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Debate: Raízes do Brasil

15 Aug 2016

Pedro Meira Monteiro

Em parceria com Lilia Moritz Schwarcz, Pedro Meira Monteiro organizou a edição
comemorativa dos oitenta anos de Raízes do Brasil, o clássico de Sérgio Buarque de
Holanda que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras em edição primorosa.

O sociólogo Jessé Souza concedeu uma entrevista ao caderno “Ilustríssima” da Folha de


S.Paulo (8/8/2016) com uma série de críticas ao livro e à atividade intelectual de Sérgio.

A seguir, Pedro Meira Monteiro, crítico literário e professor da Universidade de Princeton,


responde a Jessé Souza.
Raízes do Brasil: oitenta anos depois[1]

Pedro Meira Monteiro

Sabia-se que Raízes do Brasil tinha sido vigorosamente alterado por Sérgio
Buarque de Holanda desde que foi lançado em 1936, como primeiro volume da
coleção Documentos Brasileiros, da editora José Olympio, dirigida, àquela
altura, por ninguém menos que Gilberto Freyre.

A segunda edição, de 1948, recebeu a maior carga de alterações, e talvez a


mais polêmica, porque nela há uma guinada de fundo ideológico e teórico. Em
termos bastante esquemáticos, o texto é varrido de suas marcas de
desconfiança em relação a um pacto político liberal e representativo. O livro se
torna mais “democrático” no pós-guerra, e nós sabemos que essa é a feição
final que ele ganhou, o que seria reforçado pela leitura de Antonio Candido, já
nos anos sessenta.

A terceira edição é de 1956, e a alteração talvez mais significativa é a do


célebre parágrafo de abertura, onde se lê que “somos ainda hoje uns
desterrados em nossa própria terra” (um tópos que atravessa boa parte da
literatura brasileira, de Cláudio Manuel da Costa a Euclides da Cunha, pelo
menos). No novo parágrafo de abertura, o que antes era um sucesso de
aclimatação da cultura ibérica nos trópicos de repente se converte num
impasse profundo: as raízes não se fixam e há uma sensação de incontornável
errância. Isso reforça um dos principais eixos do livro, que é o artificialismo das
soluções políticas, ou aquilo que, inspirado pela personagem de Flaubert,
Sérgio Buarque chama de “bovarismo”.

Outro eixo importante que ganha forma ao longo das três primeiras edições –
ao longo de vinte anos, portanto – é a discussão da cordialidade, que vai sendo
mergulhada numa profunda ambivalência. Se por um lado o homem cordial –
como conceito ou metáfora – é responsável por aproximar os indivíduos e
reinstaurar o afeto no circuito da política, por outro lado as assimetrias se
mantêm e ele jamais se desgruda da dependência e dos interesses familiares
que se sobrepõem ao interesse público. Na correspondência que Sérgio
Buarque troca com Cassiano Ricardo desde a década de 1940, estava em
questão a leitura que o poeta e intelectual do Estado Novo havia feito do
homem cordial como aquele que teria desenvolvido uma “técnica da bondade”
durante a colonização. Ou seja, o encontro violento entre o colonizador e as
populações locais teria sido amaciado pela característica não violenta do
caráter brasileiro. Essa grande idealização, que no final da década de 1930
sagrava o pacto varguista, na década de 1950 significava a celebração de um
novo mito, do qual, no entanto, Sérgio Buarque queria se ver livre. A última
coisa que ele quer, na década de 1950, é parecer-se a Gilberto Freyre, que
pregava a maciez do colonizador por todo o mundo colonial português, na
aurora das guerras coloniais na África, em plena ditadura salazarista.

A isso se junta o fato de que Brasília era erguida no Planalto Central e um novo
mito se impunha: o do desenvolvimento social e econômico que viria com a
aceleração simbolizada nos cinquenta anos em cinco de JK. Naquele
momento, como que lendo o contexto político, Sérgio Buarque repensa a
discussão do “homem cordial” e faz um gesto extremo: ele o mata numa carta a
Cassiano Ricardo, sugerindo que a industrialização e a urbanização
martelariam o último prego no caixão daquele “pobre defunto”, que é como o
homem cordial é então chamado.

Avançando na linha do tempo, a quarta edição é de 1963, publicada pela


editora da Universidade de Brasília, recém-fundada por, entre outros, Anísio
Teixeira e Darcy Ribeiro. Se o homem cordial tinha sido assassinado por Sérgio
Buarque na década anterior, ele agora ressurgia como um fantasma, naquilo
que seria a época de glória do coronelismo, das Ligas Camponesas, da
questão agrária, berço também da reflexão sobre a dependência e aquilo que,
no jargão trotskista, seria identificado ao desenvolvimento desigual e
combinado do capitalismo periférico. Raízes do Brasil entrava então numa
coleção intitulada “Biblioteca Básica Brasileira”, engrossando a discussão sobre
formas de governo, que incidia sobre o fundo utópico dos projetos inclusivos de
João Goulart.

Veio então o golpe de 1964 e, em 1969, logo após o AI-5, é publicada,


novamente pela José Olympio, a quinta edição de Raízes do Brasil, que traz o
texto “definitivo”, isto é, aquele que se conhecia até hoje, tal qual estabelecido
pela última vez por Sérgio Buarque de Holanda. A principal e fundamental
adição a esse novo formato de Raízes do Brasil é o célebre prefácio escrito em
1967 por Antonio Candido, que ganharia um pequeno post scriptum em 1986, e
que situa o livro como um elemento central no front do ensaísmo clássico
brasileiro, formando entre Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, e
Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr.

No prefácio, selava-se a ideia de um “clássico de nascença”, reforçada pelo


tom memorialístico com que Antonio Candido recorda a importância da leitura
de Raízes do Brasil no momento em que os de sua geração cursavam o
equivalente ao ensino médio de hoje. O prefácio é ainda um elo numa longa
cadeia interpretativa na qual Candido procura encerrar aquilo que, a partir da
década de 1980, ele identificará a um pensamento “radical” brasileiro, que tem
como expoentes autores como Joaquim Nabuco e André Rebouças, capazes,
dentro de limitações de classe e contexto, de desferir uma crítica à
permanência macabra do espírito oligárquico entre nós.

Como Lilia Schwarcz e eu desenvolvemos em nossa Introdução à edição crítica


de Raízes do Brasil, ao revisitar a história da composição do livro fica clara a
ansiedade de Sérgio Buarque diante de um texto de juventude, que em sua
primeira edição continha ainda forte dose de desconfiança em relação às
grandes teses liberais. O fato de que o autor recusasse vigorosamente a
solução autoritária, e que desconfiasse do caudillismo da política latino-
americana, não o levava, no entanto, a abraçar uma postura liberal. Mas depois
da Segunda Guerra Mundial as coisas tinham mudado, e qualquer suspeita em
relação ao pacto liberal seria colocada, ela mesma, sob suspeita. Além disso, a
solução “radical” e a interpretação democratizante do livro, que seria feita por
Antonio Candido na década de 1960, respondia também, em certo sentido, à
desgraça em que tinham caído os ensaios de interpretação nacional no
contexto engajado da esquerda universitária, sobretudo na Universidade de
São Paulo, onde Sérgio Buarque era o grande catedrático e o grande
historiador desde o final dos anos cinquenta, mas ao mesmo tempo era visto
com desconfiança por intelectuais que identificavam, em Raízes do Brasil, uma
construção “ideológica” do “caráter nacional”.[2]

O que havia na primeira edição, e que aliás era muito comum no período
entreguerras entre autores tanto à direita quanto à esquerda, era um flerte com
uma noção mais orgânica do Estado, que se explicita no último capítulo de
Raízes do Brasil. E não é preciso muita imaginação para entender o que podia
significar a defesa de um Estado orgânico, sem fissuras, imediatamente após a
experiência dos totalitarismos na Europa e no mundo todo.

Uma pergunta que atravessa Raízes do Brasil é o papel do Estado. Ele é uma
transcendência, como queria Hegel? Ou é um complemento e uma continuação
da família, como queria o pensamento conservador? E como conceber a
cadeia de representação política num mundo no qual o sujeito político é o
amigo, o chapa, o protegido? De que lealdade se fala, quando se fala em
política em Raízes do Brasil? Lealdade ao “povo”?
É possível ainda perceber Raízes do Brasil como um comentário oblíquo do
populismo nascente. O líder carismático é o caudilho esclarecido, ou é um dos
nossos? A quem é dado sentir a pulsação do corpo social?

São perguntas que não encontram resposta. No centro do redemoinho está a


crise do liberalismo no período entreguerras. Sérgio Buarque teve a ideia de
escrever um livro desse porte durante os anos que passou em Berlim (1929-
1930), no final da República de Weimar, no momento em que o partido
nacional-socialista começava a se fortalecer pelo voto. Era o início do
experimento monstruoso do nazismo, quando a ideia de uma alma coletiva
começava a ganhar espessura e iniciava a fundação de sua própria mitologia: a
águia, a suástica, o arianismo. Enquanto isso, no Brasil, o carnaval, o futebol –
e a cordialidade, talvez – formavam o esteio de um pacto simbólico que se
queria inclusivo, mas que também resistiria aos princípios liberais, opondo-se à
institucionalidade democrática.

E o que Raízes do Brasil nos diz, hoje? Talvez a sua longevidade tenha a ver
com o fato de que, no plano da forma, ele não oferece respostas; ao contrário,
mantém-se a partir de ambivalências e paradoxos muito impressionantes.

Ao contrário do que sugere Jessé Souza, em hipótese tão brilhante quanto


equivocada, em Raízes do Brasil não há uma aposta no poder regenerador do
mercado, nem tampouco sua crítica à corrupção se limita ao Estado.[3] O ponto
nevrálgico, em Raízes do Brasil, é justamente a permanência da oligarquia na
República, ou seja, o fato de que as mazelas da sociedade escravista se
perpetuam. Aliás, há escravismo por toda a obra de Sérgio Buarque de
Holanda...

Reitero que não há em Raízes do Brasil um elogio acrítico à modernização,


como se de um lado houvesse o atraso da cordialidade e, de outro, o arranque
modernizador que nos faltaria. Há, isto sim, uma pergunta lancinante sobre o
pacto político, sobre as relações entre o sujeito e a Ordem, entre a Lei geral e o
desejo do cidadão. Mas não o cidadão abstrato, idealizado, portador de
vontades inequívocas. Trata-se também de uma pergunta sobre as pulsões da
política, sobre o desejo e os direitos da maioria, sobre a acumulação do capital
num mercado que se mundializava, e, finalmente, sobre a crise da
representação política em momentos críticos.

Um livro atual, portanto, justamente porque a oligarquia é a grande fênix da


nossa tragédia coletiva, o monstro que se reergue de novo a cada tropeço. E
isso se dava, há oitenta anos, assim como hoje, em meio aos espamos entre
democracia e estado de exceção, entre a institucionalidade e uma outra coisa
que ainda não sabemos nomear, mas que está aí, na nossa cara.

[1] São Paulo, Teatro Eva Herz, 8 de agosto de 2016. Lançamento da edição crítica de Raízes
do Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2016, org. Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz
Schwarcz; estabelecimento de texto Mauricio Acuña e Marcelo Diego).

[2] Convido à leitura de meu Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a interpretação do
Brasil. São Paulo: Hucitec/e-galáxia, 2015. (Baixe o e-book aqui: )

[3] Ver Souza, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela
elite. São Paulo: LeYa, 2015.

RAÍZES DO BRASIL - Edição crítica - 80 anos [1936-2016]

Sérgio Buarque de Holanda

Organização: Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro

Páginas: 544

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