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TRADUCAO O SAGRADO SELVAGEM In: BASTIDE, Roger, Le Sacré Sauvage. Paris, Payot, 1975, Tradugao de Rita de Cassia Amaral E verdade que _ Nietzsche proclamou a morte dos deuses; no entanto, Foucault proclama a morte do homem (o que é logico, o homem no se constitui como tal ‘sendp em sua relagio com os. deuses). E verdade também que o cristianismo e, em certa medida, 0 Isldo entraram em. crise. Enfim, é verdade que os socidlogos nos martelam os ouvidos, ha algumas décadas, com seus ‘processos de "secularizagdo" (sem se dar conta de jue eles sO fazem retomar Hubert spencer e€ seus se purificar de toda contaminago com aquilo que ndo € ele mesmo) Mas a morte dos deuses instituidos implica no desaparecimento dda experiéncia instituinte do Sagrado & procura de novas formas onde se ‘encarnar? Mas a crise das organizagdes religiosas nao provém de uma nio- adequaco, cruelmente sentida, entre as exigéncias da experiéncia ‘religiosa pessoal e os quadros institucionais nos quais se quis moldé-la visando, muitas vezes, retirar a sua poténcia explosiva, considerada como perigosa para a ordem social? Mas, enfim, nfo se assiste hoje a uma nova busca apaixonada do sagrado entre os jovens = como se nossos contemporineos, apés um longo periodo de desenvolvimento do ateismo ou apenas de abandono a indiferenga, se dessem novamente conta da existéncia de um vazio spiritual a preencher constatassem, a partir desse sentimento de vazio, que uma personalidade que no se enraizasse em algum tipo de entusiasmo sagrado nfo seria, em definitivo, seno uma personalidade castrada \disto que constitu uma dimenséo antropolégica_ universal € constante para todo homem vivo: a dimensio religiosa? Porém, este sagrado que reaparece na cultura e na sociedade de hoje, se quer um sagrado selvagem. Ele procura, por vezes, seus modelos nos transes coletivos das populagdes ditas Drimitivas, nos cults de possessio que © cinema, a televisdo € 0 teatro negro Popularizaram. Nao para copié-las, certamente, jé que por definigiio um sagrado selvagem é criagdo pura e no repetigao = ele se situa no dominio da imaginagdo, ndo no da meméria - mas para extrair, absorver mesmo, isto que nés podemos chamar de uma pedagogia da selvageria. André Gide, cansado de nossa civilizagao mecanica, artificial e racional, pedia ja ha alguns anos, em suas preces, uma nova invasio dos Barbaros ! que destruisse nosso mundo € Ihe desse uma chance de alteridade; estes Barbaros nao vieram, Entéo, os jovens os recriaram, 1+ 0 uso de maitsculas em algumas palavras corresponde ao seu uso no texto original (WT). adams de Campo mas se inspirando mesmo nos cultos extiticos, violentos ¢ sangrentos como se definiam aos olhos de alguns historiadores. Aqui esto os dois pilares desta conferéncia: o sagrado selvagem das sociedades tradicionais ¢ o sagrado selvagem de nossa _civilizagao ocidental. Dois pilares que _ nos permitirao colocar nio propriamente o problema das relacées entre a natureza ea cultura, nem aquele que Ihe € vizinho, as relagdes entre a psicanélise a sociologia, mas aquele - puramente sociologico - da domesticagio do sagrado, as sociedades tradicionais se "a como —_tentaremos demonstrat, a pasar do sagrado selvagem a0 sagrado domesticado; nossa sociedade, a0 contrério, a desagregar o sagrado domesticado para fazer brotar, ou baixar, 0 sagrado selvagem em toda a sua fia, Durkheim, ao mostrar a origem da religido dos estados de efervescéncia coletiva, € em parte responsavel pelo erro que se comete quando se define os transes primitivos como pura efervescéncia. Mas basta reler As formas elementares da vida religiosa para perceber que os exemplos que di em favor de sua tese se voltam contra ele, porque 0 transe sO aparece em certos individuos, ele comega e termina ‘em hora fixa, ele se desenrola segundo um cenario dado de antemao e que ndo muda de uma ceriménia para outra, ele sO faz representar na terra o que se passou outrora no mundo do sonho; quando ha orgia, 0 que € raro, a orgia obedece a regras estritas. Entretanto, mais que Durkheim, certamente sto 0s exploradores, os viajantes ¢ os missionarios responsiveis, por esta imagem de selvageria no encontro extitico dos homens e dos Deuses - sobretudo quando estes vigjantes eram médicos ou ainda mai psiquiatras, porque eles chegaram de um mundo "outro" com seus preconceitos de ocidentais, que M4 vradupso- Bastide desconfiam da linguagem do corpo. O seu cristianismo mais ou _ menos maniqueista os impele a identificar os Deuses e os deménios © a ver, conseqientemente, nos cultos de ssessio, um fenémeno analogo Aquele dos possessos da Idade Média pela legiéo. de Sati - com uma educago médica que thes havia feito conhecer apenas crises de histeria e que, desse modo, s6 podiam pensar o transe através da tnica categoria que a clinica thes havia revelado na Europa ou nos Estados Unidos. Ora, 0 transe dos assim ditos “*primitivos*. € 0 contrario mesmo do desprendimento corporal, do abandono as pulsdes inconscientes, da crise histérica, E um jogo litirgico - que se aproxima mais, no fundo, da representagdo teatral que das grandes crises de nossos asilos psiquiatricos. Porque ele é do comego ao fim, controlado pela sociedade; porque ele preenche uma fungio social, a de estabelecer entre os Deuses € os homens uma comunicagao que permite a estes Deuses descer novamente 4 terra para_o bem da comunidade; porque ele constitui, para um numero muito grande religides, um fendmeno culturalmente de normal, instituido e dirigido, como posso dizer? normal, obrigatério e sancionado. O que ‘sempre me _—_impressionou, pessoalmente, tanto na Africa quanto nas Américas negras, é justamente este conjunto de regras e de controles. E nds s6 daremos aqui alguns exemplos: quando uma mulher estd de luto, ou menstruada, ou mesmo se teve um pouco antes relagdes sexuais, por mais que ela tenha sido dedicada a uma divindade e assista a ceriménia, ela nio cai em transe Quando os tambores que imam a cerimdnia nfo "comeram", ou seja, receberam o sangue sacrificial, que thes permite chamar os Deuses, as jangas podem continuar por horas a fio que 0 fendmeno da possessio ndo se Ccaderoe de Campo produz. Longe de dar uma imagem de caos, de violéncia ou de disturbio muscular, 0 trans toma freqentemente uma forma calma, to calma que eu desafio qualquer observador nao habituado a afirmar que uma das dancantes esti "possuida” Entretanto, os Yoruba da Nigéria reconhecem num tremor imperceptivel de ombros, nas pilpebras que se fecham, que um deus desceu © param imediatamente a ceriménia, porque basta que o Deus esteja presente (a mulher ficaré neste transe doce uma semana) para poder abencoar as colheitas e os habitantes da aldeia, para fazer cair a chuva ou acabar com uma epidemia; é initil fazer vir outros e multiplicar o éxtase. Eu consagrei muitos livros ou artigos a este controle para precisar insistir_nisso hoje, onde nés s6 queremos falar do transe selvagem. O que nos interessa & mostrar que o transe selvagem existe tanto entre os Africanos como Afro-Americanos de hoje, mas que ele, assim que se manifesta, é reinserido na sociedade para ser domesticado por ela e utilizado em seu proveito, Antes, porém, existe uma confusao a evitar, aquela entre o transe selvagem propriamente dito € o transe violento, Uma vez que a possessio ste em ser habitado por uma ivindade © em representar esta indade - ou seja, mudanga personalidade (os Africanos dizem que uma parte de nossa alma é ento expulsa para ser substituida pelo Deus) -, € evidente que quando se € possuido por um Deus guerreiro ou mau, a crise que se exprime sera violent. e com desencadeamento muscular, enquanto que quando se ¢ possido por um Deus jo amor, da agua doce ou da chuva benfazeja, a crise que se exprime seré, pelo contrério, calma. A violéncia nao é selvageria e talvez 0 erro de certa 145 train Boxide descrigdes provenha da confusio entre estes dois conceitos, Mas o transe selvagem existe ainda assim porque é preciso _passtr por ele para, que, se possa, em seguida, domestica-lo. Com efeito, para entrar numa confraria de possuidos existem dois casos a considerar. Ou seja, ou alguém € uma pessoa normal, mas que é chamada, devido ao seu pertencimento a um cla ou familia determinada, a se tornar uma sacerdotisa. Nesse caso é preciso primeiro “quebrar® seu ew para tomné-ia acessivel ao transe, Isso se consegue com um banho de folhas, ou seja, droga-se a candidata e se incutem nela teflexos condicionados, permitindo-the cair em transe a audigéo de alguns Leitmotivs musicais, 0 tempo que dure 0 efeito destas drogas. Ou se trata de uma pessoa que ja apresentou perturbagdes ——psicéticas. ow Psicossomaticas, a primeira crise é de hatureza puramente fisioldgica. Ela é considerada pela coletividade como o sinal de um chamado divino; a pessoa é dita justamente possuida por um Deus "selvagem" e 0 ritual da iniciag#o, ao qual ela sera submetida imediatamente apés, consiste, segundo a expresso bem significativa dos Afro-Americanos, em “batizar" 0 Deus selvagem - 0 que quer dizer, sociologicamente falando, domestica © que definird, portanto, as sociedades tradicionais em relago a nossa sociedade ocidental, nao sera tanto a néo-existéncia do sagrado selvagem, quanto 0 esforgo para submeté-lo a um controle da coletividade desde que este se manifeste; a necessidade deste controle responde a todo um conjunto de razoes. que so tanto de ordem social quanto religiosa A primeira, € que este sagrado selvagem nio ¢ interpretado como uma crise de loucura, mas como um chamado divino. Ora, é iniitil insistir sobre esse ponto bem conhecido: todo (Calera de Carp ritual é comemoragao de um mito. 0 mito que o funda, que o estrutura e que ‘© explica. Como diz Van der Leeuw: “A vida primitiva é uma vida representativa, Agir de modo primitivo, € reexecutar 0 ato original... Enquanto © homem moderno pensa que pode se aryorar, mais ou menos, em criador criando o mundo, 0 homem primitivo sabe que nio pode sendo repetit”. A iniciago tem justamente por mote lar a tendéncia 20 transe do candidato para “construir” no seu corpo um certo mimero de gestos estereotipados, que sio ditados pelos mitos e que aparecerao cada vez que este individuo for "montado” por seu Deus. Seré muito longo insistir sobre 0 conjunto de seqiéncias que vo condicionar esta futura representa¢ao de papel. Digamos apenas que os sacerdotes que dirigem a iniciagao sio sensiveis aos perigos que ameagam 0 equilibrio psicolégico do individuo e que temem, muito mais do que eles suspeitam, a aparigao de crises selvagens incontroliveis. Desse modo, desde o banho de folhas, se as plantas do tipo alucinégeno se revelarem muito fortes para a constituigio de uma determinada pessoa, eles the temperam logo o efeito pelo recurso as plantas calmantes, Desse modo, ainda no curso da iniciagdo existe uma ceriménia dita “dar de comer a cabega", que tem por finalidade fortificar a’ cabega do candidato ¢ impedir que a futura descida de uma divindade ela provoque, porque sua cabera seria muito fraca para suporté-la, uma crise muito violenta. A segunda razéo é a importincia do sentimento de vergonha nas sociedades ndo_cristianizadas (0 cristianismo substitui 0 sentimento de culpabilidade, que 6 interior, 0 sentimento da vergonha, que é uma resposta sociolégica ao olhar do outro). Na Africa, nfo é de bom tom ter transes violenios, sobretudo se se 146 trodnsa0 - Bavide pertence a uma classe aristocratica; no 6 de bom tom, para uma mulher em crise, se despir, ela deve, mesmo no mais profundo de seu transe, respeitar as regras do pudor, no é de bom tom cometer excentricidades e nfo representar, seguindo escrupulosamente 0 mito, o papel que Ihe 6 devido; existe em toda cerimdnia - mesmo a mais frenética (aos olhos dos brancos) - individuos que nio podem entrar em transe, como os musicos, porque isto introduziria a desordem na harmonia das dangas extiticas. No Bras, wma impolidez, quando se visita um candomblé ao qual vocé nio pertence, cair em transe quando se executam as cantigas do seu Deus. E se isto acontece, é extremamente mal visto e objeto de reprovages manifestas, No Brasil igualmente, quando no curso de uma ceriménia - 0 que acontece as vezes - um Deus nao chamado se manifesta, 0 que arrisca a perturbar a sequéncia obrigatéria dos gestos rituais, o Babalorixaé ou a Tyalorixa intervem imediatamente para expulsar 0 intruso. Logo, 0 comportamento de transe, como todos 08 outros comportamentos, segue as leis das boas maneiras. A crise selvagem no ¢ aceita, porque ela ndo pode, por definigéo, obedecer a este codigo. superior do permitido e ndo permitido, ao qual as _sociedades tradicionais atentam _particularmente pois toda ordem social é constituida sobre o respeito a esse cédigo. Portanto, a sociedade © a religido jogam,” igualmente, visando transformer 0 espontaneo em ional, Mas, naturalmente, ¢ ¢ este 0 ponto que nos interessa’ aqui, cada vez. que o controle da coletividade relaxar, por uma razio ou outra, aquilo que pode haver de selvageria latente no franse fara rachar— sua tunica institucional. E j4 que nds distinguimos dois modos de controle (que se juntam, além disso), aquele da instituiggo Cadac de Cars religiosa e 0 do cédigo de boas maneiras, distinguiremos, da mesma forma, dois fatores de retorno ao sagrado selvagem; um que tendera a um enfraquecimento da _instituigao religiosa tradicional e outro que tender 4 passagem de uma sociedade orginica (para empregar 0 jargio dos socidlogos) a uma sociedade andmica. O Brasil nos oferece excelentes ilustragdes desse duplo processo de regressao. A religido afticana, centrada no transe, se reconstituiu, efetivamente, entre 0s escravos e entre seus descendentes, mas esta religido afticana ficou submissa a pressio da sociedade global, as forgas de secularizagao que caracterizam ‘a vida urbana ea industrializagao. Entretanto, ela resistiu, mas nas grandes metrépoles como Rio de Janeiro ela se deixou aculturar pelo catolicismo ou espiritismo dos brancos; ela se ligou, na defesa de classes marginalizadas, com uma outra religiéo popular, a dos Indios, para dar nascimento a um culto sincrético: a macumba. Ora, a forga de controle e¢ domesticagio de uma religido sincrética ¢ evidentemente menor que a de uma religido no sincrética, porque esta é partilhada entre muitas postulagdes. diferentes, muitas vezes mesmo. contraditorias. Através dessas fissuras do controle, outras_motivagdes aparecem ¢ um outro Desejo se inscreve no transe, que nao € forgosamente religioso, mas que utiliza os simbolos religiosos para mascara outras preocupagdes. Na macumba, nos vemos 0 transe domesticado do candomblé, sustentado pelo ritmo dos tambores e’terminando em beleza, tomar-se mais e mais violento até tomar, muitas vezes, formas histerdides: "rolar na terra, gritar, debater-se furiosamente - e 6 espasmo —substituir 0 ~—_gesto estereotipado. O controle relaxou, Nao cessou a7 ‘radnedo-Bostde completamente. Porque devemos fazer uma. primeira distingao: a posscssio pelo espirito de Velhos Africanos e a ossessio pelos espiritos dos Indios. A violencia s0 aparece na segunda e se ela apenas aparece na segunda, é que as representagdes que o Brasileiro faz do negro e do Indio regulam ainda inconscientemente o desenrolar do transe. O Brasileiro, efetivamente, considera 0 negro. como. fundamentalmente bom; ele concebeu, no tempo da escravidao, uma ideologia do negro da mesma natureza daquela que deu, nos Estados Unidos, a imagem do Tio Tom; ele jogou no esquecimento coletivo 0 negro mulato ‘ou rebelde para s6 guardar o negro submisso, respeitoso, amando seu Senhor € se devotando a ele como um velho cio, muitas vezes surrado, sempre contente, A possessio por Espiritos Africanos_reflete a persisténcia desse estereétipo. O indio, 0 contrario, nfo aceitou a escravidao (pelo menos diz-se, porque houve uma escravidio india e das mais portantes, mas no é o que realmente se passou que nos interessa, so as idéias que se faz disso), ele lutou contra © branco, ele foi vencido, sem duvida, mas guardou, toda sua altivez de homem livre. E esta altivez de homem livre, guerreiro, valoroso, que o transe por espiritos de indios reflete: a jioléncia no & portant, 0 ponto de expressio da seivageria, mas ‘expresso de um esteredtipo étnico. A selvageria vai utilizar o esteredtipo para melhor fluir. Como no sonho, tal como Freud o analisa, as pulsdes do "aq (ou do eu") se disfargam para poder passar impunemente pela censura, na macumba 0 transe selvagem reprimido fiza_a barbirie do Indio para exprimir, contra a cultura branca, uma contra-cultura em formagio ou uma anti-sociedade. Tem mais. Entre os Deuses afticanos que descem na macumba, um Cademas de Campo jportancia consideravel: Exu. Exu é uma divindade (ou quase divindade) Yoruba, mas entre os Yonuba da Africa. como nos candomblés do nordeste do Brasil, Exu & antes de tudo portador dos pedidos dos homens aos Deuses, como o portador do discurso dos Deuses aos homens, E uma __divindade intermediéria, mensageiro divino e nao se pode defini-lo melhor que ‘comparando-o a Merciirio na mitologia grega. E, como no ha transe de Exu, se Exu tem vontade (0 que pode acontecer, se bem que a coisa me parega muito rara) de possuir uma pessoa, ele nio pode fazé-lo sendo por uma divindade interposta, por Ogum que ¢ seu irmao, e nio’diretamente. Mas Exu apresenta também um outro carater, como também —Merciirio. rianga: ele ¢ "trickster", ele adora pregar pegas nos humanos, ¢ vingativo, ele pune ‘secretamente quem nao the tende homenagem; tem-se, portanto, medo dele. Sdo estes dois tragos que fazem com que no sincretismo catdlico- afticano Exu seja as vezes identificado com Sao Pedro, que tem a chave do Paraiso, ou seja, que ¢ intermediario entre © reino celeste ¢ o reino terrestre = ou com 0 Diabo, que define entdo seu aspecto "trickster" e vingativo. ‘Na macumba, Exu é antes considerado como 0 chefe dos Deménios e nZo como 0 mensageiro divino, € seu aspecto sombrio que domina, em segundo lugar, contrariamente a ortodoxia africana, ele desce no corpo dos homens para provocar transe entre eles. Estes transes tomam um caréter demoniaco. Ora, nés vimos, desde a época em que Arthur Ramos’ estudou as primeiras macumbas até hoje, 0 lugar destes transes demoniacos se tomar mais € mais preponderante. Toda ceriménia ‘comporta pelo menos 3 partes: 0 apelo aos Exus, 0 apelo aos Pretos-Velhos, 0 chamado’ aos Espiritos amerindios. 148 sraduedo-Baside Portanto, duas seqiiéncias de transes violentos para uma apenas de transe doce. Quer dizer que o declinio que nds podemos seguir na evolugéo transformagdes das religides afficanas no Brasil € 0 declinio que vai do sagrado domesticado para um sagrado mais e mais selvagem. Por qué? E aqui que outros fatores intervém e que nos devemos juntar o enfraquecimento do controle feligioso, pela lenta perda dos it ais e & mistura de religiGes, 20 enfraquecimento do controle da sociedade global, pela sequéncia de profundas mudangas desta sociedade com a passagem’ de uma sociedade rural e pré-industrial a uma sociedade urbana e industrializada. no foi precedida por uma educagio prévia da liberdade para escravos; estes Tefluiram das plantagdes para as. idades onde se chocavam, no mercado de trabalho, seja com mulatos libertos que j4 ocupavam o estrato do pequeno artesanato, seja com os migrantes europeus, que forneceram os primeiros elementos. do novo _ proletariado industrial. Também, se _ fizermos excegio das mulheres que puderam encontrar trabalho na domesticidade, os negros se encontraram marginalizados na sociedade de classes em formacio. Marginalizados __profissionalmente, porque foram finalmente jogados nas. ocupagdes mais duras e menos pagas, em particular na construgio, ou no semi-desemprego (ou sub-emprego); marginalizados ecologicamente, porque eles foram viver nos "suburbios* (favelas do Rio de Janeiro, casebres € pordes imidos de Sto Paulo), marginalizados enfim — socialmente, porque muitos entre eles niio encontraram outra solugdo para sobreviver que os pequenos furtos, 0 proxenetismo de baixa categoria, a vagabundagem com seu acompanhamento, a mendicancia ¢, nas horas de grande’ afligo, a bebedeira Caderor de Campo Neste estado de anomia, as confrarias religiosas afro-americanas puderam lhes servir de ponto de seguranga, mas nelas entretanto, eles deviam forgosamente introduzir’ suas ansiedades. suas frustragdes, o que determinaria, finalmente, a explosio desses cultos enquanto institucionalizagio do sagrado. A situagdo melhorou depois. E ‘esta melhora corresponde a passagem da macumba a uma nova forma Eu j& contei em outro lugar esta histéria, Mas a situago no melhorou a ponto de fazer _—_desaparecer inteiramente 0 sub-proletariado dos subirbios, 0 capitalismo brasileiro necessitando, para ser concorrencial, de uma reserva permanente de sub- empregados. Ao contrario, esta melhora s6 podia fazer nascer, neste sub-proletariado, novas aspiragdes, impossiveis de realizar - 0 sonho de uma vida melhor, que permanecia utdpica, Isso sO. fazia, consequentemente, multiplicar as frustragdes, as tensdes psicologicas, as revoltas abortadas. A macumba continuou, portanto, a existir a0 lado do Espiritismo de Umbanda ¢, enquanto este iiltimo tendia a exprimir valores de uma pequena classe média ‘em formagdo, a macumba regressava paralela e ‘simultaneamente da religiio para a magia negra, do sagrado domesticado ao sagrado enlouquecido, ‘ou a0 sagrado-rebeliio. Ao sagrado enlouquecido primeiro, porque quando as tensdes so muito fortes e a sociedade nao pode thes fornecer uma saida, elas no podem encontrar outras solugdes sendo a explosio selvagem que ‘extravasa a energia numa breve crise de quase loucura, O transe religioso oferece, assim, as frustragdes tomadas insuportaveis, o lugar de sua superagio. E 0 aspecto que os psiquiatras ou 0s _antropélogos brasileiros melhor expressaram, dando M49 radugto- Baside as religies afto-brasileiras uma fungo catartica, Mas elas tém também uma utra fungao, aquela que Balandier bem demonstrou | para os messianismos afficanos de época colonial: quando a revolta politica ¢ impossivel, cla assume, para exprimir-se, um carater religioso. O religioso torna-se, ento, 0 simbolo de uma contestagio. E talvez 0 que acontece também na macumba e no transe violento, que constitui 0 centro de sua ceriménia, O transe com efeito é um meio de extrair da sociedade presente “outra® que pode ser o Contraponto desta sociedade presente Ele pode sem divida nao 0 ser sempre, porque os caminhos do imaginario sto miltiplos. A sociedade “outra” dos candomblés tradicionais. é uma sociedade onde humildes vendedoras ambulantes e domésticas de grandes casas representam o papel de Deuses € Heréis. Nés estamos, agora, no nivel dos “Bonnes* de Genet, onde o assassinato da senhora branca so se efetua oniricamente. Mas a macumba privilegiando, em detrimento das divindades africanas, os Indios que souberam guardar’ sua liberdade lutando contra aqueles que os queriam dominar e explorar, e entre as divindades afticanas privilegiando Exu, transformando a significagao de Deus intermediador em um anjo da rebelido, permitiria 4 revolta do sub-proletariado descobrir uma via onde o desejo e uma sociedade "outra’, impossivel de realizar politicamente porque nio estruturada eno —_pensada conceitualmente, _poderiam assim mesmo se exprimir, senéo em um discurso coerente e construtivo, a0 menos em gritos desarticulados, em estos sem significacdo, logo em puro desencadeamento de selvageria Se nds insistimos _nestes fendmenos de des-domesticagio do transe, no interior dos cultos afro- brasileiros ( nds teriamos podido dar outros exemplos, no periodo da Cadernos de Campo colonizagio africana, o filme de Jean Rouch, "Os Deuses loucos", poderia aqui nos servir de ponto de partida), & que nés iremos justamente encontrar no sagrado selvagem de nossa civilizagZo cocidental, as mesmas causas em jogo: a crise das instituigdes religiosis ea anomia social Quer aceitemos ou ndo 0 ponto de vista de Durkheim sobre os estados de efervescéncia social, dos quais surgiria a religiao, um fato é certo: é que estes estados de efervescéncia ndo sio duraveis - eles sdo esgotaveis, escreve Durkheim. Ha, portanto, em seguida, uma recaida do fervor sociolégico; a religiio se desenvolve a partir dessa “recaida" como instituigao de gestdo da experiéncia do sagrado. Esta "administragio" do sagrado pela Igreja tem certamente um_ valor positivo: ela permite sua continuagdo sob forma de uma comemoragio ¢ como uma lembranga ensurdecida - mas, por outro lado, a instituigéo se volta contra o vivido para aprisiona-lo atrés das grades de seus dogmas ou de sua liturgia burocratizada, de modo que ele nfo desperte mais em inovagies perigosas, um outro discurso além do linico discurso aceito pela ortodoxia, ou nfo se exalte desmedidamene. Toda Igreja constituida tem, sem davida, seus misticos, mas ela desconfia deles, ela lhes delega seus confessores e seus diretores para dirigir, canalizar, controlar seus estados extiticos, quando ela ndo os prende em algum convento que seus gritos de amor perdido nao possam perfurar. Mas a sociedade em torno desse bloco, que quer manter um passado revolto, muda. Donde os despertares, 0s movimentos de reformas, as heresias, (0s messianismos e os milenarismos, para tentar lutar contra o descolamento Crescente entre as _infra-estruturas moveis eas superestruturas conservadoras, Donde todos esses. "Deuses sonhados* de que fala 150 radugto Reside excelentemente Henri Desroche e todos estes delirios misticos que abalam a intervalos regulares 0 equilibrio das Igrejas. Por que Deus, que ja falou outrora aos homens, teria se tornado subitamente mudo e nio teria mais ‘mensagens a transmitir a humanidade sofredora? Os catélicos sonham, com apés Joachim de Flore, com um reino do Espirito-Santo que —substituiria aqueles da lei e da graga, que fizeram seu tempo. Os protestantes, como pentecostalismo, substituem a religiao do livro pela de inspiragao divina, Os evolucionarios tentam ler, nas mudangas da sociedade, 0 discurso ininterrupto do Senhor da historia, E certamente, estes despertares, que podem acabar em dancas, " estes messianismos que podem acabar em transes, estes pentecostalismos que inventam novas linguas extaticas, nao rompem inteiramente com o passado; trata-se de uma descontinuidade continua mais que de ruptura propriamente falando. Entretanto, com © adyento desses novos Deuses sonhados, nés ja estamos muito proximos da busca desse sagrado selvagem que vai fazer, nds veremos, sua repentina irrupg0 hoje, apés todos esse sagrados revoltados ou todos estes sagrados oniricos. Porque estes _—_sagrados revoltados desembocam em utopias, em construgées da razio, em programas planificados de transformagdo da sociedade: 0 Novo cristianismo de S40 Simio em uma Repiblica de Produtores - a religido harmoniosa de Charles Fourier em um Novo Mundo industrial - 0 verdadeiro cristianismo de Etiénne Cabet em um comunismo messidnico. Porque, igualmente, todos esses sagrados oniricos no fim das contas acabaram em heresias, ou seja, em Igrejas paralelas, portanto em instituigdes, caos, sem divida, na origem’ de sentidos desregrados, sentimentos liberados, imaginagao ‘Cader de Campa desenfreada, mas caos que acaba por se dar normas, como se houvesse uma ogica no excesso. que nao seria possivel no respeitar e que arrasta atris dela, na liturgia e dogmatica das novas seitas inventadas, abas inteiras da meméria coletiva, palavras de profetas, parabolas de Jesus, vide os apocalipses proibidos. A heresia pode aparecer ‘como uma contra-religido, mas inverter uma religiéo nao é ainda, segui-la? Entretanto, através‘ dessas’ crises, a instituigao religiosa parece bem atingida; ela se enfraquece de vez em quando, malgrado seus esforgos para se reformar, responder aos. criticos, exorcizar os pesadelos encontrar um novo equilibrio com a sociedade em mudangas. Equilibrio cada vez mais precario e que faz, como eu disse no comego, vaticinar a morte de Deus. industrializagdo, desenvolvendo 0 _pensamento racionalista; a urbanizagao, quebrando a solidariedade comunitéria, a escola laica, colocando a reli entre parénteses, a sociedade de consumo, enfim, apoiando-se na propaganda insidiosa do mass media, canalizando as aspiragGes dos homens para os bens materiais, retiram destas _Igrejas rasgadas porgdes cada vez maiores de figis, Mas a morte de Deus nio é necessariamente a morte do Sagrado, se é verdade que a experiéncia do sagrado constitui uma —dimensio necessaria do homem. A medida que a Igreja perde seus figis, vé-se pulular, em particular nas grandes metrépoles, as pequenas scitas esotéricas, os consultorios de astrélogos, clinicas de novos “curadores". Espécies de ‘compromisso entre o racionalismo, que constitu’ 0 ideal de nossa nova sociedade planificadora, ea necessidade de religifo, porque o esoterismo se funda sobre sistemas de idgias simbélicas bem ligadas; a astrologia tem carater matematico que afirma nosso pensamento; 0s 1s sradugdo Bastide “curandeiros" opdem ao empirismo dos médicos uma teoria _terapéutica utilizando a linguagem dos fisicos: ondas, fluidos, étomos. Pode-se, desse modo, deixar guiar pela religiao sem temor, ja que essa religio se exprime, apareniemente, na linguagem mesma da ciéncia, Este compromisso entre o racionalismo todo poderoso ¢ a aspiragdo subjacente a uma experiéncia “outra” s6 pode ser, entretanto, uma solugio efémera, Um momento vird forgosamente - e parece que esse momento chegou para nossa civilizagao ocidental - onde a aspiragio subjacente acaba por se desprender da “canga” da razio para inventar novos Deuses de homens. Logo, a crise do instituido, ou seja, das Tgrejas, nfo entranha em’ sua continuagg0 uma crise do instituinte, quer dizer, da efervescéncia de corpos € coragdes, da buscada experimentagao da dinimica do sagrado. Apenas, as jovens geragdes querem permanecer no fervor do ‘instituinte sem ir até a constituigo de novos instituidos, que 0 tistalizariam logo € 0 mineralizariam em novas instituigdes de idéias sistematizadas, de gestos estereotipados, de festa regulada_e incessantemente recomegada. Eis porque © sagrado de hoje se quer um Sagrado selvagem contra o Sagrado domesticado das Igrejas. Tal é 0 primeiro movimento que conduz, a partir das instituigdes religiosas historicas, até a selvageria do transe—instituinte. Masha, paralelamente, um segundo movimento que nos devemos seguir, agora, que nos fara igualmente "desfazer" a necessidade de um novo Sagrado: é 0 movimento de natureza mais sociolégica que resulta da anomia social, a qual, malgrado todos os esforgos dos governos, apesar de todas as ideologias politicas que se ofereceram aos jovens no mercado de idéias, nés no chegamos a produzir. Ccuderos de Campo Porque a solugo dos problemas da anomia sé pode ser encontrada para além das idéias, menos, bem entendido, que 0 politico, o que é freqiente hoje, seja sO uma simples mascara que esconda por baixo 0 rosto coberto de um messianismo sem nome; apenas na medida em que seja assim, nés encontramos até na politica o fervor do Sagrado instituinte. A imaginagao no poder, gritava-se em maio de 1968, e nio a'razio no poder. A imaginagao, quer dizer, 0 fervor instituinte. E nfo a razio, ou seja, novos sistemas de leis como remédio a anomia, a recusa de todo instituido Simples variagio, vé-se, sobre o tema desta conferéncia. e que um estruturalismo do tipo de Lévi-Strauss poderia facilmente inserir num mesmo grupo de transformagoes, que eu chamaria aquele da "selvageri Nos no temos que refazer um quadro. da anomia, tantas _vezes apresentado, mas que sublinhar apenas 08 fatores que puderam agir sobre os individuos para impeli-los a novas formas de transe. Hé, primeiramente, a passagem da comunidade, com seus caracteres mais igualitirios, sua solidariedade mais intima, a homogeneidade relativa de suas crengas e seus valores, a sociedade que distende as. ligagdes, aprofunda_os vazios, a solidao dos homens, perdidos na massa indiferente, A familia nuclear, que ajudou durante muito tempo o homem a levar mais facilmente este fardo de isolamento, sofre uma crise onde a concorréncia entre os sexos substitui sua complementaridade, nao tanto (como se repetiu) porque os jovens se revoltaram contra seus mais velhos, mas antes porque eles se sentiam abandonados por seus Pais Ha, em seguida, a ruptura do mundo mecinico, artificial, de maquinas e casas de concreto armado e do mundo vivo; as arvores mesmo sto domesticadas nas grandes 152 radigdo oxide aglomeragdes, a evasio das férias com seu fluxo " massivo de —machos transpirantes fémeas _nervosas, termina nos cendrios organizados, nas festas planejadas, 0 casamento do homem com o céu, a agua, as plantas, 08 passaros no € mais possivel, preciso se contentar com relagdes frégeis, no nivel dos momentos, em qualquer hotel de passagem, dito de campanha. Enfim, como Max Weber demonstrou, toda’ nossa cultura é uma cultura da’ razdo, da ciéncia, do progresso. que nao deixa nenhum dominio de nossa vida fora de seu campo, nenhuma gratuidade possivel Ora, as regras da razio, se sio imperativas, postulam a adeséo prévia do espirito que se submete a um certo iniimeros de valores que as justificam a nossos olhos; ¢ estes valores podem ser contestados se as regras que se extraem deles mio podem, mas se elas séo contestadas, a lei social aparece somente, eritfo, como um instrumento de opressio, como um constrangimento arbitrério, ou, se se prefere: como a Ultima ameaga de castraga0 dos filhos por aqueles ‘que detém'o poder, em nome do Pai Nao € impunemente que o despertar do Sagrado selvagem foi historicamente precedido pelo triunfo da filosofia do absurdo, que so fazia traduzir, numa linguagem sébia, estes tragos da anomia que eu acabo de enumerar, a solidio que faz 0 homem buscar uma “alteridade" nova, capaz de saciar uma sede que ele nao pode extinguir; a ruptura com a natureza viva, que vai despertar no fundo de seu sera nostalgia de uma experiéncia cosmica; 0 triunfo da Raz&o, que so pode forjar novas cadeias, sejam elas douradas, onde vai aprisionar sua jovem Liberdade, apenas nascida com a crise da adolescéncia. A revolta contra o instituido social ressalta, desse modo, os mesmos fenémenos coletivos que a revolta Caderoe de Campo contra 0 instituido religioso; € preciso criar um social in statu nascendi, como € preciso, sempre, criar uma religio a partir da experiéncia instituinte do ado, vivida no interior do transe original. Nestes dois casos, é 0 mesmo recurso ao "selvagem" entendido como © “anti-domesticado", Mas pode haver muitos tipos de transe e nfo etornamos, por um outro caminho, 40 mesmo Sagrado selvagem que aquele onde nés sempre chegamos, seguindo a historia das Igrejas? Pessoalmente, eu acredito nisso. Em todo o caso, as duas buscas se fundem sempre, porque o Sagrado selvagem dos religiosos ultrapassa 0 exotismo dos sonhos do imaginario ou expressées corporais desencadeados para se tomar um combate politico - porque de seu lado social vivido in statu nascendi nas diversas experiéncias comunitérias que se multiplicam em nossos dias, transcende rapido o retorno & grande familia camponesa, & economia de auto-subsisténcia, ou a promiscuidade sexual, para buscar, além, um findamento espiritual que enraize, ele também por sua vez, 0 sagra instituinte. "Nem Marx’ nem Jesus", proclamavam eles. OQ slogan é significativo dessa ligaglo, ou desta confuséo de dominios. Preciso analisar este sagrado selvagem, tal como ele se manifesta hoje. E curioso notar que ele busca muitas vezes, para instituir-se, os modelos das sociedades arcaicas, Por exemplo nos cultos de possesséo, mas onde no se seria possuido, ou nos quais no se saberia por quem se é possuido ja que o Deus imaginado que se agita em seu ser ndo tem nome. Os haitianos que trouxeram o Vodu a Paris, viram bem os espectadores parisienses, durante 0 curso de suas ceriménias tomados por “saltos" selvagens que os faziam cair no chio. Sabe-se a importancia tomada pelas drogas na juventude de hoje, como elas estavam 183 (roducdo- Bastide na base de certas iniciagdes religiosas, © ponto de partida é © mesmo nos dois casos, trata-se de eestilhagar a personalidade antiga, aquela que foi modelada pela sociedade, mas nos Tituais de iniciag&o dedica-se, logo apés, a criar, montando todo um conjunto de reflexos coordenados, a construir uma nova personalidade que substituira a antiga cada vez que, a chamado dos tambores sagrados, 0 cavalo dos Deuses cair em crise; ¢ isto que nés chamamos a domesticagao do transe, Os jovens de hoje que querem permanecer no selvagem original néo procuram, —_naturalmente, ° desdobramento da personalidade - ainda que se encontre tragos dele, as vezes, nas mudangas de nomes que acompanham a entrada numa comunidade de drogados: Gros Oswald, Jacques Le — Thibetain, Savonette. Todavia, esta mudanga nao significa 0 rompimento com os pais, 0 que € simbolizado pela recusa em usar © nome de sua familia, quanto a aquisigéo de uma nova’ identidade; porque a mitologia da droga é aquela da "Viagem", viagem no imaginari “pegar a estrada"; que permite todas as aventuras oniricas, "decolar” da realidade para poder “planar num espago sobrenatural (estes so os. termos proprios do. jargio dos. Grogados) e sabe-se que esta viagem & muitas vezes acompanhada de uma outra viagem, no espago geogratico, aquela que leva a Katmandou. Esta mudanga de mitologia, quando passa das ceriménias tradicionais da iniciagio (aquisigao de uma nova personalidade) para os rituais contemporaneos da droga (ir até o inicio da viagem no desconhecido, do qual nao se sabe 0 que ele Ihe reserva, talvez a morte, mas tanto pior: "é preciso saber fundir a campa_ em beleza"), & significativa justamente de tudo isto que separa 0 transe tradicional (controladoe, portanto, instituido) do novo transe Cademoe de Campo (que quer permanecer no instituinte, nao desembocando em —nenhuma possibilidade de instituigao). E isto nos permite, talvez, ir mais longe. O transe domesticado € funcional em relagao a sociedade global, no interior ‘da qual ele estd inserido, seja porque the favorece uma melhor “complementaridade entre os Sexos € OS estatutos sociais, seja porque ele serve para atrair, de algum modo magico, a béngio das divindades descidas na comunidade alded. O sagrado é investido numa insttui que o gere em beneficio de todos. O transe selvagem de hoje se quer, pelo contrario, desfuncional, ele no busca nenhum resultado positivo, nem mesmo para o individuo que a ele se abandona, Ja que ele pode até mesmo ser mais do que uma técnica de suicidio. Ele quer set pura experimentagio de_ uma alteridade que permanecera confusa € difusa, ato gratuito, ou simples gestos de" revolta. ‘Nao __deméncia, compensacio, catarse, na violéncia eno delirio, como pretendem os psiquiatras, porque entio o transe se tornaria funcional e perderia sua _ponta revolucioniria. Mas a contestago, por sua vez, do social como sistema de regras, € do individuo como identidade pessoal - do social, abandonando-se ao interdito; do. individuo, fazendo-o levantar dos abismos interiores para a legigo anarquica dos — fantasmas censurados. © selvagem é primeiramente, e antes de tudo, a decomposi¢ao, a desestruturagio, a contra-cultura’ que nao pode, nem o deseja, acabar em uma nova cultura Aqueles. que estudaram os cultos de possessio nas sociedades tradicionais muitas vezes se espantaram com seus aspectos espetaculares e seus caracteres de festas coletivas. Estes aspectos sfo tais que as vezes o transe € representado, mais do que vivido, fala-se entio de simulagio, ainda que nfo se trate propriamente de simulagio, 1s sraducto -Baside sendo dado que todo rito, mesmo consciente, & comemoragio dos gestos dos deuses. Ora, nés encontramos fendmenos andlogos no transe selvagem de hoje. De Antonin Artaud, ‘com seu teatro da crueldade, a Jerzy Grotowski, com seu teatro da tensio, a possessio é moldada sobre chapas. Parte-se entéo da improvisagao, mas a procura de um cenério; da espontaneidade, mas & procura de um novo ritual; do transe violento (ficar nu, fazer amor, gritar, se debater, dangar até 0 esgotamento...) e que se desejaria contagioso, que descjaria entranhar finalmente 0 conjunto dos espectadores numa mesma comunidade extitica, mas que permanece regulado pelo ditetor (a nudez 6 comandada, © amor ¢ simulado, o grito € modulado, a violencia é esteticamente representada, ‘© espectador permanece geralmente em sua poltrona). Pode-se muito bem falar, entio, de simulagao, como certos etndlogos o fazem a respeito dos transes que permanecem apenas representados ¢ nao vividos nas sociedades tradicionais, Mas um certo niimero de observagdes sto necessérias, aqui: 0 que € representado, nas sociedades tradicionais € 0 mito fundador da ordem, o que ¢ representado no Living Theater, ou qualquer outra forma de teatro contemporineo, é 0 transe desfuncional, A festa primitiva que encontra sua culminagio no transe & 0 lugar da comunicagao, da solidariedade alded reconstruida, da unidade a um tempo cosmica e sociolégica, fundada sobre isto que é a um tempo a base do cosmos e do social: 0 sagrado politeista; a festa teatral de nossos dias no é, numa sociedade anémica, senio pura provocac&o que nao pode, apesar de sua vontade, acabar em comunhao. Mesmo entre os atores: nos Estados Unidos os Afticanos quiseram se misturar as dangas afro-americanas ou dos brancos "liberados", mas eles nao Ccaderen de Compo chegaram a entrar no jogo porque os Titmos corporais dos afficanas no sto ‘os ritmos corporais dos afro- americanos, ainda menos dos brancos, Quer se queira ou nfo, a sociedade age até sobre 0 psicoldgico para modelé-lo, € 0 somitico ¢ ele também, como o Psiquico, socializado; & 0 que faz com que a danga selvagem que desejaria ‘entranhar numa mesma roda extenuante os homens de culturas e sub-culturas diferentes, se paralise na impossibilidade de qualquer intercomunicagio dos seres. Aqui, ainda, como no nosso pardgrafo precedente, as diferengas prevalecem sobre as’ semelhangas, 0 transe selvagem simulado nao é da mesma natureza que o transe domesticado simulado; e ele ndo quer sé-lo, porque © transe domesticado é aquele das comunidades homogéneas, 0 transe selvagem, aquele das sociedades heterogéneas, E é bem aqui, talvez, que se separe mais nitidamente o ’ Sagrado selvagem do Sagrado domesticado. E que 0 sagrado domesticado é um sagrado coletivo, mesmo se um tinico dos dancantes possuido por seu Deus. Nas comunidades hippies ou outras, mesmo quando os corpos alongados sé misturam uns aos outros, na inconsciéncia dos gestos, cada um permanece sozinho. Nao ha trocas de experiéncia, nem dons nem contra- dons, mas coexisténcia ¢ paralelismo de experiéncias que permanecem, para cada um, de um dominio estritamente pessoal. Nao ha coletividade possivel sendo pela e na regulagio, o que obriga um salto fora da selvageria, a fim de entrar_no dominio da lei, Ora, por definigdo, 0 selvagem é aquilo que est fora de toda lei, quando ele nfo se deseja ainda mais, contestagao de uma Regra qualquer. E —entretanto. entretanto, ja que nés estamos nas comunidades, ¢ que n6s definimos as comunidades de jovens. como 158 sroducdo-Bastide sociedades in statu nascendi, & preciso que haja, para que se possa falar de comunidade (a despeito da regulacao), um minimo de trocas interindividuai apenas estas trocas se situam no nivel do discurso. Mas a palavra néo ¢ 0 vivido congelado? O instituinte, na medida em que é continuamente faiado, ndo se arrisca a se _constituir imediatamente em novos instituidos. O sagrado selvagem nfo seria_ mais, entao, sendo uma usina de fabricar deuses ou inventar mitos, ou seja, de fazer o instituido Tal € 0 nd do problema colocado pelo sagrado selvagem. A Biblia nos propde toda uma série de ilustragdes impressionantes destas metamorfoses do sagrado selvagem em sagrado domesticado, como se 0 selvagem néo pudesse sobreviver sendo com a condigao de se domesticar. O encontro de Moisés com Deus sobre 0 Monte Sinai, entre as tempestades e uvens permeadas de relmpagos, se prolonga pela chegada da Lei ao povo de Israel. A mata ardente que queima no deserto de mistério toma-se simbolo decifravel; a luta noturna de Jacé com © Anjo deixa sua cicatriz indelével no corpo extenuado do combate... Os inovadores de hoje, sociais como religiosos, se dio conta dessa necessidade, eles devem claborar, a partir de’ suas _experiéncias-piloto, outros modos de viver ou de adorar em conjunto: as festas coletivas se arrefecem em liturgias repetidas, 0 fascinante do sagrado se traduz’em planos de utopias, em reformas de Igrejas ou em —_contra-Igrejas, luciferianas. Mas nfo vé que neste esforgo. para _passar do instituinte a novos. instituidos, para substituir os instituidos antigos, que faliram, a imaginagao € obrigada a apoiar-se na memériacoletiva. A psicologia o demostrou; a imaginagao criadora se apdia. sempre, nesses _processos. inovadores, sobre 0 material que the cademos de Campo fornece a imaginag3o reprodutiva. O sagrado selvagem no definitivamente, senfo o. sagrado difuso, que néo pode se precisar, a nfo ser pela utilizagao de formas arcaicas significativas. Eis porque o sagrado selvagem, que acredita inventar novos Deuses, 'é mais freqiientemente 0 momento da ressurreigfo (para empregar a expresso de Halbwachs) de antigos Deuses que se acreditava mortos. ‘A filosofia dos hippies ja deu lugar, sobretudo nos Estados Unidos, a artigos ou livros interessantes. Ora, percebe-se, lendo-os, que esta filosofia € apenas ‘um bric-a-brac de velhas religides, orientais e crists, leturas mal digeridas ou apreendidas na telinha da televisio, G. Balandier empregou a expresso "mercado de pulgas" que da bem a impressdo destes instituidos ecuperados mais que inventados, Os Deuses sonhados sto apenas mimias das antigas Divindades, das quais se desenrola a bandagem para ver se clas no podem servir outta vez... Entretanto, além dessas religiées que falharam, ou dessas _—_propostas deliberadas de voltar a formas esquecidas por nossa _civilizagao ocidental, os cultos de possessio afficanos’ ou as igrejas primitivas do cristianismo — nascente, com seus carismas explosivos, o dom das linguas, ‘9 dom de profecia - estes cultos e estas igrejas_primitivas cristas, consideradas com efeito por aqueles que as accitam como coquetéis molotov capazes de wendiar nossa civilizagao condenada, nio podem encontrar, ao menos numa pequena elite, um sagrado selvagem puramente instituinte, desejado como fal, que ndo crie nenhum instituido, que escape para sempre das recaidas sociologicas? Talvez, Mas a questio se coloca, entéo, de saber se este Instituinte nao'é ainda um Instituido. Na medida em que ele no é senfo a 136 rabicto- Ba manifestagiio de um arquétipo inscrito de algum modo, seja na natureza humana, como quer Jung, seja na historia’ da_humanidade, como quer Eliade. O sagrado selvagem, com efeito = e que permanece selvagem - se quer ‘experigncia vinda do caos, da explosio de toda ordem cdsmica ou psiquica, do embargo de um Deus que flutua, ovo no aberto, sobre um mar de trevas agitadas. E se situa, portanto, numa categoria arquetipica “a priori" que Ihe dita a lei obrigatoria da desordem e do desfuncionamento, categoria que se encontra em todas as mitologias dos wos, desde a Asia suméria ou webraica, até aquelas das ilhas perdidas nos arquipélagos oceanianos. Eu acabei de empregar a expresso “categoria a priori" que lembra a filosofia de Kant e com feito, aqui como no mundo kantiano, € impossivel ao. individuo atingir os nimeros (n6s diriamos 0 Sagrado no estado puro, em sua transcendéncia absoluta), ele se molda com aquilo que nés o impressionamos, seja através do corpo, seja através do espirito, nas formas arquetipicas que nos sto constitutivas, nao pode portanto existir para 0 homem instituinte sendo ja - e desde o principio = instituido. Pouco importa, porque nés saimos de um periodo - aquele que os socidlogos chamam dea "secularizago” - onde a religiéo nao estava morta, é certo, mas se escondia sob 08 substitutos emprestados a0 mundo profano, o culto as vedetes substituiu 0 dos santos, as _novas mitologias dos mass media substituindo as das antigas Igrejas (Karl Marx ja havia tomado consciéncia disso quando s6 existia ainda, entretanto, em sua €poca 0 mundo dos jornais) ou ainda sob a valorizagao de herdis sacrilegos (Prometeu, Icaro, Axion e, com a Psicandlise, Edipo), mas nfo ha Propriamente sacrilégio sem postular ‘a0 mesmo tempo um sagrado contra o ide itty rans Ah sil i Pildiadl ial ila Hl Anne ts ee 137

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