AGRADECIMENTOS
Às minhas avós Lygia e Oswaldina (in memorian), belas contadoras de estórias, nascidas na
Belle Époque carioca, que me abriram as portas da memória.
Ao meu pai Carlos Augusto, que, com sabedoria e empreendedorismo, abriu-me as portas do
turismo e das viagens, como forma de percepção do mundo.
À minha mãe Heloísa, que, com amor, carinho e bom humor, foi a minha primeira guia de
viagem, ensinando-me muito sobre a arte de abrir portas.
À minha esposa Gisela, adorada Deodora, que me proclamou a República do amor, trazendo-
me ordem e progresso quando mais precisei. As portas abertas a dois são as mais valiosas.
Às minhas 3 filhas, Ana Carolina, Juliana e Lygia, que me abrem cotidianamente tantas portas,
portinholas e portões e para quem deixo as minhas portas sempre escancaradas.
A Roberto Perecmanis, que me ofereceu algumas chaves para saber quais portas devem ser
abertas.
A Érika e Victor que, ao me abrirem as portas do CPDOC e da Estácio, respectivamente,
tornaram-se fundamentais na minha trajetória acadêmica.
Ao meu querido amigo Marcelo Martins, guia e agente de viagens, com quem tive o prazer de
trabalhar por tantos anos, um entusiasta desse projeto e que me ensinou que as portas que
abrimos para alguém na vida, vão nos retornar em forma de inesperadas portas abertas.
A todos os excelentes mestres que tive no CPDOC : Bianca, Sarmento, Christiane, Lucia,
Mariana, Mario e Verena, e em especial, a minha orientadora Dulce com quem redescobri o
prazer de abrir as portas da história.
Aos meus amigos fundamentais, de toda a vida : Pedro, Orlando e PC, que me oferecem, em
nossos deliciosos encontros, um mundo sem portas.
A todos os guias, profissionais de turismo, professores e pessoas com quem trabalhei em minha
trajetória profissional e com que tenha aprendido algo sobre essa sútil arte das portas, sobre quais
precisamos abrir e quais devemos manter fechadas.
A todos vocês, sou grato. Muito Obrigado.
6
RESUMO
ABSTRACT
This current essay tries to accomplish some reflections about the cultural tourism in the
city of Rio de Janeiro, through the creation of a travel guide with themed routes based on the
history of the city. This guide would present new forms to observe the urban landscape
considering the main role played by the city in the Brazilian history as political and cultural
capital. The major focus of the foreseen itineraries would be the nation’s republican phase
from the end of the XIX century till the 1970’s. In this period, Rio has faced innumerable
urban changes which would be also analyzed during a series of walking-tours described in the
travel guide.
Based on this approach, the paper analyzes the formulation possibilities for this
touristic product through theoretical references about Collective Memory, Sites of Memory,
Cultural Identity and Heritage Interpretation. Taking advantage from these concepts, the study
explains this emerging style of cultural tourism as an incentive for local residents to become
travellers in their own city, as citizen- tourists.
KEYWORDS: Rio de Janeiro, History, Cultural Tourism, Sites of Memory, Heritage
Interpretation, Themed Routes
8
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................. 6
ABSTRACT ........................................................................................................................ 7
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 111
Criativos ou Destrutivos.................................................................................................... 31
Forma e Conteúdo.............................................................................................................. 98
Desenvolvimento dos Roteiros ........................................................................................ 105
Roteiro “Rio da Proclamação e Implantação da República” .......................................... 107
ÍNDICE DE FIGURAS
INTRODUÇÃO
O Turismo é uma indisciplina. É com esta sugestiva designação que Tribe (1997) tenta
lidar com a complexidade de questões que envolvem o saber turístico. Na verdade, poucas
atividades humanas foram tão incensadas quanto vilipendiadas simultaneamente como o turismo
ao longo de seu processo acelerado de crescimento, já como indústria, desde o final do século
XIX. No fundo, trata-se de um fenômeno sócio-econômico ainda pouco estudado e pesquisado
em relação ao tamanho de sua influência nas sociedades contemporâneas. Enquanto o discurso
pragmatista concentra-se em argumentos focados na geração de empregos, na captação de
divisas, na redução de desigualdades sociais e regionais e na melhoria da qualidade de
vida da população, as abordagens ligadas às ciências sociais procuram entender o fenômeno
“através dos deslocamentos humanos, dos processos de intercâmbio cultural entre anfitriões e
visitantes, da transformação das identidades locais e da vivência de novos costumes e fazeres.”
(MOESCH, 2002:19)
Uma das possíveis interpretações, para fins sintéticos, poderia definir o turismo como
uma categoria de lazer resultante da sociedade capitalista industrial e que desenvolve-se sob o
impulso de várias motivações, dentre elas, o consumo de bens culturais. Para a maior parte dos
autores contemporâneos, o turismo deve ser considerado, prioritariamente, uma experiência com
sabor cultural. Por isso , criou-se a terminologia Turismo Cultural para diferenciar certas práticas
de viagens de um turismo mais convencional ou massificado.
12
Assim sendo, não apenas a cultura material, a dizer sítios histórico-arquitetônicos, mas
também a imaterial - festas, danças, gastronomia, expressões de religiosidade, supertições,
música, entre outros – assume um lugar de grande importância na perspectiva do turismo ao
oferecer alternativas de vivência cultural para o turista. A este universo descrito acima,
Margarida Barretto denomina “legado cultural”1 e este transformou-se em matéria prima
privilegiada pela indústria turística que passou a ser determinante nas políticas de conservação ou
revitalização do patrimônio histórico, tão em voga atualmente.
Nessa perspectiva, o turismo cultural emerge como uma espécie de Santo Graal para as
cidades e municípios que desejam ganhar a tão disputada alcunha de “destino turístico”. Os
princípios que conectam cultura e turismo parecem capazes de evocar uma espécie de
Santíssima Trindade que se estabelece como tendência nas políticas públicas culturais a
nível mundial : a fomentação do desenvolvimento sustentável, a preservação do
patrimônio histórico-cultural e o fortalecimento da identidade cultural da comunidade.
É o que Richards (2004) chama de “campo de sonhos” em que se converteu o turismo
cultural permitindo aos políticos locais “o sonho de ter museus, teatros e centros de
exposições mais espetaculares do que os das cidades vizinhas”. Essa reverência prestada à
cultura pelo turismo, de certa forma, aproxima-a do sagrado. Para MacCannell (1976), os turistas
culturais podem ser entendidos como praticantes de ritos onde a cultura é celebrada como um
substituto contemporâneo da religião. Em adendo, Horne (1984 apud Perez, 2009: 107) chega a
afirmar que o turista cultural “é um peregrino moderno que segue os guias turísticos como
textos da sua devoção.”
É justamente com base nessas “bíblias turísticas” – os guias de viagem– que foi
estruturada a presente dissertação, que tem como foco a possibilidade de ampliação do turismo
cultural no Rio de Janeiro a partir de um guia elaborado exclusivamente para este segmento. A
1 Margarida Barreto propõe a ampliação do conceito de “turismo histórico” para a expressão “heritage based
tourism”, traduzida pela autora, em seu livro "Turismo e Legado Cultural", como “turismo com base no legado
cultural” que pode ser usada para tratar dos aspectos tangíveis e intangíveis do patrimônio cultural “herdado”.
13
ideia seria discutir a pertinência de novas leituras da cidade a partir das ferramentas de
interpretação proporcionadas por um guia de viagem publicado no formato de um pequeno
livro2 e que se juntaria, nas prateleiras das livrarias, às tantas dezenas de outros que existem. No
entanto, com um diferencial que o tornaria singular no gênero: seria um guia turístico sobre a
história da cidade enquanto capital republicana abrangendo o período entre 1889 e 1960 quando
o Rio de Janeiro funcionou, de fato, como distrito federal do país e mais o período de 1960 a
1975 quando, mesmo transmutado em cidade-estado da Guanabara, ainda guardava a sua aura de
“capitalidade” perante o resto da nação.
O guia seria composto por uma série de roteiros temáticos cruzando o território carioca
tendo como fio narrativo os principais acontecimentos históricos, políticos e culturais da cidade e
do país nessa trajetória de 86 anos. Nesse conjunto, seriam incluídos como atrativos turísticos
não apenas itens do patrimônio material como monumentos, edificações, estruturas
arquitetônicas, igrejas e ruas mas também itens representativos de bens culturais intangíveis
como costumes, objetos, manifestações artísticas e esportivas, festividades, culinária, vestuário,
notícias e charges de jornal. Tudo isso seria aproveitado visando a composição de um amplo
painel sócio-cultural que permitisse aos leitores, sejam eles forasteiros ou residentes, novas
formas de percepção da cidade. Uma obra que leve em conta a importância de se observar a
cidade, como frisa Knauss (2006), ultrapassando o ver, mera percepção dos sentidos, buscando
o olhar, elaboração intelectual sobre o visto”.
Pelas premissas expostas acima seria, acima de tudo, um guia que versaria sobre
a memória e a história do Rio de Janeiro, propondo um diálogo direto entre a cidade
atual e a cidade passada.
2
Além da concepção tradicional de guia, publicado no formato de um livro, o produto poderia também ser produzido
de forma adaptada para outras plataformas virtuais onde seria “baixado” em smartphones ou tablets que
permitissem ao viajante locomover-se a pé pela cidade através de mapas interativos e com GDS. Essa nova versão de
guias já está sendo comercializada com muito sucesso por algumas marcas famosas de guias turísticos.
14
O guia lidaria com o passado da cidade através da memória coletiva de todos os grupos
sociais que a compõe e que, nas palavras de Possamai (2010), “torna-se materialidade no espaço
urbano representado no traçado de suas ruas, nas construções alteradas ou substituídas, nos
monumentos erigidos e inclusive nas barreiras que escondem determinado ponto”.
De certa maneira, este guia que passaremos a chamar a partir desse momento de “Guia de
Memórias da República no Rio de Janeiro” teria uma relação de proximidade mais explícita com
o passado do que com o presente da ex-capital republicana. Isso justifica-se pelo fato do passado
ter sido sempre a matéria prima primordial para a projeção das identidades culturais assim como
da memória coletiva que as sustentam. São os antepassados e suas tradições remodeladas pelo
passar do tempo que geram um sentido de pertencimento de indivíduos a determinados grupos e
estes, por sua vez, serão reconhecidos através do legado material ou simbólico, deixado para as
gerações seguintes.
Ao longo da história, as viagens aparecem como uma das mais antigas atividades
humanas. Os deslocamentos dos homens primitivos e dos mais diversos grupos sociais nômades
que existem desde a pré-história, embora sejam uma inegável confirmação desse fato, não
podem ainda ser considerados exemplos de turismo e nem mesmo de viagens. Segundo vários
pesquisadores, tais tipos de locomoção prescindem de uma característica indispensável para o
conceito usual de turismo que é o retorno ao local de origem3. Em geral, os povos nômades
permanecem no novo destino enquanto este possa lhes garantir condições de sustento, e assim o
faziam as tribos primitivas.
Portanto, o marco inicial das viagens na história ocidental desloca-se da pré-história para
a Idade Antiga, mais precisamente para a Mesopotâmia. Barbosa (2002:13) afirma que a criação
3
Margarita Barreto em seu Manual de Iniciação ao Estudo do Turismo (2001) afirma que “muitos povos viveram,
durante séculos, de forma nômade, o que pouco tem a ver com ‘viagens’ ou ‘turismo’”
18
4
Os tratamentos medicinais com base no poder curativo de águas salgadas ou de fontes termais tiveram muita
relevância para diversas culturas da antigüidade, sendo considerados uma pedra fundamental dos primórdios da
atividade turística.
5
No caso do Império Romano, os destinos de lazer mais procurados entre os romanos foram Pompeia e a Ilha de
Capri.
19
O Grand Tour
O ápice desse processo de busca de aprendizados durante uma viagem ocorreu nos
séculos XVIII e XIX com o advento do Grand Tour, um estilo de viagem que ainda influencia
o comportamento dos turistas culturais contemporâneos. De acordo com Withey (1997), os
grand tourists tinham um propósito educacional em seus itinerários que, em geral, cruzavam
parte da França, da Alemanha e da Austria6, além da região dos Alpes na Suiça, até chegarem
ao berço da cultura clássica: a Itália7 e a Grécia, onde se concentrava a maior parte do tempo da
viagem que tinha uma duração total de 1 a 3 anos. Estas viagens de formação, inicialmente
feitas somente pelos filhos das famílias da alta burguesia e da aristocracia inglesas e depois
estendidas a nobres e burgueses de toda a Europa, tinham o intuito de alargar a visão do
mundo e o senso estético dos viajantes através da observação direta da arte e da arquitetura
clássicas. Além disso, o contato com diferentes povos e costumes traria um capital cultural
para o jovem viajante que seria de grande valia em suas futuras tarefas de liderança
e governança. `
Segundo Salgueiro (2002:290), o Grand Tour estabelece um novo formato de se viajar
que gera:
6
Os circuitos variavam em duração mas, para os viajantes oriundos da Inglaterra, sempre tinham início em Paris, o
grande centro cultural europeu por excelência. Os atrativos apresentados na Alemanha concentravam-se na
arquitetura gótica e nos castelos e vilas ao longo dos rios Reno e Mosel. A Austria, embora não fizesse parte dos
roteiros de menor duração, tinha em Viena sua parada obrigatória por conta da intensa vida artística com destaque
para as óperas e música clássica. A tudo isso, ainda podia ser somada a bela paisagem alpina, com seus lagos e
montanhas, e a vida saudável junto à natureza, itens muito valorizados também pelo ideário romântico europeu do
século XIX.
7
A Itália, na época, ainda não era um país ou uma federação mas um conjunto de reinos independentes cujos
principais centros de visitação eram : Roma com suas ruínas do Império Romano, Florença e Siena com o patrimônio
renascentista e mais Veneza, Verona (Romeu e Julieta) e Nápoles.
20
Torna-se fundamental frisar que até a disseminação do Grand Tour entre as elites
europeias, o ato de viajar não constituía, em si mesmo, um fim valorizado pela sociedade
(URRY, 2001:43). Sob este prisma, as viagens adquirem um signo de diferenciação social e o
comportamento itinerante do ser humano ganharia novos parâmetros de análise desde então. O
próprio estudo do turismo moderno, enquanto prática social relevante, estabelece seu marco
inicial a partir do Grand Tour que, por sua vez, foi a origem etimológica da palavra “turismo”
através do vocábulo “tour” que significa “volta, viagem ou movimento de sair e retornar ao local
de partida.” (ANDRADE, 1998:24).
21
Cabe também afirmar que o Grand Tour, além de traduzir status social, por conta de
seus altos custos, adquiriu uma conotação de “viagem de descoberta ou de formação”8,
estabelecendo portanto uma sólida base histórico-cultural ao despertar da atividade turística. Ao
priorizarem visitas a locais de grande valor histórico e artístico tendo por linha mestra a história
da arte clássica e de sua re-leitura via Renascença italiana, os grand tourists criaram o heritage
tourism9, cujo termo mais aproximado em português seria turismo histórico ou turismo
patrimonial e que é a base do guia sugerido em meu trabalho.
8
Essa premissa tem grande influência dos conceitos iluministas em voga no período que preconizavam a busca da
erudição e do conhecimento através do acesso a “alta cultura” cujas origens remontavam às civilizações greco-
romana.
9
A tradução mais próxima para heritage seria legado cultural e a palavra tem sido comumente usada para tratar dos
aspectos tangíveis e intangíveis relativos a um patrimônio histórico-cultural de uma comunidade.
22
viagens. Estas vão, aos poucos, perdendo a aura aventureira e romântica do Grand Tour e
aderindo ao racionalismo do modelo capitalista através do turismo de massa, surgido na 2ª
metade do século XIX.
Para essa transição ocorrer, alguns empreendedores pioneiros foram fundamentais ao
criarem um modelo de negócio lucrativo e cuja operação pudesse ser projetada em larga escala.
O mais famoso deles foi o inglês Thomas Cook (1808-1892) que, ao fretar um trem em 1841
para transporte de 570 pessoas que também compraram através dele o alojamento e alguns
serviços locais10, criou dois itens essenciais para o turismo de massa : o pacote turístico e a
excursão em grupo. Tal evento, “ao ser comercializado, inaugurou o turismo como uma
atividade organizada e lucrativa.” (IGNARRA, 1999)
A partir daí, Thomas Cook passou a organizar inúmeras viagens de lazer ou para
eventos, todas em grupo, na Inglaterra e na Europa. Em 1851, fundou a Thomas Cook & Son, a
1ª agência de viagens do mundo e continuou sua trajetória bem sucedida atendendo a membros
10
Segundo Ycarim Barbosa no seu livro História das Viagens e do Turismo, este trem fretado por Cook partiu de
Leicester em um percurso de cerca de 18 kms até Lougborough no sul da Inglaterra onde todos os passageiros
participaram de um congresso antialcoólico.
23
É nesse momento histórico em que as viagens passam a ser consideradas uma opção de
lazer, em relação a jornada de trabalho, que poderemos considerá-las transmutadas em turismo
moderno passando a ser organizadas por terceiros e realizadas com frequência regularizada.
Segundo Castro, estas mudanças na estrutura da viagem que dão origem ao turismo como uma
forma de negócio podem ser resumidas assim:
11
Segundo Ycarim Barbosa no seu livro História das Viagens e do Turismo, os pacotes em grupo internacionais de
maior sucesso lançados por Thomas Cook remetiam a itinerários culturais do Grand Tour como Paris e Sul da
França ou Itália, agora em versão bem mais compacta em termos temporais. Um dos que mais fez sucesso e que se
tornou marca registrada de sua agência foi o tour chamado “Egito e Terra Santa” que destacava as visitas a Jerusalém
e às pirâmides egípcias com direito a um cruzeiro pelo Rio Nilo.
24
12
Somente para a 1ª Grande Exposição Universal de Londres, a agência Thomas Cook & Son transportou mais de
165 mil turistas ingleses entre maio e novembro de 1851.
25
Foi nessa transição de uma fase pré-industrial para outra industrial ou de massa que
o turismo converteu-se em um bem econômico ligado ao setor terciário (serviços) e
controlado por empresas de transporte, redes hoteleiras e agências de viagens. Com base no
crescimento econômico global, na modernização dos meios de transporte, no processo mundial
de urbanização, na relativa estabilidade político-social dos países emissores e receptores e
na entrada dos trabalhadores na sociedade de consumo, nasce assim o turismo contemporâneo.
(FUSTER, 1991 apud PÉREZ, 2009:20)
Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade das cidades, das
ilhas e dos povoados desta Pátria Ortodoxa, assim como dos santos
monastérios que vêm sendo assolados pela onda turística mundial. (...)
Concede-nos a graça de uma solução para este dramático problema e
protege aos nossos irmãos submetidos a uma dura prova pelo espírito
modernista destes invasores ocidentais contemporâneos. (CRICK, 1993
apud PEREZ, 2009: 2)
Sendo uma das indústrias que crescem de forma mais acelerada no planeta, o setor do
turismo é diretamente responsável por 5% do PIB mundial, por 6% do total das exportações e
gera empregos diretos para uma em cada 12 pessoas em economias avançadas e emergentes.
Estes são dados divulgados pela Organização Mundial do Turismo (OMT ou UNWTO, na
sigla em inglês)13, que também ressalta que aproximadamente 980 milhões de turistas se
deslocaram em viagens internacionais em 2011, acima dos 939 milhões registrados em 2010, e a
previsão para 2020 é que o turismo internacional transporte 1,6 bilhão de pessoas.
Segundo outros dados apresentados no anuário estatístico de 2012 da OMT, 37% das
viagens foram motivadas por questões culturais, o que representa cerca de 362 milhões de
“viajantes culturais”. Estes dados estatísticos apresentam uma definição muito ampla e
genérica de turismo cultural, mas “investigações da ICOMOS14 demonstram que o turista que
viaja por motivações estritamente culturais está entre 5 e 8% do total do mercado turístico”
13
A Organização Mundial de Turismo (OMT) é uma agência especializada da ONU e a principal organização
internacional no campo do turismo. Com sede em Madri, na Espanha, funciona como um fórum mundial de
discussão da política do setor e de promoção do turismo responsável, acessível e sustentável, de forma que este
possa ser uma ferramenta eficaz de desenvolvimento econômico dos países. A OMT é composta por 155 países,
7 territórios e cerca de 400 membros afiliados do setor privado, instituições educacionais, associações e
autoridades locais de turismo.
14
Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (International Council on Monuments and Sites)
30
(RICHARDS, 2004: 7), o que representaria em 2011, a partir dos dados levantados pela OMT,
um universo de 50 a 78 milhões de turistas culturais em viagens internacionais.
Tais números reforçam a conclusão de que as motivações para se viajar sofreram
mudanças significativas nas últimas décadas e apontam para novos modelos de turismo, além
do padrão “sol e praia”, que estão em ascensão. Ao contrário do turismo de massa, o turismo
cultural procura despertar o interesse pela história, arquitetura, produção artística, música,
culinária, enfim , por todos os elementos do patrimônio material e imaterial do destino
turístico, atraindo viajantes com uma postura que se baseia na valorização de costumes
e tradições locais. Essa nova realidade tem gerado pressão nos setores públicos e privados
envolvidos no planejamento turístico dos destinos, impondo a projeção e operação de novos
produtos (MOLINA, 2003).
Os principais trabalhos de pesquisa sobre turismo apontam o turismo cultural, em
conjunto com o eco-turismo, como as mais fortes tendências do mercado no início do século
XXI. A chegada desse “novo turista”, não mais como espectador, mas como “ator do cenário”,
que busca uma participação mais aberta e efetiva na cultura local, é determinante para
estabelecer-se uma vivência mais aprofundada e “autêntica” do lugar (AVIGHI, 2001).
tradições da comunidade, religião, grupo ou instituição”. Nessa ótica, fica patente que não
é necessário haver interesse específico em algum aspecto cultural do destino turístico para
que o visitante seja classificado como turista cultural. De fato, durante uma viagem,
normalmente se deseja fazer tantas coisas quanto o tempo permitir e houver facilidades
para isso, ou seja, os turistas podem terminar por visitar atrações culturais, caso tais
atrativos sejam oferecidos de forma facilitada.” (MCKERCHER e DU CROS, 2002 apud PIRES,
2007: 28). Nesse sentido, os guias de viagem, como o proposto nesse trabalho, são os “facilitadores”
mais acessíveis e tradicionais para os turistas travarem um contato mais profundo com a cultura local.
Cabe frisar que, mesmo não sendo considerado o motivo principal da viagem, vários
autores como Barretto (2000), Pires (2002) e outros já mencionados neste texto,
concordam que o turismo é sempre um ato cultural, independente de sua classificação, à
medida que o “ato de viajar é sempre entrar num universo que é do outro” ( PIRES, 2002: 69).
Considerando esta premissa, podemos deduzir que existe um componente comum a todas as
viagens que é a curiosidade do ser humano em relação a um ambiente que não seja o próprio.
O turismo cultural (...) está ligado a algo que sempre tem existido,
a curiosidade, isto é, o interesse dos sujeitos pela “formação”, pela
estética, pelo patrimônio cultural e a criação cultural de outros países.
(PEREZ, 2009:5)
Reiterando este ponto de vista, Haulot (1992 apud Sales 2006: 110) observa que
“qualquer forma de turismo não pode ser desvencilhada da cultura, uma vez que esta se
encontra no centro das motivações que levam ao deslocamento de milhões de pessoas e
sem a qual haveria apenas uma caricatura e não um turismo verdadeiro”. Por outro lado, a
cultura já não poderia também ser concebida sem o turismo, à medida que este teria se
convertido em um elemento essencial na formação da sociedade contemporânea.
Criativos ou Destrutivos
Nessa mesma linha de busca de sentido para o turismo cultural devemos incluir
também, o efeito do encontro entre anfitriões e visitantes, já que o dinamismo presente nas
interações culturais incita o aparecimento de formas híbridas de relações sociais, que, por
outro lado, são características do fenômeno turístico. Vários autores defendem que essa sinergia
entre o pólo receptor e seus visitantes tornou-se um valor agregado inerente ao turismo cultural.
32
Pelas palavras acima podemos perceber uma certa idealização da atividade turística, o
que torna o conceito de turismo criativo ainda digno de controvérsias, inclusive semânticas.
Mesmo assim, embora ainda não tenha sido empregado de forma oficial pela UNESCO, aponta
para algumas veredas para as quais o turismo cultural está se encaminhando. Caminhos estes
15
Retirado do relatório “Towards Sustainable Strategies for Creative Tourism” de 2006 desenvolvido como estudo
preparatório para a Conferência Internacional de Turismo Criativo realizado em Santa Fé nos Estados Unidos em
2008 patrocinado pela comissão Creative Cities Network da UNESCO. Disponível na internet
16
Idem. Tradução minha para o seguinte original em inglês: “Creative Tourism” is considered to be a new
generation of tourism. One participant described his perspective that the first generation was “beach tourism,” in
which people come to a place for relaxation and leisure; the second was “cultural tourism,” oriented toward museums
and cultural tours. “Creative Tourism” involves more interaction, in which the visitor has an educational, emotional,
social, and participative interaction with the place, its living culture, and the people who live there. They feel like a
citizen.”
33
que, por uma série de razões, sempre foram o principal mote de defesa do turismo cultural em
muitas localidades desestruturadas pelo turismo massificado.
Menezes (2006) reitera que as relações entre turismo, cultura e sociedade são
diversificadas, e observa que “cada local responde de maneira diferente aos desafios do
turismo tendo como bússola sua própria história, sua cultura e o tipo de turismo que deseja
implantar”. Nesse sentido, a ressalva levantada por Perez é primordial:
A verdade é que, na sua relação com o patrimônio cultural, a indústria turística pode
apresentar-se como um meio ou como um fim. A diferença entre ser uma atividade ou a
atividade é o fator dialético que está no cerne de todos os conflitos entre patrimônio cultural
e turismo. É sobre esta dualidade que nos debruçaremos no capítulo seguinte.
Entretanto, esta posição ainda encontra muitos antagonistas que assinalam que as
fronteiras entre turismo e turismo cultural tendem a ser dissolvidas e, por isso, levantam
questões sobre esta visão mais mercantilista da cultura. Murphy (apud BARRETTO,
2000:31) nos previne quanto ao crescimento desordenado do turismo e à ignorância em
relação aos problemas que poderão ocasionar no futuro, próximo ou distante, provocando
danos, às vezes irreversíveis, ao meio ambiente e às culturas. A crítica concentra-se no fato do
“turismo, cultural ou não, reduzir os povos e sua cultura a produtos para o consumo,
transmutando-os em cenários e acarretando em desajustes na comunidade receptora”.
36
Nesse sentido, o patrimônio perderia vigor no que tange à sua significação na história
ou na identidade local e passaria a ser mais valioso enquanto mercadoria que pode ser vendida
como atrativo turístico. Com essa funcionalidade, para alguns autores, pelo menos ele ainda teria
condições de existência. Posicionando-se pragmaticamente a respeito, Barretto (2000: 32),
referindo-se ao patrimônio histórico, defende que “é preferível tornar-se um bem de consumo
“ao lento, mas inexorável, processo de destruição dos bens culturais.”
Reforçando esta ideia, Murta (2002:135), considera que a atividade turística deve ser
vista “(...) como um meio de arrecadar recursos para a manutenção de sítios históricos e
manifestações culturais, bem como um instrumento de informação do público visitante”. Como
reiterado por Barretto (2000:17) “a ideia não é manter o patrimônio para lucrar com ele, mas
lucrar com ele para conseguir mantê-lo.” No mesmo diapasão, Pires (2002:47), diante da
precariedade de verbas públicas no setor cultural, indaga se “dentro do processo de globalização
instaurado, ainda existe alguma manifestação humana capaz de não se transformar, de alguma
forma, em um bem de consumo.”
Para outros estudiosos do tema, este discurso de conversão dos bens culturais em atrações
turísticas trata-se de um abuso retórico que busca blindar o turismo cultural através de
metáforas de salvação de áreas com algum nível de declínio. É o que Ribeiro (2004 apud
Perez 2009:130) qualifica como “ideologia do turismo”, isto é, uma avaliação, que já faz parte
do senso comum, de que o turismo vai trazer desenvolvimento e divisas ( monetárias,
econômicas e culturais) de forma contínua e, por isso, deve ser prioritário sobre outras estratégias
de política cultural em uma cidade ou país.
Sustentando a validade desse ponto de vista, Moletta (1998) leva em consideração os
casos de Ouro Preto, Parati e Olinda para conjecturar sobre o estado de abandono em que as
cidades históricas no Brasil se encontravam antes de terem se transformado em atrativo
turístico. Só assim puderam assistir à “valorização e revitalização do seu patrimônio histórico
37
Essa complexa relação entre turismo e patrimônio cultural já faz parte de uma agenda
histórica de debates e reuniões envolvendo governos , entidades internacionais e organizações
não governamentais desde a década de 1970. Uma das ressalvas mais valiosas da
convenção de Patrimônio Mundial da UNESCO - Organização das Nações Unidas para a
38
Educação, a Ciência e a Cultura17, foi advertir que o patrimônio histórico-cultural sempre estará
sujeito a ameaças de destruição, tanto pela deterioração normal em função de fatores naturais
ou em decorrência de guerras e conflitos armados, mas, substancialmente no final do século XX,
por mudanças nas condições sócio-econômicas dos países que agravariam a situação, dentre as
quais surge em destaque o turismo de massa. Na linha de avaliação feita no período, podemos
perceber como a questão do turismo, potencialmente comparado a guerras civis e tsunamis, já
havia se tornado central em qualquer discussão envolvendo bens culturais.
Apesar dos esforços iniciais para o desenvolvimento de uma política mais integrada
entre os setores de turismo e cultura, a verdade é que os agentes tanto da área de produção
cultural como de preservação de cultura tendiam a menosprezar os turistas porque
percebiam-nos ainda, na sua maioria, como superficiais, invasivos e com pouco interesse
pelos sítios culturais visitados. Isto só começou a mudar nos anos 1990, quando tornou-se
premente a criação de pontes entre os dois campos.
Essa premência ligada às demandas políticas e sociais do período fizeram com que a
OMT - Organização Mundial do Turismo- elaborasse seu Código Mundial de Ética do
Turismo18 (cópia em anexo) cujo texto defende a ideia de que o turismo deve ser um símbolo
“da paz e da amizade e compreensão entre os povos”, mesmo considerando-se que isto não seja
sempre factível devido aos conflitos gerados por conta do próprio turismo. O código da OMT
está dividido em 10 artigos abrangendo vários temas levantados nessa dissertação:
17
A UNESCO propõe promover a identificação, proteção e preservação do patrimônio cultural e natural,
considerado especialmente valioso para a humanidade. Este objetivo está incorporado em um tratado
internacional denominado Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, aprovada em
1972 -.http://www.unesco.org.br
18
O Código Mundial de Ética do Turismo foi elaborado pela OMT em 1999 e é utilizado por várias entidades
públicas e privadas como uma referência para o desenvolvimento sustentável e responsável da atividade no âmbito
mundial.
39
7. Direito ao turismo.
19
As orientações sugeridas constam no projeto nomeado “Segmentação Turística” que faz parte do Programa de
Regionalização do Turismo e foi desenvolvido pelo Ministério do Turismo em conjunto com o Ministério da
Cultura e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN,
40
20
Documento elaborado pela OEA (Organização dos Estados Americanos) em 1967 sobre os princípios de
conservação e utilização de monumentos e lugares de interesse histórico e artístico e que no Brasil serviu como
modelo para o IPHAN ( Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)
21
Declaração de princípios adotada pelo ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) desde 1976 e
cuja última versão foi elaborada na 12.ª Assembleia Geral no México, em 1999
41
Dessa forma, fica evidente que a conversão de cultura em atração turística implica em
riscos e impactos imprevisíveis caso a população local não tenha consciência e não valorize seu
legado cultural e histórico. Para isso, torna-se fundamental que os itens do patrimônio material
e imaterial, quando transformados em chamarizes de turistas culturais, desenvolvam níveis de
significação também para os moradores de forma a não descaracterizá-los.
42
2. Arquitetura e ruínas
5. Artes dramáticas
Nesse sentido, passamos a lidar com uma nova forma de se observar e trabalhar o
fenômeno turístico, que abandona as noções tradicionais da OMT nas quais o turismo pode ser
definido como “um conjunto de atividades que as pessoas realizam durante suas viagens e
permanências em lugares distintos dos que vivem, por um período de tempo inferior a um ano
consecutivo, com fins de lazer, negócios e outros" e turista, “ um visitante que se desloca
voluntariamente por intervalo de tempo igual ou superior a vinte e quatro horas para local
diferente da sua residência e do seu trabalho”.
A ideia de que residentes podem ser turistas em sua própria cidade traz consigo uma
re-conceituação radical do sentido costumeiro de ser turista que passa a ser definido por
contraste, ou seja, a partir de seu “oposto etimológico”, o nativo, o morador. Surge assim o
turista cidadão. Um indivíduo que tem condições de usufruir dos mesmos benefícios associados
às viagens de lazer em seu próprio território. Gastal e Moesch (2007) justificam-se:
22
Foi prefeito de Curitiba por dois mandatos consecutivos (1997-2001 e 2001-2005).
44
Esta abordagem inovadora começou a ser articulada na última década por alguns autores
brasileiros destacando-se as já citadas Marutschka Moesch e Susana Gastal23 a partir de teses
ligadas à questão da cidadania cultural24. A partir dessa perspectiva, quebra-se o modelo
turístico da sociedade industrial criticado por Krippendorf (1989), que pressupõe que o lazer
e outras práticas sociais capazes de recuperar o equilíbrio físico e emocional dos
trabalhadores só fossem viáveis em se viajando para sítios distantes da própria moradia.
Moesch, no Plano de Ação para o Turismo lançado pela prefeitura de Porto Alegre em
199925, do qual foi uma das gestoras incluía entre seus públicos prioritários, os moradores da
própria capital, desde que os mesmos saíssem de suas rotinas urbanas, tanto espaciais quanto
temporais. Mais tarde, sobre a experiência posta em prática na capital gaúcha, afirma:
23
O tema foi apresentado pelas autoras em diversos trabalhos individuais e ganhou sua abordagem mais completa
no livro Turismo, Políticas Públicas e Cidadania, escrito pelas duas em 2007
24
O conceito de Cidadania Cultural aqui utilizado está de acordo com a definição de Marilena Chauí (1995), com
base em trabalhos de vários outros autores, que sublinha a existência de uma nova esfera através da qual a cidadania
também precisa ser articulada e que ultrapassa o modelo clássico estabelecido por T.H. Marshall com base nos
direitos civis, políticos e sociais. São práticas que que dão um sentido de pertencimento de um indivíduo a um grupo
social e que redefinem a cidadania a partir da cultura como o direito à fruição, à experimentação, à informação, à
memória e à participação nas decisões de políticas culturais
25
Este Plano de Ação foi desenvolvido pelo então existente Escritório Municipal de Turismo de Porto Alegre e
incluiu a ação do Poder Público local em parcerias com a iniciativa privada, a sociedade civil e os cidadãos,
utilizando-se de instrumentos como o planejamento e o orçamento participativos.
45
26
Tese defendida de forma pioneira em seu livro Sociologia do Turismo lançado no Brasil em 1989
46
Esse olhar de estranhamento do morador em relação à sua cidade sugerido por Ferrara , de
certa forma, já tornou-se um fato contemporâneo em função das proporções gigantescas e
multidimensionais das megalópoles atuais. Essa temática de novos formas de sociabilização, de
novos “olhares” para as cidades dentro dos processos de urbanização contemporâneos também é
objeto de estudo de muitos autores nas últimas décadas.
O crescimento desmesurado das cidades, por sua vez, significaria segundo Ianni que “de
tanto crescer para fora, as metrópoles adquirem características de muitos lugares. A cidade passa
a ser um caleidoscópio de padrões, valores culturais, línguas e dialetos, religiões e seitas, etnias e
raças” (IANNI,1999:59), ou seja, o território por excelência do exercício da alteridade e da
diversidade.
E, justamente nessa vivência extrema entre semelhanças e diferenças que o sujeito
mantém com seu entorno, é que se encontra uma das razões fundadoras da prática turística. O
turismo cultural pressupõe o contato com o outro, com o “exótico” e, nesse sentido, os outros
seriam aqueles “que não compartilham constantemente esse território, nem o habitam, nem
têm portanto os mesmos objetos e símbolos, os mesmos rituais e costumes (...). os que
têm outro cenário e uma peça diferente para representar” (CANCLINI, 2003:191). Para o turista
cidadão, “viver estes outros cenários” , não seria mais necessário sair dos limites de sua cidade,
47
pois esta se tornou o território da multiplicidade. Um lugar onde se pode viajar menos por
percursos no espaço e mais por tempos-espaços, em especial culturais, diferentes daqueles a que
se esteja habituado, com ênfase nas experiências e no passado.
Para esta jornada, segundo Gastal (2006), “o turista cidadão, assim exposto ao
estranhamento, será o sujeito que, ao ampliar as fronteiras territoriais dos seus deslocamentos,
será também um cidadão global consciente. (GASTAL 2006: 13)
27
Esta imagem foi aproveitada da frase "O passado é um país estrangeiro: lá fazem as coisas de modo diferente." do
romancista e poeta inglês Leslie Poles Hartley no livro O Mensageiro de 1953. A frase também tornou-se o título de
um livro de David Lowenthal - The Past is a Foreign Country – publicado em 1985 e que teve grande influência
sobre estudos relacionados à história, memória e geografia.
48
leituras possíveis desse patrimônio cultural espalhado pelas ruas, agora transformadas em
itinerários histórico-culturais cujos objetivos vão além da mera contemplação.
Essa descoberta de outros aspectos da cidade, esses novos enfoques sobre os mesmos
trajetos, esse lidar diferenciado com a paisagem cultural urbana nos períodos de lazer tornam-
se falas representativas de um processo maior, que culmina na valorização da própria cidade.
Por isso, quando menciono a memória republicana como mote central do trabalho,
quero dar um sentido muito mais amplo ao termo, como sendo uma tentativa de apropriação
da história do Rio de Janeiro dos anos 1880 até os anos 1970 quando, embora já não fosse a
capital oficial, guardava uma certa aura de “capitalidade” na condição de cidade-estado da
Guanabara.
Em outras palavras, vamos tratar da cidade no guia como o palco central da trajetória
republicana no passado e de seus efeitos no presente, através de seus processos de
urbanização e de transformações sociais. Mostrá-la, dentro de uma narrativa turística via
circuitos temáticos, como um espaço onde as memórias de construção da cidade estejam
interligada com as lembranças do que foi destruído. Um lugar de conflito entre memórias e
histórias, lembranças e esquecimentos, sempre buscando entender os interesses de grupos,
classes e etnias envolvidos em todos os processos.
Assim sendo, o guia indicaria ex-lugares como atração turística como o Morro do
Castelo, o Morro do Senado, o Palácio Monroe, os cortiços do centro, dentre outros. E
analisaria vários outros atrativos turístico-culturais através das correlações históricas e sócio-
culturais que existiram entre eles. Observando sempre as várias memórias em jogo que
poderiam cruzar-se em itens que seriam apresentados como: o Palácio Tiradentes e o
“Balança Mais não Cai”; o antigo Hotel Avenida e o Edifício Central; o jogo do bicho e as
loterias federais; o samba e o maxixe; a bossa-nova e a Black Music; as favelas e os cortiços;
a Festa de São Jorge e o Carnaval; as garotas de Ipanema e as melindrosas; os aterros e os
desterros. Todos componentes de uma cidade onde muito foi preservado e muito foi
destruído, em processos históricos que sempre embutiam algum sentido de amor, de ordem
ou de progresso. Conforme o lema original positivista, parcialmente adaptado para a bandeira
brasileira, o primeiro símbolo nacional republicano, presente na memória coletiva da nação.
50
geográficos, além de serem a base do turismo cultural. Se levarmos em conta que a narração
de toda origem, seja de uma nação, de uma cidade ou de um governo possui um elemento
mitológico, algo similar ao conceito de mito fundador28, podemos inferir que a consolidação
dessas identidades tem por base uma versão de passado remoto, imaginário e “puro” que é
acionada no presente pelo poder da memória. No caso uma memória grupal e adquirida, cuja
principal função é a afirmação de uma identidade.
28
Os mitos fundadores funcionam como instrumentos de reforço identitário de grupos sociais através da
transmissão de princípios e finalidades para sua existência . O discurso mítico tem aspectos proféticos,
principalmente, na explicação de acontecimentos do presente, vinculando-os ao tempo imemorial das “origens” e da
“fundação” daquele grupo em um passado sacralizado. Ver: GIRARDET, 1987
54
é sempre atual, invocando lembranças que vem à tona, mesmo quando não perseguidas.
Vivida na dimensão de um eterno presente, nossas memórias são seletivas em seus processos
dialéticos de lembranças e esquecimentos, organizando-se subjetivamente através de vagas
reminiscências, recordações flutuantes ou insights telescópicos.
O poder da memória em absorver e guardar imagens significativas, passíveis de
esquecimento e de recriação é um processo, complexo e repleto de meandros. Essas
informações, quando evocadas pela memória, estão geralmente associadas a acontecimentos, a
pessoas ou personagens e a lugares. Em relação aos acontecimentos, eles podem ter sido
vividos de fato ou, como designados por Pollak (1992) “vividos por tabela’, ou seja,
acontecimentos ocorridos na coletividade à qual a pessoa sente-se pertencer dos quais ela não
participou mas que ganharam tamanho relevo que, no final das contas, é quase impossível
saber se ela efetivamente participou ou não.”
Assim, os lugares de memória, segundo Nora (1993) são lugares, com efeito, nos
três sentidos da palavra : material, simbólico e funcional: são lugares materiais onde a
memória social se ancora e pode ser apreendida pelos sentidos; são lugares
funcionais porque têm ou adquiriram a função de alicerçar memórias coletivas e são
lugares simbólicos onde essa memória coletiva – vale dizer, essa identidade - se expressa e se
revela. São, portanto, lugares carregados de uma vontade de memória.
Gastal (2002:77) reitera que “conforme a cidade acumula memórias, em camadas que,
ao somarem-se, vão constituindo um perfil único(...) onde a comunidade vê partes
significativas do seu passado com imensurável valor afetivo”.
Em face a tudo até aqui apresentado, podemos assumir que a memória social de uma
cidade é construída a partir de diferentes fatores, sendo o mais aparente aquele derivado dos
“lugares de memória”, sejam eles sítios institucionalizados pelo poder público ou locais ainda
“subterrâneos” na luta pelo não esquecimento. Lugares onde o tempo cronológico e conceitos
dialéticos tornam-se coadjuvantes em uma peça cujos papéis principais são reservados para a
imaginação, a nostalgia e o sentimento de pertença. Quais, enfim, as inter-relações entre
memória social e história ? Como proceder uma análise histórica mais criteriosa em confronto
com o poder memorialístico do passado dos lugares? E no caso específico de um guia turístico-
cultural que pretende ser um elo de interpretação do passado de uma cidade para seus visitantes
e moradores, como lidar com tais tópicos ? São questões inevitáveis para o desenvolvimento do
trabalho e sobre as quais pretendemos nos debruçar a seguir.
58
Através desse processo, instaura-se a memória histórica que pode ser escrita em papel ou
inscrita em “pedra, cimento ou bronze” através dos monumentos erguidos em reverência ao
passado. Dessa forma, como nos alerta Gonçalves ( 2002:117), “no registro da
monumentalidade, o passado será considerado hierarquicamente superior ao presente.”
O trabalho dos historiadores durante muito tempo esteve atrelado a uma visão
memorialística, portanto mais celebrativa em relação aos seus objetos de estudo. Essa
abordagem menos crítica encurralava-se em veredas colecionistas onde a análise criteriosa
dos fatos era substituída pelo afã de coleta de eventos e personagens que dessem a História
um sentido mais admirável ou épico. Assim foram e são construídas e retrabalhadas as
histórias nacionais que ainda hoje mantém sua reprodução garantida através, principalmente,
do sistema educacional dos países.
60
Essa visão que dominou o discurso dos historiadores até meados do século XX ainda
hoje influencia muitos estudos historiográficos. Ela opera o fato histórico como um
fenômeno dado e não como algo sujeito a relativizações, inclusive ligadas ao contexto do
construtor desse saber, no caso, o próprio historiador. No entanto, a história, bem como a
memória, não é neutra mas manipulável, como o foi diversas vezes nessa fase das certezas.
Mesmo sob o impossível véu da neutralidade, o fazer historiográfico contemporâneo
mudou por completo as suas táticas de investigação e seu instrumental analítico. Ocorreu,
segundo Nora (1993) “a passagem de uma história totêmica para uma história crítica(...) não
se celebra mais a nação mas se estudam suas celebrações”. Sob esta ótica, a análise histórica
revela algumas vantagens sobre a memória destacadas por Abreu (1998), Sarmento (1997)
dentre outros autores como por exemplo:
A história de um lugar não deve lidar apenas com seus aspectos locais. Sem
deixar de considerar as particularidades locais como fundamentais, a história
tem a função de contextualizá-las em relação a processos mais gerais da ação
humana nos campos regionais, nacionais e globais.
61
29
Atual sede da Assembléia Legislativa do estado do Rio de Janeiro e antigo prédio do Congresso Nacional
Brasileiro entre 1926 e 1960, excetuando-se o período do Estado Novo (1937-1945) quando serviu de sede para o
Departamento de Imprensa e Propaganda.
62
30
Projeto de Educação para o Patrimônio com vistas à formação de graduandos dos cursos de História e
Museologia da UFRGS e educadores da rede de ensino de Porto Alegre, tendo como objeto de estudo e ação
pedagógica o centro histórico de Porto Alegre.
63
31
Educação Patrimonial tem sido o tema central de muitos trabalhos acadêmicos recentes e torna-se bastante
relevante quando falamos de meios de interpretação do patrimônio. Trata-se, segundo o ICOMOS, de um processo
permanente e sistemático de desenvolvimento de uma consciência universal em relação ao patrimônio, desenvolvido
enquanto prática educacional no ensino formal e que deve ser fortalecido pelos meios de comunicação. Nesse sentido, está
diretamente ligada aos temas de cidadania cultural e turista-cidadão já tratados na dissertação e tem uma importância considerável
no meu projeto de guia de viagens, mas sobre a qual não poderei tratar com a profundidade que gostaria nessa etapa do trabalho.
Para mais informações : SOARES, 2003 : Educação patrimonial: Relatos e Experiências
65
32
Freeman escreveu em 1977 ”Interpreting our Heritage” uma obra-marco no campo da interpretação de
patrimônio cultural e natural para o turismo que segundo ele tem vocação de um serviço público prioritário.
66
escritas por esses autores tentam fundamentar algumas formas de operacionalização dos recursos
de interpretação a partir de uma série de princípios. Para eles, os guias de viagem tornaram-se
ferramentas essenciais nesse cenário, não só enquanto “construtores de olhares” com grande
autoridade sobre os turistas, mas também como geradores de sentido para os lugares e
fomentadores de identidades locais.
Os guias turísticos-culturais como o guia da memória histórica do Rio de Janeiro
enquanto capital da república teria portanto a oportunidade de oferecer “vivências e
experiências partindo de um tema ou conjunto de temas que se revelam nos seus significados.
Estes significados podem ser plurais e até contraditórios ou opostos os quais, devem comunicar-
se na sua complexidade”. (Tilden, 1977 apud Perez, 2009:228/229)
O guia proposto, como já exposto na introdução do trabalho, será pautado pela criação de
rotas temáticas que destaquem aspectos históricos, artísticos, culturais e arquitetônicos nos
principais bairros do Centro e da Zona Sul. Os circuitos propostos se desvendarão em uma
diversidade de significados mas terão uma unidade conceitual cronológica, ou seja, cada período
será organizado a partir de acontecimentos políticos, manifestações artísticas e personagens
históricos dentro de uma perspectiva de ordem temporal.
Isso torna-se importante justamente por conta dos princípios de interpretação de
patrimônio estabelecidos por Tilden, mesmo sabendo que estes foram, inicialmente, pensados
para atender necessidades museográficas ou de exposições. Tento abaixo elencar alguns desses
princípios já adaptados e demonstrados através de exemplos práticos para o projeto do Guia de
Memória Histórica do Rio de Janeiro enquanto projeto da dissertação.
Beck e Cable escreveram em 1998 “Interpretation for the 21st Century: Fifteen Guiding Principles for Interpreting
Nature and Culture.
67
embora possa ter um perfil universitário e relativo conhecimento prévio dos temas
tratados33, não é um especialista.
Assim sendo, uma das formas encontradas no guia para auxiliá-lo no esforço
intelectual de aproximação dos sítios visitados, seria a contextualização dos
acontecimentos em termos factuais e temporais. Para isso, o guia contaria na parte
superior das páginas com uma linha de tempo, apresentando, de forma resumida,
os fatos mais importantes ligados àquele monumento em ordem cronológica, sendo
possível estender-se, em termos de data, a períodos anteriores e posteriores ao
coberto pelo itinerário proposto. A utilização da cronologia como ferramenta
metodológica, embora não seja uma predileção por parte de muitos historiadores, é
um recurso facilitador de grande valia para um melhor da História por não
iniciados.
Dessa forma, uma visita ao Paço Imperial, prevista no roteiro “Rio da Proclamação
e Implantação da República”, teria como mote principal o fato do Paço ter sido a
sede do Gabinete do Ministério do Império, comandado pelo Visconde de Ouro
Preto, e deposto no dia 15 de novembro e também o local onde o imperador e sua
família passaram sua última noite no Brasil antes do banimento oficial. Em
complemento, seriam descritos outros fatos relevantes acontecidos no local desde o
período colonial e que teriam nesse espaço reservado a linha do tempo, uma forma
de serem abordados, reforçando o significado histórico da edificação.
33
A previsão é que este guia seja utilizado em quase na totalidade dos casos por turistas-cidadãos
(residentes na cidade) e turistas domésticos, ou seja, brasileiros oriundos de outros estados. Todos, por suposto, com
algum nível de conhecimento da história do Brasil.
68
Outra questão importante para a melhor assimilação de um guia por parte dos viajantes
diz respeito ao texto. O mesmo deve ser claro, objetivo e com poucas subordinações. Nesse
sentido, o estilo deve convergir para a linguagem jornalística porém com a relativa precaução de
não se cair no excesso de didatismo. Como o produto em questão seria uma publicação cujos
principais leitores já tem algum domínio do tema, deve-se também articular algum grau de
erudição na composição do texto pois os turistas culturais tem expectativas quanto à ampliação
de conhecimento durante a viagem.
Um guia turístico, em geral, não perde de vista esse discurso sintético baseado na
pretensa “história do prédio”. Entretanto, no meu modelo, para contornar essa encruzilhada e
trazer mais elementos reveladores de outros significados para os acontecimentos, cada ponto
sugerido para visitação seria apresentado seguido por boxes informativos que destacariam outras
facetas dos acontecimentos ou personagens envolvidos. Assim sendo, outra visita prevista no
roteiro “Rio da Proclamação da República” seria à casa-museu de Deodoro da Fonseca. Esta
seria apresentada enquanto palco de vários acontecimentos relevantes dos momentos iniciais do
regime republicano, como, por exemplo, a primeira reunião do recém-criado ministério do
governo provisório. Entretanto, este fato estaria vinculado a um box informativo tratando da
composição desse ministério a partir dos interesses dos vários grupos políticos que deram
suporte ao golpe de estado que proclamou a república. Outro box previsto nesse capítulo
buscaria deslocar a figura de Deodoro do panteão dos heróis nacionais, trazendo à baila todas as
suas contradições enquanto líder alçado à presidência mais por questões hierárquicas e
estratégicas do que por suas convicções ideológicas ou admiração de seus pares.
No caso de um guia onde o passado da cidade será mais observado do que o seu presente,
faz-se necessário a utilização da imaginação como forma de evocação dos tempos idos. Para
isso, torna-se primordial a utilização de alguns recursos como:
73
Assim, por exemplo, um passeio a pé pela Avenida Rio Branco, previsto em um dos
roteiros, seria feito a partir de 2 mapas superpostos, um dos anos 1930 e o outro atual, o que
permitiria graus maiores de compreensão e envolvimento do turista nos processos radicais de
transformação da cidade a partir de diferentes ideais urbanísticos ali presentes. Poderia se
caminhar, com a devida carga simbólica, por uma cidade real e por outra cidade ausente,
76
Uma outra possibilidade seria expor plantas e projetos urbanísticos que nunca se
realizaram (ou somente parcialmente) para que se tornem perceptíveis também as cidades
invisíveis que nunca saíram do papel. O Plano Agache de 1930 e as elocubrações arquitetônicas
de Le Corbusier para o Rio de Janeiro nos anos 1920, assim como outros projetos das décadas
seguintes seriam apresentados com as devidas análises críticas.
77
34
Segundo Perrota (2011), trata-se de uma citação de um dos primeiros guias turísticos para estrangeiros editado na cidade: “La Provinzia
de Rio de Janeiro” escrito por Felix Ferreira e Antonio Leão e publicado em 1889.
79
Jorge Amado, Manuel Bandeira e Gilberto Freyre35 ou participado com textos em guias de
viagens do passado como Machado de Assis e Olavo Bilac36
Essa sexta e última premissa poderia ser bem aplicada no guia na explanação sobre o
positivismo que seria compreendido a partir da visita prevista ao Templo da Igreja Positivista do
Brasil na Glória. O fato dessa doutrina ter tido tanta influência sobre a elite intelectual brasileira
na 2ª metade do século XIX e ter sido determinante como suporte ideológico para a Proclamação
da República deve ser acompanhada de sua projeção internacional a partir da França e de sua
vasta influência nas ciências sociais surgidas naquele período. Seria importante perceber como o
ideário positivista ainda sobrevive em algumas tradições ou formas de se pensar na atualidade
assim como as razões de seu ocaso, bem perceptível pela situação de penúria arquitetônica em
que se encontra o templo hoje.
35
Jorge Amado escreveu um guia turístico sobre a Bahia em 1945 chamado “Bahia de Todos os Santos” que
teve tradução para vários idiomas; Manuel Bandeira escreveu seu “Guia de Ouro Preto” em 1938 que foi influente no
fortalecimento da conservação patrimonial da cidade, praticamente abandonada naquele período; Gilberto Freyre
escreveu o “Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade de Recife” em 1934, uma obra bastante original onde
memória, história e questões de caráter prático do turismo integram-se na apresentação da cidade para os visitantes.
36
Segundo Perrota (2011) em sua pesquisa para dissertação de doutorado do FGV/ CPDOC, Machado de Assis
escreveu capítulos no Guia do Estrangeiro no Rio de Janeiro publicado em 1873 e Olavo Bilac foi um dos autores do
Os guias operam como mediadores entre visitantes e visitados, manuais que propõe
modos de se “usar” a cidade, ou seja, usufruí-la com mais prazer e conhecimento. Sua
84
Até o final do século XIX, pouco se comentava sobre o Brasil e o Rio de Janeiro em
termos de guias turísticos, pois quase toda a literatura a respeito dos mesmos tinha sido
produzida em formato de diário de viagem. Estes reproduziam impressões subjetivas de
viajantes em visita à cidade por motivações quase sempre comerciais. Na realidade, as
primeiras publicações com as características de um guia para orientar viajantes surgiram no
86
segundo quarto do século XIX37. O primeiro deles - o Handbook Murray - foi lançado em 1836,
para atender turistas domésticos em trânsito na Inglaterra, por John Murray que gozou de grande
prestígio não só pelos guias que editou mas também por ter publicado relatos de viagem de
Darwin e de Livingstone38. Já a partir de 1840, o editor alemão Karl Baedeker lançou uma série
de guias europeus de viagem que se tornaram referência de qualidade no gênero, de tal forma,
que ainda hoje a designação Baedekers tornou-se sinônimo de guias de viagem para leitores na
Europa.
37
Alguns autores como Pérez (2009: 107) defendem que a origem dos guias, enquanto peças divulgadoras de lugares
a se conhecer, estaria na antiga Grécia onde se proliferavam informações sobre “As Sete Maravilhas do Mundo”.
38
David Livingstone foi um missionário escocês e famoso explorador europeu da África
87
estrangeiro em estada na cidade. Aquela que julgamos ser a segunda - Guia do viajante no Rio de
Janeiro - só vai aparecer nove anos depois, em 1882, impresso pela Gazeta de Notícias”.
Cabe frisar que houve uma obra que, embora não se encaixasse nos conceitos
editoriais específicos de um guia turístico da época, traz semelhanças no conteúdo com o
turismo cultural tão decantado nesse projeto da dissertação. Trata-se do livro "Um Passeio
pela Cidade do Rio de Janeiro" escrito em 1862 por Joaquim Manuel de Macedo39, que
demonstra sua verve de cronista, ao propor, logo na abertura do livro, ser o cicerone desta
viagem “imaginária e ao léu” pela cidade. Em um tom que mistura história, memória e ficção,
sempre louvando o “esplendor da monarquia”, ele dirige-se diretamente ao leitor, convidando-o
a passear com ele pelas ruas da cidade visitando o Passeio Público, o Paço Imperial, os
conventos de Santo Antonio e de Santa Tereza, o Colégio Pedro II, o morro do Castelo – que já
naquele tempo falava-se em demolir – dentre outros símbolos patrimoniais que atendessem ao
seu olhar monumentalista.
39
Autor do romance A Moreninha - primeira obra da literatura brasileira a alcançar êxito de público – ferrenho monarquista e sócio-
fundador do Intituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Escreveu também outra importante crônica da cidade: Memórias da Rua do
Ouvidor, em 1878.
88
“exotismo dos costumes”. Lessa (2001) clarifica essa necessidade simbólica da capital do
novo regime:
Esse espírito renovador teve seu ápice na famosa reforma urbana de Pereira Passos
realizada em tempo recorde entre 1903 e 1906, quando o Rio transformou-se em um centro
urbano completamente renovado, marco de um Brasil moderno e internacionalizado que os
guias revenciariam nas décadas seguintes. O maior símbolo desse novo status da cidade seria
a Avenida Central (atual Av. Rio Branco) que ganhou as feições de um boulevard parisiense.
Não por acaso, Olavo Bilac, que compôs a ode acima em prol da destruição de um
modelo de cidade a ser substituído por outro mais “higiênico” e sofisticado, foi um dos autores
de um dos guias mais representativos do período : o “Guide des Etats-Unids du Brésil”. de 1904,
cujos co-autores foram Guimaraens Passos e Bandeira Júnior, também jornalistas e escritores
como Bilac .
No guia, quase não constam gravuras mas descrevem-se os atrativos turísticos da “mais
importante cidade da América do Sul pela sua extensão, pelo seu comércio, a beleza de seus
jardins, de seus monumentos e alguns edifícios.”, De novo, as belezas naturais ocupam um
segundo plano perdendo espaço até mesmo para personalidades políticas da época como o
presidente Rodrigues Alves, que ganham retratos por entre as páginas Segundo Isabel Perrota,
em sua pesquisa sobre os guias turísticos do período feita como parte de dissertação de
doutorado, todas as atrações apresentadas seguiam o figurino importado da modernidade
europeia.
40
Era muito comum que as informações contidas em alguns guias dessa época fossem direcionadas também para os
imigrantes europeus que precisavam ser atraídos para o trabalho no Brasil. Assim sendo, dados sobre a atividade
agrícola do país e exaltações sobre a abundância de água e a fertilidade da terra eram comuns nesses guias híbridos.
91
Cabe ressaltar que as praias mencionadas em todos os guias até o início da década de
1920 devem ser desfrutadas enquanto paisagem e não como espaço de lazer e banhos de mar,
que só eram recomendados com fins terapêuticos até então. Mesmo com a inauguração do Hotel
Copacabana Palace em 1922 que foi, de longe, o maior e mais luxuoso hotel do Brasil 41 com
desenho arquitetônico inspirado no famoso Hotel Carlton, situado no balneário de Cannes na
Riviera Francesa, esta nova função turística da praia demorou alguns anos para ser incorporada
aos guias. Ao que parece, a primeira praia carioca que foi alçada à condição de balneário
ganhando maior visibilidade turística foi a atual Praia Vermelha na Urca. Um anúncio da Revista
Brasileira de Turismo42 de 1925 a descrevia como:
41
Em 1944, com a inauguração do hotel-cassino Palácio Quitandinha em Petrópolis, deixou de ser o maior hotel do
Brasil, mas mantém até hoje a fama do hotel mais requintado.
42
Publicada como órgão oficial da Sociedade Brasileira de Turismo fundada em 1923. Em 1926, esta associação
passou a ser chamada de Touring Club do Brasil e teve um papel fundamental no fomento do turismo interno no país.
93
Ao longo das décadas de 1950 e 1960, com deslocamento das elites para os bairros-
balneários de Copacabana e Ipanema, o foco dos guias turísticos passa a privilegiar estas áreas
para onde também se transfere boa parte da rede hoteleira. Nesse período, é interessante notar
que transparece um equilíbrio entre elementos naturais e histórico-culturais na distribuição de
pontos turísticos mais valorizados pelas publicações especializadas. A partir dos anos 1970, a
abordagem dos guias, cada vez mais escritos por estrangeiros, residentes ou não no Brasil e
ligados a grandes grupos editoriais internacionais, passa por uma transformação radical.
Por essas veredas tão tropicais, seguem os guias especializados em relação ao Rio, no
que parece, um retorno, despojado de inocência e pureza, às origens imagéticas do paraíso
natural narrado ou pintado pelos viajantes de outrora. Narrativas que moldaram uma forma de
se interpretar a cidade através dos elementos naturais que, apesar dos esforços civilizatórios
republicanos, sempre dominaram os olhares estrangeiros para com a cidade. E que
materializam-se em textos para publicações especializadas em turismo como o que segue
abaixo:
95
Diários de viagem sempre gozaram de certo prestígio editorial desde século XVIII. De
certa maneira, este prestígio transferiu-se para os guias de viagem atuais que ganham cada vez
mais respeito, inclusive, enquanto estilo jornalístico /literário. Os espaços reservados para os
mesmos ocupam cada vez mais metragem nas livrarias e suas marcas mais famosas difundiram-
se globalmente como a pioneira Baedekers, seguida por Frommer’s, Fodor’s, Acess, Rough
Guides, Eye Witness e a mais famosa de todas, a Lonely Planet.
Como já mencionado, a minha proposta para o “Guia de Memórias da República no Rio
de Janeiro” é preencher um espaço ainda não devidamente aproveitado por outros guias sobre o
Rio, com dados significativos sobre a história e a evolução urbana e social da cidade,
principalmente no século XX. Um guia que, a partir de uma visão histórica do turismo cultural,
crie oportunidades para seus leitores lançarem um olhar experimental sobre o passado carioca
através de circuitos a serem percorridos a pé e com pequenos deslocamentos via transporte
público. Como defendido por Possamai (2011), “as maneiras de ler condicionam o corpo leitor,
ler a cidade pressupõe uma disposição corporal para percorrer seus espaços, se perdendo e se
achando”. A partir desse conceito, e com a devida liberdade poética, espero que seja um guia que,
ao promover passeios agradáveis e informativos pelas memórias de uma cidade, consiga
transformar seus usuários em novos flâneurs. Ao convidar os turistas culturais para uma
caminhada mais atenta pelo espaço urbano como faziam esses tipos celebrados por Baudelaire, o
guia os transportaria para uma viagem no tempo onde se sentiriam em casa pois “na entrada do
século XX prospera no Rio a postura do flâneur: ouvir as ruas para conhecer as entranhas da
cidade”. (Lessa, 2001:223).
Forma e Conteúdo
KNOPF GUIDES
Praticamente desconhecidos no Brasil, os guias da série Knopf Guides são publicados em
vários idiomas pela editora de mesmo nome, a Knopf Publisher Inc, que possui extensa tradição
na publicação de livros de arte. Esta expertise é repassada para os guias que possuem um design
elegante com composições visuais arrojadas refletindo a ênfase editorial sobre a história, a arte e
a arquitetura dos destinos. Conforme pode-se observar pelas páginas reproduzidas abaixo do
Knopf Guide da cidade de São Petersburgo na Rússia, a apresentação é primorosa. O apuro
visual, a preferência por utilização de fotos e ilustrações de época e o estilo gráfico vintage nos
remetem repetidamente para a uma dimensão do passado da cidade, como se fizéssemos uma
viagem temporal além da espacial nos passeios pelas cidades. Tudo isso, acompanhado por
textos com qualidade literária, alguns no formato de diário de viagem ou de crônica de costumes,
feitos por escritores ou jornalistas que mantém um “olhar estrangeiro” por sobre a cidade
retratada.
100
101
Figura 28
102
Esses guias de viagem tem como marca registrada uma apresentação gráfica bastante
original baseada em mapas aéreos tridimensionais de cada área da cidade, com vista geral de
bairros e ruas. A proposta é que o turista caminhe por uma região bem demarcada em itinerários
cujas as atrações são numeradas no mapa e ilustradas em pequenos boxes que saltam aos olhos,
que lembra uma interface digital com telas interativas e janelas de conteúdo. Todos os itens
apresentados recebem uma descrição por deveras objetiva e pouco aprofundada nas páginas
seguintes, com textos rápidos, ilustrações e fotos. Muito rico termos visuais, deixa a desejar em
termos de conteúdo, o que pode ser intuído pelo próprio slogan publicitário : “ o guia que mostra
o que os outros só contam”. A série de Guias é publicada mundialmente pela editora DK
(Dorling Kindersley) que ainda não lançou nenhum guia exclusivo para o Rio de Janeiro. O
exemplo das páginas que mostro a seguir foi retirado do guia lançado para o Brasil.
43
Coleção de Guias de Turismo publicados pela Publifolha e traduzidos dos originais em língua inglesa Eyewitness
Travel Guides da editora DK. É a 2ª marca de guias mais vendida no mundo atrás apenas da Lonely Planet.
103
No caso dos roteiros a serem desenvolvidos por bairros cariocas, o objetivo seria elencar
áreas que pudessem representar o “espírito da modernidade e do novo” em cada um dos 5
períodos históricos escolhidos e destacar os estilos arquitetônicos predominantes em cada
período. Assim sendo em uma primeira avaliação trabalharia com os seguintes bairros :
Abaixo apresento uma sugestão de circuito turístico-cultural para os primeiros cinco anos
de governo republicano no Brasil. Um período que seria retratado no guia dentro do espírito das
epígrafes acima, ou seja, conturbado, com inúmeras revoltas e sob a espreita ameaçadora da
sombra da monarquia. Em função disso, bens patrimoniais com uma carga simbólica muito
ligada ao regime monárquico comporiam o itinerário como são os casos do Castelo da Ilha Fiscal
( até hoje um dos lugares de memória monárquica mais fortes no país) e o Palácio da Quinta da
Boa Vista (onde parte do “encanto” monárquico conseguiu ser quebrado pelo processos de re-
utilizações do espaço pela República).
É importante frisar que as locações propostas para visitação nesse roteiro seguem a
intuição de um profissional de turismo com a devida experiência em city-tours e comprovada
paixão memorialística pelo passado da cidade. No entanto, a quem ainda falta a fundamental
perícia historiográfica para o desenvolvimento de um projeto tão complexo. Por isso, cabe a
reafirmação de que o roteiro abaixo apresentado é uma sugestão inicial de trajeto, à espera da
contribuição profissional de pesquisadores da história do Rio de Janeiro para atingir sua
maturação. Trata-se, portanto, de uma proposta aberta, ainda carente de ajustes para tornar-se
uma experiência turística o mais prazerosa, educativa e elucidativa possível para os usuários do
guia.
Outro ponto a se destacar é que a ordem de apresentação dos sítios sugeridos para visita
na dissertação segue uma relativa lógica cronológica, em obediência às noções metodológicas do
projeto já discutidas. Embora esse ordenamento por datas possa ser uma ferramenta facilitadora
para a compreensão dos processos históricos, em termos práticos torna-se uma impossibilidade
geográfica. Os leitores do guia não teriam disposição nem tempo para desenvolver percursos em
zigue-zague em prol de uma aproximação com a ordem cronológica dos acontecimentos.
Portanto, a forma mais adequada de se fazer o itinerário seria seguindo um encadeamento a partir
da proximidade espacial entre as atrações e a maior facilidade de transporte entre elas.
107
Chamo a atenção também para a “visita” prevista a sítios que já não mais existem em
termos concretos. Alguns nem mesmo sobreviveram como lugares de memória tanto por conta
da distância geracional já passada, assim como por terem sido substituídos em sua carga
simbólica por outros de semelhante valor. Este seria o caso, por exemplo, da antiga Câmara
Municipal, onde foi sancionada de fato a proclamação da república, e que localizava-se em
torno da atual Praça da República. A mesma foi posta abaixo, assim como parte do Campo de
Santana, para abertura da Avenida Presidente Vargas. No guia, através de registros fotográficos
do passado seria possível “conhecê-la”.
Em minha opinião, esses “ex-lugares” devem “reconhecidos” através de registros
fotográficos do passado impressos no guia e estabelecidos como pontos de parada durante o
percurso basicamente por duas razões. A primeira diz respeito à devida importância histórica
que tiveram em relação a personagens ou acontecimentos do período, e a segunda, mais
relevante, seria para que o leitor pudesse perceber a evolução urbanística do Rio de Janeiro no
século XX enquanto um processo de remodelações radicais da paisagem onde questões
pertinentes à preservação do patrimônio só recentemente foram observadas. O contato, via
imaginação, com estes “ itens da cidade ausente” - como vou designá-los no descritivo dos
roteiros - poderia contribuir para o desenvolvimento de convicções preservacionistas em tanto
em turistas quanto em residentes.
Cabe também informar que na apresentação que se segue, além dos pontos de parada
previstos, também destaco com um título, o tema que seria trabalhado nos boxes informativos
com informações complementares exclusivamente de caráter histórico.
Roteiro 1
1. CASTELO..DA..ILHA..FISCAL
+ B.I. – “O Canto do Cisne do Império”
4. PAÇO IMPERIAL .
+ B.I - “O Banimento da Família Real”
A Ilha Fiscal, que nos tempos de colônia era conhecida por Ilha dos Ratos e no
sec.XIX ganhou o seu atual nome porque ali funcionou o posto alfandegário da Guarda Fiscal,
é menos lembrada pela sua condição insular do que pelo castelo que se impõe em sua paisagem.
A ilha é o castelinho que pode ser avistado de qualquer ponto na entrada da Baía de Guanabara.
Este palacete foi projetado pelo engenheiro Adolfo del Vecchio em estilo gótico-
provençal nos moldes de um castelo estilizado da Idade Média, típico do sul da França. Sua
111
construção foi supervisionada pelo próprio imperador que referia-se à obra e ao cenário que a
emoldura com certa fascinação : "A ilha é um delicado estojo, digno de uma brilhante jóia".
Inaugurada em 27 de abril de 1889, a “jóia de D.Pedro II” pode ser considerada o último
legado histórico deixado à cidade pela família real. Por suas características arquitetônicas e por
ter abrigado o último baile da corte, ganha uma carga simbólica marcante na representação do
apogeu e ocaso da monarquia no Brasil.
O elegante palácio foi concebido para ser o quartel da guarda de fiscalização do porto
e foi destinado à Marinha que o administra desde a inauguração. Por ser um local de trabalho,
esteve fechado ao público até 1997, quando a Marinha decidiu transformá-lo em um museu.
Desde então, promove visitas guiadas ao local com os visitantes embarcando em escunas que
partem do Espaço Cultural da Marinha onde pode-se visitar navios e submarinos históricos.
O interior do palacete-museu reproduz com perfeição o mobiliário e o estilo de vida da
elite carioca no final do sec. XIX. Seus diversos salões dividem-se em várias exposições bem
distintas, boa parte ligada à ações da Marinha. O grande destaque é a exposição do Último Baile
com um acervo bem diversificado apresentando documentos, objetos e manequins com trajes de
época usados no grande baile, entre outras peças.
Outros pontos de destaque são o assoalho original em parquet, o relógio de 4 faces do
torreão central montado pela Casa Krussman e o maior brasão do Império, esculpido em granito
fluminense no frontão de entrada.
Ao final do tour, visita-se a parte superior do castelo, onde se pode vislumbrar um pouco
do requinte do salão onde foi realizada a troca de bandeiras entre Chile e Brasil por ocasião do
famoso baile. A sala é ricamente ornada com vitrais vindos da Inglaterra, que retratam de um
lado D. Pedro II e, do outro, a Princesa Isabel, ladeados por brasões.
112
BOX INFORMATIVO
sorvetes, que mesmo que sendo produzido desde 1834, ainda eram um item de luxo para o Brasil
da época.
A família real retirou-se por volta de 1 hora da manhã mas a festa prolongou-se até quase
o amanhecer. Dentre os itens “esquecidos” pelos convidados estavam 37 lenços, 24 cartolas e
chapéus, 5 condecorações militares, 8 raminhos de corpete, 3 coletes de senhoras e 17 cintas-
liga. Um descalabro para os padrões morais da época. Se isso não ocorreu de fato, foi pelo menos
o que foi noticiado no periódico oposicionista “O Paiz” no dia 12 de novembro.
Aliás, o luxo e as extravagâncias do evento foram o principal assunto da imprensa nos
dias que se seguiram. E teriam continuado a gerar manchetes, não tivessem os jornais que mudar
radicalmente o tom de suas notícias 6 dias depois por conta de um novo acontecimento muito
mais palpitante que tomou conta da capital: a proclamação da República.
O baile havia se cristalizado para sempre na memória nacional como o último suspiro da
monarquia.
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O passado é uma das formas de percepção de uma cidade. Isso nos parece muito
claro quando caminhamos, como turistas, por cidades europeias e mesmo em rincões mais
próximos como Buenos Aires. Aliás, foi a partir de uma experiência na capital argentina que
comecei a observar minha cidade, o Rio de Janeiro, com outros olhos, olhos de um visitante.
Naquela ocasião, nos idos da década de 1980, eu trabalhava como guia turístico e estava
acompanhando um grupo de brasileiros na capital portenha. Durante um passeio, por entre
edificações e palácios da belle époque bonaerense, um professor mineiro comentou em tom
elogioso que Buenos Aires era belíssima e que lhe lembrava muito o Rio de Janeiro. Lembro-me
que os cariocas do grupo, eu incluído, foram os que mais ficaram aturdidos com tal observação
que gerou protestos e foi motivo de chacota durante o resto da viagem. Afinal, para uma cidade
como o Rio, que sempre evoluiu urbanisticamente comprimida entre a supremacia do elemento
natural e a obrigação de espelhar as utopias modernizadoras nacionais, o presente deveria ser
sempre moldado pelo eterno e pelo futuro. Nunca pelo passado. Ao invés de se desprender por
tantas esquinas como em Buenos Aires, o passado carioca estava condenado a acanhar-se ao lado
de espigões, a esconder-se por entre viadutos e avenidas, a submergir nos túneis do metrô.
Aquela observação “duplamente turística”, feita por um mineiro em Buenos Aires,
serviu-me como uma epifania. Comecei a caminhar pelo Rio com esse “olhar estrangeiro” para o
116
passado da cidade e creio que a ideia de um guia de ruas com orientações simultâneas em
termos temporais e espaciais começou a tomar corpo durante essas caminhadas. O Rio, em
muitos aspectos, realmente lembra Buenos Aires, só que esses aspectos não eram tão comuns
nas áreas mais valorizadas da cidade no final do século XX. Já tinham perdido a vista para o mar
ou nunca haviam chegado a tê-la. O passado da cidade mantinha-se isolado do turismo que
precisava lidar com outras equações imagéticas mais complexas sobre o Rio como a promoção
da “modernidade no exotismo”ou vice-versa.
O fato é que essa postura de valorização do passado transformado em um item turístico,
tão disseminada em outros países, é uma tendência relativamente recente no Rio e no Brasil.
Percebe-se na administração pública das cidades brasileiras um engajamento, cada vez maior, à
políticas de preservação ou restauração do patrimônio histórico-cultural. Sinal flagrante de uma
mudança na forma de se lidar com a memória histórica em um país marcado por projetos
modernizadores que primaram pela rejeição ao passado, tentando suplantá-lo à todo custo, isto é,
destruindo seus vestígios em nome de uma ideia de progresso constante, vaticinada no próprio
lema da bandeira nacional.
O produto proposto em minha dissertação só encontra viabilidade por conta dessa nova
etapa no lidar do poder público para com o patrimônio histórico e na busca de maiores sentidos
de identificação cultural de brasileiros com seu passado. Como já discutido ao longo dos
117
ANEXOS
120
Artigo 1 º
CONTRIBUIÇÃO DO TURISMO PARA O ENTENDIMENTO E RESPEITO
MÚTUO ENTRE HOMENS E A SOCIEDADES
Artigo 2
O TURISMO, INSTRUMENTO DEDESENVOLVIMENTO
PESSOAL E COLETIVO
Artigo 3
O TURISMO, FATOR DEDESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Artigo 4
O TURISMO, FATOR DEAPROVEITAMENTO E ENRIQUECIMENTO
DO PATRIMÔNIO CULTURAL DAHUMANIDADE
Artigo 5
O TURISMO, ATIVIDADE BENÉFICA PARA OS PAÍSES E
AS COMUNIDADES DE DESTINO
3. Se dará atenção particular aos problemas específicos das zonas litorâneas e dos
territórios peninsulares, assim como das frágeis zonas rurais e de montanha,
aonde o turismo representa com freqüência uma das poucas oportunidades de
desenvolvimento diante do declínio das atividades econômicas
tradicionais.
Artigo 6
OBRIGAÇÕES DOS AGENTES DO DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO
Artigo 7
DIREITO AO TURISMO
Artigo 8
LIBERDADE DE DESLOCAMENTOTURÍSTICO
Artigo 9
DIREITO DOS TRABALHADORES E DOS
EMPRESÁRIOS DO SETOR TURÍSTICO
Artigo 10
APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOSDO CÓDIGO
ÉTICO MUNDIALPARA O TURISMO
CARTA INTERNACIONAL DO
TURISMO CULTURAL
Gestão do Turismo nos Sítios com
Significado Patrimonial - 1999
Adoptada pelo ICOMOS na 12.ª Assembleia
Geral no México, em Outubro de 1999
O ICOMOS, International Council on Monuments and Sites, assim como o autor desta
Carta, outras organizações internacionais e a indústria do turismo, estão empenhados nesse
desafio.
Objectivos da Carta
Além disso,
Princípio 1
1.1
1.2
1.3
1.4
Princípio 2
2.1
Os sítios com significado cultural têm um valor intrínseco para todas as pessoas, como
constituindo bases importantes para a diversidade cultural e para o desenvolvimento
social. A protecção e a conservação a longo prazo das culturas vivas, dos sítios património,
das colecções, da sua integridade física e ecológica, e do seu contexto ambiental, devem ser
uma componente essencial das políticas sociais, económicas, políticas, legislativas, culturais e
de desenvolvimentos turísticos.
2.2
2.3
2.4
2.5
2.6
Antes de os sítios património serem promovidos ou desenvolvidos para aumento do turismo,
devem ser avaliados planos de gestão dos valores naturais e culturais do recurso. De
seguida, devem ser estabelecidos limites apropriados para as alterações aceitáveis,
particularmente em relação ao impacto do número de visitantes sobre as características
físicas, a integridade, a ecologia e a biodiversidade do sítio, para o acesso ao local e sobre
os sistemas de transporte, e sobre o bem estar social, económico e cultural da comunidade
residente. Se for provável que o nível de alterações se torne inaceitável, a proposta de
desenvolvimento deve ser modificada.
2.7
Devem existir programas correntes de avaliação dos impactos progressivos das actividades
turísticas e do desenvolvimento sobre um sítio ou sobre uma comunidade em particular.
Princípio 3
3.1
3.2
Os visitantes devem poder usufruir o sítio património pelo seu próprio pé, se eles assim o
escolherem. Podem ser necessários caminhos de circulação que minimizem impactos
sobre a integridade e a fábrica física do sítio, e sobre as suas características naturais e
culturais.
3.3
O respeito pela santidade dos sítios espirituais, das práticas e das tradições é uma
consideração importante para os gestores dos sítios, para os visitantes, para os autores
de políticas, para os planeadores e para os operadores turísticos. Os visitantes devem ser
encorajados a comportarem-se como hóspedes benvindos, respeitando os valores e os
estilos de vida da comunidade residente, rejeitando o possível roubo ou o tráfico ilícito da
propriedade cultural, e conduzindo-se de uma maneira respeitosa que possa gerar um
renovado bom acolhimento, no caso de regressarem.
3.4
Princípio 4
4.1
4.2
Embora o património de qualquer sítio, ou região, específico possa ter uma dimensão
universal, devem se respeitadas as necessidades e os desejos de algumas comunidades, ou
povos indígenas, de restringirem ou de gerirem o acesso físico, espiritual ou intelectual a
certas práticas culturais, conhecimentos, crenças, actividades, artefactos ou sítios.
Princípio 5
As actividades do turismo e da conservação devem beneficiar a comunidade residente.
5.1
5.2
5.3
5.4
5.5
5.6
Princípio 6
6.1
6.2
Os sítios e as colecções com significado cultural devem ser promovidos e geridos por
formas que protejam a sua autenticidade e que valorizem a experiência do visitante, pela
minimização das flutuações nas chegadas e evitando números excessivos de visitantes,
todos ao mesmo tempo.
6.3
6.4
A promoção, distribuição e venda de artigos locais, e de outros produtos, deve proporcionar um retorno
social e económico razoável à comunidade residente, ao mesmo tempo que deve garantir que a sua
integridade cultural não é degradada
© ICOMOS
139
140
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