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15 Aug 2016
Em parceria com Lilia Moritz Schwarcz, Pedro Meira Monteiro organizou a edição
comemorativa dos oitenta anos de Raízes do Brasil, o clássico de Sérgio Buarque de
Holanda que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras em edição primorosa.
Sabia-se que Raízes do Brasil tinha sido vigorosamente alterado por Sérgio
Buarque de Holanda desde que foi lançado em 1936, como primeiro volume da
coleção Documentos Brasileiros, da editora José Olympio, dirigida, àquela
altura, por ninguém menos que Gilberto Freyre.
Outro eixo importante que ganha forma ao longo das três primeiras edições –
ao longo de vinte anos, portanto – é a discussão da cordialidade, que vai sendo
mergulhada numa profunda ambivalência. Se por um lado o homem cordial –
como conceito ou metáfora – é responsável por aproximar os indivíduos e
reinstaurar o afeto no circuito da política, por outro lado as assimetrias se
mantêm e ele jamais se desgruda da dependência e dos interesses familiares
que se sobrepõem ao interesse público. Na correspondência que Sérgio
Buarque troca com Cassiano Ricardo desde a década de 1940, estava em
questão a leitura que o poeta e intelectual do Estado Novo havia feito do
homem cordial como aquele que teria desenvolvido uma “técnica da bondade”
durante a colonização. Ou seja, o encontro violento entre o colonizador e as
populações locais teria sido amaciado pela característica não violenta do
caráter brasileiro. Essa grande idealização, que no final da década de 1930
sagrava o pacto varguista, na década de 1950 significava a celebração de um
novo mito, do qual, no entanto, Sérgio Buarque queria se ver livre. A última
coisa que ele quer, na década de 1950, é parecer-se a Gilberto Freyre, que
pregava a maciez do colonizador por todo o mundo colonial português, na
aurora das guerras coloniais na África, em plena ditadura salazarista.
A isso se junta o fato de que Brasília era erguida no Planalto Central e um novo
mito se impunha: o do desenvolvimento social e econômico que viria com a
aceleração simbolizada nos cinquenta anos em cinco de JK. Naquele
momento, como que lendo o contexto político, Sérgio Buarque repensa a
discussão do “homem cordial” e faz um gesto extremo: ele o mata numa carta a
Cassiano Ricardo, sugerindo que a industrialização e a urbanização
martelariam o último prego no caixão daquele “pobre defunto”, que é como o
homem cordial é então chamado.
O que havia na primeira edição, e que aliás era muito comum no período
entreguerras entre autores tanto à direita quanto à esquerda, era um flerte com
uma noção mais orgânica do Estado, que se explicita no último capítulo de
Raízes do Brasil. E não é preciso muita imaginação para entender o que podia
significar a defesa de um Estado orgânico, sem fissuras, imediatamente após a
experiência dos totalitarismos na Europa e no mundo todo.
Uma pergunta que atravessa Raízes do Brasil é o papel do Estado. Ele é uma
transcendência, como queria Hegel? Ou é um complemento e uma continuação
da família, como queria o pensamento conservador? E como conceber a
cadeia de representação política num mundo no qual o sujeito político é o
amigo, o chapa, o protegido? De que lealdade se fala, quando se fala em
política em Raízes do Brasil? Lealdade ao “povo”?
É possível ainda perceber Raízes do Brasil como um comentário oblíquo do
populismo nascente. O líder carismático é o caudilho esclarecido, ou é um dos
nossos? A quem é dado sentir a pulsação do corpo social?
E o que Raízes do Brasil nos diz, hoje? Talvez a sua longevidade tenha a ver
com o fato de que, no plano da forma, ele não oferece respostas; ao contrário,
mantém-se a partir de ambivalências e paradoxos muito impressionantes.
[1] São Paulo, Teatro Eva Herz, 8 de agosto de 2016. Lançamento da edição crítica de Raízes
do Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2016, org. Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz
Schwarcz; estabelecimento de texto Mauricio Acuña e Marcelo Diego).
[2] Convido à leitura de meu Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a interpretação do
Brasil. São Paulo: Hucitec/e-galáxia, 2015. (Baixe o e-book aqui: )
[3] Ver Souza, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela
elite. São Paulo: LeYa, 2015.
Páginas: 544