FICHAMENTO DA LEITURA DE “O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA” (1872)
Angelo Ardonde (164239)
Prefácio: “tentativa de autocrítica” (1886) Mais maduro — “com um olhar mais velho, cem vezes mais exigente, porém de maneira alguma mais frio” — Nietzsche reavalia seu primeiro livro como “uma obra de juventude cheia de coragem juvenil e de melancolia juvenil”. Sua autocrítica é dura: dezesseis anos depois, ele considera sua primeira obra “desagradável, estranha, mal escrita, pesada, penosa, frenética e confusa nas imagens, sentimental, muito convencida (...)”; mas que, apesar de tudo, mesmo “acometida de todos os problemas da mocidade”, foi capaz de satisfazer “os melhores de seu tempo” (p. 13). Nessa autocrítica, Nietzsche também explicita seu rompimento com Kant, Schopenhauer e também com Wagner: com aqueles por conduzirem à resignação, muito diversamente daquilo que Dionísio falava à Nietzsche, e com Wagner uma vez que “a atual música alemã é romantismo de ponta a ponta, a menos grega de todas as formas possíveis de arte” (p. 19). Perguntas feitas por Nietzsche para guiar a leitura da obra: “o que é o dionisíaco?” (p. 14), “que significado tem aquela loucura de onde brotou a arte trágica assim como a cômica, a loucura dionisíaca?” (p. 15). Em seu discurso há uma supervalorização dos gregos: “a mais bem-sucedida, a mais bela, a mais invejada espécie de gente até agora, a que mais seduziu para o viver, os gregos tiveram necessidade da tragédia e, mais ainda, da arte? (p. 11) Uma proposição que o livro retoma frequentemente: “que a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético” (p. 16). Nietzsche coloca como contraposto diametral dessa perspectiva o cristianismo, pois vê na doutrina cristã uma “vontade incondicional de deixar valer somente valores morais”, a qual alimenta no rebanho de fiéis a crença de que “a vida, opressa sob o peso do desdém e do eterno não, tem que ser sentida afinal como indigna de ser desejada, como não válida em si” (p. 17). Nietzsche diagnostica no cristianismo, como uma doença, um niilismo negativo “hostil, rancoroso e avesso à própria vida”. Com um posicionamento anticristão engajado, Nietzsche valoriza na arte e na concepção estética do mundo uma forma de, na contramão da moral cristã, afirmar incondicionalmente a vida. O nascimento da tragédia. Nietzsche propõe dois modelos de compreensão da cultura grega que fundamentam a argumentação ao longo de todo o texto: o apolíneo — da arte figuradora, responsável pelas formas, pelo onírico como criação de imagens, pela manutenção do kósmos; Apolo é solar, manifesta-se na luz que configura a aparência do mundo (p. 26) — e o dionisíaco — da arte não figurada tal qual a música, responsável pela ruptura das formas, pelos afetos disruptivos, pela embriaguez e pelo encantamento (p. 57). O contínuo desenvolvimento da arte se dá no interior de “lutas incessantes e periódicas reconciliações” entre estes dois impulsos, e foi do emparelhamento da arte apolínea com a dionisíaca, “reforçando-se mutuamente” (p. 39), que a tragédia veio ao mundo (p. 24). Foi refundando as bases da cultura grega em termos dessa dualidade apolíneo-dionisíaca que Nietzsche redescobriu uma Grécia pré-socrática poderosa pela tragédia, pela música e por uma certa concepção estética da vida. Ao fazer isto, Nietzsche redescobre uma Grécia que servirá de base para a formação cultural de recém nascida Alemanha enquanto Estado unificado: “os poderes que me parecem garantir um renascimento da tragédia — e algumas outras bem-aventuradas esperanças para o ser alemão!” (p. 94). Se em Apolo vemos a expressão do “princípio de individuação” (p. 27) que configura o sujeito enquanto indivíduo (do corpo contido na superfície das imagens, das aparências e medido em princípios da razão), com Dionísio o interior subjetivo é intensificado ao ponto de esvanecer em “completo auto-esquecimento” (do corpo que, reconciliado com a natureza, extravasa por meio dos afetos de dor, erotismo, e violência; paixões disruptivas das formas apolíneas). O homem tomado pelo encantamento dionisíaco é arrebatado, “desaprende a andar e a falar e, dançando, sai voando pelos ares”; do seu interior soa um êxtase sobrenatural, “ele se sente como um deus”; ao manifestar-se como membro de uma comunidade superior, reconciliado ao “Uno-primordial” (um sentimento místico de unidade), “o homem não é mais artista, torna-se obra de arte” (p. 28). “O encantamento é o pressuposto de toda arte dramática” (p. 57). A consciência apolínea cobre o mundo dionisíaco como um véu (p. 32). A fim de desvendar o espírito apolíneo que, latente na história da cultura ocidental desde a antiguidade, encoberta pela consciência apolínea como um véu, Nietzsche se propõe a “demolir o edifício da cultura apolínea até vislumbrarmos os fundamentos nos quais ela se assenta” (p. 32). Aqui já podemos notar um movimento que se mostrará presente nas demais obras de Nietzsche: a recuperação de um vitalismo que coloca a arte, o helenismo e, de modo geral, toda forma de produção intelectual engajadamente em função da vida. Por um lado, Nietzsche combate o ascetismo ao localizar nele um niilismo negativo (por negar a vida presente em função de uma promessa futura; essa crítica aos ideais ascéticos será mais desenvolvida na terceira dissertação da Genealogia da moral) e, por outro, ele afirma incondicionalmente a vida em todos os seus aspectos bons ou ruins. > A expressão desse vitalismo também é forte na segunda intempestiva, Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida (1874), onde Nietzsche defende que o horizonte do estudo histórico esteja localizado na vida e na ação; que o presente não esteja recalcado por um excesso historicista de saber erudito (o historiador como “enciclopédia ambulante”), mas que o estudo da história esteja em função da vida presente (historiador crítico). “É apenas na medida em que a história serve à vida que queremos a ela servir” (p. 30). Sobre a relação dos gregos com suas divindades: “aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importa que seja bom ou mau” (p. 33). Nietzsche valoriza uma força que, tal qual a do homem homérico, “converte até o seu lamento em hino de louvor à vida” (p. 34). Nesse sentido, as divindades gregas são compreendidas no interior de uma necessidade simbólica que interpela o ser humano; a necessidade de chamar a arte à vida a fim de suportarmos a existência em seus aspectos de absurdo e sofrimento. “Os deuses legitimam a vida humana pelo fato de eles próprios a viverem” (p. 34). Nietzsche repetidamente valoriza a música por “incitar o homem à máxima intensificação de todas as suas capacidades simbólicas” (p. 32), é ela que faz com que a concepção estética do mundo não seja puramente contemplativa, mas seja vontade (p. 47) — termo que Nietzsche apropria da filosofia de Schopenhauer. “A força hercúlea da música: é ela que, chegando na tragédia à sua mais alta manifestação, sabe interpretar o mito com nova e mais profunda significação” (p. 68). Há uma afinidade necessária entre música e tragédia: “Música e mito trágico são de igual maneira expressão da aptidão dionisíaca de um povo e inseparáveis uma do outro” (p. 141). A arte salva a vida, ela reconfortou os gregos e, assim, impediu que eles caíssem no pessimismo: “o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca” é o “consolo metafísico de que a vida, apesar de toda mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria” (p. 52). O coro é uma corporificação dessa afirmação da vida, pois ele, “indestrutível e por detrás de toda civilização”, é “apto ao mais terno e ao mais pesado sofrimento”, afetos por meio dos quais ele canta “o profundo sentido das coisas” (p. 52). NIETZSCHE, F. W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2007.
___________. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Tradução e
organização de André Itaparica. São Paulo, SP: Hedra, 2014.