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A COISA NO HALL E. F. Benson S PAGINAS que se seguem constituem o relato que me foi feito pelo Dr. Assheton sébre A Coisa no Hall. To- mei notas, tantas quantas o permitiu a velocidade de minha grafia, durante o relato e, subseqiien- temente, li para éle esta narrativa na forma em que aqui vem transcrita. Isso foi no dia anterior ao de sua morte, pu provavelmente ocorreu logo depois de eu té-lo deixa- do; conforme devem se lembrar os leitores de inquéritos e de outras espécies correlatas de atroz literatura, tive de pres- tar testemunho perante o juri de inquérito. Uma semana antes, o Dr. Assheton prestara_testemunho semelhante, na qualidade de perito médico, relativamente 4 morte de seu amigo Louis Fielder, que ocorrera de maneira idéntica a sua. Como especialista, afirmou acreditar que seu amigo cometera suicidio em privacdo da razo e o veredito foi Ja- 38 E. F. Benson vrado tendo em conta &sse parecer. Mas no inquérito aberto sébre a morte do Dr. Assheton, embora o veredito fésse even- tualmente o mesmo, nao havia mais lugar para duvidas. Pois fui obrigado a declarar que, pouco antes de sua morte, eu lera-lhe 0 que se segue; que éle me corrigira com extrema recisio em alguns poucos detalhes; que parecera estar per- feitamente senhor de si; ¢ que, 4 guisa de conclusdo, pronun- ciara estas palavras: — Como especialista em moléstias cerebrais, tenho abso- luta certeza de estar completamente s&o e de tddas essas coisas terem acontecido, néo meramente na minha imagina- cio, mas no mundo externo. Se eu tivesse de prestar novo testemunho sébre o pobre Louis, seria compelido a seguir uma linha diferente. Queira, por favor, anotar isso no fim de sua narrativa, ou no comégo, segundo lhe parecer melhor. Haverd pouco a acrescentar ao fim desta histéria, mas algumas palavras de explicagao devem precedé-la. Ei-las, resumidamente: Frances Assheton e Louis Fielder freqiientaram juntos Cambridge e 14 iniciaram uma amizade que deveria durar até pouco antes da morte de ambos. De modo geral, nao poderia haver maior dissemelhanca entre dois homens no que respeitava aos seus atributos. Enquanto o Dr. Asshe- ton se tornara, aos trinta e cinco anos de idade, a primeira e maior autoridade em sua especialidade, que era fungdes e moléstias do cérebro, Louis Fielder, com a mesma idade, es- tava ainda no comégo de sua carreira. Assheton, ao que pa- rece sem qualquer brilhante aptidao, conseguira, gracas ao trabalho incessante e cuidadoso, chegar ao Apice de sua pro- fissao; Fielder, brilhante no gindsio, brilhante na Faculda- de, e mesmo brilhante dai por diante, nada fizera digno de nota. Era, na opiniéo de seus amigos, pessoa impaciente de- mais para suportar o arido trabalho de investigacdo e dedu- cao tedrica; estava sempre imaginando e pesquisando gran- des coisas, tendo idéias luminosas, que deixava queimar, por assim dizer, para iluminarem o trabalho de outros, Mas, no fundo, os dois homens tinham éste absorvente interésse em comum — uma insacidvel curiosidade pelo desconhecido, tal- vez 0 mais potente lago que jamais uniu duas solitdrias uni- dades da raca humana. Ambos se mostraram até o fim abso- lutamente intimoratos e o Dr. Assheton sentar-se-ia tran- A Co1sA No Hatt 39 qiilamente & cabeceira de um homem atacado de peste bubénica para anotar o aparecimento gradual da moléstia nas faculdades mentais, com a mesma absorgo com que Fielder estudaria os raios X numa semana, mAquinas voa- doras na outra, e espiritualismo na subseqiiente. O resto da histéria, penso eu, explica, pelo menos parcialmente, 0 que aconteceu. De qualquer modo, foi o que li ao Dr. Assheton; é a narrativa ordenada de tudo quanto éle me contou. Ele, pois, é quem falaré daqui por diante. Depois de ter voltado de Paris, onde estudei com Charcot, comecei a clinicar em Londres. A doutrina do hipnotismo, da sugestaéo © da cura por tais métodos j4 fora aceita mesmo na Inglaterra por essa época, e, gragas a uns poucos artigos que escrevera sébre o assunto, assim como aos meus diplo- mas estrangeiros, vi-me cheio de servigo tio logo cheguei de viagem. Louis Fielder tinha idéias proprias sébre como deveria eu fazer minha estréia (éle tinha idéias originais sdbre todos os assuntos) e convenceu-me a residir, no na praga dos médicos, Chloroform Square, como éle a cha- mava, mas em Chelsea, onde havia uma casa para alugar bem ao lado da sua. — Quem se importa onde mora um doutor — argumen- tou — desde que éle consiga curar gente? Além disso, vocé nao acredita nos velhos métodos; por que acreditar em ve- Ihas localidades? Oh! ha uma atmosfera de morte indolor em Chloroform Square! Venha para cé e faga as pessoas viverem, em yez disso! Quase tbdas as noites terei muito que conversar com vocé; n&o posso viver a atravessar meia Londres para visita-lo. Quando se viveu no estrangeiro durante cinco anos, é uma grande coisa saber-se que ainda se tem um amigo in- timo na metrépole e, como disse bem Louis, ter um amigo na casa ao lado 6 excelente razaéo para se morar nessa casa. Acima de tudo, lembrava-me, desde os dias de Cambridge, © que as visitas de Louis significavam. A hora de dormir, quando estivesse terminado 0 trabalho, haveria um som de passos apressados no patamar e, durante uma ou duas ho- ras, éle borbulharia de idéias. Difundia vida, que é idéias, onde quer que estivesse. Alimentava os cérebros alheios, tmica coisa que realmente importa. Muitas pessoas que es- tio doentes, estao doentes porque seu cérebro esta faminto e 40 E. F, Bsanson debilitado e, ent&éo, o corpo se rebela e apanha lumbago ou cincer. Tal é a doutrina mestra que sempre orientou meu trabalho. Tédas as moléstias corporais resultam do cérebro. Basta o cérebro receber alimento, repouso e exercicio ade- quado para o corpo se tornar absolutamente higido e imune a tédas as moléstias. Mas estando o cérebro afetado, vale tanto administrar medicag&io ao paciente quanto jogd-la fora, a menos que — ¢ esta é a limitagfio suprema — a menos que éle acredite nela, Disse coisas semelhantes a Louis certa noite em que, depois de um cansativo dia de trabalho, fora jantar com éle. Estavamos tomando café no hall, como era chamada a sala onde costumava fazer suas refeicdes. Por fora, sua casa é bem igual 4 minha e a dez milhares de outras casinhas de Londres, mas na entrada, em lugar da estreita passagem com uma porta lateral levando a sala de jantar, que, por sua vez, se comunica com um pequeno quarto traseiro cha- mado o esttidio, éle tivera o bom senso de eliminar tédas as paredes desnecessdrias e, conseqiientemente, todo o andar térreo de sua casa formava uma tmica sala, com escadas levando ao primeiro andar. O estiidio, a sala de jantar e o passadigo haviam sido fundidos numa nica drea; a porta de entrada dava, pois, para um grande salio. A unica des- vantagem é que se ouvem todos os ruidos feitos pelo car- teiro quando se est4 jantando. No momento em que lhe fa- zia as observagGes jA citadas, sdbre as relagdes entre o cé- rebro e€ 0 corpo, ouvi uma batida alta e assustadora, vinda de algum lugar préximo a mim. — Vocé devia dar um jeito de pér um abafador na aldra- ba — disse-lhe — pelo menos na hora das refeigées. Louis recostou-se na cadeira e riu. — Nao ha mais nenhuma aldraba — respondeu-me. — Vocé se assustou na semana passada e disse a mesma coisa. De modo que resolvi retirar a aldraba. As cartas agora en- tram por uma fenda. Mas vocé ouviu uma batida, no ouviu? — E voeé, nao ouviu? — perguntei. -- Certamente. Mas nfo era o carteiro, Era a Coisa. Nao sei o que é e isso a faz tremendamente interessante. Se existe algo que o hipnotista, o crente em influéncias inexplicadas detesta e despreza, 6 a prépria nogio basica do espiritualismo. O uso de drogas néo 6 mais hostil & sua A CotsA No Hai AL crenga do que a idéia, vencida e desacreditada, da influén- cia de espiritos em nossas vidas. KE ambas estao desacredi- tadas pela mesma razio: é facil entender que um cérebro possa agir sdbre outro cérebro, é facil entender que um_cor- po possa agir sébre outro corpo; assim nao existe maior dificul- dade cm aceitar-se a idéia de que uma mente forte possa guiar outra mais fraca: é tio ébvia quanto a de um lutador mais forte vencer um adversério menos forte. Mas que espiritos possam dar pancadas na mobilia e alterar o curso dos acontecimentos, é superstigao téo absurda quanto tomar-se fésforo para fortalecer o cérebro. Assim pensava eu entio. Estava téo certo de que féra o carteiro quem batera, que me levantei no mesmo instante para atender a porta, Nao havia cartas na caixa; abri a porta: o carteiro estaya su- bindo a escada naquele momento. Entregou-me as cartas em maos. Louis estava ingerindo seu café quando voltei 4 sala. — Vocé j4 experimentou alguma vez levitagiio de mesa? — perguntou-me. — E uma experiéncia bastante estranha. — N&o; nem experimentei ainda félhas de violeta para para curar 0 cancer. — Ohl experimente tudo — continuou éle. — Sei que ésse é 0 seu plano, como também é 0 meu, Em todos ésses anos em que estéve fora, vocé experimentou téda a sorte de coisas, primeiro sem £é, depois com um pouquinho de fé e finalmente com uma fé capaz de mover montanhas. Pois quando foi para Paris vocé ainda néio acreditava om hipno- tismo, acreditava? Tocou a sinéta e um criado apareceu para limpar a mesa, Enquanto isso estava sendo feito, ficamos vadiando pela sala, olhando as gravuras: cumprimentei-o por um Bartolosse que comprara no New Set e guardei siléncio mortal ante um Perdiia, adquirido por prégo considerével. Depois, as- sentamo-nos novamente 4 mesa de jantar. Esta era redonda, de mogno, pesada, com um pé central dividido em varias garras, — Experimente o péso — sugeriu-me Louis. — Veja se consegue arrasta-la. Segurei o canto da mesa com ambas as mios e verifi- quei que mal podia mové-la do Iugar mesmo empregando toda a minha férca. 42 E. F, Benson — Agora ponha as mfos sébre o tampo — disse éle — e veja o que pode fazer. Nada consegui; meus dedos apenas escorregaram sdébre a superficie. Protestei 4 idéia de passarmos a noite entregues a semelhantes exercicios. — Eu preferiria antes jogar xadrez ou damas com vocé, ou mesmo conyersar sdbre politica, do que fazer mesas le- vitarem. Embora nao pretendamos voluntiriamente empur- ré-la, acabaremos por fazé-lo sem querer. Louis assentiu. — Um minuto — disse Me. — Vamos ambos pér os de- dos sébre 0 tampo da mesa e empurré-la com téda a férca da direita para a esquerda. Empurramos. Pelo menos, eu empurrei, enquanto obser- vava a ponta dos dedos de Louis. De rosas, tornaram-se brancas, devido & pressio exercida. De modo que presumi estar éle empurrando também. Numa das vézes em que ex- perimentamos, a mesa estalou. Mas nao se moveu do Ingar. Ouvimos entéo novamente aquela r4pida e peremptéria batida, nfio, ao que me parece, na porta da frente, mas em outro lugar qualquer da sala. — E a Coisa — disse Louis. Hoje, que lhe falo, suponho tenha sido mesmo. Mas naquela noite pareceu-me apenas um desafio, cujo absurdo eu queria demonstrar. — Nestes ultimos cinco anos, venho estudando espiri- tualismo superior — continuou Louis. — Nao lhe contei an- tes porque queria apresentar-lhe certos fendmenos que, em- bora eu nao possa explicar, posso comandar, ao que me pa- rece, Vocé vera, ouvird e decidiré ent&o se vai ou nfo ajudar-me, — E para que eu possa ver melhor, vocé vai propor que apaguemos a luz — disse eu. — Sim, e vocé compreendera por qué. — Estou aqui na qualidade de cético — observei. — Vamos 14 — disse éle. Um momento depois, a sala estava imersa na escuridao, salvo pelo débil brilho das chamas na lareira. As cortinas das janelas eram espéssas; a iluminag&o da rua nfo conseguia atravessé-las; os sons alegres e familiares dos pedestres e do A Cosa no Hain 43 trafego chegavam-nos abafados, Eu estava ao lado da mesa préximo a porta; Louis estava do outro lado: podia distin- guir-lhe a silhueta desenhada contra o brilho do fogo abaixo. — Ponha as mfos sdbre a mesa — disse gle — bem de leve e (como devo dizé-lo?) espere. Ainda protestando em espirito, esperei. Podia ouvir o ruido de sua respirag4o apressada e parecia-me estranho que ae pudesse achar algo de excitante em ficar no escuro, debrugado sébre uma grande mesa de mogno, em expec- tativa. Entao,.. através da ponta dos meus dedos, pousa- dos levemente sdbre a mesa, comecaram a chegar fracas vi- bragdes, semelhantes as vibragdes do cabo de uma_panela quando a agua nela contida comega a ferver. As vibragdes se intensificaram progressivamente, até se tornarem tio vio- lentas quanto o pulsar de um motor de automével. Parecia haver, nessas vibragdes, um zumbido quase inaudivel. De subito, a mesa deslizou sob os meus doles e comegou a girar muito lentamente. — Conserve as maos sdbre ela e acompanhe-lhe o mo- vimento — ordenou-me Louis e, enquanto falava, vi sua si- Ihueta mover-se, seguindo 0 movimento da mesa. Por alguns instantes, houve siléncio absoluto e continua- mos a mover-nos absurdamente, ajustando nosso passo, por assim dizer, ao da mesa. Louis falou novamente e sua voz tremia de excitaciio. — Est4 ai? — perguntou. Nao houve qualquer resposta; éle perguntou de novo, Ouvimos, entao, nova batida, igual aquela que, durante o jantar, eu julgara ser do carteiro. Mas, fésse porque o quar- to estivesse no escuro, fdsse porque me sentisse excitado, a despeito de tédas as prevengSes, pareceu-me que o rufdo era muito mais forte agora. Ademais, ndo parecia vir de qual- quer ponto determinado, mas estar difundido pelo quar- to todo. Nesse instante, a curiosa revolucio da mesa cessou, mas a intensa e violenta pulsac& continuou. Eu _tinha os olhos fitos na mesa, embora, dada a escuridao, nada pudesse ver, quando repentinamente um fino jato de luz incidiu sdbre a mesa, de modo que por um instante pude ver minhas pré- prias mios. Em seguida, apareceram varios outros pontos Juminosos nas trevas, semelhantes a fdésforos-acesos ou va- 44 E. F. Benson galumes atravessando um jardim em trevas. Depois, féz-se ouvir outra batida ensurdecedora; a pulsagéo da mesa cessou e os pontos luminosos desapareceram. Tais foram os fendmenos ocorridos na primeira sessio a que estive presente, mas Fielder, deve ser lembrado, estivera estudando e “esperando”, conforme dizia, havia alguns anos. Para usar a linguagem espiritualistica (coisa que, a essa altura, eu estava ainda longe de adotar), éle era o médium e eu um simples observador; todos os fendmenos que presen- cidramos nessa noite eram habitualmente produzidos ou tes- temunhados por éle. Fago esta limitagdo por ter-me éle dito que alguns déles pareciam escapar ao seu contréle. As ba- tidas ocorriam inclusive em ocasides em que sua mente es- tava inteiramente ocupada com outros assuntos; muitas vézes chegara a ser despertado por elas. As luzes eram também independentes de sua vontade. Minha teoria, naquela época, era a de que tédas es- sas coisas ocorriam no plano subjetivo e que, ao afirmar estarem fora do seu contrdéle, Louis queria com isso dizer que haviam se enraizado no seu inconsciente, do qual sabemos t&o pouco, apesar do papel extremamente impor- tante que desempenha na vida do homem. De fato, nao é exagéro dizer-se que, na maioria, nossos atos resultam, sem voligéo aparente, de nosso inconsciente, TOda audiciio é o exercicio inconsciente do nervo auditivo; téda visao, do nervo 6ético; nosso andar e todos os outros movimentos co- muns processam-se sem intervengao visivel da vontade. Se considerarmos um exemplo mais complexo, a_patinagao, veremos que o principiante s6 aprende a equilibrar-se de- pois de muitas quedas; mas tao logo consegue manter o equilibrio, nao mais pensa no que acabou de aprender e que antes considerava verdadeira faganha acrobatica, Nao Ihe dara maior atengio do que a que da ao seus passos, quando anda. Para um especialista em cérebro, tudo aquilo era mui- tissimo interessante, especialmente para um estudante de hipnotismo como cu, pois (tal foi a concluséo a que cheguei depois da nossa primeira sessa0), o fato de ter visto e ouvido o mesmo que Louis ouviu e viu, era prova de que ocorrera transferéncia de pensamentos, habilidade em que durante téda a minha estada nas escolas Charcot jamais fora ultrapassado ou mesmo igualado. Sabia-me extrema- A Corsa no Harr 48 mente sensivel 4 sugestdo e acreditava ter sido meu papel naquela noite o de mero receptor de sugestdes, tio vividas que pude visualizar e ouvir fenémenos existentes apenas no cérebro de meu amigo. Discutimos posteriormente tais ocorréncias. Louis acha- va que a Coisa estava tentando comunicar-se conosco. Se- gundo éle, fora a Coisa quem movera a mesa, quem dera as batidas e quem nos fizera ver pontos luminosos. — Sim — interrompi-o — mas que quer vocé dizer com essa palavra A Coisa? f o seu tio-avé? Oh! tenho visto muitos parentes aparecerem em sessdes; ouyi muitas vézes também suas lamentaveis vulgaridades. Ou serd algo di- ferente? Um espfritoP Espirito de quem? Louis estava sentado diante de mim; sdbre a mesinha que nos separava havia um abajur aceso, Olhando para o meu amigo, vi suas pupilas se dilatarem de subito. Para um médico — desde que nfo seja qualquer forte alteragao da claridade ambiente a causa da dilatagio — aquilo sé podia significar uma coisa: terror. Contudo, as pupilas voltaram Jogo as suas proporgdes normais. Louis ergueu-se e postou-se diante da lareira. — Nao, néo acho que seja o tio-avé de ninguém — res- pondeu. — Nao sei, ji Ihe disse, 0 que é a Coisa. Mas se voc& perguntar qual a minha conjctura a respeito, dir- Ihe-ei que a Coisa é um Elementar. — Rogo-lhe que seja mais explicito. Que é um Ele mentar? Mais uma vez seus olhos se dilataram. — Levarei uns dois minutos para explicar-Ihe, mas ouga. HA coisas boas neste mundo, assim como ha coisas mas, nio é? CAncer, por exemplo, é mau; ar fresco é bom; a honestidade é boa, a mentira, m4. Impulsos de alguma espécie dirigem as coisas boas e mas e algum poder sugere os impulsos. Pois bem, sempree encarei os assuntos espiritua- lsticos imparcialmente. Aprendi a esperar, a abrir as portas da alma ea dizer: “Quem quer que seja, pode entrar.” E penso que Algo aceitou o convite; a Coisa que deu as batidas, féz a mesa girar e aparecer luzes, conforme vocé mesmo viu. O contréle do principio do mal no mundo esté em mios de um poder que confia suas mensagens as Coisas a quem 46 E. F. Benson cu chamo Elementares. Oh! clas tém sido vistas e nao tenho divida de que serio vistas de novo. Nao pedi, nem pego, que aparecam apenas os bons espfritos. Nao quero ouvir nenhum hino eclesidstico tocado em caixinhas de musica. Assim como nao quero um Elementar: limito-me a abrir a porta. Acredito que a Coisa tenha vindo 4 minha casa e estabelecido comunicagéo comigo. Oh, quero ir até o fim, por mais vil que seja. Que é a Coisa?’ Em nome de Sata, se necessirio, quem é? Quero saber. O que aconteceu entio, atribui-o 4 minha imaginacio; foi 0 seguinte: Um piano, com uma partitura aberta no suporte, estava colocado no canto do quarto préximo & porta de entrada, Um subito pé-de-vento entrou pela sala, tio forte que féz virar as félhas da partitura; em seguida fustigou alguns narcisos colocados num vaso. Alcangando os candelabros acesos, féz oscilar as chamas das velas. De- pois, agitou tanto os meus cabelos quanto os de Louis. Fi- nalmente, dirigiu-se para a lareira e avivou as chamas, — Curioso, nfo? — disse Louis. — Quer dizer que o Elementar subiu pela chaminé? — perguntei. — Oh! n&o; — respondeu — a Coisa apenas passou por nds. De repente, Louis apontou para a parede atras de mi- nha cadeira; havia um tremor em sua voz quando disse: — Olhe: que é aquilo? Ali, na parede. Consideravelmente alarmado, volteimme na direg’o do dedo trémulo. A parede era cinza-claro ¢ recortada contra ela, havia uma sombra; moveu-se assim que a avistei, Era como a sombra de uma enorme lesma, sem pernas, balofa, com dois pés de altura por quatro de largura, mais ou me- nos. Numa das extremidades estava a cabeca, cuja forma lembrava a de uma foca, com a béca aberta e a lingua pendente. Apenas a olhei, a sombra desapareceu e de algum lugar proximo veio o som de outra daquelas ensurdecedoras ba- tidas. Um momento depois, caiu o siléncio sébre néds e um hor- ror espésso difundiu-se pela sala. Mas, de certo modo, nem cu nem Louis nos assustamos mais que por uma fragéo de minuto. A Coisa téda era danadamente interessante. A ColsA No HALL 47 — Foi isso que quis dizer ao afirmar que algo escapa- va ao meu contréle — explicou Louis. — Disse também que estava pronto para receber ualquer. ag qualquer visitante e, por Deus, recebemos uma hele. Nessa época, a despeito do aparecimento da sombra, eu estava absolutamente convencido de acompanhar apenas um caso curiosissimo de desordem mental, ligado a fen6menos notivelmente vividos de transferéncia de pensamento. Acre- ditei nao ter visto qualquer sombra com forma de lesma, mas que Louis tivesse visualizado de modo tao intenso.a hor- rivel criatura que pude compartilhar de sua visdo, Descobri também que seus livrelhos espiritualisticos (no- menclatura que, ao meu ver, era mais apropriada que a de manuais) descreviam a aparigio como a forma costumeira assumida pelos Elementares. De sua parte, Louis estava absolutamente convencido de que lid&vamos n&o com fend- menos subjetivos, mas objetivos. Durante os seis meses subseqiientes, repetimos constan- temente as sessOes, sem maiores progressos: nem a Coisa nem sua sombra apareceram e comecei a sentir que est4vamos per- dendo tempo. Ocorreu-me entio arranjar um désses indi- viduos chamados médiuns, induzi-lo a sono hipnético e ve- rificar se podiamos, assim, descobrir algo mais. Tal fizemos, sentados, como antes, 4 mesa de jantar. A sala nio estava completamente as escuras e eu poderia enxergar satisfats- riamente tudo quanto viesse a acontecer. O médium, jovem ainda, sentou-se entre mim e Louis e, sem a menor dificuldade, induzi-o a um leve sono hipné- tico. No mesmo instante houve uma série de batidas ater- rorizantes e, ao longo da mesa, deslizou algo mais palpavel que uma sombra, desprendendo fraca luminescéncia, como se estivesse em brasa. A face do médium contorceu-se numa mascara de indescritivel terror: seus olhos se arregalaram e permaneceram alucinadamente fitos em algo préximo. Ba- langando a cabega, a Coisa aproximou-se mais e mais, avan- cando em diregao a sua garganta. Com um grito de panico, as m&os estendidas como para proteger-se, 0 médium saltou da cadeira, mas a Coisa ja o tinha agarrado e éle nfo con- seguia livrar-se, Simulténeamente, eu e Louis corremos a ajudd-lo © minhas mios tocaram algo gélido e viscoso. Ape- sar de todos os nossos esforgos, nao conseguimos livré-lo do 48 E. F. Benson atacante. Nao havia poder humano capaz de domina-lo; era como se a gente tentasse agarrar uma pele escorregadia; a sensag&o tdctil era horrivel, suja, semelhante 4 provocada pelo contato com a pele de um leproso, Nesse instante, tomado pelo desespéro, embora ainda nao pudesse acreditar que o horror fésse real (devia antes ser a visio de uma mente doentia), lembrei-me de que o interruptor que coman- dava as quatro lampadas da sala estava perto de mim. Acen- di as luzes. O médium jazia no meio da sala e Louis estava ajoe- Thado a seu lado, o rosto mais branco que uma fdlha de papel. A Coisa desaparecera. O colarinho do médium es- tava rasgado e em sua garganta havia dois arranhées sangrando, O médium se achava ainda em transe hipnotico; des- pertei-o. Levou a m&o a garganta e percebeu os ferimentos, mas conforme eu esperava, nao se lembrou de nada do que ocorrera. Explicamos-lhe que se tinha verificado uma manifestagao fora do comum e que éle lutara, em transe, contra ela. Tinhamos obtido o resultado que desej4vamos; ficamos-lhe muito gratos. Nunca mais o vi. Uma semana depois, soube que mor- rera de envenenamento sangitineo, Naquela noite tivera inicio a segunda fase da nossa aventura, A Coisa se materializara (uso, mais uma vez, a linguagem espiritualistica que nao comegara ainda a usar naquela época). A lesma monstruosa, 0 Elementar, nao se manifestava por pancadas, mesas dangantes ou sombras. Sur- gira sob uma forma que podia ser vista e apalpada. Mais ainda — éste era o meu maior trunfo: — era tao-sémente uma coisa noturna; uma vez acesas as luzes, verificavamos que desaparecera. Durante a luta, talvez o médium houvesse arranhado sua prépria garganta; talvez eu houvesse agarrado a manga de Louis e éle a minha, Muito embora dissesse tudo isso a mim mesmo, ent&o nao estou seguro de que acredi- tasse nelas como acredito em que o sol nasceré amanhi. Estudioso das fungdes cerebrais e dos assuntos hipns- ticos, eu deveria ter continuado, firme e ininterruptamente, a investigar aquela extraordindria série de fendmenos. Mas tinha minha clinica a atender; descobri no entanto que, ape- sar de téda a minha boa vontade, nfo conseguia pensar em A Corsa no Harn 49 outra coisa que nao fdsse a ocorréncia verificada no hall da casa vizinha. Recusei-me, contudo, a participar de qualquer outra sessao. Tinha boas razdes para isso. Nos iultimos quatro ou cinco meses, Louis se tornava depravado. Nunca fui nenhum puritano ¢ espero nao ter jamais voltado as costas, farisaicamente, aos pecadores. Mas em todos os setores da vida e da moralidade, Louis se tor- nara um infame. Foi expulso de um clube por roubar 4s cartas e contou-me o fato com prazer, Tornara-se cruel; supliciou seu gato até matd-lo; estava bestial. Ao passar diante de sua casa, eu costumava estremecer, esperando ver nao sei que coisa diabélica 4 minha espreita, na janela. Veio entéo a noite, ha apenas uma semana atrds, em que fui despertado por um grito medonho e entrecortado, Vinha da casa vizinha, Desci as escadas apressadamente, de pijama, e sai a rua. O policial em servigo ouvira também 0 grito, vindo do hall da casa de Louis, cuja janela estava aberta. Forgamos a porta, Vocé sabe 0 que encontramos; a gritaria cessara havia apenas um momento, mas éle ja es- tava morto. Ambas as suas jugulares estayam estragalhadas. S6 voltei para casa de madrugada. Quando entrei, algo pareceu rogar por mim; algo macio e viscoso. Dessa vez, nao podia ser imaginagao de Louis. Desde entao, tenho tido vislumbres téda noite. Desperto com o ruido das batidas e vejo, sentado nas sombras de um dos cantos do quarto, algo mais substancial que uma sombra. Uma hora depois de eu ter deixado a casa do Dr. Asshe- ton, a quictude da rua foi novamente perturbada por gri- tos de terror e de agonia. Quando conseguiram entrar na casa, éle ja estava morto. Morrera de maneira idéntica a do seu amigo,

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