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conhecimento jornalístico

O CONCEITO DE PÓS-MODERNIDADE EM LYOTARD


E A POSSIBILIDADE DA INFLUÊNCIA NIETZSCHIANA
Felipe Szyszka Karasek *

Resumo Abstract

O principal objetivo deste estudo é apresentar a tese The aim of this is study is to present the thesis that the
que os elementos constituintes da reflexão de Lyo- constituents of Lyotard’s reflection on postmodernism
tard sobre a pós-modernidade já estavam presentes had already been present in Nietzsche’s suspicions
nas suspeitas e na filosofia de Friedrich Nietzsche. and philosophy. Making a genealogic study about
Realizando um estudo genealógico sobre a crítica de Nietzsche’s criticism of Socratic, we intend to demons-
Nietzsche ao socratismo, pretendemos demonstrar que trate that the distrust of truth had already been part of
a desconfiança de verdades já fazia parte do perspecti- the Nietzschean perspectivism as well the criticism of
vismo nietzschiano, bem como a crítica às legitimações metaphysical legitimations. Is this way, we intend to
metafísicas. Pretendemos, dessa maneira, apresentar a present the possibility of the influence of Nietzsche’s
possibilidade da influência da filosofia nietzschiana na philosophy in the formation of Lyotard’s thoughts about
formação do pensamento de Lyotard sobre o conceito the concept of postmodernism.
de pós-moderno.
Palavras-chave Keywords
Pós-modernidade; Lyotard; Nietzsche Postmodernity; Lyotard; Nietzsche.

Em seu livro intitulado O Pós-Moderno Para Lyotard, o pós-moderno está


(1986), Jean-François Lyotard aborda o con- marcado por uma incredulidade perante
ceito de pós-modernidade. O autor procura o metadiscurso filosófico metafísico, que
demonstrar que o entendimento desse con- possui pretensões atemporais e universali-
ceito está relacionado à abolição da ideia de zantes. Este cenário seria composto por uma
verdade, que durante muitos anos foi uma essencialidade cibernética, informatizada
das principais armas do poder. Nesse sen- e informacional. O saber seria legitimado
tido, defende a ideia de um niilismo novo, pela ciência, pelo virtual e pelo artificial.
possivelmente influenciado pelo conceito A verdade seria o resultado da vitória do
nietzschiano, em relação à inexistência de discurso mais sedutor ou daquele mais forte
tais verdades. para impor o seu discurso.
Com esta publicação, Lyotard pre- A diferença entre a modernidade e
tende apresentar argumentos que demons- a pós-modernidade estaria presente na per-
trem a decadência da ideia de verdade em cepção de que na primeira eram as ciências
uma sociedade conceituada como pós-mo- que criavam as verdades e as leis, assim
derna, além de demonstrar que o conjunto como a idealização de um bem-comum
de transformações ocorridas nas regras do geral. A dialética era reveladora de saber
jogo de produção cultural que marcam as so- e emancipatória, um conhecimento base-
ciedades pós-industriais são características ado em justificações metafísicas. Enquanto
deste mesmo conceito. Ainda neste mesmo que na segunda, o saber está marcado pela
foco, pretende avaliar as condições do saber dúvida, desconstrução, perspectiva, descon-
produzido nas sociedades mais avançadas, fiança, interpretação, não-existência de
principalmente sobre o saber científico e nas verdades, suspeitas, construção do conheci-
universidades. mento a partir da problemática. Existe uma

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recomendação ao exercício do pensamento tas, oradores, poetas e artistas, deparava
e uma incitação e provocação para a dúvida. com a presunção do saber. Com espanto,
O principal objetivo deste estudo reconheceu que todas aquelas celebridades
não possuíam uma compreensão certa e
é apresentar a tese de que estes elementos
segura nem sequer sobre suas profissões e
constituintes da reflexão de Lyotard sobre seguiam-nas apenas por instinto. “Apenas
a pós-modernidade já estavam presentes por instinto”: por essa expressão tocamos
nas suspeitas e na filosofia de Friedrich no coração e no ponto central da tendência
Nietzsche. Realizando um estudo genealó- socrática. Com ela o socratismo condena
gico na filosofia de Nietzsche, pretendemos tanto a arte quanto a ética vigentes; para
demonstrar que a desconfiança de verdades onde quer que dirija seu olhar perscruta-
dor, avista ele a falta de compreensão e o
já fazia parte do perspectivismo nietzschi-
poder da ilusão; desta falta, infere a íntima
ano, bem como a crítica às legitimações insensatez e a detestabilidade do existente.
metafísicas na abordagem sobre a questão A partir desse único ponto julgou Sócrates
de Sócrates. Pretendemos, dessa maneira, que devia corrigir a existência: ele, só ele,
apresentar a possibilidade da influência entra com ar de menosprezo e de superiori-
da filosofia nietzschiana na formação do dade, como precursor de uma cultura, arte
pensamento de Lyotard sobre o conceito de e moral totalmente distintas, em um mundo
tal que seria por nós considerado a maior
pós-moderno.
felicidade agarrar-lhe a fímbria com todo o
Para atingirmos esse objetivo, reali- respeito (Nietzsche, 1992, p. 85).
zaremos a investigação genealógica abor-
dando a crítica de Nietzsche ao socratismo, A partir desta análise, Sócrates en-
sua crítica à racionalidade conceitual fatiza que, a partir desse procedimento, a
socrática que teria influenciado a formação certeza e o conhecimento afastariam a tragé-
do Ocidente e o seu elogio ao conhecimento dia da vida dos homens. Com a sabedoria
estético. e o entendimento socráticos o homem não
sucumbiria mais pelo trágico, ele entraria
A questão do socratismo
em um processo de certeza a partir de suas
O socratismo é, como Nietzsche de-
próprias ações e com o passar do tempo
nomina, o movimento dialético inaugurado
aprenderia a resolver as questões trágicas
por Sócrates, o qual teve como principal
com a razão.
seguidor Platão. Esse movimento estava
presente tanto na filosofia como na atitude Essa metodologia criada por Sócrates inau-
socrática,
  quando afirmava que “tudo precisa gura um princípio curativo pelo saber. Ao ter
ser consciente para ser bom”. Em Platão, sido pronunciada contra ele a sentença de
Nietzsche percebe o socratismo na sua forma morte, e não apenas a de banimento, parece
de escrever, quando inaugura o diálogo algo que o próprio Sócrates levou a cabo,

platônico, nos quais Sócrates é o herói e nos com plena lucidez e sem qualquer temor: ele
quais a poesia e a palavra lógica possuem caminhou para a morte com aquela calma
com que, na descrição de Platão, deixa o
uma relação hierárquica, estando a lógica simpósio como o último dos beberrões a
acima da poesia. fazê-lo, nos primeiros albores das manhãs,
a fim de começar um novo dia. O Sócrates
A palavra mais incisiva em favor dessa moribundo tornou-se o novo e jamais visto
nova e inaudita estimação do saber e da in- ideal da nobre mocidade grega: mais do
teligência foi proferida por Sócrates, quando que todos, o típico jovem heleno, Platão,
verificou que era o único a confessar a si prostou-se diante dessa imagem com toda
mesmo que não sabia nada; enquanto, em a fervorosa entrega de sua alma apaixonada
suas andanças críticas através de Atenas, (Nietzsche, 1992, p. 87).
conversando com os maiores estadis-

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Na apologia de Sócrates, Platão des- tismo, atribui à obra de Eurípedes o agente
creve a maravilhosa seriedade com que fez determinante da decadência da tragédia
valer em toda parte, e até perante os juízes, a grega, eliminando da tragédia a hegemonia
divina vocação socrática. Era tão impossível do espírito da música e introduzindo na arte
refutá-lo a esse respeito quanto dar por boa a trágica o processo lógico.
sua influência dissolvente sobre os instintos. A música entre os gregos tinha a
Pode-se assim, perceber nos escritos platôni- tarefa de transformar o suportar do herói
cos a influência marcante do socratismo, na mais intensa compaixão dos ouvintes. A
daquela divina ingenuidade e segurança da tragédia grega traz uma relação entre pala-
orientação socrática de vida. A formidável vra e música. Ela leva ao palco a relação de
roda motriz do socratismo lógico acha-se, poder entre palavra e música. O protagonista
por assim dizer, em movimento por detrás domina a palavra, mas é a música do coro
de Sócrates. Para segui-lo, Platão queimou que domina o que produz as palavras. A
todos seus poemas, que eram considerados palavra está submetida a mal-entendidos e
escritos vindos do ilógico, portanto, sem a interpretações errôneas, não sai do “mais
validade socrática. interno” e não chega até lá. Vive e tece à
margem do ser. A música é diferente. Atinge
O socratismo é, como Nietzsche o coração diretamente, como a verdadeira
linguagem comum que se entende por toda
denomina, o movimento dialético
parte (Safranski, 2005, p. 55).
inaugurado por Sócrates, o qual teve O despedaçamento da tragédia
como principal seguidor Platão ocorre na carreira da palavra. O logos¹
vence o pathos² da tragédia. A tragédia,
para Nietzsche, está liquidada quando a lin-
O diálogo platônico absorve todos guagem se emancipou da música e fez valer
os estilos e formas precedentes – narrativa, em excesso a sua própria lógica, de maneira
lírica e drama, prosa e poesia -, tendo uma que a linguagem é um órgão da consciência,
forma de “Sócrates furioso”, que represen- enquanto que música é ser. O fim da tragédia
tava muito para a vida de Platão. O diálogo ocorre quando ser e consciência não se har-
platônico conduz para dentro de um novo monizam mais. É o fim da velha tragédia do
mundo que jamais se saciou de contemplar pathos e o início da nova tragédia do logos.
a fantástica imagem socrática. Com isso Na conferência de Nietzsche intitu-
Platão funda o protótipo de uma nova forma lada Sócrates e a Tragédia, faz-se notar uma
de arte, o romance. No romance, a poesia ousadia de pensamento que iria atemorizar
vive com a filosofia dialética em uma relação o próprio Wagner. Partindo de uma interpre-
hierárquica semelhante à que essa mesma tação penetrante das obras de Aristófanes,
filosofia manteve durante muitos séculos particularmente de As Rãs, Nietzsche nos
com a teologia, como uma escrava. Essa foi mostra a obra de Eurípedes e o socratismo
a nova posição a que Platão, sob a influência como agentes determinantes da decadência
de Sócrates, arrastou a poesia (Nietzsche, da tragédia grega, ao eliminarem da tragédia
1992, p. 88). a hegemonia do espírito da música e ao de-
sencadearem na arte trágica a preponderân-
O socratismo como fator de decadência do cia da lógica. Essa conferência, justamente,
drama musical grego
rendeu a Nietzsche as primeiras inimizades,
A tendência socrática não só influ-
ao promover a crítica ao cientificismo cara-
enciou Platão como diversos outros pensa-
cterístico do meio acadêmico em que este
dores. Nietzsche, na sua crítica ao socra-
pensador, como professor de filologia se

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inseria, e ao negar a todo racionalismo a pos- consequências até a atualidade. A vontade
sibilidade de tocar o cerne da força vital da de saber domina as forças vitais do mito, da
humanidade grega, como queria a filologia religião e da arte. O ser deve agora se jus-
tificar perante a consciência. A vida anseia
(Nietzsche, 2005, p. 8). pela luz, a dialética vence a música trevosa
A conferência proferida na Basiléia do destino. Desperta a esperança otimista de
em fevereiro de 1870, faz uma crítica da alta que a vida se deixa corrigir, dirigir, calcular
valorização da consciência. É uma crítica a partir da consciência. Assim morre o tea-
ao pensamento socrático: tudo tem de ser tro musicado, por delírio, vontade e dores
consciente para ser bom. Nietzsche acredita (Safranski, 2005, p.55).
que isso destruiu a tragédia, pois limita o
inconsciente criativo e o inibe. Sócrates que- Depois de proferida em 1° de fe-
bra o poder da música e em seu lugar coloca vereiro de 1870, Nietzsche enviou Sócrates
a dialética. Nietzsche afirmava que Sócrates e a Tragédia para Wagner. Em 4 de feverei-
ajudava Eurípedes em seu poetar e que só ro, Wagner responde a Nietzsche:
se fazia presente nas tragédias quando uma
nova peça dele era encenada. Lembremos Ontem li para a amiga [Cosima³] a sua dis-
também que o Oráculo de Delfos apontou sertação. Depois tive que acalmá-la: para
ela o senhor lida com os gigantescos nomes
Sócrates como o mais sábio de Atenas, dos grandes atenienses de uma maneira
mas, em segundo lugar, Eurípedes, tal era a surpreendentemente moderna. Isto foi logo
influência que ambos estavam exercendo. entendido e desculpado como decorrente de
Nas encenações das obras de Eurí- uma fraqueza da época. Eu, de minha parte,
pedes, a natureza do herói euripidiano é senti sobretudo um temor diante da ousadia
defender as suas ações por meio de razão com a qual o senhor, de maneira tão breve e
e contra-razão. A essência da dialética é o categórica, participa a um público suposta-
mente não destinado à formação acadêmica
elemento otimista que celebra a cada con- uma idéia tão nova, de modo que se tem de
clusão a sua festa de júbilo e só consegue contar, para a sua absolvição, somente com
respirar na fria clareza da consciência. Este a total incompreensão por parte daquele.
elemento otimista insere-se na tragédia e vai Mesmos os iniciados em minhas idéias
pouco a pouco recobrindo todas as regiões poderiam por sua vez se assustar, se, com
dionisíacas e levando-as à superação. O essas idéias, entrassem em conflito com a
herói, antes virtuoso ao enfrentar a Moira, sua [a deles] fé em Sófocles e mesmo em
Ésquilo . Eu - pela minha pessoa - clamo
agora precisa ser dialético. Precisa existir ao senhor: assim é! O senhor está correto e

entre virtude e saber, crença e moral, uma tocou o ponto próprio da maneira exata e a
ligação obrigatoriamente visível. Nas três mais precisa, de modo que não posso senão,
máximas socráticas está a decadência da cheio de surpresa, aguardar o desenvolvi-
tragédia: “Virtude é saber”, “Só se peca por mento do senhor, para o convencimento do

ignorância” e “O virtuoso é o mais feliz” preconceito vulgar dogmático. - Todavia,
(Nietzsche, 1992, p. 88). estou preocupado com o senhor e desejo
de todo coração que o senhor não se faça
Quanto ao drama musical grego, o quebrar o pescoço. Por isso gostaria de
pathos do destino foi afastado pelo calcu- aconselhar o senhor a não tratar dessas
lismo e intrigas. Agora não se canta mais no opiniões tão inacreditáveis em dissertações
palco, se discute. curtas que têm em vista efeitos leves por
meio de considerações fatais, mas se está
[...] é como se todas essas figuras não tão profundamente compenetrado delas -
sucumbissem pelo trágico, mas pela super- como eu reconheço - reúna as suas forças
afetação do lógico. Sócrates é um sintoma para um trabalho maior e mais abrangente
de uma transformação cultural profunda de sobre isso. Então o senhor certamente irá

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encontrar também a palavra justa para os er- versos algumas fábulas esópicas.
ros divinos de Sócrates e Platão (Nietzsche,
2005, pp. 11-12). Aquela palavra da socrática aparição onírica
é o único sinal de uma dúvida de sua parte
Há indícios de que Nietzsche conce- sobre os limites da natureza lógica: será -
beu o plano para seu livro sobre a tragédia assim devia ele perguntar-se - que o não
compreensível para mim não é também,
instigado por isso. Domina-o um pressen-
desde logo, o incompreensível? Será que
timento singular de grandes coisas que vão não existe um reino da sabedoria, do
acontecer com ele, e que ele há de realizar. qual a lógica está proscrita? Será que arte
Escreve a Rohde5 em meados de fevereiro não é até um correlativo necessário e um
de 1870: “Ciência, arte e filosofia se vão complemento da ciência? Para Nietzsche,
fundindo tanto em mim que algum dia cer- colocar-se na escola dos gregos é aprender
tamente vou parir um centauro” (Safranski, a lição de uma civilização trágica para quem
a experiência artística é superior ao con-
2005, p. 56).
hecimento racional, para quem a arte tem
Para Nietzsche, a dialética otimista mais valor do que a verdade. Se Sócrates,
expulsa a música da tragédia: quer dizer, Eurípedes e Platão significam o início de
destrói a essência da tragédia, essência um grande processo de decadência que
que cabe interpretar unicamente como chega até nossos dias é porque os instintos
manifestação e configuração de estados estéticos foram desclassificados pela razão,
dionisíacos, como simbolização visível a sabedoria instintiva reprimida pelo saber
racional (Machado, 1999, p.8).
da música, como o mundo onírico de uma
embriaguez dionisíaca. É tão certo que o
Nesta análise sobre a questão do
efeito imediato do impulso socrático visava
socratismo devemos partir da reflexão
à destruição da tragédia dionisíaca que
sobre o socratismo estético. Se, para Ni-
uma profunda experiência vital do próprio
etzsche, Eurípedes é o marco que assinala
Sócrates nos obriga a perguntar se de fato
a decadência da tragédia, é porque com ele,
existe necessariamente, entre o socratismo
pela primeira vez, o poeta se subordina ao
e a arte, apenas uma relação antipó dica e se
pensador racional, ao pensador consciente.
o nascimento de um Sócrates artístico não
O que caracteriza a estética racionalista, a
é em si algo absolutamente contraditório
estética consciente, é introduzir na arte o
(Safranski, 2005, p. 55).
pensamento e o conceito a tal ponto que
a produção artística deriva da capacidade
A essência da dialética é o elemento crítica. Momento em que a consciência,
a razão, a lógica despontam como novos
otimista que celebra a cada conclusão critérios de produção e avaliação da obra de
a sua festa de júbilo e só consegue arte. Quando a racionalidade faz uma crítica
respirar na fria clareza da consciência. explícita à produção artística na perspectiva
da consciência, quando toma como critério
o grau de clareza do saber, a tragédia será
desclassificada como irracional ou como
Sócrates teve um sonho na prisão,
desproporcional, ou uma profundidade
que lhe dizia: - Sócrates, faz música! Ele
enigmática e infinita, incerta, indiscernível,
afirma até seus últimos instantes que a sua
sombria, obscura. Por não ter consciência do
filosofia é a mais elevada de todas, mas, no
que faz e não apresentar claramente o seu
fim, para aliviar a sua consciência, pratica
saber, o poeta trágico será desvalorizado,
aquela música tão menosprezada por ele.
desclassificado pelo saber racional (Mach-
Compõe um proêmio a Apolo e põe em

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ado, 1999, p.30).
Por este motivo, Nietzsche percebe A ausência de certezas, a falta de con-
na influência de Sócrates um rompimento
dos vínculos da arte com a vida, provocando sistência nas respostas impulsionaram
um fenecimento nos laços de encantamento Sócrates em direção a uma busca sem
que existem entre elas, pois a arte passa a
fim na qual durante todo o tempo
trazer em si própria a reflexão. A fundação
de um homem teórico cuja meta é com- só fazia comprovar que, ao mesmo
preender o mundo, a vida e a si mesmo, e a tempo que se percebia mais sábio que
instauração da ciência dotada de verdades
absolutas, dotadas de uma inabalável fé de os demais, era apenas por reconhecer
que o pensar por meio da causalidade é do- em si sua ignorância.
tado de poder de, não apenas conhecer, mas
também de corrigir, supondo uma noção de procura, com essa crítica, atrair a atenção
verdade universal, que encontra uma alter- dos homens para um ensino mais humani-
nativa diversa em Nietzsche, quando este sta, que valorize a arte em um nível mais
privilegia a metafísica do artista e afirma elevado, não a arte de intrigas6, mas a arte
ser a arte, e não a ciência, quem tem mais trágica, inspirada na ação do destino, que
valor, por esta viabilizar a vida. Nietzsche entende como o reflexo da vida,
Talvez não seja tarefa de nossa re- incontrolável, indomável, irracionalizável.
flexão colocar, como fez Sócrates, ciência e Percebemos em O nascimento da tragédia,
arte em uma relação hierárquica, mas iden- e também na motivação do filósofo, uma
tificar as possibilidades e perspectivas que exaltação do músico Richard Wagner, de
surgem a partir da experiência, se pensadas quem Nietzsche esperava uma renovação
através da estética. Não devemos ser herdei- do drama musical alemão. Mas o que nos
ros de Sócrates, de uma lógica metafísica interessa não é a motivação de Nietzsche
segundo a qual os valores racionais devem e seu posterior rompimento com Wagner,
prevalecer, nos tornando homens teóricos. A mas a capacidade do filósofo que desejava
ausência de certezas, a falta de consistência um novo mundo, uma renovação na forma
nas respostas impulsionaram Sócrates em de arte existente, que passasse a valorizar,
direção a uma busca sem fim na qual durante assim como os gregos um dia fizeram, a
todo o tempo só fazia comprovar que, ao vida a partir de uma visão estética. Talvez a

mesmo tempo que se percebia mais sábio maior lição que Nietzsche nos traga na sua
que os demais, era apenas por reconhecer sabedoria trágica é a sua visão do mundo. A
em si sua ignorância. Sócrates buscava que sua percepção de que o excesso de racion-
os poetas explicassem a poesia que faziam, alismo trouxe mais mazelas do que coisas

buscando conhecê-la. Ao julgar a poesia boas. Refletir a filosofia de dentro desta
por um critério que havia sido lançado pelo perspectiva é refletir sobre a possibilidade
oráculo de Delfos, ou seja, o conhecer e o de uma filosofia a partir da arte, do entendi-
saber, Sócrates instituiu um caminho, uma mento sobre as consequências que o excesso
busca que seria o legado de toda a civiliza- de racionalismo pode gerar e as diversas
ção ocidental. realidades que ele pode negar. A arte exalta
a vida a partir das novas possibilidades de
Essa crítica de Nietzsche a Sócrates conhecimento que ela traz e a torna mais
é uma crítica ao pensamento lógico, cientí- bela e digna de ser vivida.
fico, iluminista, que regia a Alemanha
durante a sua vida. Além disso, Nietzsche

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Considerações Finais no conceito de interpretação. Pois fazemos
Ao falarmos da filosofia de Nietzsche, a diferenciação entre verdadeiro e falso
diversas vezes utilizamos o termo perspec- e, evidentemente, também a entendemos.
tiva. Para o filósofo, não existem verdades Trata-se, pois, não de destruição, mas de
absolutas e referenciais únicos, existem re-concepção do sentido de verdade. E esta
somente perspectivas. O que existe é um re-concepção pode se dar sobre a base dos
perspectivismo que permite propor uma mais abrangentes e basilares processos da
verdade ficcional e o homem como um cria- interpretação (Abel, 2002, p. 41).
dor ficcional de conceitos interpretativos. Nietzsche utiliza-se da palavra per-
O conhecimento ficaria na esfera de uma spectiva para evitar o fechamento, evitar
interpretação, o que significa ser impossível um conceito regulador que esconde o desejo
pensar fora do perspectivismo interpreta- de simplificação, de dominação, anulando
tivo, do acontecer, do trágico. a singularidade do diferente e reduzindo a
complexidade do mundo e do conhecimento.
Mas mesmo assim, Nietzsche não deixa de
Talvez a maior lição que Nietzsche usar o conceito, mas não o usa como mor-
nos traga na sua sabedoria trágica é a alizador, como regularizador, como eterno e
universal, mas como perspectiva, da mesma
sua visão do mundo. A sua percepção forma como concebe a ideia do sujeito. Ou
de que o excesso de racionalismo seja, não deixa de valer-se do conceito, da
ideia de sujeito, como também não o usa
trouxe mais mazelas do que coisas como regulado pelo ideal eterno, bem e mal
boas eternos, o que lhes possibilita refletir com
as contingências dos acontecimentos, com
a moral do perspectivismo como o próprio
No que concerne ao perspectivismo valor, com o provisório, com o transitório.
nietzschiano, as dificuldades da concepção Nessa abordagem, podemos supor
metafísica da verdade não podem ser elimi- que, voluntariamente ou involuntariamente,
nadas por uma simples modificação em a tese de Lyotard para a formulação do
nível do conceito de verdade. Na concepção conceito de pós-modernidade carrega os
de Nietzsche, melhor seria considerar traços críticos de Friedrich Nietzsche, no
“verdade” como nome para um produzir que concerne à desconfiança de verdades e
nos processos de interpretação. Com estes ao perspectivismo.
processos, não se chega a um fim definitivo
NOTAS
e universalmente válido. Neles “nasce” ver-
dade, que ao mesmo tempo também serve * Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filoso-
fia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
para a classificação de teses (juízos, ideias)
do Sul – PUCRS. E-mail: felipe.karasek@gmail.com
como verdadeiras ou falsas. Neste sentido,
pode-se apreender verdade enquanto inter- ¹ Logos é uma palavra grega que antes do surgimento da
pretação. Nos processos de interpretação, filosofia significava palavra, verbo. A partir de Heráclito
portanto, não se trata mais, em primeiro passa a significar razão, capacidade de racionalização
individual.
lugar, de descobrir uma verdade pronta e

pré-existente. Não é mais a interpretação ² Pathos é uma palavra grega que significa emoção,
que depende da verdade, e sim a verdade é paixão, excesso.
que depende da interpretação. Isto, contudo,
não significa nem que a questão da verdade ³ Cosima Wagner, esposa de Richard Wagner e amiga
de Nietzsche.
se torne obsoleta nem que ela desapareça

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