresenta- mudanças do clima, o desaparecimento
ção concedida à Polícia Federal australia- de ilhas e modificações de territórios pelo
na em novembro de 2007, escreveu do- aumento do nível do mar poderão gerar
cumento intitulado An Uncertain Future: disputas territoriais e questionamentos
Law Enforcement, National Security and sobre soberania, uma vez que zonas eco-
Climate Change. No texto, o cientista in- nômicas exclusivas deverão ser redefinidas
glês destaca três modalidades de impac- e populações inteiras detentoras de iden-
tos socioeconômicos: a) perda de infra- tidade cultural singular perderão suas ter-
estrutura; b) escassez de fontes de recur- ras, tendo de ser deslocadas para áreas já
sos naturais; c) migração de grandes con- pertencentes a outro Estado. O derreti-
tingentes populacionais. mento das calotas polares e a conseqüente
abertura de novas passagens no Ártico,
As alterações dos padrões segundo Abbot e Paskal, poderão gerar
disputas pelo controle de novas rotas de
climáticos construirão navegação. A pressão para as restrições
conte
contexto
xto em que a das emissões de mercados emergentes –
Inteligência e a Defesa como a China, a Índia e, talvez, o Brasil e
a Rússia – seria também fator de disputa
serão pr otagonistas.
protagonistas. e desestabilização entre os países.
Neste cenário, não há uma separação tem- Além disso, Abbott, Paskal e a WGBU
poral para a ocorrência dos eventos. A apontam para a maior necessidade de fi-
interação entre eles aumenta o potencial nanciamento e transferência de tecnologia
destrutivo e a complexidade dos proble- de nações desenvolvidas para os Estados
mas a serem solucionados pelas institui- em desenvolvimento, os mais afetados
ções nacionais e internacionais de segu- pelos eventos climáticos extremos.
rança e defesa.
As implicações decorrentes dessas previ-
No âmbito interno, a migração de grupos sões são variadas e inter-relacionadas.
inteiros, fugindo de secas e outras catás- Para Abbott, a polícia e a segurança jurí-
trofes ambientais, como enchentes, avan- dica seriam afetadas por demandas cres-
ço do mar sobre áreas habitadas, tem centes por maior segurança nas frontei-
potencial de geração de conflitos de duas ras; modificações na taxa de incidência e
naturezas: a primeira entre comunidades nos tipos de delitos; nova legislação para
já assentadas e contingentes migratórios assegurar os programas de mitigação e
internos e a segunda decorrente da pres- adaptação; e melhor planejamento das
são desses grupos sobre o governo para polícias e corpos de assistência de emer-
a tomada de soluções rápidas. gência (no Brasil – a defesa civil) para aten-

46 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa

dimento a áreas e populações vítimas dos Nesse sentido, já em 2003, relatório pro-
efeitos de desastres naturais. duzido pelo Pentágono identificava as
mudanças climáticas como ameaça à se-
Paskal (2007) e Abbott (2008) destacam
gurança nacional estadunidense. Concep-
ainda os desafios impostos à estabilidade
ção encampada pela CNA Corporation
da segurança nacional e aos militares que
teriam de considerar: dificuldades para (CNAC)8, que, auxiliada por especialistas
manutenção da capacidade de acionamento e ex-militares de alta patente de todas as
das forças militares que operariam em am- armas, produziu o documento National
bientes sob influência de eventos climáti- Security and the Threat of Climate Change
cos extremos, colocando recursos huma- (Segurança Nacional e a Ameaça da Mu-
nos e materiais em risco; a perda de insta- dança do Clima). O documento da CNAC
lações decorrentes de furacões ou do avan- produziu as seguintes recomendações ao
ço do mar; maior necessidade de interven- governo estadunidense:
ções humanitárias; e maior demanda por
intervenções para assegurar a estabilidade 1. As conseqüências das mudanças do cli-
em áreas estratégicas. ma para a segurança nacional devem ser
totalmente contempladas pelas estratégi-
O papel da Inteligência e da Defesa: o as de segurança nacional e defesa;
que já está sendo feito
2. Os Estados Unidos da América devem
O aumento de catástrofes climáticas em
assumir posição mais forte e protagonista
todo mundo impõe, a cada país e também
ao Estado brasileiro, preparação para co- para ajudar a estabilizar a mudança do
laborar com ações humanitárias e interven- clima em um nível que impeça a
ções com participação de militares, em desestruturação significante da seguran-
todo o globo, destinadas a dirimir danos ça e estabilidade globais;
gerados por catástrofes naturais e confli-
tos ocasionados pelas mudanças no clima. 3. Os EUA devem se empenhar em par-
cerias globais que colaborem com nações
As alterações dos padrões climáticos menos desenvolvidas na construção de
construirão contexto em que a Inteligên- capacidade e poder de recuperação para
cia e a defesa serão protagonistas. Dos melhor administrarem impactos gerados
órgãos de defesa serão exigidas respos- pelas mudanças climáticas;
tas tempestivas a eventuais conflitos e
ameaças à integridade territorial. 4. O Departamento de Defesa dos EUA
deve aprimorar sua capacidade
A Inteligência não será menos solicitada,
operacional por meio da adoção de pro-
pois seu caráter analítico e, em especial,
cessos de gestão nascidos no meio
sua habilidade para construção de prog-
nósticos (ou cenários, estimativas) será corporativo e de tecnologias inovado-
ferramenta para a tomada de decisão do ras que resultem em poder de combate
Executivo. maior e eficiente energeticamente;

8
Centro de pesquisa e análise, sediado nos EUA, que congrega o Center for Naval Analysis e o
Institute for Public Research.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 47


Uirá de Melo

5. O Departamento de Defesa dos EUA que há muito identificava ameaças à se-


deve elaborar uma avaliação dos possí- gurança provocadas pelas mudanças cli-
veis impactos nas instalações militares máticas como uma tendência para os pró-
estadunidenses em todo mundo produzi- ximos anos, contratou, em setembro de
dos pelas mudanças climáticas nos próxi- 2007, por US$ 24 milhões, o UK Met
mos 30 a 40 anos. Office Hadley Centre para a pesquisa de
áreas do globo onde as mudanças climá-
... os países terão de ticas podem gerar conflitos e para avaliar
contemplar em suas e construir cenários de condições climá-
estratégias voltadas ao ticas sobre as quais as forças britânicas
podem ser empregadas.
combate às mudanças do
clima não só medidas para a A Austrália segue a tendência de sua ex-
diminuição de emissões, mas, metrópole e também incorporou aos te-
mas de segurança as implicações
com mesma ênfase, a criação provocadas pelas mudanças climáticas.
de alternativas de adaptação
Conclusão
ao novo cenário climático.
As mudanças climáticas já exercem influ-
Algumas destas medidas já foram contem-
ência importante na construção de prog-
pladas pelo governo estadunidense, como
nósticos em todo o mundo. Os efeitos
se pôde depreender da disposição do pre-
decorrentes das mudanças do clima e a
sidente George Walker Bush para a cons-
própria existência destas já não são mais
trução de alternativa ao Protocolo de
contestados. Resta à comunidade cientí-
Quioto, externada na última reunião do
fica engajada no âmbito do IPCC e da
Grupo dos 8 países mais influentes do
UNFCCC responder às demandas
mundo, em Berlim, Alemanha, e pela po-
sição adotada pelos representantes diplo- surgidas das constatações de seus relató-
máticos dos EUA em Bali, em dezembro rios e aos países responderem com pla-
de 2007. nejamentos de longo prazo que contri-
buam com a redução das emissões e pla-
O Departamento de Estado, na mesma nos para adaptação.
direção, incorporou as mudanças climá-
ticas aos temas de trabalho da Agência O protocolo de Quioto, apesar de ter vi-
Central de Inteligência dos EUA (Cen- gência por mais quatro anos, já demons-
tral Intelligence Agency (CIA)), em aten- tra sinais de ineficiência na mitigação das
dimento ao solicitado no Global Climate emissões e revela desarticulação entre os
Change Security Oversight Act, apresen- países participantes em decorrência da
tado ao Congresso estadunidense em não adesão dos EUA. Um caminho viável
abril de 2007. para a diminuição das emissões arrasta-
se ainda nos fóruns internacionais, sem
Na mesma linha, o Ministério da Defesa sinais claros de que apresentará uma so-
Britânico (Ministry of Defence (MOD)), lução factível e de curto prazo.

48 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa

Neste cenário, os países terão de con- área de segurança e defesa que a questão
templar em suas estratégias voltadas ao impõe, apesar do Decreto n.º 6.263, de
combate às mudanças do clima não só 21 de novembro de 2007, que cria o Co-
medidas para a diminuição de emissões, mitê Interministerial sobre Mudança do
mas, com mesma ênfase, a criação de al- Clima – coordenado pelo MMA –, e da
ternativas de adaptação ao novo cenário intensa participação brasileira em fóruns
climático. Planejamento que não traga internacionais por meio de sua represen-
previsões específicas voltadas para a adap- tação diplomática e técnica.
tação a esta nova realidade será incom-
pleto e passível de fracasso. Países que não estejam preparados para
lidar com o tema das mudanças climáti-
Está claro que o exercício efetuado pelo
cas e suas conseqüências tendem a ser
CNAC e pelo Ministério da Defesa Britâ-
retardatários nas ações globais acerca do
nico (MOD – sigla em inglês) não é auto-
problema, perdendo força política inter-
maticamente transferível à realidade brasi-
leira, mas serve como exemplo para um nacional e colocando a estabilidade inter-
país que pleiteia protagonismo na região na em perigo. Uma participação leniente
sul-americana e nas discussões acerca do na busca de soluções para a questão em
tema das mudanças climáticas. Não há, até tela levaria esses países a dependerem da
o momento, no Brasil, coordenação inter- contribuição internacional para a manu-
na suficiente entre as instituições públicas tenção da segurança e para cumprir me-
afeitas ao tema que permitam ao País pre- tas e cronogramas estabelecidos no âm-
caver-se e preparar-se para os desafios na bito da ONU.

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Uirá de Melo

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Royal Institute of International Affairs: Chatham House, jun.2007. Disponível em:
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EFEITO ESTUFA’, 1., 2007, Cuiabá.
ZULLO JÚNIOR, J. Mudanças Climáticas e Agricultura. In: CONGRESSO DO ‘CENTRO-OESTE
BRASILEIRO SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E REDUÇÃO DE GASES DO EFEITO ESTUFA’,
1., 2007, Cuiabá.

50 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa

ANEXO A

Cenário mundial do carvão mineral:


projeção da demanda mundial de energia por fonte geradora

Cenário mundial do carvão mineral:


reservas/produção/consumo 2004

255 247

258

Europa
América do Norte

0,4 Ásia
50
20 Oriente Médio
Reservas
909 Gt África 79
América do Sul

Produção Oceania
5,5 Gt/ano

Consumo
4,8 Gt/ano

Fonte: BP Statistical Review of World Energy - Jun/05

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 51


Uirá de Melo

ANEXO B

Cenários – temperatura e mudanças

52 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa

ANEXO B (continuação)

Cenário mundial dos efeitos do aumento da temperatura


e necessidades de adaptação: projeção

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 53


Uirá de Melo

54 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Mudanças climáticas: Inteligência e Defesa

ANEXO C

Cenários: Efeitos da elevação da temperatura nas áreas


propícias ao cultivo da soja no estado do Mato Grosso

Cultura: SOJA
Retenção Solo:50
Ciclo: 125 Cultura: SOJA
Área Apta: 893243 KM2 Retenção Solo:50
Ciclo: 125
Área Apta: 847560 KM2

Cultura: SOJA Cultura: SOJA


Retenção Solo:50 Retenção Solo:50
Ciclo: 125 Ciclo: 125
Área Apta: 326666 KM2 Área Apta: 326666 KM2

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 55


AATIVIDADE OPERACIONAL EM BENEFÍCIO D
TIVIDADE
ATIVID A
DA
SEGURANÇA PÚBLIC A: o combate ao crime or
PÚBLICA: ganizado
organizado

Cristina Célia FFonseca


onseca Rodrigues

Resumo

A globalização favoreceu a expansão geográfica dos crimes transnacionais que utilizam as faci-
lidades tecnológicas para encobrir suas atividades ilícitas. O tripé integrado por narcotraficantes,
terroristas e contrabandistas atua em conjunto ou de forma complementar constituindo uma
grave ameaça à sociedade e aos Estados nacionais. Nesse contexto, as operações de Inteligên-
cia governamental e policial, aliadas ao intercâmbio de dados e informações entre Serviços de
Inteligência são instrumentos legais à disposição do Estado, na busca do dado sigiloso e prote-
gido. No Brasil, a Abin é responsável pela interface com os órgãos internos e os Serviços
estrangeiros, e tem por missão fomentar a integração da comunidade de Inteligência. Para
cumprir esta missão, a Abin deve atuar como a instituição governamental que reúne, analisa e
processa dados oriundos de diversas fontes com o objetivo de produzir conhecimentos estraté-
gicos para o assessoramento das autoridades decisórias.

Introdução
Introdução diversifica as atividades criminosas. Ho-
micídios dolosos, roubos, furtos, seqües-
tros e latrocínios estão, freqüentemente,

N as últimas décadas, o aumento dos


índices de criminalidade e a atuação
de organizações criminosas transnacionais
associados ao consumo e venda de dro-
gas e à utilização de armas ilegais.

colocaram o tema Segurança Pública en- Mundialmente, o tripé integrado por


tre as principais preocupações da socieda- narcotraficantes, terroristas e contrabandis-
de e do Estado brasileiros. A delinqüência tas de armas e de seres humanos atua em
e a violência criminal afetam, em maior ou conjunto ou de forma complementar, cons-
menor grau, toda a população, provocan- tituindo uma grave ameaça à sociedade e
do sensação de apreensão, medo e des- aos Estados nacionais. A globalização fa-
crenças nas instituições estatais responsá- voreceu a expansão geográfica dos crimes
veis pela manutenção da Paz Social. transnacionais que utilizam as facilidades
comerciais, as comunicações e os múlti-
O Projeto Segurança Pública para o Bra- plos meios de transportes para encobrir
sil da Secretaria Nacional de Segurança suas atividades ilícitas.
Pública (Senasp) aponta como principal
causa do aumento da criminalidade o trá- Em razão da complexidade, da amplitude
fico de drogas e de armas. A articulação e do poderio das redes criminosas
entre estes dois ilícitos potencializa e transnacionais, a solução para a

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 57


Cristina Célia Fonseca Rodrigues

criminalidade depende de decisões polí- vidades, alto poder de intimidação, alta


tico-econômico-sociais e, concomi- capacitação para a fraude, conexão lo-
tantemente, de ações preventivas e repres- cal, regional, nacional ou internacional
sivas de órgãos estatais. A cooperação com outras organizações e capacidade
entre os países torna-se imperativa e para ameaçar interesses e instituições
determinante para o enfrentamento do nacionais.
crime organizado.
Detentoras de grande poderio financeiro,
Nesse contexto, as operações de Inteli- as organizações criminosas recrutam, com
gência governamental e policial, aliadas facilidade, elementos para compor e re-
ao intercâmbio de dados e informações novar seus quadros, e passam a contar
entre Serviços de Inteligência, são instru- com indivíduos motivados financeiramen-
mentos legais à disposição do Estado, na te, bem treinados e munidos de armamen-
busca do dado sigiloso e protegido. to, muitas vezes superior aos das forças
policiais. Tais fatores, aliados à ilegalida-
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), de inerente as atividades das organizações
órgão central do Sistema Brasileiro de criminosas, tornam desigual o confronto
Inteligência (Sisbin), deve assumir a mis- com as forças policiais.
são de centralizar, processar e distribuir
dados e informações estratégicos para 2 Globalização do crime organizado
organizado
municiar os órgãos policiais (federais, es-
tatais e municipais) nas ações de comba- Nas últimas décadas do século XX, a
te ao crime organizado. Além disso, a globalização permitiu ao crime organiza-
Abin é responsável por manter contato do transnacional expandir-se geografica-
com os Serviços de Inteligência parcei- mente e operar em qualquer continente
ros, no sentido de favorecer a troca de ou Nação. Inovações tecnológicas facili-
informações e a cooperação multilateral. taram o fluxo das telecomunicações e do
tráfego comercial aéreo, repercutindo no
1 Organizações criminosas
Organizações crescimento do comércio internacional.
Uma nova forma de fazer negócios sur-
A ciência criminológica aponta como prin- giu, possibilitando a movimentação de
cipais características de uma organização grandes volumes de dinheiro e a circula-
criminosa: hierarquia estrutural, planeja- ção de produtos e pessoas entre países e
mento empresarial, claro objetivo de lu- blocos econômicos. As organizações cri-
cros, uso de meios tecnológicos avança- minosas valeram-se de tais facilidades para
dos, recrutamento de pessoas, divisão encobrir suas atividades ilícitas e dificul-
funcional de atividades, conexão estrutu- tar o controle por parte dos Estados.
ral ou funcional com o poder público e/
ou com o poder político, oferta de pres- Para Shelley 1 (2001, p.1), o fim da
tações sociais, divisão territorial das ati- Guerra Fria permitiu o surgimento da

1
Louise Shelley é professora da Escola de Serviço Internacional e fundadora e diretora do
Centro Transnacional de Combate ao Crime e à Corrupção na Universidade Americana em
Washington, D.C. Uma das principais especialistas em crime e terrorismo transnacional, ela é
a autora de Policing Soviet Society e Crime and Modernization, bem como de vários artigos e
capítulos de livros que enfocam os mais variados aspectos do crime transnacional.

58 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


A atividade operacional em benefício da Segurança Pública

globalização simultânea do crime, do ter- tar, obstruir e neutralizar a ação de ele-


ror e da corrupção, “trindade obscena” mentos adversos e que atuam contra os
que se manifesta em todo o mundo. A interesses do Estado ou da sociedade.
atuação das redes criminosas
transnacionais em conjunto com terroris- Em Estados democráticos, como o Bra-
tas tornou-se viável a partir de uma sil, as operações de Inteligência devem
corrupção endêmica, verificada em diver- ser executadas estritamente em obediên-
sas Nações. Shelley analisa como a mes- cia aos preceitos constitucionais vigentes,
ma globalização que atrai empresas salvaguardando direitos e garantias indi-
multinacionais legítimas permitiu que cri- viduais e em consonância com as normas
minosos e terroristas desenvolvessem re- estabelecidas no Direito Internacional.
des transnacionais, “dispersando suas ati-
vidades, seu planejamento e sua logística Os dados e as informações reunidos pos-
em vários continentes, confundindo, as- sibilitam identificar e compreender as ca-
sim, os sistemas jurídicos estatais usados racterísticas, a estrutura, as formas de fi-
para combater o crime transnacional em nanciamento e o modus operandi das or-
todas as suas manifestações”. ganizações criminosas e de seus compo-
nentes. Conhecer estes elementos é es-
De acordo com Shelley (2006, p.2), o sencial para (a) a formulação de políticas
crime organizado e o terrorismo sempre direcionadas para Segurança Pública; (b)
operaram fora de suas fronteiras, mas a o planejamento de ações preventivas e
novidade trazida pela globalização é a ofensivas; (c) o subsídio de análises
velocidade e a freqüência das interações, prospectivas em nível estratégico; e (d) o
e a intensidade da cooperação entre as fornecimento de provas materiais aos pro-
formas de crimes transnacionais. cessos judiciais.
Azevedo (2002, p. 473) concorda com Gonçalves (2006) defende que:
Shelley, e anota que os crimes
transnacionais são os maiores beneficiários Diante do grau de complexidade e
do processo de globalização e que os diversificação do crime organizado, a
atividade de Inteligência adquire grande
“mesmos irão proliferar a uma velocidade
importância não só para a repressão, mas,
altíssima, razão pela qual a Inteligência de sobretudo, no que concerne à prevenção
Estado e policial torna-se essencial para o contra o desenvolvimento do crime
combate de organizações”. organizado. A atividade de Inteligência é
útil para o planejamento de estratégias de
3 Operações de Inteligência no comba- ação das autoridades no contexto da
te ao crime organizado
organizado segurança pública. E as ações de
inteligência devem reunir Inteligência
governamental e policial, em escala federal
3.1 Inteligência de Estado e Inteligência e estadual.
policial
Apesar de apresentarem características
As operações de Inteligência são técnicas comuns, operações de Inteligência esta-
especializadas aplicadas na busca do co- tal e policial têm finalidades diferencia-
nhecimento privilegiado ou do dado ne- das. As operações de Inteligência de Es-
gado, com o objetivo de prevenir, detec- tado, inseridas na fase da reunião de da-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 59


Cristina Célia Fonseca Rodrigues

dos2, são realizadas para responder à de- A necessidade de cooperação entre os


manda da Atividade de Inteligência, que órgãos estatais e a comunidade internaci-
consiste na obtenção de dados e/ou in- onal é considerada elemento imprescin-
formações relevantes e pertinentes para dível no combate ao crime transnacional.
compor conhecimentos estratégicos e Godoy (2005, p.9) afirma que os proble-
subsidiar as autoridades com poder mas estratégicos, “por seu caráter sorra-
decisório. teiro, [...] só podem ser contidos por meio
de uma eficaz atuação dos serviços de
... operação de Inteligência Inteligência dos diversos países, que [...]
de Estado [...] visa a devem trocar informações entre si”.
transformar informações No Brasil, cabe à Agência Brasileira de
táticas em conhecimentos Inteligência (Abin) – criada pela Lei nº
estratégicos que antecipam 9.883 (BRASIL, 1999) – manter con-
fatos, alertam para situações tato com os Serviços de Inteligência
estrangeiros e promover o intercâmbio
e subsidiam documentos de conhecimentos e a realização de
para o assessoramento das trabalhos conjuntos. Paiva (2005, p.
autoridades governamentais. 39), reforça a idéia da necessidade de
cooperação multilateral:
Gonçalves (2006, p. 6 e 7) anota que as Vários textos, convenções e resoluções da
ações de Inteligência de Estado assumem Organização das Nações Unidas têm
várias funções, e cita o planejamento es- conclamado a cooperação entre os
tratégico e a análise prospectiva como as ser viços de Inteligência dos países-
principais: membros daquele organismo internacional
para que se juntem nesse sentido e
Com base na coleta e no processamento cooperem trocando experiências e
de informações de caráter nacional e informações.
internacional – como rotas de tráfico, No âmbito interno, compete à Abin –
dados sobre o consumo em várias regiões
do país, as novas tipologias –, pode-se órgão central do Sistema Brasileiro de
fazer um mapeamento das atividades das Inteligência (Sisbin) – planejar, executar,
organizações criminosas e das coordenar, supervisionar e controlar as
características dos diversos grupos que atividades de Inteligência do País. A insti-
atuam em variados setores, estabelecendo-
se as conexões. tuição, amparada por prerrogativas legais,
deve receber, analisar e processar os da-
Acrescente-se também [ao emprego das dos e informações coletados e buscados
ações de inteligência] a análise prospectiva
pelos diversos órgãos que compõem a
com o objetivo de identificar as tendências
de ação do crime organizado e suas comunidade de Inteligência interna e ex-
tipologias. Por meio dessas variáveis, é terna. O destino do material informacional
possível traçar linhas mestras de ação na reunido é a produção de conhecimentos
prevenção e no combate às organizações
oportunos e estratégicos para o
criminosas, em escala nacional, além de
criar instrumentos para cooperação com assessoramento das autoridades
outros entes da comunidade internacional. decisórias.

60 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


A atividade operacional em benefício da Segurança Pública

Azevedo (2002,p.469) cita o Manual de Estado”. Compartilhar dados e informa-


Inteligência Policial do Departamento de ções, integrando bancos de dados, capa-
Polícia Federal para definir operações de citando pessoal para as ações ofensivas
Inteligência como: são iniciativas que devem ser buscadas,
sobretudo pelos órgãos que integram o
[...] conjunto de ações de Inteligência Sisbin, em parceria com as agências es-
Policial que empregam técnicas especiais trangeiras.
de investigação, visando a confirmar
evidências, indícios e obter conhecimentos 3.2 Técnicas Operacionais
sobre a atuação criminosa dissimulada e
complexa, bem como à identificação de
Para o enfrentamento de redes crimino-
redes e organizações que atuam no crime,
de forma a proporcionar um perfeito sas (compostas por elementos treinados,
entendimento sobre seu “ modus motivados financeira ou ideologicamente
operandi”, ramificações, tendências e e munidos de armamento moderno e de
alcance de suas condutas criminosas. tecnologia avançada), o elemento
No âmbito policial, as operações de Inte- operacional necessita planejar cuidadosa-
ligência Policial têm o compromisso de mente as ações a serem executadas. Para
reunir e produzir provas materialmente tanto, necessita primeiramente de um
lícitas e processualmente legítimas para Estudo de Situação (ES), com levantamen-
validar ações na Justiça e “produzir co- to completo dos dados e informações
nhecimentos a serem utilizados em ações existentes sobre o alvo da operação. Os
e estratégias de polícia judiciária”, aspectos levantados no ES servem de sub-
Menezes e Gomes (2006, p.41). sídios para a elaboração do Plano de
Operações (OP) que deverá abordar os
A distinção entre operação de Inteligên-
itens situação, missão, execução, medi-
cia de Estado e operação policial é que
das administrativas, coordenação e con-
a primeira visa a transformar informações
trole. No detalhamento da forma de exe-
táticas em conhecimentos estratégicos
cução, o elemento operacional analisa as
que antecipam fatos, alertam para situa-
técnicas operacionais necessárias para a
ções e subsidiam documentos para o
assessoramento das autoridades gover- consecução da missão.
namentais, enquanto a segunda, como A coleta de dados em ambiente adverso
cita Azevedo (2002, p. 470), busca a
exige o emprego de diferentes tipos de
produção de provas da materialidade e
técnicas operacionais, das mais simples
autoria de crimes.
às mais complexas (recrutamento e infil-
No entanto, é imprescindível a interação tração de agentes), executadas isolada-
entre as Inteligências governamentais e as mente ou em conjunto (emprego de uma
policiais, Menezes e Gomes (2006, p. 42) estória-cobertura para realizar um reco-
analisam que “é incontestável e premen- nhecimento); no entanto, observa-se que
te a maior interação entre os órgãos [...] requisitos como planejamento detalhado,
policiais e de segurança do Estado, com treinamento dos agentes, meios
a mitigação da exacerbada tecnológicos e equipamentos seguros e
compartimentação, com a comunicação adequados para a missão são comuns às
em tempo real de possíveis ameaças ao ações especializadas.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 61


Cristina Célia Fonseca Rodrigues

Entre as técnicas especializadas legiti- No tocante ao controle das telecomuni-


mamente empregadas, Azevedo (2002, cações e na produção de imagens, a Inte-
p. 470) destaca a “vigilância; o recruta- ligência de Sinais (Intlg Sin) representa
mento; a interceptação e o monitoramento importante ferramenta de busca de da-
de comunicações telefônicas, telemáticas dos ao produzir conhecimentos técnicos
e em sistemas de informática; a captação e operacionais a partir dos sinais inter-
e a interceptação ambiental de sinais ele- ceptados de comunicações (incluindo si-
tromagnéticos, óticos ou acústicos; e a nais de voz e de dados, como telegrafia,
infiltração de agente” em organizações fac-símile e comunicações por satélite) e
criminosas. Além das técnicas elencadas de não-comunicações (oriundos de rada-
por Azevedo, outras ações, como a ob- res e de guiamento de armamento).
servação, memorização e descrição
(OMD), a estória-cobertura, o reconhe- As ações especializadas
cimento, a fotografia, a entrevista, são lar- são fer ramentas da
ferramentas
gamente empregadas na busca do dado
protegido.
Atividade de Inteligência
capazes de obter dados
Para Azevedo (2002, p. 470), monitorar
as comunicações “torna-se imprescindível
sigilosos sobre estrutura,
face aos óbices encontrados na produção financiamentos, modus
de inteligência”, pois as organizações cri- operandi, rrotas
otas e redes das
minosas são “impermeáveis à presença de or
organizações
ganizações criminosas.
estranhos”; assim, técnicas convencionais de
investigação tornam-se inócuas quando se Para o enfrentamento do crime organiza-
trata de crime organizado especializado. do, a Intlg Sin realiza o mapeamento ele-
trônico sobre regiões de interesse; cria e
A Abin não possui amparo legal para rea-
alimenta bases de dados com informações
lizar a interceptação e o monitoramento
técnicas das emissões eletromagnéticas
das comunicações telefônicas. Tal fato tem
provenientes das regiões de interesse; e
sido apontado por especialistas na área
fornece indícios para a utilização de ou-
de Inteligência de Estado como uma falha
tros sistemas e fontes (Humanas e Imagens).
legislativa, pois cerceia o órgão central do
Sisbin de empregar esta importante téc- Efetivamente, a Inteligência de Sinais for-
nica operacional na busca de dados refe- nece dados sobre pistas de pouso clan-
rentes, sobretudo à atuação do crime or- destinas utilizadas por narcotraficantes;
ganizado e às atividades de espionagem deslocamentos de comboios em faixa de
em território nacional. fronteiras ou em rios; fotos de plantações
de entorpecentes; e acompanhamento de
Discute-se, no âmbito do Poder
freqüências de rádio e comunicações clan-
Legislativo, a aprovação de legislação que destinas das redes de criminosos.
garanta o direito de a Abin realizar
interceptações telefônicas, especificamen- Para atingir o objetivo de buscar dados
te nos casos que envolvam sabotagem, em ambientes adversos, há a exigência
crime organizado e espionagem. de aperfeiçoamento constante para os

62 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


A atividade operacional em benefício da Segurança Pública

agentes operacionais (que devem estar técnica operacional relevante na busca do


atualizados com as inovações dado protegido, em um ambiente herme-
tecnológicas e treinados para empregá- ticamente fechado e segmentado. Neste
las), aprimoramento e modernização de contexto, a Inteligência de Sinais repre-
equipamentos e acompanhamento psico- senta uma ferramenta importante para a
lógico para os profissionais de Inteligên- aquisição de sinais e de imagens que
cia que atuam no setor. orientam ações de combate e subsidiam
conhecimentos estratégicos.
3.3 Considerações finais
A Abin, enquanto órgão oficial de Inteli-
A globalização do crime e as perspecti-
vas de crescimento das organizações cri- gência do Estado Brasileiro, necessita de
minosas transnacionais – com ampliação prerrogativas legais que lhe assegurem a
de redes de atuação e constantes inova- possibilidade de realizar, obedecendo aos
ções no modo de ação – exigem dos Es- preceitos constitucionais vigentes, o
tados nacionais atividades coordenadas no monitoramento das comunicações,
âmbito da Segurança Pública, aliadas ao notadamente em casos que envolvam or-
intercâmbio de dados e informações com ganizações criminosas e espionagem.
as agências de Inteligências parceiras, de
forma a reduzir o avanço e a expansão O sucesso do embate entre as Nações e o
das redes criminosas internacionais. crime organizado depende de cooperação,
coordenação e controle, e da presença
As ações especializadas são ferramentas decisiva das Inteligências de Estado e poli-
da Atividade de Inteligência capazes de cial. No Brasil, a Abin é responsável pela
obter dados sigilosos sobre estrutura, fi- interface com os órgãos internos e os Ser-
nanciamentos, modus operandi, rotas e viços estrangeiros, e tem por missão fo-
redes das organizações criminosas. Para mentar a integração da comunidade de In-
combater eficientemente as diversas teligência. Para cumprir esta missão, a Abin
modalidades de crimes transnacionais, é deve funcionar como a instituição gover-
preciso penetrar na hierarquia com- namental que reúne, analisa e processa
partimentalizada das organizações crimi- dados oriundos das diversas fontes, pro-
nosas para conhecer seus objetivos e li- duz conhecimentos estratégicos para o
gações, e antecipar suas ações.
assessoramento das autoridades decisórias
Os dados coletados por elementos e compartilha o conhecimento processa-
operacionais são imprescindíveis para a do com os órgãos parceiros.
elaboração de planejamento estratégico
Reconhecidamente, o combate às orga-
de ações de órgãos da segurança públi-
ca, de análise prospectiva da evolução nizações criminosas transnacionais repre-
do crime e, também, para a produção senta uma tarefa árdua e perene, que deve
de provas para a ação judicial. ser executada, permanentemente, dentro
de preceitos legais, mas com ações pró-
A interceptação das comunicações e dos ativas de Inteligência governamental e
sinais eletromagnéticos é considerada uma policial, e cooperação multilateral.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 63


Cristina Célia Fonseca Rodrigues

Referências

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ATIVIDADES DE INTELIGÊNCIA NO BRASIL: CONTRIBUIÇÕES PARA A SOBERANIA E A DEMO-
CRACIA. Brasília, 2002. Coletânea de textos apresentados no... Brasília: Abin, 2003. p. 463-481.
BRASIL. Decreto nº 4. 872, de 6 de novembro de 2003. Dá nova redação aos arts. 4º, 8º e 9º do
Decreto nº 4.376, de 13 de setembro de 2002, que dispõe sobre a organização e o funcionamento do
Sistema Brasileiro de Inteligência, instituído pela Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 7 nov. 2003. Seção 1.
BRASIL. Lei Nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999. Institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a
Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federa-
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aug. 2001. Questões Globais: coibição do crime internacional. Disponível em <http://www.iwar.org.uk/
ecoespionage/resources/transnational-crime/ijge0801.htm>. Acesso em 30 ago. 2007.

64 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


DESCRIMINALIZAÇÃO DO DELITO DE POSSE
DE ARMAS NO BRASIL

Douglas Mor ullin Saldanha1


gan FFullin
Morgan

Resumo

Trata-se de estudo destinado a investigar as normas incriminadoras da Lei 10.826/2003,


conhecida como Estatuto do Desarmamento, mormente quanto ao delito de posse de armas.
Aborda as alterações sofridas pela legislação do desarmamento, concernente às campanhas
de regularização e de desarmamento, que ocasionou a descriminalização da conduta de
posse de armas de fogo de uso permitido e de uso restrito. Outrossim, destaca-se, sobrema-
neira, a abordagem do tema sob o prisma dos princípios constitucionais que visam conter o
aparelho estatal repressor, funcionando como uma forma de controle da atuação do direito
penal. Por fim, diante do amplo estudo da referida temática e dos diplomas legais pertinen-
tes, tecem-se considerações acerca da necessidade de alterações na regulamentação da cam-
panha do desarmamento de modo a evitar o efeito reflexo de acarretar a abolitio criminis nos
delitos de posse de armas de uso permitido e de uso restrito.

1 Descriminalização do delito de sentido, o item 9 da Exposição de Moti-


posse de armas vos nº 293, de 24 de maio de 1999,
(apud FIGUEIREDO, 2006) que dá su-
1.1 Campanhas de Regularização e do porte ao projeto de lei do Estatuto do De-
Desarmamento sarmamento, já apontava para a necessi-
dade de um posicionamento legal “sobre
as armas que estão em poder de particu-

E ntre as metas almejadas pelo Estatuto


do Desarmamento, está a retirada de
circulação do maior número de armas de
lares, na forma do art. 2, no sentido de
determinar aos proprietários das armas
que as recolham às unidades das Forças
fogo possível, visando à redução dos ín- Armadas, da Polícia Federal ou da Polícia
dices de violência e o fortalecimento do Civil, garantindo-lhes a indenização de-
sentimento de segurança social. Neste corrente desse recolhimento”.

1
O autor é delegado de Polícia Federal lotado na Diretoria de Combate ao Crime Organizado
em Brasília, pós-graduado em Direito Público e em Ciências Penais, e professor na Academia
Nacional de Polícia.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 65


Douglas Morgan Fullin Saldanha

A Lei nº 10.826 de dezembro de 2003 quer tempo à Polícia Federal, mediante


também previu, nos arts. 30, 31 e 32, recibo e indenização.
algumas formas de se retirar armas de fogo
de circulação, assim como regularizar Já o art. 32 da redação original do estatuto
aquelas que permaneceriam em poder da previa a hipótese de entregar a arma de
sociedade civil. fogo não -registrada à Polícia Federal, no
não-registrada
prazo de 180 dias após a publicação da
O Estatuto dispôs, em seu art. 30, sobre Lei, mediante indenização, desde que pre-
a possibilidade de os possuidores e pro- sumida a boa-fé do possuidor ou proprie-
prietários de armas de fogo não não-- tário. Vale dizer que a referida boa-fé é
registradas solicitarem o registro perante presumida, desde que não conste no Sis-
o órgão competente, no prazo de 180 tema Nacional de Armas (SINARM) ne-
dias da publicação da lei, desde que apre- nhum dado que aponte a origem ilícita da
sentassem nota fiscal de compra ou a com- arma (apreendida, furtada, roubada etc)2.
provação da origem lícita da posse.
Devido ao sucesso da campanha de regu-
Esse dispositivo consagrou uma espécie de larização e do desarmamento, o prazo de
anistia irrestrita, que motivou a aquisição 180 dias fixado no estatuto, cujo início se
pela população de armas não -registradas
não-registradas
-registradas, deu em 23 de dezembro de 2003, foi es-
principalmente de origem estrangeira, para tendido, por meio das Leis nº 10.884/
regularizá-las posteriormente. Ciente des- 2004, 11.118/2005 e 11.191/2005,
sa repercussão social da regulamentação com encerramento em 23 de outubro de
legal, o legislador, via Medida Provisória 2005.
no. 417, de 31 de janeiro de 2008, alte-
rou a redação do art. 30. O novo texto Em pesquisas da área de segurança pú-
prevê que somente as armas de fogo de blica, evidenciam o contínuo incremento
fabricação nacional, de uso permitido e não das mortes causadas por armas de fogo,
registradas, e as de procedência estrangei- que só sofreu decréscimo após os esfor-
ra, de uso permitido e fabricadas anterior- ços empreendidos na campanha do de-
mente ao ano de 1997 (ano de promulga- sarmamento, que se deu nos anos 2004
ção da Lei nº 9.437, de 20 de fevereiro), e 2005. Isto ficou demonstrado no “Mapa
estarão sujeitas à regularização. No entan- da Violência dos Municípios Brasileiros
to, o referido dispositivo não subsistiu após 2008” (WAISELFISZ, 2008).
a conversão da Medida Provisória na Lei
nº 11.706, de 26 de junho de 2008. Os resultados da campanha do desarma-
Novamente foi permitida a regularização mento nos índices de violência e a pressão
de qualquer arma de fogo de calibre per- da sociedade, principalmente através das
mitido até 31 de dezembro de 2008. organizações não-governamentais (ONGs),
levou o legislador a novamente conceder
O art. 31, que não teve sua redação alte- prazo de regularização das armas, assim
rada, prevê a possibilidade de uma arma como a reestabelecer a campanha do de-
de fogo registrada ser entregue a qual- sarmamento, agora de forma perene.

2
“Presumir-se-á a boa-fé dos possuidores e proprietários de armas de fogo que se enquadrem
na hipótese do art. 32 da Lei nº 10.826, de 2003, se não constar do SINARM qualquer registro
que aponte a origem ilícita da arma”. Decreto nº 5.123 (BRASIL, 2004a, art.69).

66 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Descriminalização do delito de posse de armas no Brasil

Este movimento culminou com a edição entrega de armas que, por meio da
da Medida Provisória nº 417/2008, pos- conscientização e mobilização da socie-
teriormente convertida na Lei nº 11.706 dade retirará milhares de armas de fogo
/2008, que alterou, na Lei nº 10.826, das mãos dos cidadãos”.
as condições para a regularização das
armas não -registradas
não-registradas
-registradas, conforme já des- A alteração legislativa imbuída de notável
tacamos, e estabeleceu uma permanente espírito humanitário acabou por acarretar,
campanha do desarmamento prevendo, ainda que não fosse esse o objetivo, gran-
em seu art. 32, que “os possuidores e de impacto nas normas incriminadoras do
proprietários de arma de fogo poderão Estatuto do Desarmamento, e ineficácia de
entregá-la, espontaneamente, mediante dispositivos penais, como o delito de pos-
recibo, e, presumindo-se de boa-fé, se- se de armas, que também contribuem para
rão indenizados, na forma do regulamen- a diminuição da violência e proporcionam
to, ficando extinta a punibilidade de o controle e a redução do número de ar-
eventual posse irregular da referida mas em circulação.
arma” (BRASIL, 2003, art. 32).
1.2 Reper cussão das campanhas de re-
Repercussão
Alguns doutrinadores gularização e do desarmamento no deli-
entendem que o transporte to de posse de armas
da arma de fogo para A partir de 2005, o Superior Tribunal de
regularização ou entrega ao Justiça (STJ) firmou entendimento de que
órgão competente faz
órgão as benesses consagradas nos arts. 30 e
32, do Estatuto do Desarmamento, pro-
presumir a boa-fé do
moveram uma descriminalização tempo-
possuidor e afastar o dolo, rária (“abolitio criminis temporalis”) ou
não incidindo o delito de ainda uma vacatio legis indireta, durante
porte de armas. o prazo definido em lei, no que concerne
aos delitos de posse de armas de uso per-
Por meio da Exposição de Motivos nº 9 mitido e de uso restrito previstos nos arts.
(BRASIL. Ministério..., 2008), que acom- 12 e 16 da Lei nº 10.826/2003. Referi-
panhou a Medida Provisória nº 417/ do entendimento está consolidado na li-
2008, o Sr. Ministro da Justiça motivou a nha dos julgados Habeas Corpus (HC)
necessidade da implementação da cam- 83680/MS3 e Recurso Ordinário em
panha do desarmamento sem definição Habeas Corpus (RHC) 19466/RS 4.
de prazo para término, asseverando “que
a partir da edição desta medida provisó- Observa-se que o entendimento indica-
ria não mais definirá um prazo final para do não contempla outras figuras típicas
a entrega, mediante indenização, de ar- previstas no Estatuto do Desarmamento,
mas não registradas. Essa alteração mas tão somente as condutas de posse
viabilizará a retomada das campanhas de irregular de arma de fogo, verbis:
3
BRASIL. Superior..., 2007b, p.1237.
4
BRASIL. Superior..., 2007e, p.641.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 67


Douglas Morgan Fullin Saldanha

HABEAS CORPUS. PENAL. ESTATUTO CRIMINAL. HC. RECEPTAÇÃO. POSSE


DO DESARMAMENTO. FORNE- DE ARMAS DE FOGO E DE
CIMENTO ILEGAL DE ARMA DE FOGO MUNIÇÕES. FLAGRANTE LAVRADO
(ART. 14 DA LEI Nº 10.826/03). NA VIGÊNCIA DO ESTATUTO DO
ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA DESARMAMENTO. POSSIBILIDADE DE
NÃO-OCORRÊNCIA. EXTINÇÃO DA REGULARIZAÇÃO DA POSSE OU DE
PUNIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE. ENTREGA DAS ARMAS. VACATIO
[...] Diante da literalidade dos dispositivos LEGIS INDIRETA E ABOLITIO CRIMINIS
legais relativos ao prazo legal para TEMPORÁRIA. ATIPICIDADE DA
regularização do registr o da arma (arts.
registro CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.
30, 31 e 32 da Lei n.º 10.826/2003), I. A Lei n.º 10.826/2003, ao estabelecer
esta Corte tem entendido que houve sim o prazo de 180 dias para que os
a descriminalização temporária, mas tão tão-- possuidores e proprietários de armas de
somente no que diz respeito à posse de fogo sem registro regularizassem a situação
arma de fogo, a qual não se confunde ou as entregassem à Polícia Federal, criou
com as demais figuras típicas, tais como uma situação peculiar, pois, durante esse
o porte, a aquisição e o fornecimento de período, a conduta de possuir arma de fogo
arma de fogo [...]5. deixou de ser considerada típica.
II. É prescindível o fato de se tratar de
A abolitio criminis temporalis não alcan- arma com a numeração raspada e,
ça o delito de porte de armas consoante portanto, insuscetível de regularização,
posicionamento uníssono do STJ. Alguns pois isto não afasta a incidência da vacatio
doutrinadores entendem que o transpor- legis indireta, se o Estatuto do
Desarmamento confere ao possuidor da
te da arma de fogo para regularização ou
arma não só a possibilidade de sua
entrega ao órgão competente faz presu- regularização, mas também a de
mir a boa-fé do possuidor e afastar o dolo, simplesmente entregá-la à PPolícia ederal8.
olícia FFederal
não incidindo o delito de porte de armas.
Contudo, o melhor entendimento aponta É oportuno lembrar que a conduta de pos-
no sentido de se presumir a boa-fé do se de arma de fogo com numeração, mar-
possuidor somente quando este esteja ca ou qualquer outro sinal de identificação
portando a Guia de Trânsito6, expedida raspado, suprimido ou adulterado, na Lei
pela Polícia Federal. No caso de porte da nº 10.826 (BRASIL, 2003, art. 16, IV),
guia, o fato será atípico7. não se confunde com a conduta de efeti-
vamente suprimir ou alterar marca, nume-
A descriminalização do delito de posse ração ou qualquer sinal de identificação de
de armas, segundo o STJ, abrange até arma de fogo ou artefato (BRASIL, 2003,
mesmo aquela arma que esteja com o art. 16, I). Consoante o posicionamento
número de série raspado, tendo em vista da jurisprudência, somente a conduta de
a autonomia entre o procedimento de re- posse de arma com numeração raspada,
gularização da arma e a faculdade de suprimida ou adulterada, estaria abarcada
entregá-la à Polícia Federal, verbis: pela abolitio criminis temporária.

5
HC 75517/MS (BRASIL. Superior..., 2007c, p.360). No mesmo sentido ver: HC 90027/MG (BRASIL.
Superior..., 2007d, p.267); e, AgRg no REsp 763840/RN (BRASIL. Superior..., 2007a, p.313).
6
“O proprietário de arma de fogo de uso permitido registrada , em caso de mudança de domicílio
ou outra situação que implique no transporte da arma, deverá solicitar à Polícia Federal a
expedição de Porte de Trânsito, nos termos estabelecidos em norma própria”. Decreto nº 5.123
(BRASIL, 2004a, art. 28).
7
HC 57818/SP (BRASIL. Superior..., 2006, p.331).
8
HC 42374/PR (BRASIL. Superior..., 2005, p.586).

68 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Descriminalização do delito de posse de armas no Brasil

Questão controvertida diz respeito ao 10.826/2003 (Estatuto do


conflito de leis penais no tempo, tendo Desarmamento). Vacatio legis especial.
Atipicidade temporária. Abolitio criminis.
em vista a possibilidade de retroatividade
1. A vacatio legis especial prevista nos
da aludida abolitio criminis temporária artigos 30 a 32 da Lei nº 10.826/2003,
aos delitos cometidos sob a égide da Lei conquanto tenha tornado atípica a posse
nº 9.437/1997. O STJ também já en- ilegal de arma de fogo havida no curso do
frentou essa questão e manifestou-se no prazo assinalado, não subtraiu a ilicitude
sentido da retroatividade dessa penal da conduta que já era prevista no
descriminalização, pois “a nova lei, ao artigo 10, § 2º, da Lei nº 9.437/1997 e
continuou incriminada, até com maior
menos no que tange aos prazos dos art. rigor, no artigo 16 da Lei nº 10.826/
30 a 32, que a doutrina chama de 2003. Ausente, portanto, o pressuposto
abolitio criminis temporária ou de vacatio fundamental para que se tenha por
legis indireta ou até mesmo de anistia, caracterizada a abolitio criminis. 2. Além
deve retroagir, uma vez que mais bené- disso, o prazo estabelecido nos referidos
fica para o réu (APn nº 394/RN, Corte dispositivos eexpressa,
xpressa, por si próprio, o
caráter transitório da atipicidade por ele
Especial, Rel. p/ Acórdão Min. José criada indiretamente. T rata-se de norma
Trata-se
Delgado, j. 15/03/2006).”9 que, por não ter ânimo definitivo, não
tem, igualmente, força retr oativa. Não
retroativa.
Os entendimentos supracolacionados pode, por isso, configurar abolitio
baseiam-se nos art. 30 e 32 do Estatuto criminis em relação aos ilícitos cometidos
do Desarmamento, em sua redação ori- em data anterior
anterior. Inteligência do artigo
ginal, que previam prazos de 180 dias 3º do Código PPenalenal
enal. 3. Habeas corpus
denegado.10
para regularização e entrega voluntária das
armas de fogo. Vale lembrar que tal pra- A interpretação do Pretório Excelso, trazen-
zo, cujo início deu-se em 23 de dezem- do à baila o argumento da norma penal tem-
bro de 2003, teve seu termo final esten-
porária11 , afastou a possibilidade de
dido, por meio das Leis n.º 10.884/2004,
retroação da lei, mas admitiu a atipicidade
11.118/2005 e 11.191/2005, até a data
das condutas perpetradas (abolitio criminis
de 23 de outubro de 2005.
temporalis) no período inicialmente previs-
Em recente julgamento, o STF, por sua to nos art. 30 e 32 do estatuto. No mesmo
Primeira Turma, decidiu que o caráter tem- sentido, decidiu o STJ, no RHC nº. 22.668-
porário das normas consignadas nos arts. RS, já sob a égide da Lei nº 11.706/2008
30 a 32 do Estatuto do Desarmamento (INFORMATIVO STJ, 2008).
não lhe conferiam a aptidão para retroagir
e alcançar condutas realizadas antes de Ocorre que, com o advento da conver-
sua vigência: são da Medida Provisória nº. 417, de 31
de janeiro de 2008, na Lei nº. 11.706/
EMENTA Habeas Corpus. Posse ilegal de 2008, o art. 32, que reestabelece a Cam-
arma de fogo de uso restrito cometida na panha do Desarmamento, teve sua reda-
vigência da Lei nº 9.437/1997. Lei nº ção alterada, não especificou o prazo para

9
RHC 21271/DF (BRASIL. Superior..., 2007f, p. 245). Ver também Resp 895093/RS (BRASIL.
Superior..., 2007g, p. 679).
10
HC 90995/SP (BRASIL. Supremo..., 2008).
11
A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as
circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência. Código
Penal (BRASIL, 1940, art. 3º).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 69


Douglas Morgan Fullin Saldanha

término da campanha. Esta alteração restringir, não tem o condão de afastar o


foi propositada, com base no item 4 entendimento já desenvolvido sobre a
da exposição de motivos da Medida descriminalização dos delitos de posse de
Provisória. armas, visto que o dispositivo que prevê
a entrega de armas mediante indenização
Considerando a tese da abolitio criminis não prevê prazo para fazê-lo.
temporalis, adotada pelo STJ, e o detalhe
de que, atualmente, a lei não prevê qual- Importa notar que não
quer prazo para entrega espontânea de
houve a prpromulgação
omulgação de
armas de fogo à Polícia Federal, conclui-
se que ocorreu uma novatio legis in nova lei que deixa de
mellius, a qual, irradiando-se pelo siste- considerar o delito de posse
ma jurídico, acarretará a descriminalização de armas como crime, mas
dos delitos de posse de armas de uso
permitido e de uso restrito. uma der
derrrogação implícita
pela norma que institui a
Na dicção de Fernando Capez (2006, p.190),
os arts. 30 e 32 da Lei nº. 10.826/2003
campanha permanente de
estabeleceram um “paradisíaco período de desarmamento.
atipicidade”. Leia-se que a novidade legislativa
introduzida pela Lei nº 11.706/2008 criou Ainda que se propugne nova alteração
uma infernal e irrestrita descriminalização no legislativa para retificar essa equivocada
tocante à posse de armas. política criminal, a medida provisória al-
cançará as condutas perpetradas antes de
Pode-se dizer que o legislador “atirou no sua vigência, tendo em vista o disposto
que viu e acertou no que não viu”, visto no art. 5º, XL, da Constituição Federal e
que desejava colocar “restrições à nos arts. 2º e 107, III, do Código Penal
comercialização, à posse e ao porte de Brasileiro.
armas de fogo” (Exposição de Motivos nº Note-se que temos, neste caso, uma me-
293, de 24 de maio de 1999 apud dida provisória tratando de matéria pe-
FIGUEIREDO, 2006) e acabou por nal, sendo certo que isso é vedado pela
descriminalizar o delito de posse de ar- Constituição da República. No entanto,
mas de fogo por via da campanha do de- alguns defendem que medida provisória
sarmamento de prazo indeterminado. pode disciplinar matéria penal, desde que
beneficie o réu:
A nova redação do art. 32 prevê que a
entrega da arma de fogo deve ser feita
Como ensinam Celso Delmanto et al., à
“espontaneamente”, e induz a que alguns regra segundo a qual a medida provisória
operadores do direito entendam que o não pode ser aplicada no campo penal,
cidadão surpreendido na posse da arma, ‘deve-se abrir exceção quando for favorável
p. ex. exemplo durante uma diligência de ao acusado’. Assim também, prosseguem:
busca e apreensão, estaria incidindo no o decreto-lei ‘embora inconstitucional,
pode e deve ser aplicado em matéria penal
delito de posse de armas. Ainda que te- (STJ, RHC n. 3.337, j. em 20.9.1994,
nha sido a intenção do legislador de DJU de 31.10.1994)’ . [...] No mesmo

70 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Descriminalização do delito de posse de armas no Brasil

sentido, Fernando Capez ensina que, não constitucional que regula o sistema de
obstante o impedimento constitucional, separação e equilíbrio de poderes’. ‘[...]
não se justificam as restrições materiais Não podemos nos esquecer de que a
da Carta Magna, as quais só foram finalidade da restrição a que a medida
estabelecidas para impedir que medida provisória reine sobre Direito Penal diz
provisória defina crimes e imponha penas. respeito a não se permitir que a vontade
(JESUS, 2004). única de uma pessoa, qual seja o
Presidente da República, determine regras
Doutrinadores como Damásio Evangelista sobre direitos fundamentais [...]. A
de Jesus entendem que a medida provi- admissão da analogia ‘in bonam partem’
também não ser ve de argumento
sória não pode tratar de matéria penal, contrário. Ocorre que nela há uma lei
ainda que beneficie o acusado. penal regendo matéria similar, ao contrário
do que acontece com a medida provisória,
Como diz González Macchi, de acordo a qual não é lei.’ (JESUS, 2004).
com o princípio de reserva legal ou da
legalidade, ‘corresponde exclusivamente à Assim, confirmando-se a descri-
lei penal tipificar os fatos puníveis e as minalização anunciada, pode-se vislum-
conseqüências jurídicas que eles geram. brar não só a abolitio criminis do delito
Nesse sentido, somente uma lei emanada
do Poder Legislativo pode proibir as
de posse de armas, mas também a de
condutas consideradas puníveis e impor- posse de munições e acessórios, tendo
lhes uma sanção, em virtude do princípio em vista a analogia in bonam partem 12.

Referências

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v.1, pte. geral.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 2 mar. 2008.
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de 2003, que dispões sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o
sistema Nacional de Armas – SINARM e define crimes. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5123.htm>. Acesso em: 2 out. 2008.
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estabelece condições para o registro e para o porte de armas de fogo, define crimes e dá outras providên-
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BRASIL. Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003. Dispõe sobre registro, posse e comercialização de
armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10826.htm>. Aces-
so em: 2 mar. 2008.

12
Constituição. (BRASIL, 1988, art. 5º, XL) c/c Decreto Lei nº 4.657 (BRASIL, 1942, art. 4º).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 71


Douglas Morgan Fullin Saldanha

BRASIL. Lei n.º 10.884 de 17 de junho de 2004b. Altera os prazos previstos nos arts. 29, 30 e 32 da
Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, e os arts. 5º e 6º da referida Lei e dá outras providências.
Disponível em: <htp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10884.htm>.
BRASIL. Lei nº 11.118 de 19 de maio e 2005a. Acrescenta parágrafos ao art. 10 da Lei nº 9.615, de
24 de março de 1998, e prorroga os prazos previstos nos arts. 30 e 32 da Lei nº 10.826, de 22 de
dezembro de 2003. Disponível em: <htp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/
L11118.htm>.
BRASIL. Lei nº 11.191 de 10 de novembro de 2005b. Prorroga os prazos previstos nos arts. 30 e 32 da
Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Disponível em: <htp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse, comercialização de armas de
fogo e munição sobre o Sistema Nacional de Armas – SINARM e define crimes. Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Mpv/417.htm>.
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so em: 2 mar. 2008.
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Brasília, DF, 06 de dezembro de 2007. Relator: Ministro Paulo Gallotti. Diário da Justiça, Brasília, DF,
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––––––. Agravo regimental no Recurso Especial nº 763840/RN, da 6ª turma, Brasília, DF, 26 de abril
de 2007. Relator: Ministro Hamilton Carvalhido. Diário da Justiça, Brasília, DF, 25 jun. 2007a. p. 313.
––––––. Habeas-corpus nº 42374/PR, da 5ª turma, Brasília, DF, 16 de junho de 2005. Relator: Minis-
tro Gilson Dipp. Diário da Justiça, Brasília, DF, 01 jul. 2005. p. 586.
––––––. Habeas-corpus nº 57818/SP, da 5ª turma, Brasília, DF, 15 de agosto de 2006. Relator: Minis-
tro Gilson Dipp. Diário da Justiça, Brasília, DF, 11set. 2006. p. 331.
––––––. Habeas-corpus nº 75517/MS, Brasília, DF, 03 de abril de 2007. Relatora Ministra Laurita Vaz.
Diário da Justiça, Brasília, DF, 14 maio 2007c. p. 360.
––––––. Habeas-corpus nº 90027/MG, da 5ª turma, Brasília, DF, 25 de outubro de 2007. Relatora:
Ministra Laurita Vaz. Diário da Justiça, Brasília, DF, 19 nov. 2007d. p. 267.
––––––. Recurso Ordinário em Habeas-corpus nº 19466/RS, da 6ª turma, Brasília, DF, 18 de dezem-
bro de 2006. Relator: Ministro Paulo Gallotti. Diário da Justiça, Brasília, DF, 26 fev. 2007e. p. 641.
––––––. Recurso Ordinário em Habeas-corpus nº 21271/DF, da 5ª turma, Brasília, DF, 28 de junho de
2007. Relator: Ministro Felix Fischer. Diário da Justiça, Brasília, DF, 10 set. 2007f. p. 245.
––––––. Recurso Especial nº 895093/RS, da 5ª turma, Brasília, DF, 26 de junho de 2007. Relatora:
Ministra Laurita Vaz. Diário da Justiça, Brasília, DF, 6 ago. 2007g. p. 679.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus nº 90995/SP, da 1ª turma, Brasília, DF, 12 de
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CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005.

72 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Descriminalização do delito de posse de armas no Brasil

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WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência dos Municípios Brasileiros 2008. Brasília: RITLA, 2008.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 73


A SOBERANIA BRASILEIRA,
A GRÃ-BRETANHA E A QUESTÃO DO ESCRA
GRÃ-BRETANHA VISMO
ESCRAVISMO
ARAGUAI:
DURANTE A GUERRA DO PPARAGUAI:
um caso de Contrainteligência1

Miguel Alexandre de Araujo Neto2


Alexandre

Resumo

Este artigo busca demonstrar que a Grã-Bretanha não cessou de pressionar as elites brasileiras,
após a quebra de relações diplomáticas de 1863, com vistas a adotar medidas que pusessem
um fim ao sistema escravista. Essa pressão aparenta haver tomado a forma de uma ação invasiva,
encoberta como propaganda pela livre imigração, e teria sido contida pela liderança militar
brasileira entre 1867 e 1869.

D esde o início do processo político


que produziu a proclamação (1822)
e o reconhecimento (1826) da Indepen-
1970, p. 69). As autoridades brasileiras,
no entanto, não lograram adotar medidas
eficazes para que a lei fosse cumprida.
dência brasileiros, a extinção do regime
de trabalho escravo no Brasil foi, para a O tráfico, então, robusteceu. O período
Grã-Bretanha, uma prioridade. A diplo- posterior a 1831 assistiu a um ingresso
macia britânica condicionou seu apoio à recorde de africanos no mercado brasilei-
causa nacional à assinatura de compro- ro. Em resposta, a Inglaterra adotou le-
missos mediante os quais a gradual gislação atribuindo a si mesma poderes
extinção da escravidão fosse assegurada para reprimir militarmente o tráfico (o
(BETHELL, 1970, p. 1-61). Aberdeen Act, de 1845). Cinco anos mais
tarde, com a Lei Eusébio de Queirós, o
A primeira etapa consistiu em abolir o trá- Brasil finalmente extinguiu de fato a en-
fico transatlântico. Um tratado foi firma- trada de mão-de-obra cativa proveniente
do em 1826 estipulando o ano de 1830 do continente africano.
como a data limite para o Brasil cessar o
tráfico. A partir de 7 de novembro de As pressões inglesas, a partir de então,
1831, de acordo a lei promulgada nessa foram concentradas sobre o cumprimen-
data, todos os escravos trazidos para o to dos termos do acordo de 1826, for-
País estariam legalmente livres (BETHELL, çando o Brasil a adotar medidas que
1
O presente artigo foi publicado em língua inglesa pela Sociedade de Estudos Hiberno-Latino Ame-
ricanos (SILAS), no periódico Irish Migration Studies in Latin America, Zurique, v. 4, n. 3, p. 115-132,
jul. 2006. Disponível em: <http://irlandeses. org/0607_ 115to132. pdf>.Aceso em: jul. 2006.
2
Mestre em Estudos Latino-Americanos/ História, University College, Londres.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 75


Miguel Alexandre de Araujo Neto

resultassem no fim da escravidão sua hegemonia comercial e estratégica na


(GRAHAM, 1979, p. 59-127). Esta nova bacia do Prata (CHIAVENATO, 1979).
fase foi encerrada em 1863, com o rom-
pimento das relações diplomáticas entre Pesquisadores de destaque, porém, de-
os dois países, após o bloqueio naval do monstraram de modo preciso e claro que
porto do Rio de Janeiro, em 31 de de- a tese acima, segundo a qual a Inglaterra
zembro de 1862. Tal medida extrema foi teria sido a grande instigadora e
tomada pelo então Ministro Plenipoten- beneficiária da Guerra do Paraguai, não
ciário William Christie (1816-1874), que tem embasamento consistente. Ao con-
exigiu reparações exorbitantes pelo sinis- trário do que se pensava, a Inglaterra na
tro de um navio inglês no litoral sul brasi- verdade tentou, por meio de seu embai-
xador na Argentina (Thornton), impedir a
leiro, cuja carga fora roubada, e pela pri-
eclosão do conflito, iniciado sem dúvida
são de marinheiros ingleses embriagados,
pelos paraguaios em dezembro de 1864
no Rio de Janeiro.
(DORATIOTO, 2002, p.85-111).
A comoção política de julho De toda forma, não se discute se a Ingla-
de 1868 foi grave o bastante terra tomou medidas para levar adiante
seu propósito de acabar com a escravi-
para provocar o rrompimento
provocar ompimento dão no Brasil, depois de 1863. A única
do equilíbrio da vida política menção à continuidade dessa política apa-
e partidária nacional. renta ser a asserção de Richard Graham
(1979, p. 67-68) indicando não ser muito
As relações anglo-brasileiras foram rea- conhecido
tadas em 1865, já durante a Guerra do
Paraguai (1864-1870). Acredita-se que [...] o fato de que a Inglaterra continuou a
a partir de então a Inglaterra teria aban- fazer pressão sobre o governo de D. Pedro
II, nas décadas de 1850 e 1860, até que
donado seus propósitos de persuadir, ou
o Brasil manifestou a firme decisão de pôr
forçar, o Brasil a abolir a escravidão. A fim à escravatura. Enquanto a lei que
visão mais comum é a de que o assunto libertava os filhos dos escravos nascidos
foi deixado a cargo dos brasileiros, man- depois de 28 de setembro de 1871 é
tendo-se neutra a diplomacia inglesa habitualmente considerada o primeiro
indício de uma campanha abolicionista, na
(CONRAD, 1972, p. 74-75).
realidade foi a conclusão da fase britânica
da história [...].
Outros autores sustentaram a tese,
grandemente disseminada em toda a De fato, a Guerra do Paraguai foi um pe-
América Latina, incluindo o Brasil, de que ríodo em que houve intensa pressão pelo
a prioridade britânica havia passado a ser solapamento das bases do sistema
a eliminação de um perigoso exemplo de escravista, por meio do ingresso livre,
auto-suficiência econômica e política na espontâneo, massivo, de mão-de-obra
região do Prata: o Paraguai de Francisco européia. E o principal veículo da propa-
Solano López (1827-1870). Para isso, ganda da liberalização da política
teria manipulado as nações da Tríplice imigratória brasileira foi o jornal The
Aliança (Argentina, Uruguai e Brasil) de Anglo-Brazilian Times, fundado no Rio de
modo a atingir esse objetivo e preservar Janeiro em inícios de 1865 pelo irlandês

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A soberania brasileira, a Grã-Bretanha e a questão do escravismo...

William Scully (1810?-1884). Esse órgão (VIEIRA, 1980, p. 245). Tanto o Papado
de imprensa foi, em 1868, nada menos como seus legítimos representantes no
que o pivô da maior crise político-parti- Brasil, assim, apoiariam iniciativas volta-
dária do Segundo Reinado (1840-1889), das para a liberalização de nossa política
como será visto a seguir. imigratória.

A desagregação do regime monárquico A comoção política de julho de 1868 foi


brasileiro começou em 16 de julho de grave o bastante para provocar o rompi-
1868. Nesse dia, por intervenção do Dom mento do equilíbrio da vida política e par-
Pedro II (1825-1891), o conservador tidária nacional. Bosi (1999, p. 222) ob-
Joaquim José Rodrigues Torres (1802- serva que a historiografia “[...] é unânime
1872), Visconde de Itaboraí, foi designa- em assinalar o ano de 1868 como o gran-
do Primeiro-Ministro, em substituição ao de divisor de águas entre a fase mais es-
progressista Zacarias de Góes e Vascon- tável do Segundo Império e a sua longa
celos (1815-1877), chefe do Gabinete 3 crise que culminaria, vinte anos mais tarde,
de agosto, formado em 1866. Era o fim com a Abolição e a República”.
do terceiro, e último, mandato do Con-
selheiro Zacarias. A proclamação de um Manifesto e a fun-
dação do primeiro partido republicano
O 3 de agosto detinha maioria parlamen- ocorreriam apenas dois anos após 1868.
tar legítima, liberal e progressista. Os Em 1873 seria fundado o Partido Repu-
progressistas eram uma dissidência do blicano Paulista (BELLO, 1976, p. 16-18).
Partido Conservador, de católicos radi- Nas duas décadas seguintes, vários ou-
cais, chamados ultramontanos (NEVES; tros movimentos, entre os quais o
MACHADO, 1999, p. 213-226; VIEIRA, abolicionismo e a expansão do positivismo
1980, p. 32-38). Suas prioridades resi- (especialmente nas Forças Armadas), con-
diam na extinção das prerrogativas políti- correram para produzir o fim da Monar-
co-religiosas do Imperador, que faziam quia no Brasil. Logo, não é nenhum exa-
dele verdadeiro chefe do catolicismo bra- gero afirmar que a queda do Gabinete 3
sileiro. Graças a instituições luso-brasi- de Agosto foi o momento histórico
leiras (o Padroado e o Beneplácito), nor- desencadeador do processo que resulta-
mas emanadas do Vaticano só tinham va- ria na Proclamação da República, em 15
lidade no País com a aprovação do Mo- de novembro de 1889.
narca. Zacarias era um político de forma-
ção religiosa conservadora, ultramontano A crise de julho de 1868 teve relação
e líder da coalizão com os liberais. direta com a Guerra do Paraguai. A con-
dução brasileira (e depois conjunta) das
A compatibilidade entre essas correntes operações militares da Tríplice Aliança,
divergentes estava na perspectiva de in- sob as ordens do general Luís Alves de
gresso livre no Brasil de imigrantes euro- Lima e Silva (1803-1880), então Mar-
peus. Para os ultramontanos, um reba- quês de Caxias, fora duramente criticada
nho ampliado poderia contrabalançar o na imprensa liberal. As notas mais áspe-
poder religioso do Imperador, além de ras vieram de William Scully, em seu
impedir os imigrantes protestantes de vi- Anglo-Brazilian Times de 7 de janeiro
rem a ser maioria em terras brasileiras daquele ano.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 77


Miguel Alexandre de Araujo Neto

Os ataques levaram Caxias a pedir sua o general brasileiro estava velho demais
renúncia, em fevereiro de 1868. Coube para derrotar o Paraguai. Em alusão à
então ao Imperador optar por: 1) preser- Roma republicana, Caxias seria, no dizer
var a Chefia Suprema das forças militares do irlandês, um “ Cincinnatus
brasileiras, e aliadas, em guerra, ou 2) septuagenário”. Também o acusava de
conservar o Gabinete 3 de Agosto. Dom prolongar a guerra “por tanto tempo
Pedro II determinou-se a manter o gene- quanto for permitido ao País desperdiçar
ral e Zacarias foi afastado, em 16 de ju- recursos”. Em seu entender, as armas fa-
lho, usando-se como pretexto a nomea- voritas do líder militar eram “gold bags”
ção do conservador Francisco de Sales (evocando uma imagem de trincheiras
Torres Homem (1812-1876), do Rio guarnecidas por “sacos de ouro”). A len-
Grande do Norte, para uma vaga no Se- tidão com que as operações vinham sen-
nado (VIEIRA, 1980, p. 248-250). Des- do conduzidas, à época do cerco a
feito o ministério, sob clamores de in- Humaitá, aparentava ser proposital.
dignação, novas eleições comporiam nova
As acusações, graves, são de improbidade
maioria, desta vez conservadora. A der-
e corrupção. Todavia, esses aspectos das
rubada subseqüente afastaria dos cargos
críticas não são enfatizados, ainda que se
públicos os servidores e as autoridades
reconheça nelas, em seu todo, o motivo
nomeados pelo governo anterior. da crise desencadeadora do declínio do
Segundo Reinado. Além disso, em quase
Caso a Inglater ra tenha de
Inglaterra todas as fontes secundárias não há men-
fato aplicado recursos em ção às várias atividades em que o editor
irlandês esteve envolvido anteriormente.
pr
propaganda
opaganda abolicionista,
feita por um periódico A impressão que fica da leitura dos auto-
res citados acima é a de que o Anglo-
não--oficial estabelecido no
não Brazilian Times surgiu na cena política
Rio e dedicado à pr omoção
promoção brasileira de 1868 como um relâmpago,
em um céu azul anil. Mas William Scully,
da imigração livre, teria seu fundador, aparenta ter chegado ao Rio
operado uma mudança de de Janeiro em 1861, quando montou na
estratégia em seu Rua da Candelária uma escola, para leci-
onar caligrafia e vender canetas
relacionamento com o Brasil. caligráficas3. Obteve da Coroa (pelo De-
creto nº 3.293, de 25 de julho de 1864)
Batista Pereira (1975, p.36-38), Sérgio a concessão para operar uma casa de ba-
Buarque de Holanda (1972, p.7-13 e 95- nhos de ar quente. Depois, em 1865, no
104), Brasil Gerson (1975, p.127-131), Rio de Janeiro estabelece o Anglo-
Wilma Peres Costa (1996, p. 251-254) Brazilian Times, cujas bases de apoio fun-
e Francisco Doratioto (2002, p.334-339) cionavam em Londres e também em
apontam o Anglo-Brazilian Times como Liverpool. Fechou o jornal em 1884, após
o principal órgão da oposição liberal a vinte anos de publicação incessante, indo
Caxias. De acordo com o dono do jornal, morrer na França (na cidade de Pau).
3
A edição de 1862 do Almanak Laemmert traz a propaganda das canetas vendidas por Scully.
Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/almanak/al1862/00001298.html>. Seu nome e en-
dereço estão na página 478. Nos almanaques dos anos anteriores não há menções a ele. Logo,
pode-se deduzir que o futuro proprietário do Anglo-Brazilian Times chegou ao Brasil em 1861.

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A soberania brasileira, a Grã-Bretanha e a questão do escravismo...

É natural presumir que a vinda de Scully da imigração livre, teria operado uma
para o Brasil e o estabelecimento de seu mudança de estratégia em seu relaciona-
jornal, posteriormente, tenham recebido mento com o Brasil. O estilo aristocráti-
algum apoio da Coroa Britânica. Lembro co, agressivo, de sua política externa
que o trabalho de Francisco Otaviano de (“ gun-boat policy ,” ou “política da
Almeida Rosa (1825-1889) à frente do canhoneira”) estava sendo abandonado e
Correio Mercantil fora secretamente sub- o imperativo da extinção do trabalho es-
vencionado pela Legação Britânica, fato cravo passaria a ser implementado, na
destacado por Bethell (1970, p. 313) e capital do Império Brasileiro, por meio da
Gueiros Vieira (1980, p. 90). Isso permi- propaganda jornalística. Logo, as linhas
te supor que Scully, um liberal católico, gerais da política britânica para o Brasil
seria uma espécie de agente encoberto, a não teriam sofrido alteração de fundo,
serviço das elites liberais britânicas e de- após 1863, e o fim da escravidão conti-
sempenhando uma ação invasiva. nuou a ser prioritário, com outro figuri-
no. Esse, aliás, é um período de
E bem-sucedida. Significativamente,
hegemonia dos liberais no Parlamento
Zacarias admitiu a Caxias, em carta, sub-
britânico, pontificado por William
sidiar as atividades de Scully (PINHO,
Gladstone (1809-1898).
1930, p. 86-88). A Coroa era assinante
do jornal e os artigos de Scully eram pu- Esta hipótese está embasada no próprio
blicados na imprensa brasileira. Isso tor- discurso de Scully, nas edições de seu jor-
na claro que o dono do Anglo-Brazilian
nal anteriores a 1868, e nas efetivas ini-
Times era influente. Seu discurso e ações
ciativas visando a fomentar a imigração
eram acompanhados de perto pelas elites
britânica no Brasil, entre 1866 e 1875.
do Império. Assinada pelo Conselheiro
Três tentativas frustradas de promover o
Saraiva (1823–1895), circular do Minis-
ingresso sustentado de irlandeses e ingle-
tério dos Negócios Estrangeiros, de 8 de
ses no Brasil foram verificadas nesse pe-
agosto de 1865, endereçada a 18 em-
ríodo: em Brusque (Santa Catarina), em
baixadores, notifica:
Cerro Azul (Paraná) e Cananéia, no lito-
ral de São Paulo (MARSHALL, 2005).
O editor do Anglo-Brazilian Times ,
periódico que se publica nesta capital, está
Quanto à propaganda da liberalização da
por mim autorizado para remeter
diretamente a V. Exa. um exemplar dele. política imigratória, desde a primeira edi-
O Governo Imperial paga esta assinatura ção do Anglo-Brazilian Times, de 7 de
e deseja que V. Exa. faça transcrever nos fevereiro de 1865, essa proposta esteve
diários desse país os artigos de maior presente. Sua divulgação aberta e enfáti-
interesse que encontrar no referido ca cresceu a cada número (o jornal era
periódico e cuja publicação aí nos possa
ser de alguma utilidade na presente
quinzenal). A idéia era simples: aumentar
quadra. Reitero a V. Exa. as seguranças. a oferta de mão-de-obra livre, na expec-
tativa de tornar obsoleta a escravidão,
Caso a Inglaterra tenha de fato aplicado desencadeando um processo que culmi-
recursos em propaganda abolicionista, nasse na abolição da escravatura. O go-
feita por um periódico não-oficial esta- verno brasileiro não acatou a idéia de
belecido no Rio e dedicado à promoção liberalização, contudo, e a colonização

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 79


Miguel Alexandre de Araujo Neto

com imigrantes britânicos, por outro lado, Quase simultaneamente, as outras


foi um retumbante fracasso, que investidas visando à promoção da imi-
espelharia a resistência e retaliação naci- gração britânica eram iniciadas nas pro-
onais a pressões abolicionistas de Lon- víncias do Paraná e de São Paulo. As
dres (ARAUJO NETO, 2006). colônias localizadas em Assunguy (hoje
Cerro Azul, próximo a Curitiba) e em
A partir de 16 de julho de 1868 e da Cananéia, São Paulo, atraíram imigran-
dissolução do Gabinete 3 de agosto, a tes britânicos, principalmente em Cerro
iniciativa colonizadora na qual Scully es- Azul, na década de 1870, mas também
tava mais diretamente envolvido ficaria resultaram em fracasso (MARSHALL,
desprovida de apoio político, material e 2005, p.103-187). Hoje, encontram-se
financeiro, desfazendo-se em aproxima- pouquíssimos descendentes dos escas-
damente um ano. Esse foi o destino do sos remanescentes das levas de colonos
assentamento de ingleses e irlandeses na ingleses e irlandeses que foram destina-
Colônia Príncipe Dom Pedro, no vale do dos a essas áreas (MARSHALL, 2005,
rio Itajaí-Mirim, em Santa Catarina (hoje p.191-216). A partir de meados da dé-
área correspondente a Brusque). cada de 1870 a Grã-Bretanha decidiu
proibir a emigração para experimentos
A certeza do vínculo entre esse projeto colonizadores no Brasil, a exemplo de
de colonização e a propaganda de estí- medidas similares adotadas por outros
mulo à livre imigração, fartamente vei- países europeus, como a Prússia, em
culada no Anglo-Brazilian Times e 1859 (HOLANDA, 1982).
logicamente identificada com a causa
abolicionista, estaria na origem do fra- ... a defesa da soberania
casso daquela colônia. Havendo inte- brasileira estava entrelaçada,
resse institucional britânico no empre- estruturalmente, com a
endimento, os imigrantes irlandeses e
ingleses corresponderiam a uma poten-
defesa do sistema escravista.
cial ameaça à soberania brasileira no Mesmo representando uma mudança tá-
equacionamento do problema da escra- tica na campanha antiescravista britânica,
vidão. Em 1869, após uma catastrófica o discurso presente no Anglo-Brazilian
estação chuvosa, a empreitada, que não Times não ocultava a tentativa de interfe-
agregava apenas irlandeses de proce- rência no tratamento de um problema
dência britânica, mas também confede- nacional, a questão escravista. As edições
rados norte-americanos, franceses, ita- anteriores a 1868 contêm textos marca-
lianos e outros, entraria em colapso dos por explícita agressividade e
(MARSHALL, 2005, p. 63-87; contundência, evidentes desde os primei-
LAUTH, 1987). Feita a dispersão des- ros meses da atividade editorial de Scully.
sa primeira leva de imigrantes, a área Ele não soa como um jornalista indepen-
seria unificada com a colônia de Itajahy dente, mas sim como alguém que,
e repovoada. lastreado por uma força maior, busca

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A soberania brasileira, a Grã-Bretanha e a questão do escravismo...

operacionalizar algo similar a uma verda- Paz, ao passo que a imigração


deira invasão. Essa pode ter sido a per- independente, que não pede subvenções,
nem dispêndio com instrutores religiosos
cepção, errônea ou não, da Coroa. E de
ou profanos, nem escolas agrícolas [...] e
Caxias. Não se pode esquecer que o Im- nem “diretores” assalariados; aquela que
perador era assinante do jornal de Scully, traria consigo inteligência, empre-
como foi mostrado acima. endimento, novas idéias e maquinário
agrícola avançado, essa não recebe
A primeira página da edição de número 9 facilidades, nem informação, nem
do Anglo-Brazilian Times (de 8 de junho encorajamento.
de 1865), por exemplo, traz um balanço
Mais adiante, Scully joga com o medo de
da promoção da imigração no Brasil,
uma rebelião escrava:
acompanhado de uma apreciação das
possíveis conseqüências do problema da
[...] Não vêem os brasileiros que toda a
“falta de braços”, gerado pela crise do sua prosperidade corre perigo,
escravismo. Após exortar os leitores bra- dependendo apenas da retenção de uns
sileiros a não temer ou menosprezar o três milhões e meio de população negra
imigrante europeu (“não são a escória na servidão; [...] que nenhuma confiança
desprezada por Deus que o preconceito se pode depositar no escravo sem
instrução quando ele deixa de ser
e a ignorância brasileiros frivolamente as-
compelido, à força, ao trabalho? [...] que
sim consideram”), Scully assevera-lhes a navegação comercial pluvial e as ferrovias
que “[...] sua posse sobre a população [...] são um fracasso, por falta de gente
escrava está rapidamente saindo de seu ao longo das linhas? [...] Não vêem [...] o
controle” e que “[...] suas terras [...] não perigo de um segundo Haiti pairando no
têm valor algum sem trabalhadores.” A futuro, no isolamento fácil oferecido por
montanhas, florestas e rios não navegáveis
seguir, afirma que os brasileiros deste país vasto e fértil, mas sem estradas?

[...] devem recordar que com o imigrante Prosseguindo, sua análise antecipa aspec-
europeu vêm progresso, riqueza, tos do pensamento geopolítico do século
empreendimento e idéias avançadas, e que
XX, no âmbito latino-americano:
ele tem pleno direito de requerer, como
condição de seu ingresso no país, igual
consideração com os filhos da terra à qual [...] não vêem [os brasileiros] que, com as
vincularão suas fortunas. repúblicas expansionistas e belicosas que
circundam o Brasil, cada uma das quais
Avaliando as políticas de ingresso de tendo muito a ganhar com o seu
imigrantes, Scully observa que: desmembramento, a integridade de sua
existência [territorial] requer que o País
se mantenha na dianteira em se tratando
É verdade que o Brasil destina anualmente de população, riqueza, e progresso
600:000$ [seiscentos contos] para o material, um resultado apenas possível
encorajamento da imigração – em proveito com [...] imigração grande e contínua?
de quem (cui bono)? Os governos, geral e Para chegar a esse resultado, que o
provincial, e particulares, têm estabelecido governo e o povo brasileiros ofereçam boa
“colônias”, as quais “dirigem” e cercam recepção aos imigrantes estrangeiros. Que
de regulações. Desperdiçam seu dinheiro lhes seja proporcionada toda facilidade
com estas plantas exóticas que mal possível para se estabelecerem e que sejam
vegetam sob o cuidado paternal de poupados das restrições religiosas e
Diretores, Chefes de Polícia e Juízes de irritante vigilância [...].

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 81


Miguel Alexandre de Araujo Neto

Finalmente, Scully defende o modelo nor- A prática do clientelismo (“patronage”)


te-americano de imigração livre: seria então sarcasticamente deplorada por
Scully. Segundo ele, o tempo de um mi-
[...] Que sejam doadas ou vendidas a nistro brasileiro era quase totalmente de-
preços módicos terras do governo, em
tratos entre 30.000 a 500.000 braças votado à tarefa de encontrar empregos
cada, apenas para lavradores de verdade. para amigos, parentes, apadrinhados e
Que uma quantidade suficiente desses correligionários, ficando a labuta adminis-
tratos, de fácil acesso, seja mantida sempre
supervisionada e mapeada [...]. Que todo
trativa relegada a um segundo plano.
o encorajamento seja [...] envidado no Sumarizando o editorial de 24 de maio
sentido de se formar no Brasil sociedades de 1865, pode-se ler no Anglo-Brazilian
como a de Saint George, em Nova Iorque, Times que “a vida de um Ministro brasi-
às quais imigrantes [...] pudessem solicitar
ajuda e aconselhamento; e que se tomem leiro é uma vida de completa escravidão”
medidas para disseminar o conhecimento (“[…] the life of a Brazilian Minister is a
sobre o Brasil na Europa Continental e na life of downright slavery”). Noutras pala-
Grã-Bretanha.[...] Com estas e medidas
similares e, talvez, imigração tempo- vras, o trabalho escravo seria um cancro,
rariamente assistida, juntamente com comprometendo de baixo para cima toda
liberalidade do povo e governo, uma tal a sociedade, atingindo as elites.
corrente de imigração seria induzida,
firmando a prosperidade do Brasil sobre a
Em outro editorial, de 8 de abril, Scully
única base sólida e segura – uma produtiva
população livre e inteligente [...].4 afirma que as novas gerações de brasilei-
ros seriam trucidadas por uma onda de
A argumentação, em sua totalidade, dei- progresso, com a chegada em massa de
xa evidente uma estratégia visando à imigrantes europeus:
extinção do escravismo no Brasil por meio
da imigração européia em massa. Mas [...] é verdade que o nosso jovem
Scully não se limitara a isso. Logo nos brasileiro não é inculto [...]. Não
primeiros números de seu jornal, anteri- obstante, todos os seus estudos não têm
ores ao de 8 de junho de 1865, ele brin- um propósito, sua única perspectiva de
dou o público leitor com artigos bastante vida está direcionada para o ‘dolce far
depreciativos sobre a vida política e cul- niente’ de um emprego público [...]. As
tural das elites brasileiras. Sua leitura fa- classes educadas do Brasil, através da
indolência e do orgulho, abandonaram,
cilmente conduziria à dedução de que
em proveito do estrangeiro, mais
suas iniciativas relativas à imigração con-
utilitarista, a engenharia, a mineração, os
templavam também uma extensa reforma ofícios, o comércio e a manufatura, e
na sociedade brasileira. Nesse sentido, seu deixam de desenvolver os recursos e
discurso aparenta ter inspiração em Jeremy riquezas de seu maravilhoso País, até que
Bentham (1748-1832), fundador da cor- a ciência aplicada de um estrangeiro
rente filosófica utilitarista. empreendedor encontre o tesouro e o
empregue em seu benefício.

4
Scully (1868) elaborou um guia para o imigrante europeu, publicado duas vezes em Londres:
Brazil, its provinces and chief cities: the manners and customs of the people; agriculture,
commercial and other statistics, taken from the latest official documents; with a variety of useful
and entertaining knowledge, both for merchant and the emigrant. (O editor da primeira publica-
ção, de 1866, chamava-se Murray.)

82 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


A soberania brasileira, a Grã-Bretanha e a questão do escravismo...

Ao longo desse texto a ameaça é reitera- Nesse quadro, a defesa da soberania bra-
da, sob ângulos diferentes: sileira estava entrelaçada, estruturalmen-
te, com a defesa do sistema escravista. O
[...] advertimos nossos jovens brasileiros Brasil rejeitaria aquela forma de
que, se sofrerem uma degeneração e expansionismo, e com ela, também as ini-
deixarem-se emascular por meio da
ciativas britânicas no campo da imigração.
indolência e desprezo pelo que é útil,
muito em breve suportarão a mortificação Com esse fim, recorreu-se à derrubada,
de serem expulsos até mesmo de sua atual ou seja, o expediente segundo o qual ape-
cidadela que é o serviço público por nas correligionários do partido no poder
aquelas outras classes a cujos objetivos obtinham cargos públicos. Uma vez
devotam tanto escárnio, tão logo as
empossados, frustrariam os empreendi-
energias que proporcionam àqueles a sua
riqueza sejam dirigidas para os pães e
mentos de seus opositores, liberais ou
peixes do emprego público. ultramontanos.

Para culminar, elogiando as vantagens da Estariam aí as razões mais profundas do


disciplina de Educação Física, Scully ar- 16 de julho de 1868. A ação invasiva
gumenta que a mesma, “[...] combinada de William Scully, supostamente um
com a ciência utilitária ocidental, faz de agente britânico, teria sido neutraliza-
duzentos mil europeus os árbitros de du- da por Caxias, por meio do imobilismo
zentos milhões de habitantes dos climas tático das tropas à época do cerco de
indianos”. Os brasileiros deveriam se lem- Humaitá. Com sucesso, suscitou da
brar também de que “[...] Waterloo foi imprensa liberal a reação acrimoniosa
vencida em Eton e Harrow” (Eton e que o levou a entregar seu cargo ao
Harrow são duas tradicionais escolas do Imperador, produzindo a posterior que-
Reino Unido, voltadas para a educação da do 3 de Agosto. E impondo pesada
de rapazes, e fundadas, respectivamente, derrota à política britânica anties-
nos séculos XV e XVI). cravista e ao Papado.

Nos três artigos citados é possível reco- Ouso supor, finalmente, que a vitória e
nhecer em Scully, com uma antecedência humilhação sobre interesses e diretri-
de quase três anos em relação a 1868, o zes britânicos teriam deixado entranha-
verdadeiro antagonista não só de Caxias da no inconsciente dos brasileiros a
mas também da vida política e social bra- noção de que a prática do aparelhamen-
sileira e da soberania nacional no trato da to estatal (e do fisiologismo, por exten-
questão escravista. Em seu discurso, o são), do clientelismo e do nepotismo
expansionismo britânico vem articulado os torna superiores.
sobre um eixo ideológico liberalizante e
utilitarista, mas também é evidente uma
incontida vocação hegemônica e
colonialista (a despeito das idéias louvá-
veis de mérito, educação e exames com-
petitivos).

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 83


Miguel Alexandre de Araujo Neto

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Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 85


OS FUNDAMENTOS DO CONHECIMENTO DE INTELIGÊNCIA
FUNDAMENTOS

Josemária da Silva Patrício

Resumo

Este trabalho consiste em apresentar os fundamentos do Conhecimento de Inteligência, ao


contemplar a possibilidade, a origem e a essência deste. O fato de a razão humana ser ou não
capaz de representar adequadamente a realidade é o cerne de uma reflexão fundamental para
legitimar o Conhecimento. Dessa forma, analisa-se a interpretação das várias correntes filosófi-
cas que influenciam o Conhecimento de Inteligência, as quais são instrumentos de um perma-
nente debate acerca dos critérios para validá-lo. O empirismo, o racionalismo, o fenomenologismo,
o intuicionismo, o materialismo dialético, o pragmatismo, o estruturalismo, o construtivismo e
pós-modernismo são algumas das abordagens filosóficas determinantes para a construção da
Teoria do Conhecimento. A discussão a respeito de quais aspectos seriam preponderantes – a
experiência ou a razão, a realidade ou a consciência, o sujeito ou o objeto, entre outros –
também é importante para definir qual seria o arcabouço teórico apropriado para fundamentar
a produção do Conhecimento na Atividade de Inteligência.

E ste trabalho objetiva argumentar so-


bre os fundamentos do Conhecimento
de Inteligência, os quais suscitam diver-
estudos sobre a relação da consciência e
a realidade e se a nossa mente é capaz de
conhecer e representar adequadamente o
sas indagações, sendo uma delas a mundo que nos circunda. Esses estudos
absorção, pela Atividade de Inteligência, envolveram filósofos como Platão,
das mesmas questões da filosofia que Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino,
versam sobre a possibilidade, a origem e Descartes, Locke, Kant, Husserl,
a essência do conhecimento. Heidegger, Sartre, Foucault, Jacob
Bazarian e Marilena Chauí.
Considerando que os pensadores das
questões fundamentais da filosofia se de- Também foram pesquisados os fundamen-
dicaram e se dedicam à busca da verdade tos teóricos produzidos pelo Serviço Na-
do conhecimento, o que os leva a optar cional de Informações (SNI) para compre-
por diversos caminhos e inúmeras varian- ender as razões pelas quais os
tes que traduzem o interesse de cada seg- doutrinadores da época buscaram exata-
mento das ciências particulares e das cul- mente esses fundamentos que até hoje são
turas em geral, diante de tal diversidade utilizados. Tendo encontrado uma apre-
de entendimento, passei a procurar junto sentação da Teoria do Conhecimento com
a alguns pensadores - antigos, modernos explicações das várias concepções que
e pós-modernos - que desenvolveram compõem esta teoria, e mais o seguinte:

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 87


Josemária da Silva Patrício

Na Atividade de Informações, a produção Segundo filósofos modernos, os funda-


do conhecimento final é feita, inicialmente, mentos do conhecimento são estudados
pela apreensão dos fatos através dos
sentidos externos; posteriormente, aqueles
pela filosofia. Tais fundamentos refletem
sofrerão um processo de elaboração mental as circunstâncias em que ocorrem as for-
do analista. Dentro desse enfoque, a mulações de teorias, as quais traduzem a
Atividade de Informações enquadra-se realidade dos cenários de cada época. Por
dentro do intelectualismo
intelectualismo, na medida em isso, a primeira indagação deste trabalho
que o informe é o relato, a observação ou
é a que o título sugere: FFundamentos
undamentos do
o registro de um fato (logo, é empírico) e a
informação é resultante da integração e Conhecimento de Inteligência.
processamento de todos os informes
disponíveis sobre o assunto (portanto, é um A pr odução de Conhecimento de Inteli-
produção
processo racional). A posição do analista gência utiliza uma metodologia baseada
de informações, na produção do nas regras cartesianas e esse conheci-
conhecimento, deve ser objetiva mento deve ser ver dadeir
verdadeir
dadeiroo ou pr ovável,
provável,
(eliminando todo o subjetivismo ou opiniões
particulares e pessoais que possam ser
fundamentando suas conclusões em evi-
introduzidas em suas indagações) e dências contidas nas frações significati-
caracterizada por um realismo crítico
crítico, ou vas destacadas nos fatos e situações em
seja, admitindo a possibilidade da existência produção. O pr
produção. ofissional de inteligên-
profissional
de um engano ou erro no julgamento da cia, usando a metodologia adotada, for for--
realidade dos fatos, irá questioná-los
incessantemente, buscando o
mula uma imagem impar cial e objetiva
imparcial
convencimento sobre a verdade dos em sua mente que deverá cor responder
corresponder
mesmos. A pesquisa efetuada pelo analista, totalmente ao objeto (fato ou situação).
durante as atividades desenvolvidas para a Este é o discurso contido nos
produção do conhecimento, caracteriza-se ensinamentos da Escola de Inteligência
pelo ceticismo metódico
metódico, pois que os
(Esint) (grifo nosso).
informes deverão ser escoimados ou
decantados de seus falsos valores. Por outro
lado, ao elaborar a sua informação, o O mencionado discurso estaria fundamen-
analista não pode deixar de levar em conta tado na Doutrina Nacional de Inteligên-
o pragmatismo dos seus trabalhos, cia, a qual dispõe sobre os fundamentos
preocupando-se com o grau de utilidade em seu preâmbulo:
que o conhecimento final produzido irá ter
para quem vai dele se utilizar. Segundo o
resumo visto sobre a Teoria do Para garantia de sua eficácia, a Doutrina
Conhecimento filosófico, podemos Nacional de Inteligência adota como
estabelecer as relações de analogia com o fundamentos, de um lado, a teoria de
Conhecimento da Atividade de sentido especulativo e universal e, de
Informações. (QUEIROZ NETO, 1984, p. outro, a própria realidade em suas
10, grifo nosso). dimensões interna e externa. Do primeiro
fundamento, a teoria, derivam pro-
Com estes dados, foi possível estabele- posições situadas predominantemente no
cer uma trajetória de argumentos para plano do dever ser; do segundo,
reflexão e obtenção do que se procura realidade, emergem preceitos que se
sobre as questões do conhecimento e so- colocam basicamente na ordem do ser.
O correto entrosamento dessas pro-
bre esse modo tão singular de produção
posições e desses preceitos garante à
de conhecimento que se dá no âmbito da Doutrina Nacional de Inteligência caráter
Atividade de Inteligência, e assim poder de atualidade e praticidade. (SISTEMA...,
atingir o objetivo proposto. 2004, p. 12).

88 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência

O teor do discurso e a teoria de sentido de representação de fatos e situações pro-


especulativo e universal referida na dou- duzidas pela mente especializada do pro-
trina me levam a considerar alguns aspec- fissional de Inteligência, e considerando
tos. A mencionada teoria revela um am- a missão atribuída à Atividade de Inteli-
plo leque de possibilidades, porém, im- gência, conforme o conceito supracitado,
precisas ao não indicar nominalmente qual deve-se entender a importância da ado-
o referencial teórico que fundamenta a ção de fundamentos filosóficos que sus-
produção de conhecimentos, fato que não tentem um arcabouço teórico condizente
ocorre com o discurso - baseado no con- com os interesses desta atividade. Para
teúdo da nota de aula denominada Pro- argumentar sobre esses fundamentos,
dução de Conhecimentos - no qual se necessário se faz lembrar um pouco da
identifica, de forma explícita, fundamen- história e do conteúdo da teoria adotada
tos da Teoria do Conhecimento formula-
pela Inteligência para melhor visualizar a
da no século XVII, sistematizada por John
razão da escolha.
Locke e inspirada no racionalismo, afir-
mando a capacidade que o homem tem
de conhecer a realidade que o circunda.
Com uma posição de
mediação entre o
Outro aspecto e que resulta desta
constatação, é o de explicitar em que con-
racionalismo e o empirismo,
siste a Teoria do Conhecimento, para de- sur giu uma orientação
surgiu
pois identificar sua correlação com o dis- epistemológica denominada
curso e assim verificar quais fundamentos
são utilizados pela Atividade de Inteligên- Intelectualismo afirmando
cia. Para compreendermos como estes fun- que o conhecimento tem a
damentos seriam utilizados e o porquê da participação de ambos, pois
sua adoção, é necessário em primeiro lu-
gar definir o que é Inteligência. enquanto o racionalismo
xistência
participa com a eexistência
A doutrina preconiza que Inteligência é:
de juízos necessários ao
[...] o exercício permanente de ações pensamento e com validade
especializadas orientadas para obtenção
de dados, produção e difusão de
universal, o empirismo
conhecimentos, com vistas ao sustenta que retira os
assessoramento de autoridades
governamentais, nos respectivos níveis e elementos desses juízos
áreas de atribuição, para o planejamento,
a execução e o acompanhamento das
xperiência.
da eexperiência.
políticas de Estado. Engloba, também, a
salvaguarda de dados, conhecimentos, Uma Teoria do Conhecimento é formula-
áreas, pessoas e meios de interesse da da a partir das necessidades que o ho-
sociedade e do Estado. (SISTEMA..., mem tem de garantir a sua sobrevivência,
2004, p. 15). o que ocasiona questões de ordem práti-
Por se tratar da produção de conhecimen- ca e do pensamento, considerando que
tos deste cabedal e objetivá-lo verdadei- para fazer frente ao mundo que o rodeia,
ro, imparcial, oportuno e útil, resultante primeiramente precisa compreendê-lo e

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 89


Josemária da Silva Patrício

conhecê-lo, para então sobreviver. Isso A Teoria do Conhecimento, a partir do


leva o homem a produzir mecanismos século XVII, passou a nortear as ciências
suficientes às suas necessidades cada vez particulares, apresentando-se como mais
mais crescentes e a se indagar o que mais um ramo da filosofia e priorizando o su-
poderá fazer a respeito. Desse processo jeito do conhecimento ao afirmar sua ca-
surgiram, ao longo do tempo, as ques- pacidade cognoscente para conhecer uma
tões identificadas e estudadas pela filoso- realidade exterior ao seu pensamento e
assim atingir a verdade do conhecimento.
fia, o que ensejou a formulação de teori-
as sobre o conhecimento. No século XVII, No entanto, essa visão racional, conside-
ocorreu uma sistematização, com rada um marco para a filosofia e as diver-
metodologias e procedimentos, sob uma sas ciências particulares, não passou in-
posição filosófica de princípios e funda- cólume por mudanças e transformações
mentos racionalistas, para encontrar res- de cenários com circunstâncias peculia-
postas às questões da possibilidade, da res às épocas, que ensejaram o apareci-
origem e da essência do conhecimento, mento de teorias, doutrinas, escolas e
validando-o. pensamentos vários, para concordar ou
discordar sobre o que se formulava a res-
Abordar unilateralmente a Teoria do Co- peito do conhecimento, sob a ótica do
nhecimento que fundamenta o Conheci- interesse de cada segmento. Aliás, os
mento de Inteligência sem mencionar al- pensadores do século XVIII chegariam à
gumas existentes no universo filosófico, conclusão de que não existiria verdade
ou pelo menos as mais utilizadas e co- universal, por isso, cada segmento deve-
nhecidas, bloqueia a compreensão daquilo ria procurar a verdade do tipo de conhe-
que se quer mostrar e também impossi- cimento do seu interesse, apagando as-
bilita a amplitude necessária à consecu- sim a concepção que predominava desde
ção do objetivo a alcançar. os gregos com a ideia absoluta e o espíri-
to absoluto do medievo.
Para não estabelecer uma longa faixa de
As questões da Teoria do Conhecimento,
tempo que possa levar a digressões não
ou seja, as mesmas desde que o homem
objetivadas por este trabalho, começarei
passou a descobrir a si mesmo antes de
pela formulação da Teoria do Conheci- perguntar sobre o mundo, permaneceram
mento que, ao ser sistematizada, possi- como objetos de questionamento para a
bilitou saltar da gangorra filosófica elaboração de novos pensamentos, à épo-
metafísica desde Sócrates para uma esta- ca. Isso porque a influência medieval era
bilidade epistêmica, a qual permaneceu consistente, pela forte presença do cristia-
inconteste até meados do século XX, nos nismo que até então respondia a todos os
efervescentes anos sessenta, quando o questionamentos com a verdade do misté-
movimento pós-moderno, com suas crí- rio divino. Os pensadores modernos, ao
ticas ao estabelecido, apresentou uma constatarem a separação estabelecida en-
negação total da teoria do conhecimen- tre Deus e o homem, pelo cristianismo,
to, ocasionando uma aparente ruptura em face do pecado original, se depararam
epistemológica. com um grande problema: pode o homem,

90 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência

um pecador, conhecer a realidade que o mento de várias concepções, principal-


cerca com seus misteriosos objetos a co- mente por pensadores com posição céti-
nhecer? A resposta dos filósofos moder- ca e suas variantes absolutas e relativas.
nos foi que poderiam, sim, e por intermé-
dio da razão humana. Assim, estabelece- Com uma posição de mediação entre o
ram que o homem passasse a ser o sujeito racionalismo e o empirismo, surgiu uma
e o objeto do seu conhecimento. orientação epistemológica denominada
Intelectualismo afirmando que o conhe-
... sobre essa questão há cimento tem a participação de ambos, pois
enquanto o racionalismo participa com a
dois entendimentos opostos: existência de juízos necessários ao pen-
o entendimento que nega samento e com validade universal, o
a possibilidade de empirismo sustenta que retira os elemen-
tos desses juízos da experiência.
conhecermos, como o
ceticismo e suas variantes, e Porém, pela visão da Teoria do Conheci-
o entendimento que afirma mento, somos capazes de conhecer. Nos-
sa consciência tem uma atividade sensí-
que podemos conhecer
conhecer,, vel e intelectual, com um poder de análi-
como o das doutrinas se e síntese e representação dos objetos
dogmáticas e as materialistas. por intermédio de ideias e de avaliação,
bem como de interpretação desses obje-
Daí, a razão passou a fundamentar o co- tos, por meio de juízos, e não por meio
nhecimento e René Descartes, com o da luz divina (na visão do cristianismo),
Cogito ergo sum e a Dúvida metódica, como até então se acreditava.
desenvolveu todo um trabalho voltado à
razão, cujos princípios permanecem, con- Somente no final do século XIX, Edmund
forme se vê, quando da elaboração de Husserl, da escola alemã, apresentou uma
qualquer conhecimento, pois sempre ana- nova abordagem do conhecimento, pela
lisamos as causas que podem nos levar a fenomenologia, para descrever a Teoria
errro, ou seja, os preconceitos e a veloci-
er do Conhecimento em âmbito geral, o que
dade com que concluímos sobre algo sem representou de forma mais contundente,
verificar se os juízos emitidos são verda- diante das várias concepções reinantes, a
deiros. Concomitantemente, John Locke sistematização efetuada por Locke. A
concluiu que todos os princípios do co- fenomenologia visa descrever todos os
nhecimento derivam da experiência, res- fenômenos, os materiais, naturais, ideais,
ponsável pela existência das nossas ideias, culturais, do conhecimento e das realida-
enquanto Descartes afirmava que o co- des, e considera o fenômeno como a pre-
nhecimento deriva da razão, por opera- sença real das coisas reais diante da cons-
ções do nosso intelecto. ciência, daquilo que se apresenta direta-
mente a ela. Também se propõe afirmar a
Surgiram então duas perspectivas diferen- prioridade do sujeito do conhecimento
tes para a Teoria do Conhecimento. Es- com consciência reflexiva diante dos ob-
sas perspectivas resultaram no apareci- jetos, aos quais intenciona, visa, pro-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 91


Josemária da Silva Patrício

curando apreender as características e de- a imagem do objeto na sua mente que o


terminações destes objetos, o que é é, e nessa determinação pelo objeto há
basilar a todo conhecimento. Por isso, a receptividade do sujeito a respeito dele,
fenomenologia não afirma que o homem objeto, em razão da intencionalidade. Ao
possa conhecer a realidade em toda a sua mesmo tempo se apresenta uma espon-
essência, e sim somente tal como apare- taneidade do objeto a respeito da ima-
ce e se apresenta a sua consciência e o gem em formação, na qual a mente terá
faz por intermédio de representações ou uma participação criadora na sua repre-
afigurações. sentação, isto porque o sujeito lhe dá sig-
nificado, com a intencionalidade. Toda-
Assim, a metodologia fenomenológica, via, quando determina o sujeito, o objeto
considerando a capacidade de o homem mostra-se independente, transcendental,
conhecer um fenômeno exterior à sua pois todo conhecimento visa a um objeto
consciência e definindo o conhecimento independente da consciência cognos-
como relação do sujeito com o objeto, cente, por isso todos os objetos do
destaca que este se constitui de três ele- conhecimento são transcendentes, reais
mentos: o sujeito cognoscente, fonte de ou ideais. Os reais são os dados na expe-
intencionalidades; o objeto a conhecer,
riência externa ou interna, e os ideais são
independente do seu pensamento; e a
os meramente pensados e mesmo assim
imagem formada pela mente do sujeito,
possuem um ser em si, uma
correspondente ao objeto. Portanto, o
transcendência. Como na matemática e
processamento do fenômeno do conhe-
as operações aritméticas com os núme-
cimento ocorre da seguinte maneira: na
relação, a função do sujeito é apreender, ros, eles existem, mas são objetos ideais
captar o objeto, o qual tem a função de e não reais.
ser apreendido pelo sujeito. Essa apreen-
Consequentemente, na visão feno-
são figura para o sujeito como uma saída
menológica, ocorre o fenômeno do co-
de sua própria esfera para invadir a esfera
nhecimento quando o sujeito capta as
do objeto, apreendendo as determinações
determinações do objeto e com isso for-
ou as propriedades deste. Nisto, o obje-
ma uma imagem do mesmo e, para efe-
to não é arrastado para a esfera do sujei-
to, ele permanece independente, não sen- tivar esse conhecimento, a imagem de-
do nele que ocorre uma alteração pela verá corresponder totalmente ao obje-
função cognitiva. É no sujeito que houve to, pois se assim não for, teremos ape-
alteração com o surgimento da imagem nas um erro, não do objeto, mas ocorri-
contendo as determinações do objeto, do na mente do sujeito. Contudo, essa
para o qual esse fato se apresenta como descrição do processo do conhecimen-
um alastramento das suas determinações to pelo método fenomenológico não ex-
no sujeito, ocasionando uma preponde- plica e nem interpreta o conhecimento,
rância do objeto sobre o sujeito, tornan- apenas descreve o fenômeno ocorrido,
do-o determinado e ele, o objeto, cabendo à Teoria do Conhecimento fazê-
determinante. lo, o que nos reporta às indagações que
dizem respeito à possibilidade, a origem,
Porém, com isso, o sujeito não passa a a essência, os tipos do conhecimento e
ser um simples determinado, mas apenas o critério da verdade.

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Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência

Cabendo à Teoria do Conhecimento a in- podemos conhecer, como o das doutri-


terpretação filosófica do fenômeno do co- nas dogmáticas e as materialistas.
nhecimento, vejamos sob a visão de ou-
tras concepções que, quiçá, possibilite Os céticos absolutos negam que o sujei-
ampla condição de avaliação do por que to seja capaz de apreender o objeto, ali-
se julgaria como mais apropriada a Teoria ás, o desconhecem e concentram toda sua
do Conhecimento para fundamentar o atenção nos fatores subjetivos do conhe-
Conhecimento de Inteligência. Conside- cimento humano. Suas variantes relativas
remos que todas as teorias ou entendi- negam parcialmente a possibilidade de
mentos acerca do conhecimento come- conhecer a verdade em determinados
çam questionando seus elementos sobre campos e na sua totalidade, ou seja, o
a possibilidade de conhecer, o que dá homem só pode conhecer a aparência das
sequência à abordagem das demais ques- coisas e não a sua essência. Só podería-
tões da filosofia sobre o conhecimento. mos conhecer a manifestação exterior da
coisa em si (o objeto) como se apresenta
Estabelecida a essência do à nossa consciência, sendo tarefa do nos-
so pensamento dar forma e ordem nessas
conhecimento como relação sensações, conforme Kant. Por isso, não
entre o sujeito e o objeto, conhecemos a sua essência e sim a re-
conforme afirma o presentação, revestida dos elementos sub-
jetivos nos quais a enquadramos, o que
materialismo filosófico, podemos ver no ceticismo relativo de
resta-nos saber a origem do Kant, no positivismo de Comte e na
conhecimento. Saber se os fenomenologia de Husserl, representan-
do as variadas formas do ceticismo.
sentidos, a razão e a intuição
participam do conhecimento
conhecimento.. O entendimento que afirma a possibilida-
de de conhecer se manifesta no
Se existe possibilidade do conhecimento, dogmatismo e no materialismo filosófico.
ou seja, se a nossa mente é capaz de co- A doutrina dogmática, com sua crença de
nhecer e refletir de forma adequada so- conhecer a verdade absoluta, de forma
bre o que nos rodeia, se é capaz de efeti- imediata e direta por meios empíricos,
vamente captar o objeto, conhecer a sua racionais ou suprarracionais, ignora des-
verdade - essa dúvida também poderá se modo o conhecimento como uma re-
ocorrer na Atividade de Inteligência, ao lação entre o sujeito e o objeto. Quanto
perguntarmos se o profissional de Inteli- ao materialismo filosófico e sua variante,
gência pode chegar à verdade dos fatos e o materialismo dialético, revelam-se como
situações utilizando o modelo da Teoria mediadores entre o ceticismo relativo e o
do Conhecimento pela descrição dogmatismo, ao afirmarem da existência
fenomenológica -, sobre essa questão há real do mundo exterior refletido por nos-
dois entendimentos opostos: o entendi- sa consciência, e distinguindo o objeto
mento que nega a possibilidade de co- do sujeito cognoscente. Afirmam também
nhecermos, como o ceticismo e suas va- e principalmente que a matéria é anterior
riantes, e o entendimento que afirma que à consciência, e nossas sensações, re-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 93


Josemária da Silva Patrício

presentações e conceitos são reflexos das derante no conhecimento, se a realidade


coisas que existem, independentemente ou a consciência, o sujeito ou o objeto,
da nossa consciência. se a consciência é um reflexo e reprodu-
ção do objeto, ou o objeto é um reflexo e
Destacados alguns entendimentos sobre uma reprodução da consciência, dois seg-
a capacidade do sujeito conhecer ou não, mentos doutrinários, o idealismo e o ma-
pergunta-se em que consiste o conheci- terialismo, nos apresentam os seguintes
mento, a sua essência, que relação há entendimentos: o idealismo e suas vari-
entre o sujeito e o objeto, o que constitui antes (objetiva e subjetiva) afirmam que o
questão fundamental para a filosofia e as sujeito determina o objeto. A variante
atividades em geral, e que nos arrasta à objetiva afirma que o que prepondera é a
questão do centro de gravidade no fenô- ideia absoluta universal, a von-
absoluta, o espírito universal
meno do conhecimento: o que prepon- tade universal existentes antes da nature-
dera, o sujeito ou o objeto? Essa também za e dos homens e teria criado o mundo,
seria uma preocupação crucial para a Ati- sendo que todas as coisas materiais são
vidade de Inteligência, considerando que seus produtos, o que podemos
hoje nos deparamos, pelo menos no mun- exemplificar por Platão, com o Mito da
do ocidental e em relação a diversas ati- caverna, e Hegel, com seu Demiurgo. A
vidades, com um conflito de mentalida- variante subjetiva apregoa o eu absoluto
des. Esse conflito resultaria do fato de que da consciência do sujeito individual, afir-
algumas instituições com atividades se- ma que toda realidade está encerrada na
culares de Estado veem o conhecimento sua consciência, sendo a matéria uma ideia
como uma criação fundamentada por prin- que dela fazemos, é uma construção da
cípios e modelos já estabelecidos, sendo consciência.
o objeto o elemento preponderante do
conhecimento, crença vigente à época das Contrapondo-se a esse entendimento, o
formulações. Hoje temos uma geração materialismo filosófico nos afirma que há
formada sob a orientação de outra posi- objetos reais e independentes do pensa-
ção filosófica para a qual o elemento pre- mento, que a matéria é anterior à consci-
ponderante do conhecimento é o sujei- ência, que é o reflexo ou produto da ma-
to, e acreditando ser o conhecimento téria. Ao materialismo filosófico se atri-
uma construção do homem interagindo bui resolver cientificamente o problema
com seu meio social e as diferenças ali fundamental da essência do conhecimen-
existentes. to ao mostrar que o mundo é material
por natureza, considerando o ser (obje-
Da essência do conhecimento precisamos to) como matéria, e que nossas sensações
estabelecer o referido centro de gravida- e ideias são imagens do mundo exterior.
de. O aspecto nevrálgico da preponde-
rância nos apresenta entendimentos an- Estabelecida a essência do conhecimento
tagônicos e, considerando o fator huma- como relação entre o sujeito e o objeto,
no, nunca deixarão de sê-lo, só restando conforme afirma o materialismo filosófi-
a cada atividade optar pela interpretação co, resta-nos saber a origem do conheci-
mais apropriada aos seus fins e interes- mento. Saber se os sentidos, a razão e a
ses. Responder qual o elemento prepon- intuição participam do conhecimento. Vis-

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Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência

to pela ótica de cada um desses elemen- olhar apreende imediatamente o objeto,


tos, teremos o empirismo, o racionalismo, é uma experiência externa que se baseia
intuicionismo e o materialismo dialético. nos juízos que temos nas leis lógicas do
O empirismo, espécie que tem como úni- pensamento. Essa apreensão imediata do
ca fonte do conhecimento a experiência objeto se dá sob as formas da intuição
recebida pelos sentidos e que acredita sensível, intuição mística e a intelectual.
suficiente para conhecer a verdade, tem
como forma de conhecimento a sensa- Vistas algumas questões detectadas na
ção, a percepção e a representação. descrição fenomenológica do conheci-
mento, estas nos direcionam para a gran-
O racionalismo defende que a fonte do de questão da validade do conhecimen-
conhecimento é a razão, o pensamento to: a verdade, e o critério utilizado para
abstrato. Afirma que os sentidos nos en- lhe atribuir a certeza. O conceito de ver-
ganam e, portanto, não podem produzir dade, como a concordância do conteúdo
um conhecimento verdadeiro, logicamente do pensamento com o objeto, constitui a
necessário e universalmente válido, o qual concepção transcendente de verdade, no
só pode ser alcançado pela razão. entanto, há o conceito da imanência que
afirma ser a verdade a concordância do
O Intuicionismo afirma que é possível pensamento consigo mesmo, e nada existir
conhecer a verdade sem os sentidos e a exterior à consciência. Portanto, manifes-
razão, mas por uma faculdade irracional tam-se assim os segmentos idealistas e
ou sobrenatural chamada intuição. materialistas, bem como os aspectos sub-
jetivos e objetivos da verdade. O idealis-
O materialismo dialético, apesar de afir-
mo subjetivo versa sobre o conceito
mar serem o empirismo, racionalismo e
imanente de verdade, e o objetivo, sobre
intuicionismo unilaterais, propõe uma sín-
a concepção transcendente.
tese dos três, como partes na elaboração
do conhecimento, que é um processo Não podemos ignorar, todavia, a doutri-
dialético. Essas referências podem ser na denominada e conhecida por
identificadas no discurso da Atividade de pragmatismo, afirmando um entendimen-
Inteligência. to oposto à corrente que defende a
transcendência. Segundo esta doutrina, o
Ao apresentar os diversos entendimentos
conhecimento é verdadeiro quando pro-
sobre a origem do conhecimento nos vem
duz resultados práticos e eficazes, sendo
a indagação sobre seus tipos e formas,
seu critério de verdade a utilidade. O
pelo menos os mais conhecidos, que são
pragmatismo ignora o conhecimento
o racional discursivo e o intuitivo. No ra-
como relação do sujeito e objeto.
cional discursivo, a consciência serve-se
de diversas formas de operações mentais, Como podemos afirmar, a certeza da ver-
como a ideia (ou conceito), juízo e racio- dade é incumbência dos critérios e há
cínio, relacionando o objeto a outros, várias concepções para atribuir essa cer-
comparando e tirando suas conclusões. teza, a saber: o critério da autoridade (uti-
É um conhecimento mediato. No tipo in- lizado pela teologia), o da evidência (de-
tuitivo, o conhecimento é imediato, o fendido pela teoria do conhecimento e a

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 95


Josemária da Silva Patrício

inteligência), o da ausência de contradi- Contudo, todas essas concepções acerca


ção (idealismo subjetivo), da utilidade do conhecimento humano vigoraram
(pragmatismo, materialismo dialético) e incontestes aproximadamente até meados
o da prova (ciências particulares). O cri- do século XX, principalmente para a ati-
tério da evidência, como o mais conhe- vidade científica e instituições seculares
cido e aceito, é visto como plena clare- de estado e alguns pensadores. Até hoje,
za da verdade e a certeza é o estado sub- seja qual for a teoria que sistematiza a
jetivo que a acompanha. Porém, não é produção do conhecimento, ela se orien-
um critério último de verdade, pois fa- ta pelos mesmos princípios diante da pro-
tores como a ignorância, ilusões dos sen- blemática de interesse, ou seja, de fato
tidos, paixões e preconceitos podem le- ou situação ou qualquer objeto a conhe-
var a uma falsa evidência, precisando, cer. O homem planeja o que vai fazer,
portanto, de outro critério para atribuir coleta o material necessário, avalia suas
à verdade uma certeza. fontes, interpreta e busca o que todos
querem: o conhecimento considerado
O critério da evidência nos lembra uma verdadeiro. A base para esses procedi-
questão bastante controversa para a Ati- mentos e entendimentos é a razão huma-
vidade de Inteligência, a imparcialidade. na, em que os pensadores modernos
Pode o sujeito conhecer de forma im- acreditaram.
parcial? Argumenta-se o seguinte: no
processo do conhecimento, o sujeito Norteando o Conhecimento
apreende as determinações ou proprie- de Inteligência com seus
dades do objeto e a imagem formada fundamentos, esta teoria
deverá corresponder totalmente a este
objeto e, como este é transcendente ao influencia não somente a
sujeito, portanto, a imagem formada não metodologia utilizada pela
deverá conter o já existente no pensa- Atividade de Inteligência
mento do sujeito e sim corresponder
somente às propriedades que são apre-
na sua pr odução, mas
produção,
endidas do objeto, o que resultaria numa também nas questões da
imagem imparcial, ou o mais próximo sua identidade; do perfil
possível da mesma. do profissional; e do
profissional;
Utilizando também da argumentação do produto
pr oduto final do pr ocesso
processo
materialismo filosófico e dialético, do su- de pr odução.
produção.
jeito ser capaz de conhecer a verdade
objetiva, que afirma a apreensão do obje- Mas, o tempo é inexorável com as ideias,
to com suas determinações e característi- em razão de ocasionar mudanças e, por
cas essenciais, é possível a imparcialida- conseguinte, acarretar novos pensamen-
de, argumento aceito até pelos céticos tos diante dos desafios. A descontinuidade
relativos. Somente na concepção idealis- corrente na filosofia, a herança dos es-
ta subjetiva a concordância do pensamen- combros materiais e mentais da Segunda
to é consigo mesmo e não com o objeto. Guerra Mundial, a bipolaridade

96 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência

subsequente, o estado pós-industrial, os construído, e questionar todas as formas


modelos existentes não correspondendo que nos conceituaram como sujeito e in-
mais às necessidades e expectativas da divíduo, principalmente junto às ciências
sociedade e da ciência, a cibernética e o humanas, das quais os modelos formula-
novo modelo de comunicação, o capital dos não nos ser viriam mais. As
financeiro gerindo a política e a econo- metodologias e procedimentos baseados
mia, a formação de movimentos sociais, num modelo racional discursivo passari-
o Construtivismo, a Gestalt, as ambições am ao modelo similar ao construtivista e
imperialistas, ensejaram, nos anos sessen- sem fundamentos prontos.
ta a oitenta, uma postura de negação e
angústia diante da sensação de que o que Como evidência da mencionada ruptura,
se acreditava ou foi levado a acreditar, usarei as questões da Teoria do Conheci-
estava errado e não mais servia para a mento como parâmetro da crucial
sociedade, considerando o que houve e discordância à mentalidade moderna e às
o que estava ocorrendo no mundo. afirmações do discurso pós-moderno por
destacados arautos. Quanto à possibili-
Assim, as bases e os valores racionalistas dade do conhecimento, o ser humano não
implantados desde o século XVII que conhece ou não precisa conhecer a reali-
nortearam a filosofia e as ciências foram dade que o cerca, ele a constrói, pois a
negados. Do racionalismo ao empirismo, base racional e todo o discurso moderno
do idealismo ao materialismo dialético. seria, nesta nova visão, um disfarce para
Não se ignorou, mas também não se de- o exercício da dominação dos homens,
fendeu as bandeiras do estruturalismo e por isso a negação a sistemas prontos que
do construtivismo. Aconteceu uma rup- induzem a pensar o que se quer que pen-
tura epistemológica e estabeleceu-se o se. A essência do conhecimento, que é a
pós-modernismo como uma posição fi- relação do sujeito e o objeto, foi consi-
losófica discordante. Entre seus pensado- derada sem fundamento, pois tanto a fi-
res mais conhecidos, destacam-se Sartre, losofia quanto as ciências são construções
Michel Foucault, François Lyotard, Gilles subjetivas de seus objetos, os quais nada
Deleuze, Jaques Derrida e Bruno Latour, mais são do que os resultados de opera-
os quais negaram todas as teorias, valo- ções teóricas e técnicas, considerando que
res, conceitos, doutrinas, enfim, tudo o que os cientistas não observam as realidades,
constitui o universo filosófico moderno. mas as constroem. Portanto, os objetos
independentes do sujeito não existem, são
As propostas pós-modernas partem da apenas construções teóricas.
determinação de romper e descronstruir
criticamente o modelo epistemológico Daí podem ser identificados reflexos do
que estava em vigor, bem como questio- idealismo e a sua concepção imanente de
nar fundamentos que girem em torno de verdade (a concepção imanente de ver-
verdades, recusar o dogmatismo da ciên- dade é defendida por uma parcela signifi-
cia, isto é, recusar a ideia de que a ciên- cativa de pensadores pós-modernos),
cia é uma representação da realidade tal porém, aí não há construção interativa
como é em si mesma e adotar a ideia de nenhuma, pois a apreensão do objeto pela
que o objeto científico é um modelo mente do sujeito corresponde ao conteú-

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 97


Josemária da Silva Patrício

do da própria mente, sendo este um pro- Por conseguinte, passando por


cesso individual. A filosofia e o próprio descontinuidades e rupturas ou propos-
conhecimento, passaram a ser considera- tas de ruptura na história do conhecimen-
dos uma criação feita pela linguagem, as- to, os períodos mais marcantes da filoso-
sim como a literatura, onde não se diz fia nos legaram pelo menos quatro siste-
como as coisas são, elas são criadas, e esse mas que revolucionaram o pensamento
entendimento é reflexo do estruturalismo. humano, notadamente no milênio anteri-
or, que foram a metafísica grega, a teolo-
A origem do conhecimento não é conce- gia do medievo, a teoria do conhecimen-
bida como no modernismo, pois o ho- to moderna e a concepção pós-moderna
mem não é um animal racional com livre do conhecimento.
vontade, ele é passional, se move por ins-
tintos e por isso instituiu uma ordem social A visão das diversas concepções, doutri-
para reprimir seus desejos e paixões, pro- nas e teorias versando sobre a essência,
posição diametralmente oposta ao pen- possibilidade, origem, tipos, formas e cri-
samento moderno. A verdade do conhe- tério de verdade do conhecimento, pos-
cimento como correspondência da ima- sibilita a oportunidade de constatar que,
gem formada, cujo critério é a evidência, do discurso da Atividade de Inteligência
não seria apropriada, considerando que e do disposto em sua doutrina, podería-
o conhecimento, seja qual a espécie, só é mos afirmar quais fundamentos da Teoria
válido se for útil e eficaz para a obtenção do Conhecimento foram utilizados para a
dos fins desejados por quem conhece, não
formulação de uma peculiar teoria do
importando que fins sejam esses.
conhecimento de Inteligência.
O discurso que reveste essa concepção
Esta afirmação pode ser verificada ao iden-
de critério da verdade pode ser identifica-
tificarmos fundamentos do materialismo
do no pragmatismo e no materialismo
filosófico na afirmação de que o profissi-
dialético, se bem que os pensadores da
onal de Inteligência pode produzir conhe-
escola de Frankfurt, que foram os últimos
a abandonar a versão comunista do mate- cimentos pela metodologia com a qual
rialismo dialético, nada levaram ou contri- trabalhamos, dirimindo a questão da pos-
buíram com esta doutrina para o pós-mo- sibilidade do conhecimento. Também se-
dernismo, considerando que os pós-mo- riam fundamentos oriundos do materia-
dernos também negaram o socialismo apa- lismo dialético e do intelectualismo as
rentemente em razão do modelo russo. explicações sobre a origem do conheci-
mento como conjugação do racionalismo
Todavia, as concepções, os conceitos, as e empirismo, que compõem a represen-
significações, proposições e enunciados, tação de fatos ou situações; que seria dos
segundo a linguagem de Foucault, logo fundamentos identificados na descrição
tiveram discordâncias, isto é, o mesmo fenomenológica da Teoria do Conheci-
fenômeno ocorrido à teoria do conheci- mento e no realismo crítico, a explicação
mento, e a pós-modernidade passou a ser sobre a essência do conhecimento como
denominada de neo-capitalismo, lógica relação do sujeito e objeto e que este pre-
cultural do capitalismo tardio, pondera sobre aquele; que o tipo de co-
modernidade líquida, neo-conservadora nhecimento que se produz é identificado
em combate aos ideais iluministas. com o racional ou abstrato; e as formas

98 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Os fundamentos do Conhecimento de Inteligência

que utilizamos conferem com as do co- julgado uma delas, a Teoria do Conheci-
nhecimento racional (conceito ou ideia, mento sob a visão fenomenológica, a mais
juízos e raciocínios). adequada ao objetivo a que se propõe, em
face das correlações já mencionadas.
Assim, se entendermos como teoria o
conjunto de concepções, fundamentos, Essas correlações também se prendem ao
conceitos, metodologias e demais proce- fato de que, se a produção de conheci-
dimentos formando uma singular posição mentos de inteligência objetiva represen-
filosófica que sustenta a existência da Ati- tar a realidade, portanto, sob uma posi-
vidade de Inteligência enquanto produ- ção cética relativa, não possibilitaria facil-
tora de conhecimentos e diretamente mente a utilização de metodologias fun-
norteia o exercício da atividade, a Teoria damentadas em teorias de construção
do Conhecimento passaria a ser a mais interativa do conhecimento (diferindo de
apropriada, pela correlação aos interes- várias ciências particulares), em razão dos
ses de objetivos e sobrevivência desta ati- fins a que se destina o mencionado co-
vidade, dando a validade necessária ao nhecimento. Obviamente, não é impossí-
conhecimento produzido. vel, mas ainda não se vê claramente que
processo pós-moderno seria adequado
Norteando o Conhecimento de Inteligên-
para representar fatos e situações que já
cia com seus fundamentos, esta teoria in-
ocorreram, ocorrem e poderão vir a ocor-
fluencia não somente a metodologia utili-
rer, mostrando deles a verdade (para a
zada pela Atividade de Inteligência na sua
Atividade de Inteligência), por evidência,
produção, mas também nas questões da
sua identidade; do perfil do profissional; e sem cair em erro ou possível dispersão
do produto final do processo de produ- resultantes apenas da cosmovisão de cada
ção. Por conseguinte, não podemos atri- profissional e assim se distanciar do fato
buir a responsabilidade de todo o proces- em si, sem utilidade para o usuário.
so somente às regras cartesianas, aponta-
Consequentemente, ao final destes argu-
das como inspiradoras da metodologia uti-
mentos, os quais representam os objetos
lizada, considerando que só temos em
pesquisados e não o conteúdo da minha
mente os princípios contidos nas mesmas
quando da aplicação da metodologia, e não consciência, pode-se constatar que, para
da atividade como um todo. a Atividade de Inteligência, as questões
da filosofia acerca do conhecimento não
A Atividade de Inteligência com a atribui- se transformaram em problemas por ra-
ção de produzir conhecimentos sobre fa- zão da crença na posição filosófica ado-
tos e situações constantes da realidade, tada. A certeza dessa crença seria deriva-
objetivando assessorar as decisões gover- da dos valores e concepções funda-
namentais em benefício do Estado e da mentadores considerados apropriados ao
sociedade, teria que adotar um arcabouço exercício da Atividade de Inteligência e
teórico apropriado que fundamentasse o para esta vigentes, apenas, passando a
exercício da atividade. Para escolha, teve a serem discutidos e discordados quando
seu dispor desde a metafísica grega e a te- da comparação com a posição filosófica
ológica, a teoria moderna e a concepção pós-moderna, de discurso oposto ao que
pós-moderna do conhecimento. E teria utilizamos.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 99


Josemária da Silva Patrício

Referências

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––––––. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
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KANT, Emmanuel. Os pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1983. v 6.
QUEIROZ NETO, João Amâncio. As características do pesquisador em informações. Coletânea L, Brasília,
ano VII, n. 51/52, mar/maio; jun/ago 1984.
SISTEMA BRASILEIRO DE INTELIGÊNCIA. Conselho Consultivo. Manual de Inteligência: Doutrina
Nacional de Inteligência: bases comuns. Brasília: Abin, 2004. 44 p.

100 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009.


Resenha

LONDON, Mark; KELL Y, Brian. The LLast


KELLY ast FForest:
orest: The Amazon in
the age of globalization. New YYork:
ork: R andon House, 2007. 312p.
Randon
ISBN 978-0-679-64305-0

Romulo Rodrigues Dantas

O s jornalistas Mark London e Brian


Kelly viajaram ao Brasil em 1980 e
escreveram seu primeiro livro sobre a
tidade de luz solar. Para impedir que do-
ença as extinga completamente, árvores
de mesma espécie desenvolvem-se afas-
Amazônia. Na ocasião, de acordo com tadas umas das outras.
eles próprios, 3% da floresta já haviam
sido destruídos. Vinte e cinco anos de- Apesar disso, a mesma evolução e adap-
pois, segundo London, agora advogado, tação que protege as árvores da extinção
e Kelly, editor executivo do US News and as expõem à destruição pelo homem. Pelo
World Report, 20% não existiam mais. fato de que certos tipos de madeira são
mais valiosos do que outros, não é
Nesse sentido, a questão central da obra incomum madeireiros abrirem trilhas na
de London e Kelly é indagar se a floresta floresta apenas para chegar à árvore es-
poderá ser salva. A resposta dos autores pecífica. Os autores consideram que “as
é otimista: “não é tarde para salvá-la”. En- cicatrizes que essa prática causam não
tretanto, consideram que a solução ao saram. Tais trilhas, minúsculas, usualmente
desmatamento é tão complexa quanto a são visíveis do alto, com padrão que lem-
própria floresta. bra um rio ao contrário. O fim dessa linha
é o local onde antes existia um mogno
Mesmo para os que vivem na região, “a centenário”.
floresta é uma área alienígena”. Os auto-
res relatam que milhões de espécies dife- A primeira incursão na floresta revela apa-
rentes coabitam a Amazônia, e cada uma rente “irresistível percepção” de desen-
desenvolveu maneira única e fascinante volvimento. As trilhas começam a se divi-
para sobreviver. Há lagartas que se dir e a conduzir a pequenas estradas
mimetizam e assumem a forma de víbora, vicinais e a acessos a fazendas ou a pas-
de modo a sobreviver; peixes com quatro tagens. Segundo The Last Forest, 85% do
olhos e dois pares de córnea e retina, uma desmatamento ocorrem a partir das es-
para proteger-se de perigos que vem de tradas, em média 50 quilômetros, bilate-
cima e, outra, para buscar por comida, ralmente. Com base em tais informações,
abaixo; plantas que se transformam de estima-se que a floresta perderá um quarto
cipós em árvores, dependendo da quan- do seu tamanho original até 2020.

Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 5, out. 2009. 101


Romulo Rodrigues Dantas

É possível que circunstâncias drásticas Como base para esse argumento, London
demandem medidas igualmente drásticas. e Kelly apontam novas evidências antro-
Ainda que prevaleça a crença de que a pológicas as quais sugerem que grandes
única maneira de salvar a Amazônia seria sociedades – com canais, pontes, ruas
mantê-la completamente intocada, pavimentadas e milhares de pessoas –
London e Kelly argumentam que esse pen- podem coabitar na bacia amazônica sem
samento não é apenas “desatualizado”, destruí-la. Apesar disso, os autores in-
mas, principalmente, “perigoso”. Para formam que “essa constatação não pro-
eles, “atualmente, salvar a Amazônia im- vê muita esperança, ainda que existam
põe também salvar as pessoas que vivem pesquisas em andamento, de que ocu-
na Amazônia”. pação no século XXI também reproduza
tal percepção de harmonia”, mas isso é
Para London e Kelly, resposta a essa
parte da base do otimismo deles. O res-
constatação implica abordagem
colaborativa que une preservação com to é parte de suas próprias pesquisas na
desenvolvimento. O livro cita que o go- Amazônia, as quais revelam soluções
verno do Brasil já adota políticas nesse criativas ao desmatamento, ainda que
sentido. “Não é proveitoso pessoas afir- limitadas.
marem, sobretudo do exterior, que a
O capítulo “A Way to Save the Amazon”
Amazônia – que ocupa mais da metade
aborda várias dessas soluções: programas
do território – precisa ser mantida como
de incentivo, bem remunerados, para pes-
santuário da humanidade, e esquecer que
soas que, de outra forma, seriam empre-
cerca de 20 milhões de pessoas vivem na
gadas no desmatamento ilegal; florestas
região”, conforme disse o presidente bra-
sileiro. Com o argumento de que “certificadas”, onde árvores seriam cor-
desmatamento legal e monitorado é pre- tadas mediante método de rotação, para
ferível à situação corrente, “caótica”, os proteger espécies; e uso alternativo da
autores destacam que o governo brasilei- terra, desde a produção de juta a fazenda
ro pretende leiloar direitos de exploração de criação de peixes exóticos.
madeireira em vastas áreas da região.
London e Kelly admitem que tais soluções
The Last Forest apresenta a Amazônia não são perfeitas, e nenhuma delas consti-
como terra onde “abundam oportunida- tui-se panacéia. Entretanto, são exemplos
des para o desenvolvimento, se aprovei- de tentativas honestas de proteger a Ama-
tadas de maneira correta, e não é correto zônia, principalmente por pessoas que têm
reconhecê-la apenas como região selva- determinação em usá-la. Por fim, chegar a
gem e exótica, mas como uma das últi- esse equilíbrio pode ser a esperança que
mas fronteiras da terra”. The Last Forest pretende informar.

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