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MAURICIO TRAGTENBERG* MAX WEBER E A REVOLUGAO RUSSA (#) Professor do Depto. de Citncias Sociais da Fundago GetUlio Vargas, So Paulo, eda Faculdade de Educacéo da UNICAMP. ae Em 1906 Max Weber publica dois ensaios a respeito da * @ politica russa contemporanea, Zur Lage der burgerlichen Demok- “ ratie in Russland (Situag@o da Democracia Burguesa na Russia) e i Russlands Uebergang zum Shein-Konstitutionalismus (A Transi- ¢ao da Rissiaaum Pseudo-Constitucionalismo), iniciando-se numa drea até ent@o desconhecida para ele, fora de sua especialidade. J Até ent&o, Weber era conhecido como o historiador da economia, especialista em questées agrdrias e financeiras, também preocupado com a metodologia das ciéncias sociais. E bem verdade que jé iniciara ent&o suas pesquisas acerca das relagdes entre a ética calvinista e o espirito do capitalismo; porém, a mudanga de drea é menos nitida, porque suas pesquisas ocupavam-se com as conseqiiéncias sécio-econémicas de um determinado movimento religioso. Pode-se perguntar 0 que levaria Max Weber, recém-safdo de grave crise nervosa que o condenara a inagdo durante o periodo compreendido entre 1897 e 1902, a interromper seus estudos, dedicar-se a aprendizagem do russo, folhear durante meses e meses a imprensa didria tussa. O que o levaria, conforme testemunho de sua esposa e bidgrafa, Marianne Weber, “a acompanhar durante meses, numa tensdo febril, o drama russo de 1905”?! © interesse que Max Weber demonstrara pelo processo politico russo ia além da simples fascinagao do atual, estava ligado a valores que ele reputava essenciais: o destino da Alemanha e o destino da liberdade. As convicgdes politicas de Max Weber, na sua génese, constituiram-se num amélgama de nacionalismo alemfo orientado a uma politica de poder, como se manifestara nos fins do século XIX e a fidelidade ao liberalismo democratico. “Fago parte da burguesia, dizia ele por ocasifo de sua Confe- réncia inaugural na Universidade de Friburgo em 1895.” “E assim que eu me sinto, criado segundo concepgGes e ideais burgueses”. Sabemos, pelo teste- munho de K. Jaspers, que Weber permanecera durante sua vida toda fiel a sua concep¢ao dos direitos inaliendveis do homem e da dignidade humana”.> O proprio Weber jamais se cansara de reafirmar sua fidelidade aos princfpios democréticos ao mesmo tempo em que definia suas convicges nacionalistas. “Eu sempre considerei a politica do ponto de vista nacional — declara Weber antes de sua morte —, ndo somente a politica exterior, masa politica em sua totalidade.”* No seu primeiro ato ptblico, na Universidade de Friburgo, coloca a Alemanha em guarda contra os “‘perigos” da infiltragéo de campo- neses de origem eslava nas provincias orientais.> Suas Ultimas fungdes foram as de um delegado alemao em Versalhes e de membro da comisso que elabora, em 1919-1920, a Constituicdo de Weimar. Neste interim, transcorre um quarto de século de estreita identificagdo pessoal com a politica alema. Durante este perfodo, embora severo com o regime dos Hozenzollern, Weber jamais d4 as 47 costas a seu pais, mesmo que a acdo alemd viole suas mais profundas convicgdes humanitérias. Estes sentimentos contraditérios nio eram incompativeis. A dualidade de Weber é o reflexo da ambigiiidade do liberalismo alemdo: durante o trans- correr do século XIX fora ele dividido dramaticamente entre suas aspiracdes nacionalistas — que o levaram a colaborar com a Realpolitik de Bismarck — e seus ideais liberais no plano da politica interna ¢ da economia, que o levam 4 oposig¢do. Weber fora critico de Bismarck, embora crescesse numa atmosfera profundamente condicionada pelas idéias e personalidade do Chanceler de Ferro, que lhe fornecera as premissas polfticas iniciais. Daf Weber desenvolver a tese de que o poder é a esséncia da politica, definindo-a como “atividade que visa ‘a divisio e manuteng&o do poder’”. Por outro lado, Weber, liberal declarado, fez de Naumann -- seu amigo politico mais achegado — 0 te6rico da Lebensraum (espaco vital) germanico na Europa Central, que se constituiria num dos dogmas centrais do movimento nacional-socialista. O nacionalismo de Weber constituira uma das razGes de seu interesse pelos problemas politicos russos. A Russia preocupava-o, enquanto o vizinho mais forte e concorrente da Alemanha, cujo desenvolvimento interno poderia afetar o destino politico de seu pais. Outra raza; estava na sua visio do processo histérico, notadamente sua visio a respeito dos rumos pol{ticos do Ocidente. Suas pesquisas hist6ricas levaram-no 4 crenga de que a histéria européia constitia num processo de racionalizagdo progressiva de todos os aspectos da vida humana organizada. Para ele, uma das caracteristicas da civilizaco oci- dental residia no processo de desencantamento (Entzauberung). Tal perspectiva Ppreocupava-o profundamente, pois lhe parecia provavel que a 1azo — apés libertar o homem da prisdo da ignorancia, supersti¢o e preconceito — termi- naria por dominar o homem. Uma sociedade plenamente racionalizada impor ao homem nova escravidao.” Ele ficaria reduzido a um impotente parafuso de - uma méquina virtualmente indestrutivel. A angastia sentida por Max Weber ante o triunfo final do principio da racionalizagdo s6 poderd ser explicada por sua vinculac¢fo profunda a um ideal de liberdade e ao valor atribuido ao Homem, como sujeito de relagdes de producdo, sejam elas quais forem. Este processo que Weber vé transcorrer diante de seus olhos sob 0 capitalismo ocidental, secularizacdo e racionalizagdo, estimula seu interesse pela Russia, que lhe aparece como o pais onde a cultura ainda estd em estégio formativo. A Rissia poderia, de certa maneira, contrastar a opress@o crescente que se manifestava na Europa, cujo término légico, para Weber, radica na supressdo da liberdade do sujeito. Se o primeiro interesse de Weber aparece como inteiramente subjetivo em sua manifestagdo, o segundo esté despido de qualquer motivagao emocional ou preconceito nacional. Uma das dificuldades 48 encontradas na andlise do pensamento politico de Weber. consiste em que ele se realiza em dois planos distintos. De um lado, Weber articula seu discurso como politico alemao preocupado com o poder da Alemanha nos negécios mundiais, de outro lado, como o cientista que contempla as coisas sub specie aeternitatis, Atitudes incompatfveis, que se manifestam claramente em seus textos dedicados ao processo politico russo. E impossfvel efetuar a separacdo entre a vida e o pensamento com 0 rigor exigido pelo neo-Kantismo, que tanto influenciara sua postura intelectual. Do ponto de vista politico, Weber dividia a sociedade em trés principais grupos: o que possui as rédeas do poder, o que executa os mandamentos dos detentores do poder, dos “dominados” de quem ele fala, quando trata em Economia e Sociedade, da burocracia. O cardter especifico de todas estruturas politicas é 0 exercicio do poder. “Todas formagGes politicas originam-se da violéncia.”* A autoridade efetiva de qualquer sociedade, especialmente aquelas organizadas conforme os princi- pios democraticos, esta nas maos de uma elite. “O principio do pequeno nimero, ou melhor, a superior capacidade de manobra dos pequenos grupos dirigentes, domina inteiramente a atividade polftica. O estigma cesarista é inerente ao Estado de massa.” Um dos mais significativos critérios de sanidade de um organismo politico é 0 grau de correlacio entre o papel -dominante desta elite ¢ sua supremacia econdmica. Num Estado vidvel, os interesses materiais do grupo que exerce o poder politico coincidem com os interesses da maioria da populagdo e esta interdependéncia é profundamente internalizada na consciéncia dos cidadaos. O grupo que detém o poder, além do poder econémico, deve possuir um Machtwille (instinto ou vontade de poder). Ele ndo é mecanicamente criado mas cresce lentamente pela diligéncia com que é continuamente posto a prova dos fatos. E a derrota infringida aos liberais alemfes pelos jurkers, que leva Weber a escrever: “A esséncia ultima do problema sécio-politico nfo reside no status econdmico das classes dirigidas, mas, na aptidao polttica das classes dirigentes em ascenséo”® . Um movimento politico onde tais qualidades esto ausentes estd destinado ao fracasso, qual- quer que seja o nimero de seus adeptos, a qualidade de seus Ifderes e o valor de seu programa. . Para exercer sua autoridade de forma eficaz, isto 6, impor sua vontade, © grupo dirigente necessita encontrar entre seu piblico certo grau de corro- boragao. “Toda auténtica relacdo de dominagdo — submissdo (Herrschafts- verhaltnis) exige um minimo e determinado desejo de obediéncia, de interesse (interno ou externo) nessa obediéncia.’® Esta corroboragao €é essencialmente um ato de fé. “O fundamento de qualquer autoridade, isso é, de qualquer subordinagdo, é um tipo de fé: a fé depositada nos dirigentes em fungdo de seu prestigio.”"! A partir do tipo de corroboragdo obtido, Weber define os 49 principais sistemas politicos em trés principais categorias: a dominagao caris- miatica, essencialmente instével, onde a relagdo entre dirigentes e séquito funda-se no “reconhecimento” daqueles por estes; o poder tradicional, fun- dando sua legitimidade no costume; o poder racional — burocratico, essen- cialmente estdvel, onde a corroboragio se dé por mediagdo da representacao, referendum, eleigdes ¢ outros meios juridicamente definidos. Para este fim, 0 sistema politico organizado racional-burocraticamente recorre tambem a ins- tituigio do Parlamento. “Qs Parlamentos modernos so os corpos representativos dos que sio regidos por mediacao da burocracia. Um minimo de corroboragao intima dos dominados, ao menos das categorias sociais mais significa- tivas, é a condigdo de estabilidade nao importa de que regime (Herrs- chaft), mesmo o melhor organizado. Os parlamentos atualmente se constituem nos meios de manifestar exteriormente esta minima corro- boragao.”!2 Nao constitui leviandade alguma supor que a posic¢ao de Weber sobre a limitagao das fungdes parlamentares, como seu ceticismo ante um poder legislativo democratico, origina-se da histéria do Reichstag. Este parlamento, apesar das prerrogativas que detinha em principio, mostrara-se em todas crises politicas da historia alem@ um instrumento décil as imposigdes da Coroa e seus ministros. Apesar disso, Weber admitia que os parlamentos, embora com possibilidade limitada de influir no curso dos acontecimentos, eram indispen- s4veis para assegurar 0 funcionamento dos grandes Estados modernos de tipo burocrdtico-racional. Constituem-se, a seus olhos, no tinico meio de obter de forma continua a aprovagio dos atos governamentais pela massa dos cidaddos. O Parlamento pode ser reduzido a impoténcia, como o fizera Bismarck, porém é imposs{vel dispensar sua existéncia.'* Da mesma maneira que necessitam institucionalizar 0 consentimento dos cidaddos, os dirigentes necessitam de um aparelho capaz de executar suas decisdes. A grande contribuicfo de Weber reside na sua andlise penetrante dos aspectos administrativos da soberania e da importancia que ele atribui aos poderes politicos exercidos na maioria das sociedades por mediacdo de um quadro de funciondrios na qualidade de executores. Enquanto a maioria dos pensadores politicos, fiéis 4 tradi¢go medieval, definem a esséncia do problema politico na relagio do soberano com os cidadaos, Weber, enquanto socidlogo Ppreocupado mais com a praxis politica do que com as normas legiferantes, acentua a importancia de um terceiro fator: 0 quadro administrativo. A cada um dos trés tipos de dominagdo, corresponde um quadro administrativo especifico. Nas estruturas carismiticas tal fungdo é desempenhada pelos 50 “homens de confianga”: apéstolos do profeta, representantes inspirados divi- namente que transmitem as ordens ao séquito sem recorrer a um quadro burocrdtico permanente. Tal tipo de dominagdo é raro e sua duragado efémera. Nas sociedades onde domina o tipo de autoridade tradicional, o quadro administrativo— como a nobreza hereditdria — é constituido pelos “servidores do soberano”: inexiste 0 critério de formagao profissional ou dreas de compe- téncia na execugdo das fungdes administrativas. Na medida em que estes funciondrios recebem uma formago sistemdtica e se transformam num quadro de agentes assalariados, remunerados conforme a antiguidade de tempo de servigo ou sua capacidade funcional, constituem uma burocracia, no sentido lato do termo. Ela se constitui no sistema de administragio inerente 4 autoridade politica baseada num principio racional, como existe sob o capitalismo. Se Weber, em seus textos, concedeu importancia excessiva 4 burocracia, € que a mesma constitui o problema central da politica moderna. O surgi- mento e extensdo da burocracia, aparece-lhe inerente ao processo de raciona- lizagdo sob 0 capitalismo, visto no seu conjunto. O fenémeno da burocrati- zacdo estende-se da fabrica ao exército, ao laboratério cientifico, aos partidos politicos, ao ensino. Para Weber, o Estado é uma “empresa” (Betrieb) regida pelas leis inerentes a qualquer empresa. “O Estado moderno, do ponto de vista da ciéncia social, é uma ‘empresa’ como o é a fabrica; nisso é que reside sua especificidade histérica.”"* Dat a énfase de Weber nos aspectos burocré- ticos da vida polftica e sua tendéncia a minimizar o papel da ideologia. — “Nos, produtos tardios do Ocidente, tornamo-nos céticos. Os sistemas ideo- J6gicos ndo nos abalam. Os programas constituem coisas do passado.”!5 A burocracia, enquanto administrag@o, ¢ incomparavelmente superior no que diz respeito a eficiéncia, em relagdo a qualquer outra categoria de servidores de um poder piblico. A sociedade ocidental caminha para uma racionalizacao inevitavel e uma burocratizacao inelutavel: “Q futuro pertence 4 burocratizacao. O funciondrio especializado, uma vez no exercicio do poder, é virtualmente indestrutivel; qualquer estrutura bdsica que assegura as minimas condigdes de existéncia é defi- nida em fungao de suas possibilidades de atuacio.”!® Nem o capitalismo nem o socialismo poderfo fug': a esta tendéncia irrecor- rivel, pois eles sucumbem ao mesmo processo de burocratizac4o. O capita- lismo moderno é altamente racionalizado e os executivos que dirigem-no nao guardam relagio alguma com os empresdrios individualistas do inicio do capitalismo. Mais sombrias sfo as perspectivas para o socialismo. Assumindo parte crescente das responsabilidades econdmico-sociais, o Estado socialista 51 utilizaré um Estado burocrdtico bem mais amplo do que o capitalismo privado. Suprimindo o empresdrio capitalista, diz Weber, o socialismo elimi- naré o Gnico rival eficiente da burocracia, o que conhece melhor seu métier do que o profissional da fungao publica. Em consequéncia, adverte Weber, “o crescimento da socializagdo significa necessariamente, hoje em dia, aumento da burocratizagio”,!7 Max Weber critica aqueles “marxistas” que sio incapazes de responder a esta indagacdo: quem dirigiré as indtstrias estatizadas? Para ele, era fora de divida que tal fungio seria destinada 4 burocracia “para quem, o sentimento de solidariedade com o proletariado nao tem existéncia”.!® Essas consideragGes levam Weber a conclusdo pessimista: “O edificio da nova escravidio est4 concluido. . . Os barémetros econémicos acentuam o progressivo recuo da liberdade. . . ‘Contra a corrente’ da conjuntura material, dirigimo-nos aqueles ‘individualistas’ e partiddrios das institui¢des ‘democrdticas’. Os que pretendam adaptar-se @ ‘tendéncia crescente’ agirao bem abandonando o mais rapidamente possivel tais princfpios cafdos em desuso”.!? Até que ponto Weber enfatizava a burocracia, pode-se depreender de uma de suas conferéncias a respeito da situagdo politica da Alemanha, onde chega a afirmar que os burocratas franceses e norte-americanos prestam mais servico a seu pats do que os alemies, porque sdo mais corruptos.”” Somente uma classe social dindmica, politicamente ambiciosa e em Pptocesso de expansio econdmica poderia limitar o crescimento da burocracia. Na Europa do século XIX, tal classe nfo existe. O poder politico na Europa estd nas mos de classes economicamente decadentes, enquanto o proletariado Unico pretendente sério, ndo possui “vontade de poder”, pelo menos no quadro alem4o. A ditadura das massas, idealizada pelos trabalhadores, deverd terminar, segundo Weber, nado numa ditadura do proletariado mas numa ditadura sobre o proletariado. Assim, na auséncia de uma classe que aspire diregdo da sociedade e possa assumir esta responsabilidade, a autoridade na Europa cairia nas maos da burocracia. Nesta conjuntura, pensa Weber, somente um forte poder monarquico apoiado num robusto Parlamento poderd limitar o poder da burocracia. A esséncia do problema constitucional do século XX nao é a divisio do poder entre o Legislativo e o Executivo a nivel do Estado. A questao principal consistiria em saber até que ponto o Legislativo e o Executivo poderiam cooperar para limitar o inimigo comum: 0 quadro burocritico. Observando a situagdo politica européia de inicios do século, Weber tinha fundadas razOes em se desesperar. Tudo indicava um novo declinio da 52 pee we ve liberdade humana e o triunfo de uma ordem social implacavelmente eficaz, porque racional, praticamente indestrutivel. Se qualquer esperanca de preservar a liberdade existisse, era necessério procuré-la fora da Europa, nos Estados Unidos, ou na Rissia, que possufam condigdes favordveis ao surgimento de novos tipos de civilizagao. FE necessério acentuar a importéncia que Weber atribuia 4 evolugao destes paises, em primeiro lugar a Russia, pois a cultura russa era menos “‘européia” do que a norte-americana, e por outro lado, os acontecimentos na Russia afetavam de maneira mais imediata a posigfo da Alemanha. Assim, com o desencadea- mento de novas ondas de greves e agitagdes que cobriam todo Império Russo, Weber suspende seus estudos habituais, penetrando de corpo e alma no “drama russo”. O terreno que nao for conquistado para a defesa do individuo e suas liberdades, em favor do perfodo de caos econémico atravessado por paises onde o sistema econémico ainda nfo estava completamente constituido e cristalizado, nao o ser4 jamais, quando o mundo “estiver economicamente acabado” e intelectualmente desgastado. Num certo sentido, trata-se das “dltimas” chances para a edificagéo de culturas “livres” sob um terreno virgem.74 Outro motivo, que levara Weber ao estudo da Rassia, se deu, pelo fato da revolugdo de 1905 parecer-lhe anunciar uma nova ordem econémica e social que rompe com as cadeias que estrangulam o Ocidente anunciando o renascimento da sociedade livre. ak O primeiro estudo de Weber sobre a Rissia, Zur Lage der burgelichen Demogratie in Russland, concluido em fevereiro de 1906, fora escrito com a assisténcia do militante da Soiuz Osvobojdiéniia (Liga da Libertagéo), e utiliza também como fonte Leroy-Beaulieu L Empire des Isars et les Russes. Weber analisa detidamente a composi¢ao social e programas dos principais grupos liberais, com vistas 4 determinag&0 do liberalismo russo e suas chances de viabilidade institucional. Como ponto de partida, Weber postula que somente constituem um valor “histérico” na Russia “a comuna campo- nesa, a Igreja e a Monarquia”.”? Conseqiientemente, nao considera a tradigao do pensamento liberal russo, cujas origens remontam ao século XVIII. Inicia sua exposig&éo em 1903, quando os elementos moderados que atuam nos zemstvos juntam-se 4 intelligentsia liberal, fundando a Liga da Libertago. Weber parte dos elementos que precedem imediatamente a fundagao da Liga, depois estuda o movimento dos zemstvos, acentuando a telagao entre estes dois pilares do liberalismo e as duas classes mais dinamicas, a burguesia e o campesinato. A abordagem da questo, a escolha dos dados, os elementos que sdo desconsiderados na andlise, sio determinados por sua 53 visio politica. Concentra sua atencdo nos “valores” do liberalismo russo e seus pontos de apoio, para determinar “‘em que medida 0 liberalismo russo é apoiado por interesses econdmicos de uma classe ascendente.”** A hipotese é de que a conjungao destes valores e tal apoio sfo indispensdveis ao éxito de qualquer movimento politico que tenha em mira o poder. A resposta de Weber as questdes bdsicas suscitadas pela andlise é negativa: o liberalismo nao tem o apoio de grupos interessados na realizagdo de seus fins e seus ideais, na maioria dos casos, sdo subalternos. Os eventos de 1905 significam, para Weber, que as forgas liberais, representadas pelos zemstvos e o Partido K.D. (Constitucional-Democrata), nado contam com o apoio da burguesia russa. Os zemstvos nao sao propria- mente falando instituigdes da classe média, no sentido econdmico do termo. Na medida em que a burguesia se acha representada, é sob o angulo de “sua forma de vida e de seu nivel de instrugao. Considerados sob o angulo econd- mico, os liberais dos zernstvos sio no conjunto simples defensores de um ideal polftico-social.”* A burguesia, no sentido exato do termo, isso é, a classe dos grandes industriais e dos financistas, ndo somente recusa sustentar tais idealistas como procura ativamente combaté-los. A ruptura entre a grande burguesia e os liberais dos zemtsvos, que se produz nos inicios da -revolugao de 1905, constitui uma das manifestagdes externas deste profundo desenten- dimento. Weber analisa um outro angulo do movimento: a constituigado do quadro burocrético dos zemstvos. Este “terceiro elemento” que vive efetivamente no “seio do povo”, de um idealismo comprovado, que “no plano moral é o fenédmeno mais reconfortante e significativo da Russia de hoje.”?5 Weber visualiza, neste processo, a formagao de uma burocracia recrutada no local e fortemente enraizada, capaz de fornecer aos opositores da autocracia o quadro administrativo que necessitam. O partido K.D., outro ponto de apoio do liberalismo russo, recusa-se a sustentar a burguesia. Entre seus membros nao figura nenhuma personalidade do mundo industrial e financeiro. Os industriais e financistas trocam os Kadetes pelos Outubristas e, nas questdes decisivas, apoiam o trono e a burocracia contra os liberais. A pequena burguesia, com seu anti-semitismo, vé-se impedida de aliar-se aos liberais, preferindo os ultra-reaciondrios “Cem Negros”. O que resta ao liberalismo russo como base de apoio possivel? Somente © campesinato. Alguns circulos libertérios russos colocam suas esperancas no nascimento de uma democracia russa fundada na comuna camponesa, notadamente os socialistas-revoluciondrios. Pura ilusfo, diz Weber, convencido que este “populismo romantico” ser no correr do tempo minado pelo capita- lismo deixando lugar para o surgimento do marxismo.* Segundo Weber, os camponeses mais prejudicaram do que ajudaram o liberalismo russo: colo- 54 caram-no ante um problema infinitamente complexo cuja solugdo exigia mudanga estrutural radical. Os camponeses so estruturalmente anti-parlamen- tares; querem tratar diretamente com o Czar e reclamam a confiscagdo das terras. Os liberais, bem ou mal, para serem conseqiientes, devem apoiar estas reivindicagGes, apesar do cardter retrégrado e andrquico do programa. Weber nao vé nenhuma safda dentro da ética democrdtica para os problemas agrarios tusso: “Nao é caso de invejar a tarefa do partido que pretenda esta reforma (agréria) pela via legal.27 Os camponeses russos n&o se aliarfo aos nobres para realizar uma frente anti-liberal como se deu na Alemanha; por outro lado, é certo de que nfo colaborarao mais com os liberais”. O abismo entre os liberais e as classes economicamente influentes da sociedade, em outras palavras, a falta de qualquer base s6cio-econdémica, é o ponto fraco que poderd condenar ao fracasso o movimento liberal russo. Weber critica o otimismo daqueles que acreditam, apesar das dificuldades encontradas, que o triunfo final da democracia est4 garantido pela forga do progresso histérico. A ampliag&o da cultura ocidental e da economia capita- lista nao garantem, a Russia, a conquista das liberdades, conforme se realizara no Ocidente. Em primeiro lugar, a liberdade européia é fruto de circunstancias espe- cificas, ocorrera numa época em que as condigGes materiais e intelectuais eram excepcionalmente favordveis a elas. Era um perfodo de adesdo plena aos principios de autoridade divina e de harmonia do espirito humano, minados pela filosofia da Iustragao e pelo capitalismo: uma época de expansio ultra- marina e de possibilidades infinitas 4 empresa capitalista. “Essas fases de desenvolvimento néo podem ser reencontradas na Russia atual e ndo o sera por razGes “‘ideais”: o individualismo especificamente burgués acha-se em vias de desaparecimento no circulo dos intelectuais e dos proprietarios, e nao é no seio da pequena-burguesia que ele encontrara condiges de florescimento.”® Em segundo lugar, constitui um erro atribuir ao capitalismo modero, tal como existe no Ocidente, afinidades com a democracia e a liberdade. Trata-se, pelo contrario, de perguntar como é possivel a longo prazo manter em regime capitalista a democracia e a liberdade”.”” Pessimista a respeito do futuro do liberalismo na Rissia, Weber nao desvaloriza inteiramente suas realizacdes. O liberalismo zemstvo constitui para ele um movimento admirdvel; compara seu papel ao do Parlamento de Francforte e vé nele uma manifestago de liberalismo “puro”. Para Weber, os Zemstvos podem servir utilmente 4 democracia, consagrando-se 4 tarefa de difundir em todos os grupos sociais ideais dos direitos inaliendveis da pessoa humana, para contrastar a influéncia da burocracia e do jacobinismo. (Por jacobinismo Weber entende o leninismo, aludindo numa nota a tendéncia jacobina no seio da social-democracia russa.)°° 55 Face a todas as formas que conspiram contra a liberdade humana, o desejo de ser livre é a tiltima arma que resta ao homem: a democracia e a liberdade so possiveis somente “quando nao sustentadas por uma vontade constante de uma nacao que recusa ser goverriada como um rebanho de cameiros”.*! Qs sacrificios da revolugdo nao foram em véo. A monarquia, € verdade, sobreviveu a ela, manteve o apoio do Exército, da burocracia central e de alguns setores das classes influentes. Weber esta convencido que “somente uma guerra européia perdida minaré definitivamente a autocracia”.>? A derrota das forgas democraticas nao é menos patente: a Russia esta submetida a um regime onde a burocracia poderd exercer sua dominagao acobertada por um regime pseudo-constitucional. A longo prazo, tal regime nao se manter4 e e o pais atravessaré uma sucessao ininterrupta dé movimentos sociais.* Alguns meses apés ter publicado seu primeiro ensaio sobre a Rassia, Max Weber publica um segundo, mais alentado, a respeito do mesmo assunto: Russlands Uebergang zum Scheinkonstitutionalismus (A Passagem da Russia a um Regime Pseudo-Constitucional).** Tendo visto no seu primeiro ensaio a vida politica russa do dngulo do desenvolvimento das forgas liberais, consciente da fraqueza do liberalismo russo, analisaré o funcionamento do regime czarista, estudando a viabilidade de uma revolugdo “pelo alto” e nao mais pela base, que transformaria a Russia numa democracia parla- mentar do tipo ocidental. O tom do estudo é mais frio, distante, profissional, feito sem amor e sem Odio, por um homem que, perdidas suas grandes esperangas, examina 0 conjunto do problema impessoalmente. A chave do enigma a respeito do comportamento do governo czarista durante a Revolugao de 1905, a razdo das concess6es outorgadas no Manifesto de Outubro e promulgadas por lei, se acham na amplitude e volume da divida externa da Rassia: “£ impossivel compreender a conduta do governo russo sem levar em conta um dado essencial: a Russia é um Estado devedor. E exato sustentar com os reaciondrios que os “judeus” extorquiram a Consti- tuigo russa; esses judeus nao sfo os pobres reclusos dos guetos, opri- midos e ultrajados, mas seus primos enobrecidos da haute finance de Berlim e Paris, que controlam os fundos do Estado russo”.35 Para controlar 0 panico que as agitagdes.de 1905 causaram entre os credores estrangeiros, o czarismo introduziu um regime pseudo-constitucional em compromisso com a burguesia. O objetivo principal dessas medidas era dar ao exterior a impressdo de ordem e estavilidade interna, favorecendo 0 afluxo dos créditos e investimentos estrangeiros. Na realidade, o regime czarista nao 56 tinha intengdo alguma de conceder a seus cidaddos direitos civis e politicos; no plano interno, antes de mais nada procurara manter e ampliar os poderes dos 6rgios policiais de repressio. Dessa maneira estarfamos diante de uma politica de duas faces: no plano extemo, o governo russo conduzia-se como uma monarquia constitucional, no plano interno, mantinha o regime tradi- cional caracterizado pelo arbitrério poder da policia. O principal tema do ensaio de Weber é a andlise da Constituigao russa de 1906 partindo das premissas acima enunciadas. Weber aborda-a de um duplo ponto de vista tedrico e pratico, procurando mostrar como o novo sistema funcionava do ponto de vista da lei e da realidade social. Examina detalhadamente as atribuigdes do novo Orgao ministerial e do poder legisla- tivo, a lei eleitoral e o papel da burocracia, o que permitir4 mostrar as diversas disposigdes escapistas que permitirdo as forgas anti-parlamentares reduzir a oposig¢ao a impoténcia. As conclusdes de Weber, em grande parte, foram confirmadas pelos acontecimentos: incapacidade da Duma na afirmacao de sua autoridade; manutengdo do arbitrio policial; auséncia de um verdadeiro gabinete ministerial. Para Weber, 0 novo regime nao é autenticamente consti- tucional, pois o poder nao est4 partilhado entre o Executivo e um partido politico dominante no Parlamento. Tal partilha constitui para Weber um trago caracteristico do regime constitucional: o sistema russo seria, na reali- dade, um “pseudo-constitucionalista”.** Este termo Weber nao aplica a Rissia, mas 4 Alemanha contemporanea designando o regime onde a populacdo, se est4 representada por partidos na ‘Assembléia nfo participa do poder de fato mas somente de suas adjacéncias,®” Poderiamos ampliar a 4rea de comparagdo que Weber estabelecera, definindo que a necessidade de manter uma imagem positiva ante os investi- dores internacionais, érgaos de financiamento mundial, levou o Brasil a manter duas ordens conflitantes: uma ordem constitucional e outra institu- cional, onde, no plano exterior, mantém-se uma imagem constitucional e no intemo ela coexiste com os aparelhos repressivos oficiais: é 0 pseudo-constitu- cionalismo em ato. Os dispositivos de 1906 tém, segundo Weber, dois efeitos duraveis e importantes: crescimento do poder da burocracia e diminui¢ao do poder da Coroa.** O regime russo de 1905 era, na realidade, um regime de uma autocracia hesitante. O pais estava dividido em numerosas satrapias em luta entre si e contra o Czar. O sistema, por sua ineficiéncia congénita, oferecia intimeras possibilidades de escapar ao controle da burocracia. O Manifesto de Outubro pée fim a este estado de coisas; surge uma nova ordem que sucede & confusdo de poderes, conflitos de dreas de competéncia, a diversidade dos aparelhos administrativos autoénomos, 4 concorréncia das instituicdes: a administragao centralizada inerente 4 burocracia moderna. Tendo no topo 0 57 Primeiro Ministro e o Conselho de Ministros — este poderoso truste de interesses burocraticos —, os dois inteiramente independentes da Duma, a burocracia implantara-se solidamente entre o monarca e seu povo. O Czar conservou © direito de veto mas no plano administrativo ficou sob depen- déncia do érgio ministerial que controlava os elos de transmissio do poder Teal. A Constituigao de 1906, assim, equivale de fato 4 “racionalizagdo buro- crdtica definitiva da autocracia em todas as esferas da politica interior”, isto é, 4 passagem do poder da Coroa a burocracia. Se o Czar permitita a criagao de um verdadeiro regime parlamentar, ele conservaria ainda um amplo poder, pois necessitava manipular a burocracia 4s suas ordens para contrapé-la ao poder legislativo. Privando a Duma de autoridade, cedeu aos burocratas 0 poder politico que recusara a nagdo em seu conjunto. O principal perdedor, afinal de contas. foi o Czar: “Como a hipocrisia é a homenagem do vicio A virtude, assim, a codificagao explicita de um pseudo-constitucionalismo, tao profunda- mente inauténtico, é uma homenagem nao menos degradante da ‘idéia’ de autocracia ao princfpio constitucionalista; a longo prazo, ela enfra- quece, nZo o respeito devido ao Principe, mas a autoridade da Coroa”.*° Os dispositivos constitucionais de 1906, sustentados unicamente pela burocracia e a parte mais afortunada da burguesia, rejeitados pelas demais classes, levariam a um conflito entre o regime e a sociedade, a guerra civil em estado crénico. As pesquisas de Weber convenceram-no que é va a tentativa de esperar da Rissia a elaboracdo de novas formas da civilizagdo. Sua visdo do nasci- mento, em solo russo, de uma “cultura livre em solo virgem” — embora jamais tenha definido como surgira — nfo tinha fundamento algum. Na Rissia, como em outras terras, o poder é enfeixado pela burocracia. Os acontecimentos de 1905-1906 indicam que a Rissia entrou “na via especificamente européia de desenvolvimento. ..”.“' Embora essa perspectiva encorajasse muitos liberais, ela aparece diferente para Weber, para quem s6 poderia haver liberdade, nas condigdes do mundo modemo, fora da cultura européia. Desiludido, Weber deixa de estudar a politica russa. Cada vez mais, sua atitude ante a Rassia seré definida por consideragdes histéricas e filoséficas imbuidas de nacionalismo. Se é injusto taxé-lo de “russéfobo”*? nao é menos verdade que, a partir de 1906, Weber manifesta uma tendéncia para julgar a politica interior e externa da Russia em fungao de sua incidéncia sobre os interesses alemies. 58 Numa conferéncia pronunciada em outubro de 1916, “A Alemanha entre as Grandes Poténcias Européias”,*? ele critica duramente a politica exterior de Guilherme II, sua falta de realismo ao impor 4 Alemanha tarefas que sua situagdo geopolitica impede a realizagao. Continuando sua critica, chama a atengdo, nos limites permitidos pela censura de guerra, a respeito das conseqiiéncias desastrosas que uma politica deste tipo teria para o Estado alemao. Sua tese é que a Alemanha é a tnica poténcia mundial situada no centro do Continente, imbrincada entre as poténcias mundiais. Necessita ela de aliados; a Alemanha é 0 tnico Estado engajado na polftica mundial que nado pode dispensar a ajuda, ou mesmo a amizade das outras poténcias mundiais. Nessa conquista de aliados, a Alemanha tem a escolher entre o Este e 0 Oeste; no Este a Russia, no Oeste a Franga e a Inglaterra. Sendo esta a alternativa, a solugdo é dirigir-se a Oeste. A Russia aparece como inimigo natural da Alemanha pelos seguintes motivos: 1) crescimento demografico constante da Rassia e declinio nos pafses ocidentais; 2) a Russia esta predeter- minada ao expansionismo devido 4 fome de terras de seu campesinato; 3) os interesses russos primordiais localizam-se no Império Austro-Hiingaro e na Turquia, que se constituem nos apoios alemdes nos Balcds e no Oriente Préximo. Com base nestes argumentos, Weber convida os alemaes a nao Pprosseguirem na campanha anti-Inglaterra. Nada mais desastroso, pensa ele, do que alienar a Alemanha da Gra-Bretanha e Franga, elidindo qualquer possibi- lidade de conciliacdo. Privada das simpatias ocidentais, a Alemanha do apés- guerra (1914-1918) ficard a mercé da Riissia, diz Weber. Caracteristico do pensamento politico de Weber é 0 fato de que, se de um lado critica a Rissia, por outro lado nfo manifesta nenhuma averso ao pais enquanto tal. Weber esforga-se em dirimir qualquer consideragdo de ordem ética ou moral, para definir conclusdes fundadas no cAlculo racional. Jamais escondera sua qualidade de Realpolitiker. Dai colocar-se unicamente esta questo; quem faz a Alemanha a melhor oferta? E a resposta a isso que origina sua posi¢ao em relagdo 4 Rissia. A Revolugdo de margo de 1917 levaré novamente Weber a interessar-se pelo processo politico russo. A 26 de abril de 1917 publica na revista Hilfe, dirigida por Naumann, um artigo intitulado Russlands Uebergang zur Schein- demokratie (“Passagem da Rissia 4 Pseudodemocracia”) onde analisa os sucessos de margo. Seu objeto é analisar as repercussdes possiveis dos acontecimentos russos sobre a Alemanha, notadamente sobre seu esforgo de guerra. Por que, pergunta Weber, a revolugdo russa de 1917 tivera sucesso apés a derrota de 1905? A resposta se encontra no comportamento da burguesia, que controla o crédito indispensdvel ao sucesso das revolugdes. Em 1905, a classe média apoiara a Coroa; em 1917, apés um decénio de arbitrio policial e 59 inconseqiiéncia politica do Czar, ela voltou-se contra a Coroa. No processo da guerra, setores dos mais conservadores da sociedade russa, desesperados com a incompeténcia do Czar, pronunciaram-se pelo regime parlamentar. Se a burguesia continuasse leal, a monarquia a neutralizaria como em 1905. Somente a firmeza de Stolypine permitiu ao Czar um ponto de apoio. Weber considera o Governo Provisério, no seu primeiro més de existéncia, como um carro sem direcdo: de um lado, uma burguesia conserva- dora ¢ seus aliados néo menos conservadores (militares de carreira, quadro burocratico, credores russos e estrangeiros), de outro, a intelligentsia revolu- ciondria representando as forgas verdadeiramente democriticas. Se estes dois grupos partilham o poder é porque seus interesses, provisoriamente, sdo comuns, mas é pouco verossimel que essa alianga dure, devido as aspiragdes contrdrias. A burguesia apoiara as forgas democriticas para desembaragar-se de um monarca incompetente e ndo para transformar a estrutura do sistema. Os interesses da burguesia exigiam a continuagdo da guerra e a repressdo as forgas democraticas, para salvaguardar os investimentos e garantir os empres- timos estrangeiros, para impedir que os poderosos sentimentos coletivistas (anti-propriedade individual) das massas russas nao se impusessem nos 6rgdos legislativos do Estado. A pequena burguesia, diz Weber, ansiava pelo “homem forte”, de preferéncia um ditador militar, capaz de realizar a contento as duas tarefas. Para manter sua autoridade no pais, a burguesia necessitava de apoio da intelligentsia revolucionéria representada pelos socialistas-revoluciondrios (S.R.) e pelos social-democratas. Dispunham eles dos meios de comunicacao e transporte, estradas de ferro, telégrafo; estavam em contato com .as massas, pela divisio da burocracia rural, conquistada em parte pelas idéias do socia- lismo. Esses movimentos eram anti-monarquistas, pequeno-burgueses, voltados para a eliminagao definitiva da dinastia Romanov, embora preferissem substituir Nicolau II por um “rei-cidadéo” ou um ditador militar. A presenga de esquerdistas no governo dé a possibilidade ao novo regime de manter uma aparéncia revolucionaria, sem enfraquecer 0 controle exercido pelos conserva- dores sobre o aparelho de Estado. Para Weber, a fraqueza essencial dos socialistas-revolucionarios consistia em nao possuir capital e crédito, n@o estavam em condicdes de fazer a revolucfo, nem de assumir as responsabilidades do exercicio do poder. Daf estarem obrigados a colaborar com a burguesia e a se contentar com o triste papel de “companheiros de viagem” (WVitlaufer) de uma coalisio essencial- mente anti-democratica. Outro fator, para Weber, da instabilidade do Governo Provisério era a incompatibilidade dos interesses da burguesia com o campesinato, a classe social mais numerosa. Os camponeses — uniformizados ou nao — aspiravam a 60 confiscagéo imediata das grandes propriedades, o término imediato da guerra com seu coroldrio, a democratizagdo. Surgia um conflito social que ameagava a propria existéncia do Governo Provisério; enquanto a pequena-burguesia procura manter o sfatus quo em matéria de propriedade e estrutura politica, e a continuagao da guerra, 0 campesinato aspirava a mudangas radicais nas telagdes de propriedade, a democratizagao do governo e o fim da guerra. Caso a burguesia procurasse barrd-lo em sua marcha, haveria o risco do campesinato recorrer a violéncia: “Tais dificuldades somente podem ser vencidas por intermédio de uma ditadura social-revoluciondria prolongada (por social-revoluciondrio nao deve entender-se um tipo de selvageria, mas simplesmente um homem politico que nao recue ante o cardter sacrossanto da proprie- dade privada — idéia relativamente nova na Rissia). Existem personali- dades a altura desta tarefa? Ignoro-o. Seu poder s6 poder4 subsistir com a concluséo imediata da paz. E somente a paz que trard de volta ao pais os camponeses e que thes dard uma certa disponibilidade”.** A intelligentsia democratica situava-se entre a burguesia e o campesinato mas cada um procurando uma ditadura de tipo diferente. Para Weber era pouco fativel que a terceira das grandes forcas sociais em presenga, o proleta- riado industrial, pudesse servir 4 causa democratica, pois seus interesses essencialmente anti-camponeses tornavam-no dependente da burguesia: os operdrios teriam mais vantagens num regime fundado na pequena burguesia do que numa Assembléia Constituinte dominada pelo campesinato. A analise de Weber leva-o a concluir que em meados de abril de 1917 a Rissia nao assistira a uma verdadeira revolugao: “O que se passou nao foi uma revolugdo mas a simples eliminagdo de um monarca incompetente”.*® Desde que a burguesia tenha obtido os créditos suficientes do exterior, pode-se esperar a evicgdo dos liberais do governo e.o fim da farsa democritica. A politica basica da Rissia, a menos que ocorra algo revolucionrio, conti- nuaré a mesma de antes de 1917. A guerra dever4 continuar, abafando as esperancas na “revolugdo” ou na “‘democratizagdo” da Russia. Weber advertia os social-democratas alemaes de que corriam o risco de iludir-se com as aparéncias, conduzindo-os 4 crenga no mito da “punhalada pelas costas” formulando-a nestes termos: “A atitude dos dirigentes socialistas russos baseia-se num postu- lado fundamental, a saber, que no momento em que um exército de negros, gourkhas, encarando toda barbarie da terra, esté nos limites de nossas fronteiras, louca de Odio, de vinganga, a social-democracia corre 61 0 risco de aceitar 0 jogo de cartas marcadas oferecido pela plutocracia da Duma tussa, atacando por dentro a moral do Exército que nos protege dos selvagens. .. E essencial que a classe operdria alema saiba a que recorrer e saiba por que, sem divida, inexiste na Russia uma auténtica democracia. Com uma Russia verdadeiramente democratica podemos concluir a qualquer momento uma paz honrosa. Com a Russia atual, € impossivel essa paz, pois seus dirigentes necessitam da guerra para manter-se no poder”.*7 Weber retoma os argumentos que utilizava quando se perguntava a tespeito das perspectivas do liberalismo russo 4 luz dos acontecimentos de 1905. Em 1917, dez anos depois, Weber defende a tese de que as chances de instauragdéo de uma verdadeira democracia inexistem na Russia, devido 4 oposigaéo daqueles que possuem os meios e os outros que por motivos materiais ou ideolégicos tenham interesse nisso. Em novembro de 1917, dé-se a queda do Governo Provisério e a passagem do poder 4s maos de um pequeno grupo de intelectuais extremistas apoiados por um segmento do proletariado industrial, do exército e néo do campesinato, contrariamente as expectativas de Weber. Ele expord sua atitude ante o bolchevismo em duas situagGes: a primeira vez em fevereiro de 1918, num artigo de jornal dedicado 4 situagdo politica européia; a segunda em julho do mesmo ano, por ocasido de uma conferéncia pronunciada em Viena a respeito do socialismo.*® Para ele, o regime bolche- vique é uma “pura ditadura de sargentos”: “E absurdo acreditar que na base deste regime — bolchevique — estéo as massas populares animadas pela consciéncia de classe, for¢as operarias iguais 4s existentes no Ocidente. Nao. Este regime apoia-se num proletariado de soldados. Isso implica em conseqiiéncias. Quais sao as finalidades dos intelectuais de S. Pestesburgo (atual Leningrado), que anseiam e reivindicam? Os soldados que compdem suas forgas procuram recompensas, botim. Os guardas vermelhos bem pagos nao tém nenhum interesse na paz que os privara de seus ganhos. Nao tém esse interesse os soldados que, sob pretexto de ‘libertar’ a Ucrania, Finlandia e outras Tegides, forgam as portas (como na Russia propriamente dita) levan- tando tributos. A unica autoridade procedente de uma eleiggo demo- critica — ao menos na forma — a Assembléia Constituinte, foi destruida pela forga. E isso nao foi devido a divergéncias importantes, mas para beneficiar agentes, destacamentos de tropas, subsfdios e botim, pois a maior parte desta Assembléia pronunciara-se pela manutengdo do armis- ticio e pelo prosseguimento das conversagdes de paz. O resto, objetiva- 62 mente, nao passa de uma escroqueria, quaisquer que sejam os objetivos aparentemente visados, ou que realmente visa a diregdo do movi- mento”.? Na sua conferéncia de julho, Weber definira melhor seus pontos de vista: n@o cré na estabilidade do regime bolchavique e suspeita de suas intengdes. Seu tema principal é 0 socialismo. Weber define 0 marxismo como um protesto contra a alienagdo do trabalhador industrial separado de seus meios de .producao, alienagdo que ele considera inevitavel. O proletariado tem condigdes de dirigir o Estado e a economia? Weber manifesta ceticismo a Tespeito: “E possivel no transcurso de uma guerra, que as prodigiosas alteragdes que ela implica e como conseqiiéncia da condigao operaria, notadamente da fome, a massa do proletariado, dirigida por intelectuais, tome o poder... Nao encontro entre os trabalhadores sindicalizados, nem entre os intelectuais sindicalistas, homens com capacidade de dirigir a produg&o em época de paz. A grande experiéncia realiza-se presentemente na Russia”.5° As noticias recentes vindas da Russia, diz Weber, indicam que 0 salério por tarefa foi restabelecido, que os antigos chefes de empresa, burocratas e oficiais de carreira, voltaram a seus cargos. “Mas nao é possfvel desta forma assegurar o funcionamento permanente do aparelho de Estado e da economia e até o momento a experiéncia nao é de encorajar”.5' Weber manifesta surpresa pelo fato de o regime bolchevique ter subsistido. Isso dever-se-ia ao fato de ser menos uma ditadura socialista do que uma ditadura militar de sargentos. Trotsky, conclui Weber, est4 errado ao esperar a decomposic¢o do exército alemao sob influéncia da propaganda comunista. Este exército nao se compée de dois tergos de camponeses e de uma propor¢do notdvel de pequenos-burgueses, isto é, de classes que nao acudiriam em ajuda ao proleta- tiado industrial? Nao se deve subestimar a sedugo afetiva da idéia socialista. Weber aprova as negociagées de Brest-Litovsk que permitem definir os verda- deiros objetivos do bolchevismo: “‘Com aqueles que combatem por uma fé, nao se pode fazer paz, pode-se somente colocd-los em estado de neutra- lidade”.? A derrota alema, em novembro de 1918, ndo surpreende Weber: fora o fruto de aventureirismo irresponsdvel, contra 0 qual nao cessou de advertir seus compatriotas. Consola-se, entretanto, admitindo que o sacrificio dos alemes durante a guerra nao teria sido em vao: 63 “O respeito 4 verdade que nés impusemos forga-nos naturalmente a admitir que o papel politico mundial da Alemanha terminou: a domi- na¢Ho mundial dos anglo-saxdes ou o knut russo é alternativa visivel. E a nossa gloria. A hegemonia norte-americana é tao inevitavel como o fora na Antiguidade a de Roma apés as Guerras Pinicas. Espera-se que isso se dé e que nao haja partilha com a Russia. E isso que eu considero como a finalidade de nossa futura politica mundial, pois o perigo russo pelo momento est4 afastado mas nao em definitivo”.** A luz retrospectiva de meio século de histéria, como as andlises e apreciagGes de um pensador geralmente reconhecido como o maior dos socié- logos modernos, resistiram % prova dos fatos? E bem verdade que Weber, em indmeras ocasides, defendera-se da sedugdo da previsibilidade. No inicio de seu ensaio sobre a Constituicao russa, escrevia: “ ‘A Hist6ria’ nfo pode servir de preambulo ao conhecimento do presente imediato pois ignoramos sua duragéo. O problema é caracte- rizat 0 que sucede no momento especifico, como caracteristico ¢ essencial”. Apesar de suas denegaces, Weber acertou na previsio de muitas coisas; suas trés obras sobre a Russia tinham a finalidade de tragar os contornos provaveis do futuro préximo. Daf ser possfvel confrontar seus prognésticos com os fatos de nosso conhecimento, nao tanto para julgar a clarividéncia de Max Weber mas para chegar 4 compreensdo da forga e dos pontos fracos de seu pensamento politico. Weber aborda os problemas da Rassia a partir de premissas deduzidas da convicgao de que a civilizacfo ocidental se orienta, inexoravelmente, rumo a uma racionalizacdo sempre crescente de cada aspecto da existéncia organizada, conduzindo na 4rea politica 4 nogdo de transformagao do Estado em “empresa” e, paralelamente, 4 transmissdo de todo o poder real 4 burocracia. A tese funda-se na evolugao moderna da Alemanha, o que explica a tendéncia de Weber a inspirar-se, para andlise das instituigdes e processos politicos, na experiéncia germanica. E 14 que devemos encontrar as razdes de sua rejeicao da crenga na eficiéncia da vontade popular, de sua concepgdo extremamente limitada das instituigdes parlamentares, de sua insisténcia a respeito do papel das “elites” e da importancia que atribui as “manobras” na dire¢#o dos processos polftico-sociais, de seu desprezo pelos politicos nao-profissionais, de seu medo a qualquer burocracia (a Beantentum alemé), sua insisténcia em ligar a autoridade politica 4 supremacia econdmica, enfim, de sua tese sobre a “politica como exercicio do poder”. Aplicando estas idéias a vida politica 64 russa durante as crises revoluciondrias de 1905-1906 e de 1917-1918, Weber procura chegar a passagem do velho regime-autocratico descentralizado e ineficiente ao sistema racional e moderno do governo pela burocracia, passage que considera como a principal conseqiiéncia da Constituigao de 1906 e que nao se dara. Contrariamente, no dltimo decénio de sua existéncia, o Estado Czarista sera mais caético e descentralizado que nunca. Neste processo, imensa responsabilidade cabe a Nicolau II, que continuou imiscuin- do-se nos assuntos piiblicos, ndo permitindo que altos burocratas qualificados, como o Conde Whitte e Stolypin, administrassem o pais. A autoridade, que o Czar se mostrava incapaz de exercer, nao serd exercida pela burocracia mas pelo monge Rasputin. Estas personalidades, delegando poder a incompetentes como Gomremykine e Stumer, intrigando intensivamente na 4rea palaciana, acabarao por desorganizar o velho aparelho burocratico. Entre 1906 e 1917, a burocracia russa nao usurpard a autoridade da Coroa, nem mesmo tentar4 fazé-lo. Ela procuraré servir a monarquia, mas 0 comportamento irresponsavel da Coroa a desmoralizaré a tal ponto que, em marco de 1917, apés a queda da dinastia, ela desapareceré da cena politica sem nenhum gesto, por simbélico que seja, de resisténcia. A Histéria mostra que, entre 1906 e 1917, a monarquia conservava totalmente 0 poder, enquanto o da burocracia declinava de forma alarmante. E exatamente o contrrio da prevido de Max Weber. ConsideragGes tedricas como as enunciadas acima levam Weber a enganar-se a respeito das duas revolugdes de 1917. Seu sistema ndo reconhece nas massas nenhuma espécie efetiva da capacidade de agao. Com efeito, para Weber, qualquer atividade politica pressupGe a existéncia intramuros de pequenos grupos manobrando em concordancia com a alta burocracia e os meios que controlam as finangas e 0 crédito. Persuadido desta verdade, Weber articula os dados de que dispde. Vé na revolugao de margo uma vulgar escroqueria, um golpe montado pela pequena burguesia acumpliciada com a finanga internacional ocidental; quanto ao golpe de Estado de novembro, trata-se de outra escroqueria, imputavel desta vez a0 exército. Na realidade, nem marco nem novembro foram fruto de maquinagées nem escroquerias. O ano 1917 aparece na perspectiva da Historia como um periodo de desagregacdo rapida da estrutura sécio-politica da RGssia sob pressdes divergentes de forcas populares como o campesinato, o proletariado industrial urbano, o exército, minorias nacionais, a intelligentsia, cada um lutando pelos seus préprios interesses imediatos. Em nenhum momento a burguesia russa, muito menos o “capital” ocidental, dirigia o curso dos acontecimentos. Tampouco os bolcheviques, que chegavam tardiaménte para controlar as forgas de contestagao, mobilizando-as para seus préprios fins, dirigiam a revolugdo. Na verdade, eram dirigidos por ela.** O.génio politico de Lenine consistiu em atribuir 4 necessidade 0 aspecto de uma escolha. 65 Afirmando a priori que uma burocracia qualificada, capaz de perpe- tuar-se, é indispensével ao Estado moderno, Weber elimina praticamente qualquer possibilidade de transformago politica no mundo atual. Parte deste postulado, aplicando-o ao processo russo nos inicios de margo de 1917. Ele nega que a classe dominante e os donos do poder tenham mudado verdadeira- mente, embora, na realidade, a mudanga tenha sido fundamental e irreversivel. Weber engana-se quando analisa a Revolugfo de Outubro com base no mesmo postulado, Parece-lhe inconcebivel que um Estado moderno possa nascer de uma rmuptura radical com o aparelho administrativo do regime antigo. Como os fatos ndo correm em seu abono, apresenta trés explicagdes possiveis para o processo: ou a ruptura é mais aparente do que “real”, ou & provis6rio ou, finalmente, se é necessério excluir as duas primeiras hipdteses, & que © novo Estado tera vida curta. Se é verdade que Lenine desmentiu posteriormente o que escrevera, “no regime socialista cada um administraré ¢ pouco a pouco acostumar-se-4 a idéia de que todos devam administrar”,5’ deve-se dizer que, naquele momento, estava mais proximo do real do que Weber, que fundava na existéncia de um quadro de funciondrios a chave explicativa de qualquer construgao politico-estatal. De qualquer forma, Lenine teve sucesso em construir.um novo Estado composto de intelectuais e de revolucionirios “profissionais” — esses “literatos” a quem Weber tanto desprezava — desprovidos de qualquer experiéncia burocratica. E, contraria- mente a expectativa de Weber, o Estado soviético-zobreviveu, burocratizan- do-se, bem verdade. Logicamente, nfo cabe pronunciar-se a respeito da teoria do Estado moderno de Weber tendo como elementos seus textos sobre a Riissia. Mas é fora de davida que, no caso especifico (0 processo politico russo), sua teoria ndo fora confirmada, Sua definigfo de Estado como “empresa”, funcionando na forma de uma usina, conduziu-o a sobrestimar os aspectos técnicos do governo: aparelho burocritico, formagao e expériéncias burocré- ticas e apoio financeiro. Ao mesmo tempo, subestimou ou abstraiu inteira- mente os caracteres do Estado que nao apresentavam nenhuma equivaléncia com a estrutura racional organizada: a tradicdo, ideologia, opiniao publica e psicologia das magsas. Weber deixa-se fascinar pelos aspectos tedricos do governo a ponto de negar qualquer possibilidade de revolucdo no século XX, colocando em xeque a propria possibilidade de realizayado de um sistema verdadeiramente democratico. Mas em ultima andlise, independentemente do valor da teoria poli- tica de Weber, deve-se perguntar até que ponto é licito utilizar, para avaliar os acontecimentos didrios de uma sociedade com um rico passado hist6rico, conceitos extraidos da experiéncia de outras sociedades. O problema central é que a Russia, para Weber, nao tem: histéria politica, 66 é uma tabula rasa. Dai vé ele a possibilidade de tragar seu desenvolvi- mento politico com um nivel suficiente de precisio partindo de critérios racionais e estabelecendo paralelos com outras na¢des historicamente mais “desenvolvidas”. Tal raciocinio traz a esperanca ingénua que a Russia possa dar origem a uma civilizagdo inteiramente original “num terreno virgem”. Tratar a Rassia como se ela tivesse nascido no século XX, revela um raciocinio anti-hist6rico, atitude que pressupde a existéncia de critérios universais, validos para toda comunidade “civilizada” (representada pelo “tipo ideal” de civilizagao européia ocidental do século XIX); ela ndo toma em consideragao a experi- éncia histérica fundante de conceitos como os de “‘civilizagdo”. Na realidade, a Rassia contara j4 com cinco séculos de experiéncia de organizagao estatal, determinando maneiras de pensar, sentir e agir do homem em instituigdes que, se do ponto de vista ocidental nado representam o maximo em perfeigdo, reclamam um estudo sério e demorado. A atitude de Weber em relagdo & Rassia constitui uma reprodugao da © postura da historiografia “‘filosofica” téo desenvolvida na Europa nos fins do século XVIII, isto é, de pensadores influenciados pela Revolugdo Francesa que procuraram aplicar o método “filosofico” da Iustragdo como instru- mento de andlise. social. Qual a diferenga basica entre Weber — que nao hesita em aplicar 4 Rassia os modelos produzidos pela historia ocidental, em parti- cular da Alemanha — e a desenvoltura com que Voltaire, Diderot, que estudaram tudo, menos a Rissia, propiciam seus conselhos aos soberanos russos? Em que a crenga inicial de Weber nas potencialidades ilimitadas culturais da Russia difere das esperangas alimentadas por indmeros fildsofos do século XVIII, notadamente de Leibniz? Eles também esperam que a Riissia e outras nagGes nao ocidentais, que também “‘partem do nada”, possam dar origem a uma sociedade mais racional. Atraés dessa postura estd a mesma atitude estdtica ante a Histéria, 0 mesmo método dedutivo, a mesma indiferenca em relagdo a especificidade da formagéo econémico-social, a mesma dependéncia de valores “universais”, a mesma tendéncia a medir o progresso pelos critérios da burguesia ocidental. Retrospectivamente, é claro que Weber trabalharia em terreno mais seguro se fizesse um esforgo sério para iniciar-se no patriménio hist6rico russo, atitude que possivelmente o levaria a nao sobrestimar a burocracia e subestimar a intelligentsia, A respeito do liberalismo russo, Weber nfo se enganaria. Analisa minuciosamente 0 movimento liberal, o parlamentarismo, a atividade da nova Duma, tirando conclusdes que o tempo justificou. E que ele possuia em grau incomum o sentido das realidades politicas, sua compreensio da “verdadeira” importancia dos acontecimentos, sua habilidade em desmistificar 0 meca- 67 nismo legislativo e os pretextos ideolégicos, a capacidade de discemnir o interesse das diversas classes sociais. Assim, ele vé as inconsisténcias da Constituigéo de 1906 enquanto instrumento da democracia; procura medir as relagdes de forga existentes entre as diversas classes e fragdes de classe que disputam a hegemonia, constatando a inviabilidade da manutengao a longo prazo do Governo Provi- sorio. Por outro lado, sua tese sobre a impossibilidade de vitéria do libera- © lismo na falta de uma classe de apoio parece confirmada. Em lugar de atribuir a fraqueza do liberalismo russo 4 relativa insignificancia da classe média — como era de habito na época —, Weber insiste sobre a profundidade do fosso que separa as duas forcas componentes do movimento liberal: a intelligentsia e a classe média. Prevé o conflito fatal que eclodiré no seio dos moderados e que contribuira em 1917, no momento decisivo, a definir a sorte da democracia russa. No entanto, nfo avalia com justeza o papel da intelligentsia revoluciondriae do proletariado industrial cuja agdo na Alemanha nao possuia a importancia que tinha na Russia. Weber amplia o nivel da andlise politica em extensio e profundidade, quando a analisa sob o angulo das questGes sociais. Beneficia-se das vantagens da anélise socialista, sem seus inconvenientes: a rigidez da doutrina. Contraria- mente a maioria dos liberais russos que privilegiam o lado juridico e formal das instituigdes politicas, Weber insiste na importancia de compreender estas instituigdes em conexdo com as classes sociais e a totalidade da vida econémica. A bem da verdade, Weber vé com clareza os dilemas do libera- lismo russo na medida em que estes séo uma reprodugao dos dilemas do liberalismo alemZo muito mais do que da realidade anglo-saxd. Os dois paises, Alemanha e Rissia, apresentam problemas de acumulagdo econémica sob um capitalismo retardatério. Porém os liberais russos estavam presos ao modelo anglo-saxdo do desenvolvimento liberal.5® Em Weber operam duas forgas contraditérias: de um lado, seu agudo senso das realidades politicas, sua preocupagao de vinculagdo do politico ao todo social, para discernir interesses e ideologias; de outro lado, seu naciona- lismo emocional, na época, turva a clareza de sua andlise. Seus textos sobre 0 processo politico russo de 1905 e 1917 podem ser criticados ¢ rejeitados.® Mas isso implica no compromisso intelectual de conhecé-los, NOTAS (1) Marianne Weber, Max Weber Ein Lebensbild, Tubingen, 1926, p. 342. (2) Max Weber, Gesammelte Politische Schriften, Munique, 1921, p. 26, citado doravante como GPS. (3) Karl Jaspers, Max Weber, Oldenbourg, 1932, p. 66. 68 . 4) (S) ©) mM (0) ay 2) 3) a4) qs) 6) ayn (18) as) Hilfe, Berlim, 9 de novembro de 1916. GPS., pp. 8-30. A. Mettler, Max Weber und die Philosophiesche Problematik in Unserer Zeit, Leipzig, 1934, p. 17. J.P. Mayer, Max Weber and German Politics, Londres, 1944, p. 44. GPS., p. 167. Idem, p. 29. Max Weber, Wirschaft und Gesselmschaft, Tubingen, 1947, p. 122, citado doravante como W & G. Idem, p. 143. GPS., p. 158. Conforme Bismarck: “Nao sou partiddrio de nenhuma forma, de governo absolu- tista. Considero a colaboragdo do Parlamento — bem praticada — como tao necesséria e Gtil, que ¢ impossfvel o exercicio do poder sem o Parlamento”. Discurso no Reichstag, pronunciado em 1844, citado por Max Klemm editor, Was sagt Bismarckt dazu? II, Berlim, 1924. Ver ainda Otto_von Bismarck, Gedanken und Erinnerungen, Nova lorque ~ Stuttgart, 1898, pp. 9-12. GPS., p. 140. Otto Kollreutter “Die staatspolitischen Anschauungen Max Webers und Oswald Spenglers” in Zeitschrift fur Politik, XIV (1925), pp. 482-483. GPS., pp. 149-50. Idem, p. 141. Max Weber, Der Sozialismus, Viena, 1918, p. 24. Reimpresso na Gesammelte Aufsatze zur Soziologie un Sozialpolitik Tubingen, 1924, pp. 492-518. Max Weber, “Zur Lage der burgerlichen Demokratie in Russland, Beilage, Artchiv fur Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, XX (1906), p. 347-8, doravante citado como Zur Lage. J.P. Mayer, Max Weber, p. 99. GPS., p. 391. Retoma a posigao de A. Leroy, Beaulieu: “A comuna nasceu e desenvolveu-se fora do dmbito da autocracia, nica instituigao auténtica, a Gnica tradigio viva do povo russo”. Zur Lage, p. 349. Idem, p. 244, Idem, p. 245. Idem, p. 346. Idem, p. 335. Idem, p. 280. Idem, p. 347. Idem, p. 281, n. Idem, pp. 347-348. ddem, p. 338,n. Idem, p. 353. ‘Max Weber — “Russlands Uebergang zum Scheinkonstitutionalismus”, in: Gesam- melte Politische Schriften, Ed. 3.C. B. Mohr, ‘Tubingen, 1958. Idem, p. 170. Max Weber, Wirtschfat und Gesselschfat, Tubingen, 1947, vol. I, p. 173. J. P. Mayer, Max Weber and German Politics, Londres, p. 47, 1944. A. Leroy — Beaulieu, L'Empire des Tsars et les Russes. Il, pp. 77-81; isso 6 teconhecido por Weber no W & G, vol. II, p. 672. ‘Scheinkonstitutionalismus, p. 228. Veja-se a alusio ao papel de Bismatck | na Alemantia, W & G, II volume, p. 672. idem, pp. 249-250. Max Weber, Zur Lage, p. 349. [ CEBRAP-PERIODICOS | (42) (43) (44) (45) (46) 47) (48) (49) (50) (51) (52) 3) (54) (5) (56) (7) (S8) 69) 70 Como o faz Mayer, op. cit., p. 26. “Deutschland unter den Europaischen Weltmachten” in Hilfe, Berlim, 9 de novembro de 1916. A data de 24 de junho citada por Marianne Weber é inexata: Max Weber Ein Lebensbild, Tubingen, 1926, p. 718. O texto foi reimpresso na Gesammelte politische Schriften, Ed. J. C. B. Mohr, Tubingen, 1958. GPS., p. 117. Weber visualiza antes a possibilidade de uma ditadura dos socialistas- revolucionarios do que social-democracia. Idem, p. 120. Idem, p. 124. “Innere Lage und Aussenpolitik in Frankfurter Zeitung”, 3 de fevereiro de 1918, publicado in GPS, sob o titulo “Der Sozialismus”. GPS., pp. 323-24. Der Sozialismus, pp. 9-30. Idem, p. 30. Idem, p. 31. Marianne Weber, Max Weber, p. 648. M. Weber ~ G. P. S., p. 201 Conforme as informag6es constantes in The End of the Russian Empire, de M. Florinsky, New Haven, Conn. 1931. Ver enunciado desta tese em Weber, W & G, volume-II, p. 670. Lénine, Oeuvres, 34 ed. vol. XXI, p. 452; in Carr: The Bolshevik Revolution, vol. 1, p. 243, Nova Iorque, 1951. As leis fundamentais de 1906 inspiram-se deliberadamente na Constituicao Prus- siana e na Constituiggo do Japao, consideradas pelos circulos dirigentes russos como protétipos constitucionais, sem a preponderancia do Parlamento. Ch. Seignobos e L. Eisenamann, Histoire de Russie, vol. 11 pp. 1123-24, Paris, 1933. A burguesia the agrada ridicularizar a insurreigo de Moscou qualificando-a de artificial. Por exemplo, na denominada literatura ‘cientifica’ alem4, 0 senhor professor Max Weber, no seu alentado estudo sobre o desenvolvimento politico da Rissia, classifica de putsch a insurreigo de Moscou. “O grupo leninista — escreve este senhor professor muito erudito — ¢ um setor dos socialistas revoluciondrios. 34 hd muito tempo que estavam preparando esta descabelada insurreigao.” Para avaliar corretamente esta obra da sabedoria académica da covarde burguesia, basta recordar a estatistica das greves. Nas greves puramente politicas de Janeiro de 1905, na Rassia, participaram somente 123.000 o ios; em outubro, 330.000; e em dezembro chegou ao méximo: 370.000 operdrios participaram em greves puramente politicas num sé més! Recordemos também os progressos da Revolugdo, as insurreigdes de camponeses e soldados e veremos que a opiniao “cientifica-burguesa” sobre a insurreigao de dezembro ndo somente é um absurdo mas um subterfGgio que utilizam os representantes da burguesia covarde que vém no proletariado o seu inimigo de classe mais perigoso”. V. I, Lenine, Obras Escogidas, Tomo Il, p. 505, Buenos Aires, Ed. Cartago, 1973.

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