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Cultura digital: Repercussões da

ubiquidade no cotidiano docente


3 jan

Publicado por Rafael Cunha

A incorporação de tecnologias digitais e móveis repercute de diferentes maneiras


entre os trabalhadores. A erosão de fronteiras de tempos e espaços provocada pela
cultura da mobilidade na cultura digital e pela condição ubíqua na qual se
desenvolve o trabalho em alguns segmentos são as marcas do tempo presente
quando se analisa o trabalho com o uso de tecnologias digitais. Atributos da
ubiquidade, como simultaneidade e onipresença, ganham novos contornos, dadas
as condições de trabalho, cada vez mais intensificado e extensificado, como é o
trabalho docente contemporâneo.

Por Rafael Cunha*

A emergência da cultura digital repercute de diferentes maneiras e insere novos


ingredientes no debate sobre o trabalho, especialmente nos segmentos dos mundos do
trabalho em que o uso de tecnologias são cada vez mais exigidos. Parece claro, todavia,
que essas mudanças não são uma exclusividade da cultura digital ou das tecnologias
digitais. Nos estudos sobre trabalho, em especial os de abordagem psicológica sobre as
condições ergonômicas, não são poucos os exemplos de como a inserção de diferentes
técnicas ou tecnologias nos processos de trabalho interferem no cotidiano do
trabalhador e na própria execução das tarefas. Ao menos desde a década de 1970, os
estudos como os de Jacques Leplat e Xavier Cuny [1] demonstram as alterações
decorrentes da inserção de tecnologias nas rotinas de trabalho e, em muitos casos, nas
condições de saúde dos trabalhadores.

Mas é preciso voltar um pouco no tempo para compreender melhor a relação entre as
tecnologias e o trabalho, principalmente com o advento da Modernidade e da
racionalidade científica, pautada no desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Os
movimentos das “grandes invenções” e das “grandes navegações” desde o fim do
período medieval colocavam novos ingredientes na relação da humanidade com a
natureza. Francis Bacon, por exemplo, na virada do século XVI para o século XVII,
colocava no desenvolvimento da ciência e da tecnologia as condições para um futuro
melhor, em que a racionalidade seria utilizada para a liberação das pessoas dos trabalhos
pesados e proporcionaria aos seres humanos uma vida melhor.

Em sua obra de ficção inacabada, a New Atlantis, Bacon vislumbrava uma sociedade
utópica, perfeita, em que os produtos da racionalidade científica eram compartilhados
com toda a sociedade. A tecnologia serviria, portanto, para o desenvolvimento de
sociedades mais avançadas, e não como mecanismo de exploração de homens por
outros homens. É bem verdade que não foi isso o que se viu com o advento da
Revolução Industrial e com a inserção de maquinarias pesadas nos processos
produtivos, com o incremento da produção e da produtividade em menor tempo: embora
o emprego de toda a maquinaria sinalizasse para a liberação do trabalho degradante,
esse movimento foi acompanhado por uma condição miserável dos trabalhadores da
época, com jornadas exaustivas e prolongadas de trabalho, controle de tempos, espaços
e ritmos de produção.

Começava a ficar claro que, diferente do que Bacon e outros pensadores do início da
Modernidade previam, não bastava o desenvolvimento da ciência e da tecnologia para
liberar a humanidade das condições extenuantes de trabalho: o fator econômico era
determinante. Parte dessa crítica é encontrada na tradição marxista na análise sobre o
trabalho e sobre o desenvolvimento das forças produtivas: com novas tecnologias, o
“trabalho vivo” (aquele realizado diretamente por pessoas) tenderia a diminuir se
comparado com o “trabalho morto” (o trabalho realizado por máquinas). O utópico
“reino da liberdade”, oriundo dessa tradição, grosseiramente falando coincidia com a
liberação dos trabalhadores de jornadas exaustivas e prolongadas e, portanto, com mais
tempo para o seu desenvolvimento omnilateral, com mais tempo para o
desenvolvimento de todas as dimensões do espírito humano, sem ter seu tempo
absorvido inteiramente pelo trabalho explorado para a geração de valor para apenas uma
pequena parcela da população.

De fato, a automação, a robótica e a “digitalização” tornaram obsoletas algumas


ocupações e melhoraram as condições de trabalho de muitos segmentos. Todavia, se
compararmos as condições técnicas existentes atualmente e as condições precárias de
trabalho (e, pior, o grande número de pessoas excluídas do mundo do trabalho) que
persistem, fica evidente que não se pode buscar nas tecnologias as condições mais
profícuas ou mais precárias de trabalho, mas sim no modo de produção capitalista e seu
movimento incessante de aumento da produção e da geração de mais valor que, por
meio das forças produtivas, consubstancia ritmos mais intensos de trabalho, controle de
movimentos, tempos e espaços [2], cuja representação clássica é retratada, no cinema,
por Charles Chaplin no clássico “Tempos Modernos” (1936). Esse fenômeno é
redimensionado com a emergência e incorporação das tecnologias digitais nos processos
produtivos, em que o seu uso se converte em pilares da globalização da economia por
possibilitar o contorno de obstáculos espaço-temporais.
Mobilidade e ubiquidade

A incorporação de tecnologias digitais e móveis no cotidiano incide, diretamente, no


redimensionamento de tempos e espaços e nos sentidos de ausência e presença, espaço e
lugar. O advento da cultura digital potencializa os lugares físicos tradicionais, que se
tornam multidimensionais, inseparáveis do que Santaella [3] chama de hipermobilidade:
a mobilidade física acrescida de aparatos tecnológicos que permitem uma segunda
mobilidade no ciberespaço. Por sua vez, espaços multidimensionais e hipermobilidade
estão na base do conceito de ubiquidade e levam a um controverso processo de
presença-ausência, de público-privado. Na perspectiva de Santaella, a ubiquidade
tornou-se possível pela emergência de um outro espaço que não o físico: o ciberespaço.
Nessa ambiência, o ser humano adquire o “poder de estar em mais de um lugar ao
mesmo tempo […], onipresente”. Embora a autora reconheça os riscos das
consequências socioculturais e psíquicas, trata-se, segundo ela, de uma “recém-
adquirida condição do ser humano em ser ubíquo, […] que concede a ele o atributo da
ubiquidade, algo que, antes, lhe parecia impossível”.

A condição ubíqua, dentre outros, em função da possibilidade de mover-se por


diferentes espaços simultaneamente, propicia que independentemente do lugar físico em
que se esteja, o indivíduo esteja sempre presente e sempre ao alcance, seja de outras
pessoas, seja do próprio trabalho, via tecnologias digitais e móveis. Por sua vez, a
condição ubíqua do indivíduo leva ao borramento de fronteiras entre público e privado,
presença e ausência, como aparece nos escritos de Lucia Santaella, provavelmente a
maior especialista em ubiquidade na cultura digital da literatura brasileira. O fenômeno
da ubiquidade, típico da cultura digital, é uma questão interdisciplinar, pois envolve
duas dimensões que afetam todas as atividades humanas: tempo e espaço. Repercute,
por conseguinte, de diferentes maneiras no cotidiano em geral, no trabalho e na
educação, mais especificamente.

Foi a partir deste panorama e considerando a preponderância do binômio espaço-tempo


nos estudos clássicos sobre as condições de trabalho intensificado que um estudo
analisou quais as repercussões da ubiquidade para o cotidiano de vida e trabalho de
professores, a partir dos significados e sentidos que atribuem à incorporação e usos de
tecnologias nos contextos de trabalho [4]. A pesquisa envolveu professores de cursos de
pós-graduação stricto sensu de todas as regiões brasileiras.

Os atributos da ubiquidade na cultura digital mantêm relações tanto no que se refere ao


sistema de produção vigente quanto à lógica de produzir e trabalhar incorporada ao
trabalho docente, que desencadeia as práticas do produtivismo, em um “capitalismo
acadêmico”. Em paralelo, os atributos da ubiquidade que permitem uma condição de
onipresença do indivíduo, capaz de mover-se simultaneamente por vários espaços [5],
traduz-se como ampliação de espaços e reconfiguração dos sentidos de lugar, ausência e
presença: conectados, os indivíduos passam a ser multitarefas e estão ‘sempre
presentes’, sempre ao alcance, no âmbito de uma erosão de fronteiras propiciada pela
cultura digital.

Alterações no trabalho com o uso de tecnologias, em função do redimensionamento


de tempos e espaços

Os atributos da ubiquidade na cultura digital repercutem de maneira difusa e diversa no


trabalho docente. Há um consenso (cerca de 95% dos pesquisados) entre os professores
de que o aspecto que mais se alterou em seu trabalho com o uso das tecnologias foi o
redimensionamento do espaço e do tempo. Para 91% dos professores, houve uma
dilatação dos espaços de trabalho, mas há controvérsias entre eles sobre as vantagens
e/ou desvantagens dessa dilatação com o uso das tecnologias no trabalho docente: em
alguns depoimentos, fica evidente que a mobilidade facilita o acesso a materiais de
pesquisa e trabalho, dispensa, em alguns casos, deslocamentos físicos, e facilita o
contato com orientandos, que passam a estar ao alcance, independentemente da
distância física. Por outro lado, inúmeros depoimentos sobre as alterações no trabalho
docente com a incorporação de tecnologias digitais apontam para repercussões
desvantajosas para a vida e trabalho do professor.

Em função das condições de trabalho, a maioria dos professores acaba extrapolando a


carga horária contratual e sempre ou frequentemente levam trabalho para casa. Mediado
por tecnologias digitais e móveis, o trabalho invade espaços e tempos de lazer para 81%
dos pesquisados. Além disso, 69% dos professores afirma que os espaços sociais de uso
das tecnologias (por exemplo, uso de redes sociais para fins de lazer) convertem-se em
espaços de trabalho. Mais do que isso: 73% dos professores costuma dedicar seu tempo
de descanso e lazer para acessar e-mails e resolver demandas de trabalho, valendo-se da
possibilidade tecnológica de estar ‘próximo’ do seu trabalho, via tecnologias digitais.

Entre os pesquisados, fica evidente que ‘estar sempre presente e ao alcance’, em função
do fenômeno da ubiquidade e das condições de trabalho na pós-graduação, significa
estar sempre disponível também para o trabalho. Nesta ambiência, para a maioria dos
pesquisados, uma das repercussões do caráter ubíquo do trabalho docente na pós-
graduação é a de que todos os tempos e espaços convertem-se em espaços e tempos de
trabalho, seja em função do atropelamento informacional, seja pelas facilidades dos
gestores ou órgãos reguladores demandarem tarefas: basta uma mensagem via
dispositivos digitais e móveis para acionar os professores, a qualquer momento. Em
sentido semelhante, de acordo com os relatos dos pesquisados, as facilidades
comunicacionais instauradas pela cultura digital proporcionam a instauração de uma
cultura de total disponibilidade do orientador aos alunos e/ou orientandos. Nesse
sentido, a ubiquidade do trabalho faz com que alguns professores considerem que não
há mais fronteiras entre tempos de lazer e de trabalho: o professor de pós-graduação
tornou-se “atemporal” (sic).

Simultaneidade: ser multitarefa e onipresente com as tecnologias

Outra característica da ubiquidade, típica da cultura digital, é a potencialização do


fenômeno da simultaneidade. Com o redimensionamento dos deslocamentos por
espaços on-line e off-line é possível ao indivíduo desempenhar atividades diversas ao
mesmo tempo: um dos aspectos mais destacados pelos participantes da pesquisa é a
simultaneidade da realização de tarefas com o uso de tecnologias, prática habitual para
84% dos pesquisados. Mas, se por um lado, a simultaneidade de realização de tarefas
pode levar a uma economia de tempo em muitos processos, para além dessa vantagem
aparente, entre os depoimentos dos docentes há inúmeras manifestações sobre as
repercussões dessa condição de ser multitarefa.

A capacidade de ser multitarefa é um dos atributos elogiados e desejáveis que emergem


dos discursos no âmbito da cultura digital. É o que distingue, inclusive, os chamados
“nativos digitais” [6]. Ser multitarefa, no entanto, também está relacionado a ser mais
produtivo e eficiente realizando um certo número de tarefas ao mesmo tempo, por um
determinado período. Por sua vez, ser multitarefa não traz nenhuma vantagem para o
indivíduo, uma vez que modifica a economia da atenção, que se fragmenta e, no final, é
destruída, como demonstra o filósofo alemão de origem coreana Byung-Chul Han em
sua obra Sociedade co cansaço (2015). Além disso, estar sempre presente ou ser
constantemente interrompido em suas atividades por meio de dispositivos digitais e
móveis repercute na atenção parcial contínua, processo de “prestar atenção parcial
continuamente, por causa de um desejo […] de conectar e ser conectado, de não perder
nada, sempre em alto estado de alerta” (SANTAELLA, 2007, p. 239), que, como
consequência, pode desencadear um paradoxal sentimento de vazio e a perda da
capacidade de diferenciar situações que exijam alta e baixa densidade de atenção.

Han [7], referindo-se à falta de atenção profunda que o modo de vida contemporâneo
fomenta, enfatiza que os desempenhos culturais da humanidade pressupõem uma
ambiência em que seja possível uma atenção profunda. No entanto, a ubiquidade
desloca a atenção profunda para uma atenção dispersa, caracterizada pela rápida
mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos – algo que
William Powers, sem a pretensão de ser científico, já havia anunciado em seu livro O
BlackBerry de Hamlet: ultraconectadas, as pessoas estão fazendo várias coisas ao
mesmo tempo, mas sem profundidade; sem tempo para a contemplação e reflexão que
só o afastamento da ágora permite [8]. Nesse sentido, em conjunto com as condições de
trabalho na pós-graduação, a ubiquidade instaura um obstáculo ao próprio trabalho
intelectual dos professores, de modo paradoxal: ao mesmo tempo em que expande as
possibilidades de trânsito em espaços distintos e simultaneamente – o que contribui, em
termos de tempo, para o aumento da produtividade – desencadeia os controversos
processos multitarefa e de atenção parcial contínua. Estes processos minam o estado de
atenção profunda e contemplativa e de ócio, condição para os processos criativos que
fazem parte da atividade intelectual e que repercutem na própria questão da
produtividade.

Para a maioria dos pesquisados, a possibilidade de ser multitarefa não representa um


aspecto necessariamente positivo da ubiquidade, pois prejudica a realização de outras
atividades (para 80,1% dos pesquisados) e os momentos de lazer. De modo também
expressivo, 77,1% dos professores avaliam que o uso das tecnologias digitais na pós-
graduação favorece interrupções nos processos de trabalho, como, por exemplo, pausar
a atividade para checar e-mails, acessar redes sociais e links não necessariamente
ligados ao trabalho do momento, entre outros aspectos. Assim como ocorre com a
distração durante as aulas, esse não é um fenômeno novo. O que as práticas sob a
cultura digital instauraram foi o seu redimensionamento e ressignificação por meio da
“magia das telas” a que se refere William Powers, em que a hipertextualidade e a
hipermidialidade (ou seja, zapear de um link a outro indefinidamente) potencializam
uma maior distração em períodos de tempo maior. Acrescenta-se a esse quadro o fato de
que as tecnologias digitais contemporâneas, na emergência da web 3.0, adquirem cada
vez mais características de invisibilidade, à medida que são plenamente incorporadas no
cotidiano – o que pode resultar que nem as tecnologias, nem os seus usos, sejam
facilmente percebidos pelos usuários, intensificando os momentos de interrupção de
uma atividade em detrimento de outras.

Por fim, a potencialidade de estar presente em diferentes espaços ao mesmo tempo – o


caráter de onipresença, que aparece como condição recém adquirida pela humanidade
em função da ubiquidade – não representa, para a maioria dos professores pesquisados,
vantagens ao trabalho docente na pós-graduação: para 74% deles, estar disponível via
tecnologias digitais e móveis prejudica os momentos de lazer, visto que a qualquer
momento podem surgir demandas de trabalho. Por sua vez, esse panorama parece ser
uma realidade emergente no contexto do trabalho docente da pós-graduação, visto que
70% dos pesquisados ‘não desliga’ do trabalho em função dos usos das tecnologias,
mesmo em momentos de lazer.

O futuro do trabalho: o trabalho ubíquo

Os atributos da ubiquidade, geralmente vistos sob aspectos positivos na literatura, como


nas obras de Lucia Santaella e Mark Prensky, ganham novos contornos sob as condições
do trabalho docente. Se a condição ubíqua permite mover-se por diferentes espaços
simultaneamente, o lugar converte-se em transitório e o indivíduo passa a estar sempre
presente, mesmo que esteja ausente. Mas, na lógica das condições de trabalho, a
onipresença promovida pela comunicação ubíqua não tem nada de divina: ao contrário,
inscreve-se nas condições humanas no limiar das características precárias de trabalho
docente, pois significa que o indivíduo está onipresente para o trabalho, assim como o
trabalho está onipresente para o indivíduo [lembramos a frase que Marx teceu, de que o
homem que não dispõe de tempo livre e cujo tempo está todo absorvido pelo trabalho é
menos que uma besta de carga].

Paradoxal e eventualmente, essa onipresença garante uma maior produtividade – o que


pode ser visto como vantajoso em alguns casos. Mas a ampliação de tempos de trabalho
e sua intensificação são as marcas que mais se evidenciam sob este aspecto, de acordo
com os depoimentos dos professores da pesquisa, à medida que a aparente
engenhosidade de ser multitarefa e mais produtivo se metamorfoseia em expropriação
em massa de tempo e práxis [9] e à medida que “o excesso de trabalho e desempenho
agudiza-se numa autoexploração […] mais eficiente do que uma exploração pelo outro,
pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade” (HAN, 2015, p. 30).
Sem perder de vista às incontestáveis vantagens que os usos das tecnologias trazem para
o tipo de trabalho realizado no âmbito da educação em suas diferentes modalidades e
seus diferentes níveis, as repercussões da ubiquidade — não por elas mesmas, mas pela
lógica de produtividade instaurada no trabalho docente — apontam para ambivalências
e contradições.

No tocante aos significados e sentidos atribuídos pelos professores às alterações no seu


trabalho docente com o uso de tecnologias digitais e móveis em função de tempos e
espaços de trabalho, podemos evidenciar as vantagens de usos das tecnologias para a
realização de algumas atividades que dispensam deslocamentos físicos e encontros
presenciais. Mas, de modo mais contundente, o modo como os professores percebem
essas alterações vão no sentido de que houve uma intensificação do tempo e uma
ampliação de espaços de trabalho que, conjugadas, invadem tempos e locais de
descanso, lazer, finais de semana, férias ou mesmo períodos de convalescência.

Em sentido semelhante, as relações entre as condições de trabalho e o


redimensionamento de tempos e espaços de trabalho significa, para a maioria dos
professores, diminuição do tempo livre e espaços, on-line e off-line, convertidos em
espaços de trabalho. Por sua vez, as características do trabalho docente em função da
ubiquidade que permeia o processo e em função do borramento de fronteiras (entre
lugares e tempos, ausência e presença, público e privado) é representado de diferentes
maneiras nos depoimentos dos professores. Estar sempre presente e ao alcance significa
estar sempre disponível para demandas de trabalho. A dilatação de espaços significa
extensificação de espaços de trabalho. Simultaneidade resulta na intensificação do
trabalho, incluindo a invasão de tempos de lazer. Em alguns casos, desligar do trabalho
significa desligar das tecnologias. A ubiquidade também resulta na condição de ser
multitarefa, indicativo de mal-estar. E a onipresença propiciada no âmbito da
ubiquidade pode significar “o fim do descanso” (sic), no limite da degradação do
trabalhador.

A despeito das inúmeras potencialidades e indagações que a vida ubíqua suscita, não
podemos perder de vista que esse modo de vida on-line também é alcançado pelas
relações de produção do modo capitalista, que coloniza o tempo livre com obrigações
em rede e que amplia os espaços de produção, ao passo que estende os tempos de
produção.

Os depoimentos da pesquisa permitem evidenciar que o trabalho se torna ubíquo à


medida que exige deslocamentos do off-line para o on-line de modo incessante. Nesse
sentido, o próprio professor torna-se ubíquo, pela característica da sua atividade e
também em função de estar imbricado em uma cultura cada vez mais digitalizada. Ser
ubíquo e estar sempre presente em diferentes espaços também significa, no modo de
produção vigente, estar conectado para produzir ou consumir durante todo o tempo.

A expressão “trabalho full time” com o uso de tecnologias digitais, que encontramos na
pesquisa, pode não ser (ainda) uma generalidade, mas não podemos negar que as
tecnologias mais importantes criadas nos últimos dois séculos foram aquelas para
administração e controle dos trabalhadores 24 horas por dia, sete dias por semana,
conforme Jonh Crary situa: a tessitura 24/7 “anuncia um tempo sem tempo, […] sem
demarcação material ou identificável […]”. Implacavelmente redutor, celebra a
alucinação da presença, de uma permanência inalterável, composta de alterações
incessantes e automáticas. “[…] o caráter inexorável do 24/7 repousa em sua
temporalidade impossível”. O trabalho ubíquo é apenas uma dimensão desse processo.
E pode significar o futuro do trabalho.

Notas

[1] Ver, em especial, os trabalhos de Leplat e Cuny. LEPLAT, Jacques; CUNY, Xavier. Introdução à Psicologia do Trabalho. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
[2] ENGUITA, M. F. Tecnologia e sociedade: a ideologia da racionalidade técnica, a organização do trabalho e a educação. In:
SILVA, T. T. (Org.). Trabalho, educação e prática social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. p.
230-253.
[3] SANTAELLA, L. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013.
[4] O estudo foi concluído em 2016 como parte de minha pesquisa de doutorado sobre uso de tecnologias no trabalho em educação.
[5] SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.
[6] Esse tema é recorrente nas obras de Mark Prensky, que formulou os conceitos de “nativos digitais” e “imigrantes digitais”, e que
também ‘desenhou’ as características comuns dos nativos digitais, dentre as quais, as vantagens de ser multitarefa e executar mais
rapidamente algumas tarefas. Essas temáticas aparecem nas seguintes obras de Prensky: Digital natives, digital immigrants. MCB
University Press. Vol. 9, n. 5, 2001. “Não me atrapalhe, mãe! – eu estou aprendendo”. São Paulo: Phorte Editora, 2010.
[7] HAN, B. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
[8] POWERS, W. O BlackBerry de Hamlet. São Paulo: Alaúde, 2012.
[9] CRARY, J. 24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

*Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador na área de educação, cultura digital, trabalho e
tecnologias.

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