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CTT IT e- Se tC ag A OMA) VM aT OS lp rir oR A FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA LNFORMAGAO Orlandi, Eni Puccinelli, 1942- Orsf As formas do siléncio: no movimento dos sentidos / Eni Puccinelli Orlandi, - 6 ed, - Campinas, st: Editorada Unicamp, 2007. 1. Linguagem ~ Filosofia. 2, Silencio. 3. Sentidos ¢ sensagoes. L Titulo. CDD 401 001.56 ISBN 978-85-268-075 5-6 T5260 fndices para catdlogo sistematico: 1. Linguagem—Filosofia 4or 2. Siléncio 001.56 3. Sentidos e sensagées 152.1 Copyright © by Eni Puccinelli Orlandi Copyright © 2007 by Editora da Unicamp 2 reimpresséo, 2011 Nenhuma parte desta publicagio pode ser gravada, armazenada em sistema elettdnico, fotocopiada, reproduzida por meios mecAnicos om outros quaisquer sem autorizagio prévia do editor, Editora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50 - Campus Unicamp CEP 13083-892 — Campinas - sp — Brasil ‘Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 wwweditoraunicamp-br - vendas@editoraunicamp.br Nao hd, 6 gente, 6 nao, luar como este do sertéo... CaTUuLo DA PalxA0 CEARENSE, “Luar do Serta SuMARIO InTRoDUGAO SILENCIO E SENTIDO Os Limites po Métopo & DA OBSERVAGAO. SILENCIO, SUJEITO, HISTORIA SIGNIFICANDO NAS MARGENS .......sssssssssscscsesesstsenseseseeeessensee SILencios E REsisTENCIA Un ESTUDO DA CENSURA..csesssssessssssseesssssscesecassnserectseeeeon SILENCIO, COPIA E REFLEXAO .asssesssssssssssssssstensessseseeess BIBLIOGRAFIA ssvessccassrerovsrevnpssoravsisnvnsrexuvcnescenveies InTRODUGAO I'screver um livro sobre o siléncio apresenta suas di- liculdades. Porque toma-lo como objeto de reflex4o, ¢ colocarmo-nos na relagao do dizivel com o indizi- vel, nos faz correr o risco mesmo de seus efeitos: o de iio saber caminhar entre o dizer e o nao-dizer. De todo moda, ¢ interessante lembrar aqui que, se meu primeiro livro publicado tinha como sub- titulo “As formas do discurso” (Brasiliense, 1983), nao é por acaso que, feito um percurso de reflexdo ¢ escrita, eu tenha chegado a este que, de direito, tem como titulo.As formas do siléncio. O fio condutor deste livro ¢ a apresentagio dos sentidos do siléncio e¢ isso que o estudioso da lingua- gem encontrard aqui desenvolvido com a cautela de quem cuida de explorar os entremeios tanto das disci- plinas como das diferentes teorias da linguagem, procurando no entanto uma especificidade. Acredito que o mais importante ¢ compreender que: 1. hé um modo de estar em siléncio que corres- ponde a um modo de estar no sentido e, de certa ma- neira, as proprias palavras transpiram siléncio. Hd siléncio nas palavras; 2. 0 estudo do silenciamento (que ja nao é siléncio mas “pdr em siléncio”) nos mostra que hé um processo de produgio de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensio do nio-dito absolutamente distinta da que se tem ¢s- tudado sob a rubrica do “implicito”. Vale lembrar que a significagio implicita, segundo O. Ducrot (1972), “aparece — e algumas vezes se da — como sobreposta a uma outra significacao”. Essa distingao que fazemos entre implicito e siléncio estard dita de muitos modos neste nosso trabalho, j4 que, para nds, o sentido do siléncio nao é algo juntado, sobre- posto pela intengao do locutor: hé um sentido no siléncio, O siléncio foi relegado a uma posigio se- cundaria como excrescéncia, como o “resto” da lin- guagem. Nosso trabalho o erige em fator essencial como condicio do significar, como veremos. Se uma dessas caracteristicas (a 1) livra o siléncio do sentido “passive” e“negativo” que lhe foi atribuido nas formas sociais da nossa cultura, a outra (a2) liga o nao-dizer a histéria ¢ a ideologia. Por outro lado, h4 uma dimensao do siléncio que remete ao cardter de incompletude da linguagera: todo dizer é uma relagio fundamental com 0 nao- dizer. Essa dimensfo nos leva a apreciar a errancia dos sentidos (a sua migragio), a vontade do “um” (da unidade, do sentido fixo), o lugar do non sense, o equivoco, a incompletude (lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do nao-apreensfyel), nado como meros acidentes da linguagem, mas como © cerne mesmo de seu funcionamento. 12. | As FORMAS 00 SLENCIO Movimento, mas também relagao incerta entre inudangae permanénciase cruzam indistintamente iio silencio. Nem um sujeito tao visivel, nem um wentido tao certo, eis o que nos fica 4 m&o quando \profundamos a compreensao do modo de signi- ficar do siléncio. E que chega a nos fazer com- Ee ees preender de modo interessante o que € plo, a censura, vista aqui por ndés nao como um ilaclo que tem sua sede na consciéncia que um i= dividuo tem de um sentido (proibido), ‘mas como um fato produzido pela historia. Pensada através ila nogao de siléncio, como veremos, a propria no- yao de censura se alarga para compreender qual- (uer processo de silenciamento que limite o su- jeito no percurso de sentidos. Mas mostra ao mesmo tempo a forga corrosiva do siléncio que faz significar em outros lugares 0 que nao “vinga” em um lugar determinado. O sentido nao para; ele muda de caminho. O siléncio é assim a “tespiragao” (0 fdlego) da sig- nificagao; um lugar de recuo necessdrio para que se possa significar, para que o sentido faca sentido. Re- duto do posstvel, do multiplo, 0 siléncio abre espago para o que nao é “um”, para o que permite 0 movi- mento do sujeito. O real da linguagem — o discreto, o um — en- contra sua contraparte no siléncio. - O siléncio como horizonte, como iminéncia do sentido, tal como expressamos no corpo de nosso trabalho, aponta-nos que o fora da linguagem nao é o nada mas ainda sentido. ntroougao | 13 Siléncio que atravessa as palavras, que existe en- tre elas, ou que indica que o sentido pode sempre ser outro, ou ainda que aquilo que ¢ mais impor- tante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e do siléncio nos levam a colocar que o siléncio é “fundante”. Desse modo, nesta nossa reflexio, procuramos indicar as varias pistas pelas quais alcangamos esse principio da significagao: o siléncio como fundador. Paralelamente, aprofunda- mos a andlise dos modos de apagar sentidos, de si- lenciar e de produzir o nao-sentido onde ele mostra algo que ¢ ameaga. Assim, quando dizemos que ha siléncio nas pa- lavras, estamos dizendo que elas sao atravessadas de siléncio; elas produzem siléncio; o siléncio “fala” por clas; elas silenciam. As palavras sao cheias de sentidos a nao dizer e, além disso, colocamos no siléncio muitas delas. Mas hd também um outro aspecto da reflexao so- bre o siléncio que consideramos bastante relevante. Trata-se do fato de que, pela exploragao mesma da capacidade de compreender o siléncio com nossos procedimentos reflexivos, fizemos um percurso pe- la andlise de discurso que nos mostra, por sua;Vvez, ° a fungio e o alcance de alguns de seus conceitos, assim como nos permite avaliar melhor seu espago tedrico ea historia de seu desenvolvimento. Isso se deve talvez ao fato de que, procurando entender a materialidade simbdlica espectfica do silencio, pudemos alargar a compreensao da nossa relagdo com as palavras. Esse lago, assim compreen- 1 | as FoRtas 00 SILENCIO ilido, indica-nos que nao estamos nas palavras para lular delas, ou de seus “contetidos”, mas para falar ‘om elas, Se assim podemos passar de palavras para \ Imagens (relagio do verbal com a metéfora), fa- vemos ainda outra passagem mais radical, passan- ilo das palavras para o “jogo”. E nessa dimensao do \iynilicar, como jogo de palavras, em que importa jiuis a remissao das palavras para as palavras — des- inontando a nogao de linearidade e a que centra o wentido nos “contetidos” —, que o siléncio faz sua entrada. © nao-um (os muitos sentidos), o efeito ilo um (0 sentido literal) ¢ o (in)definir-se na re- lagiio das muitas formacées discursivas tém no si- léncio © seu ponto de sustentagio. Desse modo é que se pode considerar que todo discurso j4 é uma (ala que fala com outras palavras, através de outras palavras.’ Com efeito, através da reflexao sobre o siléncio, rellexdo que tem como base a formulagao de ques- \6cs que pensassem o “nao-dito” discursivamente, para que se tornasscm visiveis aspectos deste que nao aparecem no tratamento lingitistico ou prag- matico dado a ele, também alguns aspectos da ana- lise de discurso se tornaram mais claros. Uma observacao se imp6e para situar um ponto essencial dessa relacéo de meu trabalho sobre o si- léncio ¢ a compreensio de certo percurso tedrico da andlise de discurso. Embora a condigao do significar 1 Sem esquecer que, da perspectiva discursiva, as palavras jé sio sempre discursos, na sua relagao com os sentidos. wiropucao | 15 seja o imaginatio — do sujeito e do sentido —, paraa andlise de discurso hé real (mesmo que para isso seja preciso distinguir diferentes tipos de “real”, segun- do Paécheux, 1983). E nessa relacio do imagindrio com o real que podemos apreender a especificidade da materialidade do siléncio, sua opacidade, seu tra- balho no processo de significacao. Ea partir desse ponto de vista que gostariamos de situar algumas questdes fundamentais para quem trabalha com o discursivo. Nao devemos, por outro lado, esquecer que, embora as nogdes de imagindrio, real e sim- bélico estejam definidas como tal no campo da psicandlise, o modo como a andlise de discurso vai articular essas trés nodes é proprio de seu campo especifico. Essa especificidade esta em que a articula- gio dessas trés nogdes se da, na andlise de discurso, em relagao a ideologia ¢ 4 determinagao historica ¢ nfo ao inconsciente, como é 0 caso da psicandlise. Isso produz um certo deslocamento no modo de pensar essas nogdes em suas posigdes relativas, pars ticularmente em relagao ao que a andlise de dis- curso trata no dominio do imagindrio e dos efeitos da evidéncia, produzidos pelos mecanismos ide as légicos. Tomando Pécheux como referéncia basica para entender a andlise de discurso da escola francesa, podemos dizer que o que singulariza 0 pensamento desse autor, c estabelece conseqiientementea susten- tacio fundamental da andlise de discurso, ¢ 0 lugar particular que ele daa lingua, de um lado, em rela- cio aideologia, que ele trata no dominio conceptual 16 | AS FoRMAS 00 siLencio ‘lo “interdiscurso’, e, de outro, ao inconsciente, na iehijio da lingua com o que seria a alangue (Lacan) : (le que Pécheux nao trata especificamente* em seu \iabatho, j& que ele visa justamente o outro lado des- 1 1elagdo: o discurso como lugar de contato entre linpuae ideologia. Isso Ihe permite conccber, diferentemente das cién- ‘lav sociais, o que é e como funciona a ideologia (pela jvo-transparéncia da linguagem: leia-se pela tomada vin consideragao da materialidade lingitistica), ao iiesmo tempo em que desloca 0 conceito de lingua ei sua autonomia absoluta (como ¢ vista na lingitis- \iea) para a autonomia relativa (pensando a mate- i\alidade histérica). Daf sera andlise de discurso por tle proposta distinta da andlise de contetido e da initlise lingiifstica, O funcionamento do siléncio atesta o movimen- io do discurso que se faz na contradigio entre o ium” eo “multiplo”, o mesmo e o diferente, entre purdfrase e polissemia. Esse movimento, por sua vez, mostra o movimento contraditério, tanto do wujcico quanto do sentido, fazendo-se no entremeio entre a ilusao de um sentido sé (cfeito da relagao com o interdiscurso) ¢ 0 equivoco de todos os sen- tidos (efeito da relagao com a /alangue). Embora iio trabalhasse, como trabalhamos, com 0 siléncio, Pécheux conduziu com maestria, ao longo de sua M, Pécheux (2969, p. 110): “Nous soulignons encore une fois que la ildorie du discours ne peut en aucune fagon se substituer A une théorie le Pidéologie, pas plus qu’a une théorie de Finconscient, mais quelle peut initervenir dans le champ de ces théories’. wiroougao | 17 teflexdo, a consideragao da regularidade e do equi- voco. Nao como observador onisciente, que, com seu esboco de teoria, tudo pudesse controlar, mas como quem sofria teoricamente os embates do jogo dos sentidos (no observado e no observador). Palavras com palavras, palavras com conceitos, pa- lavras com coisas, interioridade com exterioridade, descrigio e interpretagao, csses foram os pares que nao deixaram de se colocar em sua movéncia no pré- prio modo de esse autor pensar a teoria do discurso. No entanto, se algo fica como alvo fixo nessa cons- tante movéncia, é sem ditvida o reconhecimento de que se tem necessidade da “unidade” para pensar a diferenga, ou melhor, ha necessidade desse “um na construgio da relagao com © miltiplo. Nao a “unidade” dada mas 0 fato da unidade, ou seja, a “uni- dade? construida imaginariamente. Ai est4.a grande contribuicio da andlise de discurso: observar os modos de construgio do imaginario necessario na produgao dos sentidos. Por nao negar a eficdcia ma- terial do imagindrio, cla torna visiveis os processos da construgao desse “um” que, ainda que imaginaria, necessdria e nos indica os modos de existéncia e.d relagdo com 0 miultiplo, pois, como diz Pécheux (1975, pp. 83-84), “a forma unitaria € meio essen- cial da divisao e da contradigio’. Ou, dito de outra maneita, a diferenga precisa da construgao imagina- ria da “unidade”. Os que negam a eficdcia do imagi- nario em geral o reduzem seja ao “irveal’, seja a um. ‘ulcmos que a dispersao dos sentidos e do sujei- jd condigao de existéncia do discurso (Orlandi ¢ (uimaries, 1988), mas para que funcione ele toma \ aparéncia da unidade. Essa ilusio de unidade é tivity ideoldgico, é construgdo necessdria do ima- ylitvio discursivo. Logo, tanto a dispersio como a iliwao da unidade sao igualmente constitutivas. listas nossas consideragdes vao na diregio de peusar a lingua como “base comum de todos os jacessos discursivos’, ou seja, de pensar a necessi- ‘hide de manter a nogao de lingua (enquanto estru- \va) como pré-requisito indispensdvel para pensar 14 processos discursivos. Entretanto, no se trata de pensar a lingua enquanto forma abstrata mas em ia materialidade. Isso tudo pode ser observado, no pensamento ile Pécheux, quando ele considera que a ideologia ‘ao funciona como um mecanismo fechado (e sem lulhas) nem a lingua como um sistema homo- }Cnco, Mais precisamente, como tivemos a ocasiao de afirmar muitas vezes em nosso trabalho (Or- landi, 1983, p. 162), a relagao entre lingua e dis- curso se faz por reconhecimento, ¢ suas fronteiras ao colocadas em causa constantemente. A lingua iio existe pois na “forma de um bloco homogé- neo de regras organizado 4 maneira de uma ma- quina Idgica” (Pécheux, idem). Dai o vai-e-vem incessante entre a ordem das coisas, a do pen- samento ¢ a do discurso, e que mostra a decalagem constante entre pensamento e forma gramatical na constituigio discursiva dos referentes. Ha, em su- iad? “efeito psicolégico individual, de natureza poetica. Nao véem assim sua necessidade ¢ sua eficacia. INTRODUGAO 18 | _ AS FORMAS DO SILENCIO wwiropucao | 19 ma, uma separagao irremedidvel entre a ordem das coisas ¢ a do discurso. £ nesse Ingar tedrico que aparece a necessida- de da ideologia na relacao com a produgio de sen- tidos. A ideologia se produz justamente no ponto de encontro da materialidade da lingua com a ma- terialidade da histéria, Como o discurso € 0 lugar desse encontro, é no discurso (materialidade espe- cifica da ideologia) que melhor podemos obser- var esse ponto de articulacéo. Para isso 7 preciso compreender o estatuto tedrico e metodoldgico do conceito de formagio discursiva na andlise de dis- curso, As diferentes formulagoes de enunciados se retmem em pontos do dizer, em regides historica- mente determinadas de relagées de forga ¢ de sen- tidos: as formacées discursivas. Expliquemo-nos. Para Pécheux, o discurso € efeito de sentidos entre locutores. Compreender o que € efeito de sentidos écompreender que o sentido nao est (alocado) em jugar nenhum mas se produz nas relagGes: dos su- jeitos, dos sentidos, ¢ isso sé posstvel, ja que suj eito e sentido se constituem mutuamente, pela sua ins- crigio no jogo das multiplas formages discursivas (que constituem as distintas regides do diztvel para os sujeitos). As formagées discursivas sio diferen- tes regides que recortam 0 interdiscurso (0 .dizivel, a meméria do dizer) ¢ que refletem as diferengas ideoldgicas, o modo como as posigdes dos sujeitos, seus lugares sociais ai representados, constituem sentidos diferentes. © dizivel (o interdiscurso) se parte em diferentes regiocs (as diferentes formagées 20. | As FORIAS 00 SILENCIO lincunsivas) desigualmente acessiveis aos diferentes lctitores, Quando se concebe a lingua — como os linpulistas — enquanto sistema de formas abstratas (e mo material), tem-se a transparéncia e o efei- to de literalidade. Porém, se a concebemos — na perspectiva discursiva — como materialidade, essa mutcrialidade lingitistica € o lugar da manifestacao thus relagdes de forgas e de sentidos que refletem os -ontrontos ideolégicos. Essa perspectiva devolve a upacidade do texto ao olhar do leitor. Compreender 0 que € efeito de sentidos, em su- ma, é compreender a necessidade da ideologia na constituigdo dos sentidos ¢ dos sujeitos. E da telacio icputlada historicamente entre as muitas formagées dliscursivas (com seus muitos sentidos possiveis que se limitam reciprocamente) que se constituem os iliferentes efeitos de sentidos entre locutores. Sem esquecer que os préprios locutores (posi¢des do su- jcito) no sdo anteriores 4 constituicao desses efeitos mas se produzem com cles. Importa ainda lembrar uc o limite de uma formagao discursiva é 0 que a distingue de outra (logo, 60 mesmo limite da outra), 0 que permite pensar (como Courtine, 1982) que a lormagio discursiva ¢ heterogénea em relagao a ela mesma, pois j4 evoca por si o “outro” sentido que cla nao significa. Ora, a relacdo com as miltiplas for- mag6es discursivas nos mostra que nao hd coincidén- cia entre a ordem do discurso e a ordem das coisas. Uma mesma coisa pode ter diferentes sentidos para os sujeitos, E é af que se manifestam a relagao contra- ditéria da materialidade da lingua e a da histéria. itroDugKO | Falar em “efeitos de sentido” é pois aceitar que se est sempre no jogo, na relagao das diferentes for- magées discursivas, na relacao entre diferentes sen- tidos. Dai a presenga do equivoco, do sem-sentido, do sentido “outro” e, conseqiientemente, do inves- timento em “um” sentido. Aise situa o trabalho do siléncio. Essa relagado entre os processos discursivos ¢ a lingua est4 na base da compreensio do imaginario como necessario. Os processos discursivos se de- senvolvem sobre a base dessa estrutura (a lingua) € nao enquanto expressio de um puro pensamen- to, de uma pura atividade cognitiva que utilizaria “acidentalmente” os sistemas lingiifsticos (Pécheux, ibidem). Dai que discurso nao é a fala, isto ¢, uma forma individual concreta de habitar a abstragao da lingua. Ele nao tem esse carater “antropolégico”. Os discursos estao duplamente determinados: de um lado, pelas formacoes ideoldgicas que os relacio- nam a formagées discursivas definidas e, de outro, pela autonomia relativa da lingua. Desse modo, se 0 lingiiista pode dizer que a lin- gua ¢ indiferente ao discurso, pois teny sua auto- nomia relativa, ela se rege por leis internas, o ana- lista de discurso dira no entanto que o discurso nao ¢ indiferente a lingua. E 0 que diz Courtine (1982) quando afirma que o discurso materializa © contato entre 0 ideoldgico e o lingiifstico, pois ele representa no interior da lingua os efeitos das contradigdes ideolégicas ¢ manifesta a existéncia da materialidade lingit{stica no interior da ideo- logia. Por que, diz cle, falamos a mesma lingua e falamos diferente? E assim que podemos compreender o silancio fundador como o nio-dito que é histéria ¢ que, dada a necess4tia relacao do sentido com o imagi- nario, é também fungio da relagao (necessdria) en- tre lingua ¢ ideologia. O siléncio trabalha entio essa necessidade. Sealinguagem implica siléncio, este, por sua vez, é0 nao-dito visto do interior da linguagem. Naoéo nada, nao € 0 vazio sem histéria. E 0 siléncio signi- ficante. Vale alids a pena redizer, nesta introdugao, 0 que scré dito em muitas partes desta reflexio: 0 fato de que a relacio siléncio/linguagem é comple- xa, sem deixar de sublinhar ainda uma vez que, no entanto, em nossa reflexao, o siléncio nao ¢ mero complemento de linguagem. Ele tem significancia prépria. E quando dizemos fundador estamos afir- mando esse seu cardter necessdrio e proprio. Funda- dor nao significa aqui “origindrio”, nem o lugar do sentido absoluto. Nem tampouco que haveria, no siléncio, um sentido independente, auto-suficiente, preexistente. Significa que o siléncio é garantia do movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do siléncio? O siléncio nao é pois, em nossa perspec- tiva, o “tudo” da linguagem. Nem o ideal do lugar “outro”, como nao é tampouco 0 abismo dos sen- 3, Einseressante observar, em rslagio a essa importincia fundamental do silencio, o fato de que a expressio “algo calou fiando em X” mostra bem © seu sentido diiplice: calar = nao dizer, e, no caso, calar = impregnar 0 sujeito X daquele sentido, itropugao | 23 tidos. Ele é, sim, a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradigao constitutiva, a que o situa na relacao do “um” com o “miultiplo”, a que aceita a reduplicacao ¢ o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discut- so que lhe da realidade significativa. Por isso, distinguimos entre: a) 0 siléncio funda- dor, aquele que existe nas palavras, que significa © nao-dito ¢ que da espago de recuo significante, produzindo as condigoes para significa; ¢ b) a po- litica do siléncio, que se subdivide em: b 1) siléncio constitutivo, o que nos indica que para dizer ¢ pre- ciso nao-dizer (uma palavra apaga necessariamente as “outras” palavras); ¢ b 2) 0 siléncio local, que se refere & censura propriamente (aquilo que é proibi- do dizer em uma certa conjuntura). Isso tudo nos faz compreender que estar no sentido com palavras e estar no sentido em siléncio sio modos absoluta- mente diferentes entre si. E isso faz parte da nossa forma de significar, de nos relacionarmos com o mundo, com as coisas € com as pessoas. Finalmente, sea reflexdo sobre o siléncio nos mos- traacomplexidade da andlise de discursa, j4 que por ela podemos nos debrugar sobre os efeitos contradi- térios da producao de sentidos na relac&o entre o dizer ¢ o nao-dizer, essa reflexao nos ensina também que, embora seja preciso que ja haja sentido para produzir sentidos (falamos com palavras que j4 tém sentidos), estes nado estao nunca completamente ja la. Eles podem chegar de qualquer lugar ¢ eles se movem e se desdobram em outros sentidos, 24 | AS FORMAS Do SiLeNCIO Essa possibilidade de movimento, dedeslocamen- to de palavras em presenga e auséncia, leva-nos a fa- ver um paralelo que mostra ao mesmo tempo uma relagao fundamental entre a linguagem ¢ 0 tempo. Em latim, 0 tempo marcado (tempus) tem uma relagao com 0 “eyo” (aevum), que ¢ 0 tempo con- tinuo. O tempo é que marca 0 “evo”. A definigéo do tempo medieval (em Sao Tomas) é zumerus mo- tus secundum prius et posterius, ou seja, o nimero do movimento segundo 0 que vem antes e depois (medioevo = evo médio). Assim é que vemos a re- lagao entre palavra ¢ siléncio: a palavra imprime-se no continuo significante do siléncio ¢ ela o marca, o segmenta e 0 distingue em sentidos discretos, cons- tituindo um tempo (sempus) no movimento con- tinuo (aevum) dos sentidos no siléncio.t Podemos enfim dizer que ha um ritmo no significar que su- pe o movimento entre siléncio e linguagem. 4 Agradego ao professor Mendonga a possibilidade desse paralelo. Além dessa forma latina, ele também lembrou a presenca do siléncio nos textos de Guimaraes Rosa, c referiu a fala da gente da roga 20 negociar bois. Uma conversa que pode durar muito tempo ¢ na qual desvios ¢ introducao de Hovos assuntos ndo significam interrupgao de negociacao. As expresses que vao marcar 0 negdcio feivo ou nao (“Quanto voce quer?”/“Quanto vocé d42”) podem vir entremeadas de muito siléncio que nao ¢ de modo algum sem sentido. wrropugao | 25 SILENCIO E SENTIDO No inicio é 0 siléncio. A linguagem vem depois Quando o homem, em sua histéria, percebeu 0 si- loncio como significagao, criou a linguagem para reté-lo. O ato de falar ¢ 0 de separar, distinguir e, parado- xalmente, vislumbrar 0 siléncio e evita-lo. Esse ges- to disciplina o significar, pois j4 é um projeto de se- dentarizagio do sentido. A linguagem estabiliza 0 movimento dos sentidos. No siléncio, ao contrario, sentido e sujeito se movem largamente. Em suma: quando o homem individualizou (ins- tituiu) o siléncio como.algo significativamente dis- cernivel, ele estabeleceu 0 espaco da linguagem. Apreendendo o siléncio Estudando o discurso religioso, tive de passar ne- cessariamente pela questao do siléncio. E para nao estacionar no tio conhecido siléncio mistico, fiz um esforgo de reflexo para pensar as outras formas de siléncio, eu diria mesmo os outros siléncios. As palavras séo multiplas mas os siléncios tam- bém o sao. A especificagao dessa idéia comecou a se claborar a partir da minha observacio sobre dife- rentes ordens de discurso em suas distintas proprie- dades ¢ definigées. A primeira coisa que percebi é que, inadvertida- mente, eu havia mal definido o discurso religioso como “aquele em que fala a voz de Deus” (Orlandi, 1983). Essa definicao pode ser interessante parao ted- logo, mas nao o é para o analista de discurso. Dessa perspectiva, a do analista de discurso, 0 que se pode dizer ¢ que o que funciona na religiao é a oni- poténcia do siléncio divino. Mais particularmente, isso quer dizer que, na ordem do discurso religioso, Deus €0 lugar da onipoténcia do siléncio. E 0 homem pre- cisa desse lugar, desse siléncio, para colocar uma sua fala especifica: a de sua espiritualidade. Nem por isso a religido deixa de lhe ser funda- mental: no discurso religioso, nao ¢ apenas o mesmo sempre-homem falando; 0 que importa é quéa reli: gido institui um outro lugar e assim da um estatuto (ec, logo, um sentido) diferente a essa fala. Diferenga a qual o homem nio ¢ indiferente. Assim, reformulando a definiggo que havia pro- posto, eu diria agora que no discurso religioso, em seu siléncio, “o homem faz falar a voz de Deus”, A partir dessas reflexes, e conduzida pela mi- nha convivéncia com a discussio sobre o politico na linguagem, interessei-me Por outra caracteristi- 28 | AS FORMAS no siwencio ca desse mesmo tema: a politica do siléncio. Isto go silenciamento. Ai entra toda a questio do “tomar” a palavra, “tirar” a palayra, obrigar a dizer, fazer calar, silenciar ete. Em face dessa sua dimensio politica, o siléncio pode ser considerado tanto parte da retérica da do- minago (adao presséo) como de sua contrapartida, aretérica do oprimido (a da resisténcia). E tem todo um campo fértil para ser observado: na relacao en- tre indios e brancos, na fala sobre a reforma agraria, nos discursos sobre a mulher, s6 para citar alguns terrenos ja explorados por mim. A partir dai uma nova passagem tedrica se faz necessaria. Nao é suficiente pensar o silenciamento. Para compreender alinguagem é preciso entender o siléncio para além de sua dimens4o politica. Desenvolvendo entao essa reflexio podemos che- gar a algo que, a meu ver, coloca em estado de ques- tao a prdpria histéria da reflexdo sobre a linguagem, com respeito tanto 4 Gramatica quanto a Retérica. Chegamos entio a uma hipétese que é extrema- mente incémoda para os que trabalham com a lin- guagem: 0 siléncio ¢ fundante. Quer dizer, 0 siléncio éa matéria significante por exceléncia, um conti- nuum significance. O real da significacao € 0 silén- cio. E como 0 nosso objeto de reflexio éo discurso, chegamos auma outra afirmacao que sucede a essa: 0 siléncio é 0 real do discurso. O homem esté “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, ha uma injungao 4 “interpretacao”: tudo tem de fazer sentido (qual- SiLENcIO E senting | 29 quer que ele seja). O homem esta irremediavelmen- te constituido pela sua relacao com o simbélico. Numa certa perspectiva,adominante nos estudos dos signos, produz-se uma sobreposigao entre lin- guagem (verbal ¢ nao-verbal) c significacao. Disso decorreu um recobrimento dessas duas no- ges, resultando uma reducio pela qual qualquer maré- via significante fala, isto é, é remetida 4 linguagem (so- bretudo verbal) para que lhe seja atribuido sentido. Nessa mesma direg4o, coloca-se o “império do verbal” em nossas formas sociais: traduz-se o silén- cio em palavras. Vé-se assim o siléncio como lingua- gem e perde-se sua especificidade, enquanto maté- ria significante distinta da linguagem. Revendo o dilema entre Semiologia e Lingiifs- tica — qual contém qual? —, podemos coloca-lo como um falso dilcma, pois pressupde a domi- nancia da linguagem verbal: toda linguagem esta repassada de linguagem verbal ou, como se diz, todo sistema de signos (de qualquer natureza) é atravessado (interpretado) pela linguagem verbal. Sao pensadas af as varias linguagens, sem, contudo, se conceder um lugar mais decisivo a sey. exterior. Sendo a relagio do homem com o sentido’ uma re- lacio necesséria, o significar nao tem exterior; no entanto, se concebemos 0 siléncio tal como estamos propondo, a linguagem tem. So se pode pensar o siléncio, sem cair na armadi- Iha dessa relagdo, quando se pensa o “avesso da cs- trutura’, sem o binarismo, sem as oposigdes ¢ regras estritas e categdéricas. Quando se pensam radical- 30 | As FoRMAS 00 siLénicio mente no os produtos Mas Os processos de Signifita- cao, isto é, 0 discurso. Entao, ao invés de pensar osilénciocomo falta, pode- mos, ao contrario, pensar a linguagem como excesso. Essa possibilidade, alids, j4 estd tematizada na linguagem corrente em expressdes que se opdem, como as que seguem: Estar em siléncio/Romper o siléncio Guardar o siléncio/Tomar a palavra Ficar em siléncio/Apropriar-se da palavra Nelas se pode perceber o siléncio como 0 estado primeiro, aparecendo a palavra j4 como movimento em torno. Na perspectiva que assumimos, o siléncio nao fala. O siléncio é Ele significa. Ou melhor: no silén- cio, o sentido Podemos mesmo chegar a uma Proposicéo mais forte, invertendo a posigéo que nos ¢ dada pelo senso comum (e sustentada pela ciéncia), na qual a linguagem aparece como “figura” e o siléncio como “fundo”. Desse modo, podemos dizer que o siléncio € que é “figura”, ja que ¢ fundante. Estru- turante, pelo avesso. Fazendo-se um paralelo com © que diz Hjelmslev (1943) a propdsito dos trés niveis, o da subscAncia, oda forma e o da matétia (sens), € no nivel dessa ultima que localizamos 0 siléncio fundante. Constitutive em primeira e multiplas instAncias, ele tem primazia sobre as palavras. Siténcio ESentioo | 31 A linguagem, por seu lado, ja é categorizagdo do siléncio. E movimento periférico, ruido. O desejo de unicidade que atravessa o homem é fungao da sua relagao com o simbdlico sob o modo do verbal. Alinguagem ¢ conjuncao significante da existén- cia e é produzida pelo homem, para domesticar a significagio. A fala divide 0 siléncio. Organiza-o. O siléncio é disperso, ¢ a fala é voltada para a unicidade ¢ as entidades discretas. Formas. Segmentos visiveis ¢ funcionais que tornam a significagao calculdvel. Se tudo isso pode ser dito a propésito da lingua- gem, falar do siléncio traz, em si, uma dificuldade maior, ja que ele se apresenta como absoluto, conti- nuo, disperso. O siléncio nao esta disponivel a visibilidade, nao é diretamente observavel, Ele passa pelas pa- lavras. Nao dura. Sé é possivel vislumbra-lo de modo fugaz. Ele escorre por entre a trama das falas. Para tratar da questao doysiléncio, j4 que é impos- sivel observa-lo (organizd-[e), podemos usar duas ordens de metdforas: a do mar ea do eco. Em ambas jogam a grande extensdo e um certo movimento que retorna ¢€, ao mesmo tempo, pro- duz um deslocamento. “O final da onda que o mar sempre adia.” O mar: incalculavel, disperso, profundo, imével em seu movimento monétono, do qual as ondas sao as frestas que o tornam visivel. Imagem. 32 | AS FORMAS 00 SILENCIO O eco: repeticao, nao-finitude, movimento con- tinuo. Também fresta para ouvi-lo, Som. Senos voltamosagora paraa histéria das palavras, encontramos a ctimologia de silentium, referida a silens, que significa: que se cala, silencioso, que nao faz ruido, calmo, que esté em repouso, sombra etc. Algumas observac6es a respeito do uso dessa palavra sdo interessantes. Embora na época classica nao houvesse diferenga de sentido entre sileo e taceo (calar), primitivamente sileo nao designava propria- mente “siléncio” mas “tranqitilidade’, auséncia de movimento ou ruido: “Estar em siléncio” = “Estar quieto”. Empregava-se sileo para falar de coisas, de pessoas e, especialmente, da noite, dos ventos ¢ do mar. Silentium, max profundo. E ai deparamos com o aspecto fluido e liquido do siléncio. A nossa metdfora aproveita esse impulso etimo- ldgico. Como para o mar, ¢ na profundidade, no siléncio, que esta o real do sentido. As ondas sao apenas 0 seu ruido, suas bordas (limites), seu movi- mento periférico (palavras). A linguagem supée pois a transformagéo da ma- téria significante por exceléncia (siléncio) em sig- nificados apreens{veis, verbalizAveis. Matéria e for- mas. A significacao é um movimento. Errancia do sujeito, errancia dos sentidos. E preciso insistir que a matéria significante do siléncio é diferente da significancia da linguagem (verbal e nao-verbal). Ao tornar visivel a significa- cao, a fala transforma a prépria natureza da signi- ficacao. SWLENCIO EseNTIDO | 33 Essa diferenga de natureza pode ser mais bem pen- sada se consideramos a articulagao entre gesto csilén- cio, enquanto expressividade. Também a gestualidade, a relacio com o corpo, esta orientada pela fala. Quando alguém se pega em siléncio, rearranja-se, muda a “expressio”, os gestos. Procura ter uma expressao que “fala”. Ea visibilidade (legibilidade) queseconfigurae nos configura. A lin- guagem se constitui para asseverar, gregarizar, unifi- car 0 sentido (e os sujeitos). Quer dizer: a identidade — coeréncia, totalida- de, unicidade — produzida pela nossa relagio com a linguagem nos faz visiveis ¢ intercambidveis (fa- miliares 4 espécie humana). O siléncio, de seu lado, é 0 que pode transtornar a unicidade. Nao suportando a auséncia das pala- vras — “por que vocé est4 quieto? O que vocé estA pensando?”—, o homem exerce seu controle e sua disciplina fazendo o siléncio falar ou, ao contrario, supondo poder calar 0 sujeito. Isso resulta de um imediatismo tanto mais acen- tuado quanto mais vem em linha reta da tradicao da racionalidade: 0 claro e distinto. O homem — tendo de responder A injungao de ‘tyansparéncia . objetividade — nao se dé o tempo de trabalhar a diferenga entre falar e significar. Para nosso contexto histérico-social, um homem em siléncio é um homem sem sentido. Entao, o ho- mem abre mao do risco da significagao, da sua amea- ga ese preenche: fala, Atulha o espago de sons e cria aidéia de siléncio como vazio, como falta. Ao negar 34 | As Formas 00 siténcio sua relagao fundamental com o siléncio, ele apaga uma das mediagoes que lhe sao basicas. Desse modo, a partir da eliséo dessa mediacao, estabelecem-se e desenvolvem-se as reflexes que te- matizam a relagao linguagem/pensamento ¢ lingua- gem/mundo (sociedade) ¢ que atribuem fungdes que confirmam a centralidade da linguagem. De nossa parte, proporiamos um deslocamento, um descentramento da linguagem, que permitiria refletir sobre um outra relagdo, anterior, a meu ver, aesta, e mediadora: mundo (sociedade) Linguagem / siléncio pensamento Quando nao falamos, nao estamos apenas mu- dos, estamos em siléncio: hd o “pensamento’, a in- trospecgo, a contemplagao etc. O nosso imaginario social destinou um lugar su- balterno para o siléncio. Ha uma ideologia da comu- nicagao, do apagamento do siléncio, muito pronun- ciada nas sociedades contemporaneas. Isso se expressa pela urgéncia do dizer e pela multidao de linguagens a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo tempo, espera-se que se estejam produzindo signos visiveis (audiveis) 0 tempo todo. [uso de controle pelo que “aparece”: temos de estar emitindo sinais sonoros (diziveis, vistveis) continuamente. Nao acreditamos que tenha sido sempre assim. A nossa hipétese é a de que ha, na relagdo com a lin- signe esenrian | 35 LL t—“— guagem, uma progressao histérica do siléncio paraa verbalizag4o, o que se reflete nao s6 na pratica geral da linguagem como no discurso da ciéncia. Assim, teriamos: +siléncio - — siléncio mito tragédia filosofia Ciencias Humanas e Sociais No mito, a significagao prescinde da explicita- ¢40 cabal de seus modos de significar. Ja na tragé- dia, essa explicitagao comega a alargar seu lugar. Podemos pensar, por exemplo, no mito de Electra, no reconhecimento de seu irmao Orestes, que se da apenas pelo agon (confronto). Jé na magédia, ha uma descricio do reconhecimento: ela o reconhe- ce porque ele carrega a espada de modo peculiar, porque tem uma cicatriz na testa etc. No caso da filosofia, passa-se para um outro discurso, em que se tematiza vastamente 0 sentido em sua relacao com o set, Percurso que desemboca nas Ciéncias Sociais ¢ Humanas, que se instituem em varias disciplinas diferentes com distintos objetos ¢ dis- cursos diversos para falar dessa mesma coisa. Do- minado pelas mmiltiplas metalinguagens, 0 fato tem de significar nas diferentes “explicagdes’, que, por sua vez, 0 povoam de muitos signos. Exilio do siléncio. Do século XIX para ca se aceleram a producao de linguagens ca contengio do siléncio. As palavras se desdobram indefinidamente em pa- 36. | AS FORMAS Do SiLENCIO lavras (na maior parte das vezes, ecos do mesmo, sem sair do lugar). O siléncio, mediando as relagdes entre lingua- gem, mundo ¢ pensamento, resiste A press4o de con- crole exercida pela urgéncia da linguagem e significa de outras e muitas maneiras. Essa mediag&o é mais um dos elementos que desve- lam a ilusao referencial: 0 siléncio nao ¢ transparente c ele atua na passage (des-vao) entre pensamento- palavra-e-coisa. Também aqui se verifica que nao ha uma relagao termo a termo entre esses dominios. Para terminar, ainda uma vez Saussure. Ao tomarmos o siléncio como objeto de reflexao, nao o fizemos sem pensar no mestre genebrino que aliou cm si duas formas de siléncio. Estamos fa- lando: a) do siléncio de Saussure, que nao se fez au- tor de seu Curso; e b) do siléncio sobre Saussure, 0 dos Anagramas, que os lingitistas preferem ignorar com deferéncia. Ha ainda o siléncio em Saussure, quando tematiza uma certa nogao de sistema (va- lor), ou do eixo das substituigses etc. ‘Tampouco vamos apagar, na questao do siléncio, a presenga de Pécheux. O interlocutor silenciado, ou em siléncio. Que se deu o trabalho dificil de falar da Langue Introuwvable (1984) € que, com suas reflexoes sobre 0 discurso, permitiu que se pensasscm 0 silén- cio, a significagao, no meio do alarido formalista, O Pécheux que, falando do “discurso-real autoprote- tor”, diz do engendramento de uma nova fraseologia que, “efletindo o que todo mundo sabe, permite ca- Jar o que cada um entende sem confessat” (1982). cio esenTioo | 37 Os Limites bo Métopo E DA OBSERVACAO* A inica palavra que me devoraé aque- la que meu coragao nao diz, SUELI Costa £ ABEL SILVA, “Jura Secreta” Um livro deve valer por tudo o que nele nao deve caber. G. Rosa, Tutaméia Os textos acima sugerem a reflexdo sobre a relacio entre silncio ¢ emogao, siléncio e escrita. Quer se trate de uma coisa ou de outra, essas duas citagées referem o siléncio enquanto elemento constitutivo do sentido. Elas, no entanto, fazem isso contextua- lizando o siléncio de modo diferente. A primeira evoca 0 canibalismo (“devora”) pre- sente na cultura brasileira de varias manciras: a) a antropofagia enquanto real histérico (atestado Uma primeira versio deste capitulo foi apresentada, em francés, no Coléquio de Urbino (1988), cujas avas foram publicadas no livro Les sens et ses hétérogénéités (1990). abundantemente na literatura européia dos séculos XVI c XVII); ¢ b) o canibalismo simbdlico, tornado movimento intelectual, inaugurado pela Semana de Arte Moderna em Sao Paulo (1922): a cultura euro- péia “digerida” pela cultura brasileira. A antropofagia define, nos dois casos, para o bra- sileiro, uma origem em que a devoragao (seja his- térica, seja simbélica) esta na base mesma de sua relagdo com a “alteridade’. Na segunda cita¢ao, trata-se da literatura brasilei- ra e de um de seus escritores mais expressivos, que trabalhou a lingua “em seu estado gasoso’, segundo suas palavras: uma lingua sem margens, sem limites. Em sua relacao 4 alteridade, em sua relagao a lin- gua,a cultura brasileira acolhe o siléncio. Teria pois o siléncio um aspecto cultural? Com toda a evidéncia. Mas a cultura nao é 0 tinico fator que conta. Determinagées politicas e historicas es- tao igualmente inscritas af. Com efeito, as diferentes abordagens s4o muito distintas e resultam em concepgées muito diversas de siléncio. Em nosso caso, essa abordagem foi estabelecida durante uma pesquisa de campo em que observava- mos os processos de linguagem na situacao de con- tato entre indios e brancos. Na Floresta Amaz6nica, nas margens do grande rio Xingu, compreendemos a importAncia fluida do siléncio. Ou melhor, compreendemos que ha uma relacdo fundamental (fundadora) entre o homem e o siléncio, em face da significacdo. 40 | AS FoRMAS 00 siuéwcio Outras experiéncias, dessa vez delinguagem, tam- hém nos fizeram entender isso. Na poesia, a leitura de Mallarmé, de M. Bandeira oude Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Nao sé na poesia, alias, mas na liceratura em geral, o siléncio é fundamental.’ Na misica, compositores como P. Geist, J. Cage, Webern, E. Gismonti, E. Satie e o intérprete C. Ar- rau, em particular, Ou seja, também a musica em geral, em suas diferentes express6es, propde-nos uma relacio com o siléncio. No campo das imagens, ha filmes que nos trazem a reflexo sobre o siléncio de modo particular: Pai Patrao e Paris, Texas. Por outro lado, pela observacao dos diferentes discursos, podemos reconhecer fatos que nos reme- tem A importancia do siléncio: o discurso religioso, em que Deus representa a onipoténcia do siléncio (Eckart, segundo Heidegger, “é no que a linguagem nao diz que Deus € verdadeiramente Deus”); 0 ju- ridico, em que o discurso liberal (“todos os homens sio iguais perante a lei”), produzindo o apagamen- to das diferencas constitutivas dos lugares distin- tos, reduz o interlocutor ao siléncio; o cientifico, do qual ¢ bem conhecido o fato de que ha teorias que nao deixamos significar; 0 discurso amoroso, em que a onipoténcia avizinha o impossivel, é um discurso votado ao siléncio. 1 Avesse respeito veja-se, por exemplo, a reflexio de B, Waldman (1989) sobre a produgao do siléncio em Dalton ‘Tievisan, em Clarice Lispector. 05 UNITES DO METODO E DA oBseRvacho | 4 Os siléncios, 0 siléncio Era’assim preciso que trabalhasscmos essas intui- des sem cair na mistica do siléncio ou na relacao si- léncio-NADA (morte), interpretacdo essa reiterada pela cultura ocidental (cf. Shakespeare, em Hanslet: “o resto é0 siléncio”). Como fazer aparecer a dimensao, por assim di- zer, “otimista” do siléncio? De inicio, propondo-nos uma concepgao nao-ne- gativa de siléncio: o siléncio nao fala, ele significa. A partir dessa concepgao nao o definimos nega- tivamente em relacdo a linguagem (0 que ele do ¢) mas em sua relac4o constitutiva com a significacao (o que ele é). Esse era um inicio. A partir dessa definigao (pro- vis6ria) e de algumas nog6es auxiliares, procedemos a andlises em que pudemos discernir tragos do tra- balho do siléncio em diferentes discursos. O silencio significa de multiplas maneiras e ¢ 0 objeto de reflexao de teorias distintas: de fildsofos, de psicanalistas, de semidlogos, de etndlogos, e até mesmo 0s lingiiistas se interessam pelo siléncio, sob a etiqueta da eclipse e do implicito. ne : Além disso, ha siléncios miltiplos: o siléncio das emogées, © mistico, o da contemplacao, o da intros- peccao, o da revolta, o da resisténcia, o da disciplina, o do exercicio do poder, o da derrota da vontade ete. A partir da concepc4o nao-negativa de siléncio, e da observagio de seus modos de existéncia, outra quest4o se impdc: como compreender o siléncio? 42. | As FoRMaS po sitencio Inicialmente, tornando precisa a perspectiva da qual estamos falando: a perspectiva discursiva, que se define pelo fato de que a nocio de discurso supde superagao da dicotomia estrita lingua/fala. Desta perspectiva, ha alguns objetivos a atingir, através da reflexo sobre o siléncio, que procurare- mos expor aqui. Esses diferentes objetivos tem em comum o fato de nao proporem uma aproximagio dos modelos cxistentes, mas, ao contrario, de recusarem 0 iso- morfismo. Procuramos assim nos distanciar desses modelos, mesmo se a finalidade ultima é a de retor- nar sobre a linguagem. Esse esforgo de nos afastarmos dos modelos existentes permite que nos ponhamos em guarda contra o que chamariamos de “tendéncias inte- gracionistas” — tais como a pragmiatica, a etno- metodologia, as teorias da enunciagio — que referem (reduzem) o siléncio 4 linguagem verbal, apagando sua especificidade. Essa forma de traba- lho representa a redugio dos fatos de linguagem ao “mesmo’, ao j4 conhecido, em suma, ao sistema lingiiistico tal qual. Voltemos, pois, aos objetivos visados pela pers- pectiva discursiva na reflexio sobre o siléncio. 0S LIMITES 00 METODO E DA OBSERV

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