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SOCIALISMO OU ESTATISMO?

Maurício Tragtenberg

A reedição da obra de Rudolf Rocker, velho militante libertário


alemão na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil, se constitui em tema de
primeira importância. R. Rocker coloca em discussão os grandes temas do
socialismo mundial: a relação Partido e classe operária, as relações do
socialismo com o Estado seja ele “burguês” ou “proletário” e a viabilidade
de um projeto socialista não burocrático e autoritário.

Mostra ele, se não quisermos o fascismo nem a social democracia


nem a burocracia autoritária stalinista ou não, temos que nos bater contra a
“direita” e ao mesmo tempo contra a exploração do trabalho pelo capital,
procurando alterar as forças no interior da “esquerda” introduzindo ali a
luta contra a divisão de trabalho, contra a hierarquia e as relações
autoritárias. Eis que os clássicos “partidos de esquerda” reduzem a
revolução social a formas consagradas, a cerimônias onde o Partido torna-
se seu próprio fim possibilitando a pessoas que gostariam de transformar
sua vida, e não podem fazê-lo, interiorizar essa transformação no simples
fato de “pertencerem” ao Partido.

O conceito de “partido histórico” surge dessa prática, o partido


perdeu sua marca revolucionária, transformou-se numa “instituição” onde
sua história foi reabsorvida. Ele é uma instituição que se dirige a indivíduos
abstratos e atomizados, enquanto uma verdadeira praxis só pode surgir a
partir de movimentos coletivos concretos. Daí a necessidade de
desenvolver nas pessoas o espírito de crítica a qualquer “ordem” e não o
respeito de uma “ordem” pretensamente revolucionária. Para Rocker a
liberdade para todos implica na sua própria liberdade, daí a história da
classe operária revelar certa consciência da liberdade, pois, se os homens
fossem semelhantes a coisas as lutas revolucionárias perderiam qualquer
sentido. Rocker entende a revolução como o acesso dos homens à
liberdade, porém além dos limites do liberalismo clássico, define que se é
livre entre iguais, a liberdade tem a igualdade como fundamento.

R. Rocker faz a crítica do “planismo de Estado” travestido de


“socialista” onde partidos hierárquicos burocráticos e centralizados
produzem estruturas burocráticas, hierárquicas e centralizadas também.
Perpetuam a separação entre “pensar” e “fazer” muitos fazem e poucos
pensam, reproduzem a separação entre “dirigentes” e dirigidos. No vasto
movimento da classe operária internacional todos são militantes, isso é que
é fundamental reter.

Especialmente significativo é o seu capítulo “Socialismo e Estado”


onde discute os temas cruciais do “socialismo burocrático” colocado
teoricamente em xeque pelos socialistas libertários do século passado como
Proudhon e Bakunin, por marxistas como Gramsci no seu primeiro período,
por Penekoek, teórico dos “conselhos operários”, e praticamente contestado
pelo gigantesco movimento de trabalhadores na Polônia em torno do
sindicato “Solidariedade”.

No capítulo anteriormente citado, Rocker discute a espinhosa


questão do “Estado de transição”, iniciando por uma crítica ao “socialismo
de Estado” de Louis Blanc e Lassalle que pretendiam utilizar o Estado
burguês para acelerar a mudança social, pretensão essa retomada pelos
partidos social democráticos da IIa. Internacional e pelo “euro comunismo”,
uma social democracia “recuperada”.

Não deixa também Rocker de criticar a tese do “Estado transitório”


ou o conceito de “Ditadura do Proletariado” como fase transitória do
capitalismo ao socialismo. Pois, em Marx não se observa uma linearidade a
respeito do tema do “desaparecimento do Estado”, pois há diferenças de
posição a respeito em textos como “O Manifesto do Partido Comunista” e
“A Guerra Civil em França”. Embora não desapareçam todas as
ambigüidades, a constante da análise de Marx reside na noção do
“debilitamento paulatino” do Estado Operário a partir de sua constituição.
É mister esclarecer que o conceito de “ditadura do proletariado” é de
Blanqui e foi desenvolvido por Lenin num sentido mais blanquista que
marxista, como notou Rosa Luxemburg em “A Revolução Russa”. Embora
Marx tenha utilizado o conceito “ditadura do proletariado” na Crítica ao
Programa de Gotha, o fez raramente depois. Entre a definição marxista e a
leninista do conceito há uma diferença básica: Marx caracteriza como
“ditadura do proletariado” uma forma de sociedade, enquanto Lenin
caracteriza-a como uma forma de governo.

A 30 de maio de 1871, Marx em “A Guerra Civil em França” adota a


tese de “ditadura do proletariado” igual a governo comunal autogestionário
que Engels, na sua Introdução à edição alemã de 1891, aponta a Comuna de
Paris “como exemplo típico de ditadura do proletariado”. Isso significa
uma revisão total das idéias a respeito expostas no “Manifesto do Partido
Comunista” em 1848: Na realidade Marx oscila entre o estatismo e o anti-
estatismo. Isso se deveu ao fato de ter sofrido influência jacobina no
sentido do estatismo e de Proudhon no sentido anti-estatista, daí suas
posturas libertárias rechaçando o “socialismo de Estado” de Louis Blanc e
Lassalle.

Outro ponto a enfatizar na atitude do socialismo libertário enquanto


prática e teoria política é sua defesa do operário não especializado, vendo
no “especializado” o germe de uma futura “aristocracia operária”, já
criticada por Marx no século XIX e Lenin no século XX que se constitui
em suporte da política social-democrática e sindical burocrática na Europa.

Por outro lado, é saudável a atitude crítica do socialismo libertário


ante a hegemonia dos intelectuais nos chamados partidos “proletários”, eis
que, os mesmos, na sua maioria de origem burguesa ou pequeno burguesa
tendem a levar ao movimento operário seus vícios de formação classista,
dominando os Comitês Centrais desses partidos e ao tomar o poder de
Estado planejam “para” o proletariado “sem” o proletariado. A hegemonia
da intelectualidade pequeno burguesa na sua maioria autoritária, carreirista
e ávida de poder se realiza através dos partidos autoritários de “esquerda”
com a legitimidade conferida pela teoria da “vanguarda” elaborada por
Kautsky e retomada por Lenin segundo a qual eles como portadores da
“ciência” levam ao proletariado por mediação do partido “a consciência
política”, pois o operário deixado a si mesmo só chegaria a um nível de
consciência econômica, argumentam Kautsky e Lenin. Na prática o que se
deu é que a camada intelectual enraizada no Partido Único no leste europeu
e na URSS tendem a se transformar numa burocracia autoritária com
privilégios e imunidades ante a classe operária, cuja contestação é dada
pelos trabalhadores hoje na Polônia. Sua ação em torno do sindicato
“Solidariedade” se constitui num saudável exercício de política operária
oposta ao chamado “socialismo burocrático” estatista.

Em suma, a obra de R. Rocker é fundamental na medida em que


mostra a possibilidade de uma prática socialista que deriva das bases - por
exemplo, os conselhos de fábrica - que atuam não só como contestação ao
modo de produção capitalista, mas também como agentes de um novo
modo de produção qualitativamente distinto do capitalista. A negação dessa
prática de “Comissões de Fábrica” como elemento fundante de uma nova
estrutura produtiva somente levou às formas de “socialismo de Estado”
onde relações capitalistas de produção regidas pela lei do valor continuam
sob roupagem nova. É isso que cabe desmistificar, daí a atualidade do
presente livro em boa hora reeditado.

Transcrito da introdução do livro As Idéias Absolutistas no Socialismo


de Rudolf Rocker

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