BIOÉTICA CLÍNICA
(MEMÓRIAS DO XI CONGRESSO BRASILEIRO DE BIOÉTICA,
III CONGRESSO BRASILEIRO DE BIOÉTICA CLÍNICA E
III CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE O ENSINO DA ÉTICA)
Brasília
2016
Bioética clínica: memórias do XI Congresso Brasileiro de Bioética, III Congresso Brasileiro
de Bioética Clínica e III Conferência Internacional sobre o Ensino da Ética
Conselho Federal de Medicina, Sociedade Brasileira de Bioética (SBB)
Organizadores
José Eduardo de Siqueira, Elma Zoboli, Mário Sanches e Leo Pessini
Supervisão editorial
Paulo Henrique de Souza
Revisão e copidesque
Stéphanie Roque e Luan Maitan (Tikinet)
Projeto gráfico e diagramação
Portal Print Gráfica e Editora Ltda-ME / Leandro Rangel
Ilustração de capa
Victória Romano
Tiragem
5.000 exemplares
ISBN 978-85-87077-43-1
1. Bioética clínica. 2. Congresso I. Siqueira, José Eduardo de, org. II. Zoboli,
Elma, org. III. Sanches, Mário, org. IV. Pessini, Leo, org.
CDD 174.9574
Agradecimentos
Apresentação ........................................................................................... 11
Prefácio ....................................................................................................... 15
Parte I: Questões de Fundamentação
1. O conflito público-privado na assistência à
saúde (Regina Parizi) .............................................................................. 21
2. Bioética clínica, biopolítica e exclusão social
(Márcio Fabri dos Anjos) ......................................................................... 37
3. Justiça sanitária como tema de reflexão para
a bioética clínica (Elma Lourdes Campos Pavone
Zoboli e José Roque Junges) ............................................................... 55
4. Bioética de intervenção – uma breve síntese
de seus fundamentos e aplicações em tempos
de globalização e desigualdades sociais (Volnei
Garrafa e Leandro Brambilla Martorell)............................................. 73
5. Mistanásia: um novo conceito bioético que
entra na agenda da bioética brasileira (Leo Pessini
e Luiz Antonio Lopes Ricci) ................................................................... 95
6. Bioética e espiritualidade (Waldir Souza)................................ 123
Regina Parizi
Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética
12 Bioética Clínica
Prefácio
16 Bioética Clínica
Eventos dessa envergadura, cuja síntese de palestras e debates
preenche essas páginas que chegam ao leitor, são oportunidades
ímpares para o fortalecimento dos compromissos hipocráticos,
em um paradigma benigno-humanitário.
Regina Parizi1
22 Bioética Clínica
Modelo assistencial
Os conflitos dessa área têm forte repercussão no campo do
consumo de serviços, uma vez que o setor privado é baseado em
doenças/procedimentos (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE,
1992), sofrendo forte influência da oferta de novas tecnologias e
produtos de saúde disponibilizados no mercado. Considerando
esse contexto, Lucien Sfez (1995) publicou “Saúde Perfeita”,
pesquisa desenvolvida com segmentos da classe média alta da
França, dos Estados Unidos e do Japão em que foi observado
alto grau de confiança desse extrato da população em relação à
tecnologia para resolver seus problemas de saúde.
Questões administrativo-operacionais
Grande parte dos conflitos que surgem nessa área é em decorrência
do modelo assistencial e da disputa entre o setor público e o
privado. Um exemplo disso é a migração dos profissionais da
saúde para programas, setores e/ou países que oferecem melhor
remuneração.
24 Bioética Clínica
quantitativa e qualitativa do perfil dos profissionais versus
necessidade da população.
Questões econômico-financeiras
Tanto a globalização como a crise econômica, que foi sendo
espraiada para diferentes países após 2008, impulsionaram o
aumento da desigualdade com o incremento do desemprego e
da concentração de renda, ampliando, assim, o contingente de
pessoas vulneradas.
26 Bioética Clínica
Percentual das despesas públicas e privadas na saúde em
relação ao PIB, nos anos 2000 e 2010
28 Bioética Clínica
Assim como está evidenciado na tabela anterior, essa tem sido
a realidade no Brasil, uma vez que há maior participação do
financiamento privado, o qual cresceu bastante na década
passada, chegando a uma cobertura de 50 milhões de brasileiros,
em setembro de 2009 (BRASIL, 2009). No entanto, com a crise
econômica, assim como nos países europeus, esses números
começaram a diminuir, dado que a maioria dos planos privados
de saúde são coletivos empresariais, ou seja, dependem do nível
de emprego no país.
30 Bioética Clínica
Atualmente, a crise econômica dos países mais desenvolvidos,
gerada pela globalização do ideário neoliberal com repercussões
nas políticas de bem-estar social, sobretudo nos países europeus,
tem colocado o princípio da equidade no centro do debate,
auxiliando na formulação de políticas sustentáveis que procurem
combinar o desenvolvimento econômico, social e humano com a
preservação das condições de vida no planeta.
32 Bioética Clínica
Quando definimos se queremos uma sociedade de ampla
liberdade individual e de escassa solidariedade, ou uma que
tenha muita solidariedade, mas limite a liberdade de empreender,
esta é uma grande escolha – uma escolha política. É a escolha,
digamos, entre o egoísmo esclarecido e a solidariedade.
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38 Bioética Clínica
exclusão tem formas variadas, com espaços filtrados de inclusão −
o que não significa ser dolorosa e nefasta. Como veremos melhor, a
exclusão social resulta de jogos de poder que atuam segundo suas
conveniências e interesses, em que uma exclusão social radical e
absoluta, mesmo que aspirada por poderosos, é praticamente
inexistente. As exclusões sociais se dão de forma segmentada,
inclusive por interesse dos próprios sistemas que excluem ou
incluem as pessoas em diferentes áreas, sob o critério do poder
de domínio que exercem. Uma amostra disso está na condição
dos pobres para os quais se reserva uma faixa de mercado, em
que o poder se serve das parcas potencialidades de consumo dos
chamados “menos favorecidos” – um eufemismo que está cercado
pela hipocrisia do poder oculto, particularmente responsável
por tal desfavorecimento. Esses apartheids se multiplicam em
diferentes áreas, dando lugar a “inclusões excludentes” também
nas relações de cuidados de saúde.
40 Bioética Clínica
em termos de se postular igualdade, aliás, uma das bandeiras da
Revolução Francesa. Contrapondo-se à desigualdade, o postulado
da igualdade é sem dúvida uma vigorosa reivindicação ética,
mas seu sentido fundamental, para não ser contraditório, deve
subentender a igualdade de direitos de os diferentes sujeitos
individuais e coletivos serem respeitados em suas diferenças.
Em outros termos, postula-se igual qualidade de direitos em
diferentes materialidades ou condições da vida das pessoas. Essa
questão, como se verá adiante, tem uma particular incidência na
área clínica.
42 Bioética Clínica
Entretanto, o passo das interferências da sociedade nos corpos
dos indivíduos, para se chegar à concepção da sociedade como
corpo é constituído, na visão de Foucault, exatamente pela
relação de poder que a sociedade exerce sobre a determinação
dos corpos individuais. Esse filósofo descarta a ideia de que um
corpo social seja constituído pelo conjunto das vontades, para
afirmar que “não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas
a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo
dos indivíduos” (FOUCAULT, 1986, p. 146). Esse corpo social que
emerge pelo poder exercido não é anônimo, mas é constituído
por sujeitos concretos de ação política atuando “através de um
conjunto extremamente complexo de relações, que funciona de
forma extremamente sutil nos seus movimentos” (RODRIGUES,
2003, p. 119).
44 Bioética Clínica
à ampla rede de interações da saúde/doença com as diferentes
áreas da convivência. O aprofundamento analítico desse fato tem
procurado entender os bastidores dessas interações, os sistemas
e organizações que delas resultam, e através de critérios éticos, as
alternativas a serem propostas.
46 Bioética Clínica
Na América Latina, em perspectivas da bioética, muitos
conceitos básicos da biopolítica vêm sendo pensados há várias
décadas, mesmo que não seja sob esse título. Sem menosprezar
a sensibilidade de teóricos de outras regiões a injustiças, a
trajetória latino-americana, porém, tem se caracterizado por
um procedimento inverso, colocando à frente a experiência das
inequidades e exclusões sociais, solicitando de modo contundente
teorias e práticas capazes de revertê-las. São ilustrativas, nesse
sentido, as formulações teórico-práticas que, a partir da década
de 1960, emergiram e se desenvolveram – como a teoria da
dependência (SANTOS, 2000), a teologia da libertação (GUTIERREZ,
1972), a teoria sobre a colonialidade do poder (QUIJANO, 1967),
as propostas de Paulo Freire (1992) na Pedagogia do oprimido,
a Bioética da Intervenção (GARRAFA; PORTO, 2003) e a Bioética
da Proteção (PONTES; SCHRAMM, 2004; KOTTOW, 2004). Um
momento também notável pela qualidade e projeção mundial
do pensamento latino-americano a esse respeito se deu com
a realização, em 2002 em Brasília, do V Congresso Internacional
de Bioética sobre o tema “Bioética: poder e injustiça” (GARRAFA;
PESSINI, 2003).
Sem perder o foco deste estudo, vemos que a exclusão social está
reconhecida como uma realidade sistêmica de grande proporção,
cuja reversão exige atuações correspondentemente em âmbito
de sistemas, sob o risco de se reduzir a ações assistenciais e
paliativas. Essa percepção biopolítica tem sido uma expressiva
marca da bioética na América Latina de modo geral e no Brasil em
particular. Expressa-se com abundância em críticas e propostas
referentes a políticas públicas, entre as quais, as políticas de saúde
48 Bioética Clínica
nas competições frequentes entre indivíduos e entre grupos
pela disputa de espaços e vantagens, mas mais se parece a
uma simples reprodução do poder maior, como o biopoder que
domina e orquestra as vontades individuais e grupais. Por isso,
o desequilíbrio decisivo se dá nas escolhas que levam a escapar
do poder como dominação, um poder no fundo frágil e medroso,
como se apontou. Nesse contexto, o reconhecimento das
exclusões sociais expõe as fragilidades do poder que domina. E a
busca de superação das exclusões significa a opção por realizar o
biopoder como realmente capaz de servir ao bem de todos.
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52 Bioética Clínica
Justiça sanitária como tema de reflexão
para a bioética clínica
56 Bioética Clínica
e momentos diferentes. Assim, cria-se a necessidade ética de um
diálogo entre ambos, com base na igual dignidade que têm para
que seja possível o bem cuidar, o cuidado justo (ZOBOLI, 2009).
58 Bioética Clínica
O termo acesso, por vezes, pode parecer impreciso por não
distinguir oferta e uso dos serviços; o uso de acessibilidade,
por outro lado, engloba efetividade do acesso e resolubilidade
(TRAVASSOS; MARTINS, 2004). A efetivação da universalidade
do acesso é desafio complexo na medida em que é determinada
pela configuração dos serviços e rede de saúde; pelo contexto
sociocultural e econômico configurador das necessidades em
saúde; pelo modo como estas são percebidas, demandadas e
ofertadas. O acesso efetivo, então, está ligado a e depende de
três fatores: os processos de trabalho (nível micro), a organização
dos serviços (nível meso) e o modelo do sistema de saúde (nível
macro). Os limites e avanços usualmente apontados nas avaliações
do acesso se referem, quase exclusivamente, aos níveis micro e
meso, isto é, ao tipo de atendimento e à estrutura organizacional
do serviço. Aborda-se pouco o desafio de transformação do
modelo de atenção e gestão, verdadeira causa dos limites e o
potencial facilitador dos avanços na realização da universalidade
do acesso (BARBIANI et al., 2014). Isso significa que o uso efetivo,
pelos usuários, da oferta disponibilizada pelo serviço de saúde
depende da construção de condições coletivas, e estas, por sua
vez, são dependentes, também, do modelo de atenção e gestão
que podem facilitar o acesso e as respostas às reais necessidades
da população. Portanto, a universalidade do acesso precisa estar
associada à equidade no alcance e aproveitamento dos recursos
necessários à resolubilidade dos agravos à saúde.
60 Bioética Clínica
Para a integralidade nos serviços, a prática da equipe
multiprofissional deve pautar-se na capacidade de acolher
e atender às necessidades de saúde dos usuários, que são
captadas na expressão individual. Essa atitude de acolhimento
e escuta ativa propicia a tradução das necessidades do usuário,
com espaço para a complexidade em que se engendram, pois a
atenção do profissional transcende o puro pedido explícito por
assistência à saúde. A tradução, decodificação de uma demanda
na complexidade e singularidade que simultaneamente a
conformam possibilita a concretização da integralidade na
atenção dispensada por um serviço local de saúde. Esse tipo
de integralidade propicia o acolhimento e o vínculo do usuário,
solidificando a relação deste com os profissionais e com o serviço,
e abre caminho para a integralidade como objeto de rede
(referência e contrarreferência) (CECÍLIO, op. cit.).
62 Bioética Clínica
ou às necessidades específicas de grupos. É possível afirmar, então,
que a integralidade é princípio ético basilar para a prática clínica,
a organização do trabalho e a formulação das políticas de saúde.
64 Bioética Clínica
são inerentes a essa condição de pertença a uma sociedade. Ser
cidadão é uma das dimensões humanas com mais repercussão na
vida de uma pessoa e na sociedade (CORTINA, 2001). Assim, não
pode ser diferente para os profissionais de saúde e usuários dos
serviços. A cidadania é um papel de todos, que se constitui em
uma sociedade feita por relações interpessoais de pertencimento
e equidade. A cidadania é via de mão dupla, dizendo respeito ao
que representa a pessoa para a coletividade e qual o significado
desta para a primeira, assim, as duas partes se reconhecem na
experiência do dia a dia (Ibid.) para exercício de responsabilidades
e efetivação de direitos.
66 Bioética Clínica
que não pare na mera informação. Informar não é suficiente para
transmitir, trocar a complexidade das situações e experiências
vividas das realidades separadas, compartindo significados, e
somente com esse tipo de partilha é possível reconhecer os
problemas, capacidades, valores e potenciais dos envolvidos na
comunicação e negociação. O desafio é produzir comunicações
para a cidadania efetiva, evitando, ao mesmo tempo, o descuido
e a intromissão desnecessária (Ibid.). Na atenção à saúde, isso
equivale ao cuidado responsável (POSE, 2009).
Considerações finais
É preciso compaginar a bioética clínica, institucional e social,
tornando possível a análise das políticas de saúde, a gestão dos
serviços, a distribuição dos recursos, as condições de trabalho
dos profissionais. Mas é preciso avançar na direção de um debate
plural sobre a concepção de justiça nas sociedades democráticas.
Quanto à justiça, a bioética clínica preocupa-se com o respeito
aos direitos dos usuários dos serviços; com a equidade, como
não discriminação, alocação dos recursos, efetividade do direito
à saúde; proteção do mais vulnerável, fragilizado; excelência
profissional; continuidade do cuidado (CORREA, 2010).
68 Bioética Clínica
na prática. Ampliando o olhar, temos que dizer que a bioética
precisa sair dos hospitais, e mesmo do mundo da saúde, das
mãos dos profissionais da saúde, para se converter em um tipo de
mentalidade, uma nova cultura (GRACIA, 2014).
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Volnei Garrafa1
Leandro Brambilla Martorell2
Introdução
Em 2001, na conferência de abertura do I Congresso Boliviano
de Bioética, em La Paz, a expressão “bioética de intervenção” foi
anunciada publicamente pela primeira vez. Até então, os textos
e interlocuções relacionados com sua gênese se referiam a uma
bioética dura (hard bioethics). Para Feitosa e Nascimento (2015),
entre os anos de 1995 e 2002, a bioética de intervenção (BI)
passou por uma primeira etapa que denominaram “gestacional”,
tendo como marcos referenciais concretos de seu nascimento:
duas conferências apresentadas, respectivamente, no Congresso
Argentino de Bioética realizado em Mar del Plata (1998) e
no V Congresso da Felaibe (Federación Latinoamericana de
Instituciones de Bioética), desenvolvido no Panamá (2000); e as
publicações dos artigos “Bioética, poder e injustiça: por uma ética
de intervenção” (periódico O Mundo da Saúde, 2002) e “Intervention
bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power
and injustice” (periódico Bioethics, da International Association of
Bioethics, 2003).
74 Bioética Clínica
por Beauchamp e Childress na sua histórica obra Principles of
Biomedical Ethics (2013) seriam realmente capazes de contribuir
para a resolução desses problemas? Apenas provocações…
76 Bioética Clínica
possibilidade de classificação do que se convencionou chamar de
“diferentes momentos”. Alguns textos, principalmente os publica-
dos inicialmente, fundamentam a BI com uma clara intenção de
apresentação inicial da teoria – este é o “primeiro momento”. O
“segundo momento” é composto por aquele grupo de textos que
propõe o aprofundamento dos fundamentos teóricos apresenta-
dos inicialmente. O “terceiro momento” diz respeito àquele em
que há intenção de crítica (incluindo a autocrítica) a estes funda-
mentos. Ressalta-se que o sentido da interpretação do substantivo
“momento” é o de “ocasião”, e não de “tempo”. Assim, não houve
uma pretensão de engessar a classificação da produção de acordo
com as datas de publicação dos textos, mas de relacioná-la com a
intenção dos argumentos na ocasião da publicação. Em suma, em
algumas ocasiões a fundamentação foi apresentada, em outras,
aprofundada e, em outras, criticada.
78 Bioética Clínica
A interpretação de “justiça” expressa por Beauchamp e Childress
direciona as ações de saúde insistentemente ao campo individual
e privado, excluindo qualquer forma pública de resolução
para os problemas sanitários, entre muitas outras questões e
exemplos cuja inclusão seria exaustiva nessa breve exposição.
Diferentemente da proposta de Beauchamp e Childress – que
consideram a ética biomédica como a própria bioética (frase
lapidar que abre a sétima e última edição do seu livro) – para a BI, a
nova bioética global por ela proposta incorpora obrigatoriamente,
além dos originais temas biomédico-biotecnológicos, as questões
sociais sanitárias e ambientais. Essa ampliação pioneira da agenda
bioética internacional proposta pela BI desde seus primórdios, foi
finalmente explicitada e reconhecida no âmbito internacional
com o texto da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da Unesco (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
A EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA, 2005).
80 Bioética Clínica
Em seu segundo momento, a BI aprofunda o conceito de
corporeidade. Tendo já definido em textos anteriores a
corporeidade como um universal óbvio, já que todas as pessoas
necessitam do corpo físico para existir e agir em sociedade,
Porto e Garrafa (2005) inferem que deve existir universalmente
um contexto de vida em que as funções essenciais à existência
constituam uma realidade concreta. Esse contexto universal seria,
portanto, aquele apresentado pela compreensão e defesa dos
Direitos Humanos Universais. Aqui também se pode perceber a
possibilidade de defesa do argumento relacionado à necessidade
de intervenção. Se todos manifestam o universal óbvio e
necessitam de um mínimo existencial, representado pelo que se
defende em garantia aos Direitos Humanos, quando este mínimo
não se apresenta na realidade concreta, instala-se um contexto de
desigualdade, de poder heterônomo às maiorias populacionais
e de injustiça. Tratando-se de um conflito moral, é imperativa a
intervenção na realidade para que a situação de injustiça possa
ser superada.
82 Bioética Clínica
a responsabilidade das ações individuais para a mudança da
realidade social. Por fim, seria a “emancipação” – isto é, o desejo
pela conquista da liberdade e justiça social – o combustível que
colocaria em prática o projeto de mudança da realidade. Em uma
redução simplificadora, para a BI, nessa linha de pensamento,
os vulneráveis reconhecem criticamente a realidade com a
libertação, conectam-se (engajam-se) como sujeitos sociais com
o empoderamento e executam seu projeto de inclusão social com
a emancipação.
84 Bioética Clínica
Quantidade de textos da BI avaliados por tipo e
meio de publicação
Total 49 10 1 60
86 Bioética Clínica
referencial teórico que mais apareceu para fundamentar os textos
de aplicação foi o capítulo do livro Bioética: poder e injustiça: por
uma ética de intervenção, de 2002, ou seja, também um de seus
textos iniciais.
Considerações finais
Observa-se que a BI desde seus primórdios se apresentou ao mundo
acadêmico como uma corrente da bioética latino-americana com
marcação política muito clara. Apresentava a intenção de combater
o monismo bioético que até então grande parte dos países e
autores importavam verticalmente, aceitavam acriticamente e
reproduziam, incluindo aqueles que sofriam as consequências
dessa colonialidade do saber que travestia a colonialidade do
poder exercida pelos países centrais aos periféricos (ou os do Norte
aos do Sul) (NASCIMENTO; GARRAFA, op. cit.).
88 Bioética Clínica
especialmente aqueles relacionados a grupos com registro de
considerável assimetria de poder, atuando em favor daqueles
que têm sido prejudicados por essa diferença. Para combater
as iniquidades apresentadas, ela considerou, na busca pela
equidade e pela igualdade, o seu referencial de justiça. E, se
a maioria da população mundial sofre há tempos com a falta
de condições de acesso a itens básicos relacionados com os
Direitos Humanos, apenas para satisfazer o acúmulo de prazeres
de minorias populacionais, a BI retratou a proposta utilitarista
como uma saída possível para o contorno dessa situação. Assim,
ela apresenta o utilitarismo não como um princípio maior a ser
seguido cegamente em quaisquer situações, mas, antes, como
uma expressão ou formato mais brando de utilitarismo, conectado
pontualmente com a avaliação de um determinado contexto de
iniquidades.
Referências
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obra de Beauchamp & Childress. 2014. 216p. Tese (Doutorado em Bioética)
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90 Bioética Clínica
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(Doutorado em Bioética) – Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, M. Principios bioéticos en salud pública:
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2001.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E
CULTURA. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
Tradução: Ana Tapajós e Mauro Machado Prado. 2005. Disponível em:
<http://bit.ly/1UsDHAx>. Acesso em: 2 maio 2016.
VERISSIMO, L. F. Provocações. In: _____. Zoeira. Porto Alegre: L&PM, 1982. P.
29-30.
Provocações
Luís Fernando Veríssimo
A primeira provocação ele aguentou calado. Na verdade, gritou
e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que
nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como
ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação
foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma
porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação
foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de
atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de
boa paz. Foram lhe provocando por toda a vida. Não pôde ir à
escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da
roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para aonde teve que
ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu
a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava
onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme. Queria
um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar,
conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para
conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando. Gostava da roça. O negócio dele era
a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal reforma
agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a ideia era lhe dar
uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era
– Violência, não!
92 Bioética Clínica
Mistanásia: um novo conceito bioético
que entra na agenda da bioética
brasileira
Leo Pessini1
Luiz Antonio Lopes Ricci2
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Introdução
Este capítulo tem como objetivo desenvolver o conceito de
mistanásia (morte social, precoce e evitável) pelo viés da
bioética social, cotidiana, crítica, latino-americana e integrativa,
para evidenciá-lo de modo mais contundente e, talvez
pretensiosamente, cravá-lo na agenda da bioética local e global,
na produção científica e bibliográfica e no conteúdo das
disciplinas afins, como algo orgânico e transversal na reflexão
1. Pós-doutor pelo Centro de Bioética James Drane (Edinboro University of Pennsylvania),
professor doutor no Programa de Pós-Graduação em Bioética do Centro Universitário São
Camilo (SP). Superior Geral dos Camilianos (Roma, Itália).
2. Pós-doutor em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo (SP). Professor da Faculda-
de João Paulo II (Fajopa) em Marília (SP).
96 Bioética Clínica
(conceitual) quanto como adjetivo (pessoal e institucional), pode
perfeitamente cumprir esse papel de facilitar a dignidade do viver
e do morrer.
3. Para pensar a bioética como chave de libertação e a partir dos vulnerados, sugerimos
Bioética, Saúde e Vulnerabilidade: em defesa da dignidade dos vulneráveis, de Alexandre An-
drade Martins (São Paulo: Paulus, 2012).
4. O espaço do “soberano” foi ocupado por novos atores que decidem sobre o viver e o
morrer. Trata-se de um poder sistêmico. Por essa razão a morte está cada vez mais politiza-
da por conta da gestão biopolítica da vida (NOYS, 2005, p. 54-55).
98 Bioética Clínica
poderiam ter sido eliminadas ou seus efeitos controlados, não
levando os seus portadores ao êxito letal. (TAUIL; LIMA, 1996, p. 219)
11. A bioética no Brasil é marcada pelas aspirações por um mundo mais justo e feliz. Segun-
do Anjos (2002a, p. 67-68), “as tendências da bioética no Brasil oferecem um bom sinal e
esperança, pois tem se constituído em um importante espaço de contribuição para trans-
formar a consciência nacional”.
Referências
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo
Horizonte: UFMG, 2007.
ANJOS, M. F. dos. Bioética a partir do Terceiro Mundo. In: ______. (Coord.).
Temas latino-americanos de ética. Aparecida do Norte: Santuário, 1988.
______. Eutanásia em chave de libertação. Boletim do Instituto Camiliano de
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______. Bioética nas desigualdades sociais. In: GARRAFA, V.; COSTA, S. I. F.
(Orgs.). A Bioética do século XXI. Brasília, DF: UnB, 2000.
______. Bioética no Brasil: algumas notas. In: BARCHIFONTAINE, C. de P. de;
PESSINI, L. (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Loyola, 2002a.
______. Bioética: abrangência e dinamismo. In: BARCHIFONTAINE, C. de P. de;
PESSINI, L. (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Loyola, 2002b.
Waldir Souza1
Introdução
A técnica, como práxis, configura a relação instrumental da
pessoa com o mundo. Dessa forma, poderíamos dizer que ela é
o prolongamento e o aumento da potência do corpo – não só
física, mas também mental – que, por milênios, o ser humano
procurou aprimorar. Finalmente, no fim do século XX teve início
a Era da Informação, em que a informática e a robótica, por meio
das máquinas, propiciaram o aperfeiçoamento e o avanço dos
conhecimentos humanos (SGRECCIA, 2002).
Bioética e teologia
A vida humana é, em primeiro lugar, um valor natural, racional-
mente conhecido por todos aqueles que fazem uso da razão.
O valor da pessoa humana se torna precioso pela gratuidade e
pelo dom do Espírito como reveladores da unicidade de cada ser
Espiritualidade e bioética
Todas as religiões são mensagens de salvação que procuram
responder a algumas questões fundamentais em relação à vida
do ser humano. São as perguntas sobre os eternos problemas
humanos. Por que existimos? Por que sofremos? Por que
morremos? O que governa o caminhar de cada pessoa e da
humanidade? As religiões deveriam, portanto, ser levadas a
sério. Elas têm a ver com o sentido e o não sentido da vida, com a
liberdade e a escravidão das pessoas, com a justiça e a opressão
dos povos, com a guerra e a paz na história e no presente,
com a doença, o sofrimento e a saúde das pessoas (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2008, p. 5).
A espiritualidade,
Referências
ANJOS, M. F. dos. Para compreender a espiritualidade em bioética. O Mundo
da Saúde, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 155-160, 2007.
______. Bioética, saúde e espiritualidade: para uma compreensão das
interfaces. In: PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Buscar sentido e plenitude
de vida: bioética, saúde e espiritualidade. São Paulo: Paulinas; Centro
Universitário São Camilo, 2008. p. 15-18.
ARCHANJO, J. L. O pensamento vivo de Teilhard de Chardin. São Paulo: Martin
Claret, 1988.
CONCÍLIO VATICANO II. A Igreja no mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 1982.
D’ASSUMPÇÃO, E. A. Sobre o viver e o morrer: manual de tanatologia e
biotanatologia para os que partem e os que ficam. Petrópolis: Vozes, 2010.
FAUS, J. I. G. Proyecto de Hermano: visión creyente del hombre. Santander: Sal
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FORTE, B. Um pelo outro: por uma ética da transcendência. São Paulo: Paulinas,
2006.
FRANKL, V. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração.
Petrópolis: Vozes, 1991.
GABEL, M. (Org.). Crianças vítimas de abuso sexual. 2. ed. São Paulo: Summus,
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GUZZO, A.; MATHIEU, V. Spirito. In: CENTRO DI STUDI FILOSOFICI GALLARATE.
Enciclopedia Filosofica: vol. 4. Firenze: Sansoni, 1957. p. 893-905.
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.
5. Conferir o capítulo 3, “Justiça sanitária como tema de reflexão para a bioética clínica”,
deste livro.
Itinerário deliberativo
O itinerário do processo deliberativo inclui: deliberação sobre
os fatos (apresentação do caso e esclarecimento dos fatos);
deliberação sobre os valores (identificação dos problemas
éticos do caso; indicação do problema ético fundamental e
identificação dos valores em conflito); deliberação sobre os
deveres (identificação dos cursos de ação extremos, intermédios
e ótimo); deliberação sobre as responsabilidades (submissão do
curso ótimo às provas de consistência de tempo, publicidade
e legalidade). Em publicações anteriores (Id., 2010; 2013), foi
exposto detalhadamente o procedimento deliberativo proposto
por Diego Gracia; neste capítulo, destacaram-se alguns pontos
significativos, tendo em vista a relação clínica deliberativa.
Introdução
Os modelos éticos tradicionais dominantes até o século XIX se
caracterizavam por uma ênfase nas ações humanas que atendiam
ao imperativo categórico kantiano. A busca pela universalização
dos atos morais praticados por homens e mulheres habitantes
de comunidades heterogêneas em seus costumes tornava quase
impossível imaginar um imperativo da razão humana que pudesse
contemplar a condição de universalizável, conforme proposto por
Immanuel Kant (1985).
Bem, o que essa tese weberiana teria a ver com o objetivo deste
ensaio? Para responder a essa questão, é necessário compararmos
o ideário político que norteia as ações em saúde pública de dois
países, um majoritariamente protestante (Estados Unidos) e
outro com o maior número de pessoas devotas do catolicismo
no planeta (Brasil). Consideraremos, para tanto, o pensamento de
dois filósofos contemporâneos, Robert Nozick e Franklin Leopoldo
e Silva.
Silva (1998), por sua vez, faz uma análise em “Da ética filosófica
à ética em saúde”3 sobre a crise da razão e as éticas aplicadas,
oferecendo especial destaque para a bioética e sua expressão
na saúde humana, argumentando que a nova disciplina seria
um instrumento essencial para responder questões atinentes à
relação entre ciência e o plano de valores humanos. Essa crise,
3. Capítulo do livro Iniciação à Bioética, publicado pelo Conselho Federal de Medicina
em 1998.
Fernando Pessoa,
Livro do desassossego
Considerações finais
Enfatizamos mais uma vez ser desnecessário apontar os benefí-
cios oferecidos à humanidade em decorrência dos avanços tec-
nológicos da medicina moderna. Basta recordar as precisas infor-
mações obtidas pelos tomógrafos, pela ressonância magnética,
pela medicina nuclear, as contribuições da ultrassonografia como
método diagnóstico, o decisivo valor da mamografia na detecção
precoce do câncer de mama, as minuciosas informações obtidas
pela endoscopia digestiva e pela cinecoronariografia. Do ponto
de vista terapêutico, poderiam ser lembradas as cirurgias realiza-
das por intermédio de videolaparoscopia, as microcirurgias e os
Referências
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BERLINGUER, G. Questões de vida: ética, ciência e saúde. São Paulo:
Hucitec,1993.
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BÍBLIA. A. T. Gênesis. In: Bíblia Sagrada. Tradução Frei João José Pedreira de
Castro. São Paulo: Ave Maria, 2009.
BLOOM, A. O declínio da cultura ocidental. São Paulo: Best Seller, 1989.
BOBBIO, M. O doente imaginado. São Paulo: Bamboo, 2014.
CAIRUS, F. H.; RIBEIRO JUNIOR, W. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a
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CENTRO INTERNACIONAL DE PESQUISAS E ESTUDOS TRANSDISCIPLINARES.
Que universidade para o amanhã? Em busca de uma evolução
transdisciplinar da universidade. Locarno: Ciret-Unesco, 1997. Disponível
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COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DEL DESARROLLO. Madrid:
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CORREIO BRAZILIENSE. Brasília, DF, 21 abr. 1997.
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ZUGUEIB NETO, J. (Org.). Identidade e crises sociais na contemporaneidade.
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ENGELHARDT, H. T. The foundations of bioethics. London: Oxford University
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ENTRALGO, P. L. La relación médico-enfermo. Madrid: Alianza, 1983.
FREUD, S. Más alla del Princípio del Placer. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
Introdução
Cada detalhe do amplo portfólio que compõe a realidade pode
ser compreendido de múltiplas maneiras, talvez porque o detalhe
é sempre mais do que ele mesmo e, certamente, também porque
múltiplos são os olhares que o contemplam. Enfatizando a
perspectiva cultural, o antropólogo Marshall Sahlins (1979, p. 78)
afirma que “o olho que vê é o órgão da tradição”3. Assim, no diálogo
entre as diferentes ciências − próprio da bioética −, podemos
também afirmar que o “o olho que vê é o órgão da academia”.
Hipócrates (460-370 a.C.), por sua vez, defendia que “o novo ser
surge da fusão do sêmen masculino com o sêmen feminino”
(Ibid., p. 60). Essa posição teve menos seguidores, mas foi apoiada
pelos epicuristas e pensadores da Escola de Alexandria. Segundo
essa teoria, o feto, desde o início, já está “animado” ou formado
− e por isso foi chamada de “teoria da animação imediata”. Essa
tese também foi apoiada por alguns pensadores cristãos, que
defendiam que “o embrião humano recebe diretamente de Deus
sua alma racional no mesmo momento da concepção” (Loc. cit.).
6. Baer descobriu, em 1827, óvulos nos mamíferos (SANCHES; VIEIRA; MELO, 2012).
Conclusões
Para concluir esse tema complexo sobre a dignidade humana,
precisamos de uma boa dose de honestidade. Não sabemos
quando a vida se inicia, mas quando estamos diante de um ser
vivo podemos reconhecê-lo; aliás, podemos reconhecer e diferen-
ciar uma célula viva de um organismo vivo. Reconhecer que um
embrião é um ser vivo da nossa espécie não significa automati-
camente reconhecer nele valor e dignidade, tal qual é atribuída a
uma pessoa humana adulta. O valor que atribuímos a um embrião
é algo construído pelo olhar com que o contemplamos. Esse é um
processo de reflexão ética exigente e coerente, que não permite
que manipulemos os dados da realidade a bel-prazer.
Referências
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della Facoltà Teológica dell’Italia Settentrionale, Milano, anno XX, n. 2, jun.
1995.
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HERNÁNDEZ, L. A. de Fuente. Gametogénesis, fecundación, determinación
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LEONE, S. As raízes antigas de um debate recente. In: CORREA, J. de D. V.;
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PAULA, I. C. O respeito devido ao embrião humano: uma perspectiva histórica
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embrião humano. Bauru: Edusc, 2007.
PAVIANI, J. Filosofia e método. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2001.
Leo Pessini1
José Eduardo de Siqueira2
De imediato sou transportado à UTI. E aí viverei uma experiência, para
dizer o mínimo, insólita. Na UTI a vida está em suspenso. O tempo ali não
passa – aliás, não há relógios nas paredes. A luz nunca se apaga: não é
dia, não é noite, reina uma claridade fixa, imutável. Mas o movimento é
contínuo; médicos, enfermeiros, auxiliares circulam sem parar, examinando,
manipulando os doentes, sempre em estado grave.
Moacir Scliar,
O olhar médico: crônicas de medicina e saúde
Introdução
“Na UTI a vida está em suspenso”, assim define Moacir Scliar, na
epígrafe que emoldura a introdução a nossa reflexão ética sobre
a utilização das Unidades de Terapia Intensiva (UTI), após sua
experiência de passar algum tempo numa delas. As UTI são hoje
unidades hospitalares de cuidado da vida humana em situações
críticas que apresentam grande complexidade e dramaticidade. De
um lado, estamos diante de expressões magníficas do progresso
técnico-científico da medicina (que realiza verdadeiros “milagres”
ao salvar vidas) que, até muito pouco tempo atrás, pareciam
simplesmente impossíveis de ser realizadas. Por outro, assombra e
assusta o fato de podermos estar diante de uma situação em que
se prolonga sofrida e inutilmente o processo de morrer!
6. Cf. especialmente o capítulo 12, “Alguns desafios éticos emergentes de final de vida: o
caso Brittany Maynard, o suicídio e o cuidado da dor e do sofrimento” (p. 161-178).
É oportuno registrar o exemplo dado pelo papa João Paulo II, que,
ao reconhecer próxima a terminalidade de sua vida, recusou-se
a retornar à UTI do Hospital Gemelli, em Roma, solicitando aos
seus cuidadores que o deixassem “partir para o encontro com o
Senhor” (DZIWISZ et al., op. cit., p. 35). Parece razoável reconhecer
que o pedido do papa representa a vontade de centenas de
pacientes que estão internados em UTI, em situação clínica similar
e se sentem impedidos de ter uma morte digna.
Comentários finais
Torna-se imperioso refletir sobre os autênticos propósitos da
arte médica, que podem ser expressos no singelo aforismo “curar
às vezes, aliviar frequentemente e confortar sempre” atribuído
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Resolução nº 7, de 24 de fevereiro de 2010. Dispõe sobre os requisitos
mínimos para funcionamento de Unidades de Terapia Intensiva e dá
outras providências. 2010. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/
bvs/saudelegis/anvisa/2010/res0007_24_02_2010.html>. Acesso em: 28
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COMPASSION AND CHOICES. Brittany Maynard dies with dignity. 2014.
Disponível em: <https://www.compassionandchoices.org/brittany-
maynard-dies-with-dignity/>. Acesso em: 9 jun. 2016.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.805/2006. Na fase
terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico
limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a
vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os
sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência
integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.
2006. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/
CFM/2006/1805_2006.pdf>. Acesso em: 20 maio 2016.
______. Código de Ética Médica (2009/2010). Brasília, DF: CFM, 2006.
Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_
content&view=category&id=9&Itemid=122>. Acesso em: 20 maio 2016.
CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Resolução
Cremesp nº 71, de 8 de novembro de 1995. Define e regulamenta as
atividades nas Unidades de Terapia Intensiva. São Paulo: Diário Oficial do
Estado de São Paulo, 1995. Disponível em: <http://www.portalmedico.
org.br/resolucoes/crmsp/resolucoes/1995/71_1995.htm>. Acesso em: 20
maio 2016.
DZIWISZ, S. et al. Deixem-me partir: o poder da fraqueza de João Paulo II. São
Paulo: Paulus, 2006.
EGAN, N. W. Terminally III Woman Brittany Maynard has ended her own life. 2014.
Disponível em: <http://www.people.com/article/brittany-maynard-died-
terminal-brain-cancer>. Acesso em: 9 jun. 2016.
Introdução
“A ficção”, afirma Edward Albee, “é um fato transformado em
verdade”. Para mim essa frase não é uma frase somente decorativa,
ela expressa duas coisas muito importantes sobre a ficção e sua
relação com a realidade: (a) não é necessariamente a descrição
empírica que nos dá o acesso mais direto e moralmente verdadeiro
ao mundo real, e (b) a ficção tem a capacidade de nos mostrar o
mundo real de um modo mais autêntico e tangível.
1. Este capítulo é uma tradução do texto “Bio(po)ética narrativa: literatura, teatro y poesía
como herramientas en la enseñanza y el aprendizaje de la bioética”, escrito por Jan Solbakk
originalmente em espanhol, para o XI Congresso Brasileiro de Bioética.
2. Professor doutor de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Oslo
(Noruega).
3. Nota do Tradutor: Epígrafe do “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago, citando o
“Livro dos Conselhos” do Rei Dom Duarte.
Vou retomar essas propostas mais adiante, mas, antes, pode ser
útil esclarecer uma questão metodológica: qual seria o melhor
enfoque didático para alcançar esses quatro objetivos? Quero
destacar aqui três enfoques diferentes. O primeiro eu chamarei
de “enfoque teórico”, o segundo está relacionado ao uso de casos
práticos (ou seja, as “histórias da vida real”), e o terceiro trata da
ficção e da narração, e será chamado de enfoque bio(po)ético.
GRETHE: Ah, sim, Kari. Deve ter 37 anos agora. Tem uns cinco anos
a mais que eu.
GRETHE: Não a conheço muito bem. Faz anos que não a vejo. Só
minha mãe a visita com frequência. Mas do que eu me lembro
é de sua aparência deformada e seu comportamento antissocial.
Por que me pergunta isso?
GRETHE: Bom, sim. Mas e o estado de sua mente? Ela não está
bem mentalmente.
GRETHE: O que vai acontecer com ela? Comigo? Com todos nós?
GRETHE: Eu sei disso. Mas preciso saber se isso não vai afetar a
vida e o bem-estar dela. Sei que é meu futuro e minha vida que
estão em jogo, mas a intervenção que o senhor sugere é somente
para o meu bem, não o dela. Ela não vai ganhar nada com isso,
não é verdade?
MÉDICO DE KARI: Sim, mas essa mulher que está doente também
é a irmã de Kari. Não é uma desconhecida!
SEGUNDA TUTORA: Isso não é justo. Não acho que minha colega
seja uma pessoa menos compreensiva que o senhor. Acho que
GRETHE: Sim, minha mãe veio com meus filhos. Foi tão bom vê-los
novamente!
GRETHE: Hoje ficaram por duas horas. É tão bom voltar a sentir
que vale a pena viver e compartilhar a vida!
GRETHE: Nem sei o que dizer. Graças a sua ação e à medula óssea
de Kari minha vida volta a se encaminhar. Devo a vocês dois a
minha vida. Já é hora de convidar Kari a também fazer parte de
minha vida. Pelo menos estou convencida de que isso, sim, é o
mais correto de se fazer.
Assim como disse Pierre Hadot (1995, p. 154, tradução nossa), “não
nos esqueçamos: identificar-nos com Sócrates é nos identificar
com a aporia e a dúvida, porque Sócrates não sabe nada; tudo o
que ele sabe é que não sabe nada”.
Epílogo
Uma última reflexão bio(po)ética pode ser extraída do poema
Dolor común, de Miguel de Unamuno.
Cállate, corazón, son tus pesares
de los que no deben decirse, deja
se pudran en tu seno; si te aqueja
un dolor de ti solo no acíbares
Introdução
A recente evolução científica disponibilizou aos pacientes
novos procedimentos e tratamentos que, na maioria das vezes,
proporcionam benefícios a sua saúde. Contudo, a possibilidade
de intervir na evolução normal da vida das pessoas, causando
efeitos indesejados, suscitou o estabelecimento de conflitos éticos
inusitados que despontaram com mais intensidade na segunda
metade do século XX.
1. Doutor em Bioética pela Universidad Rey Juan Carlos (Madri), membro do Comitê de
Ética em Pesquisa, docente da graduação e do mestrado em Biociências e Saúde da Uni-
versidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc).
2. Pós-doutor em Bioética pela Universidad Complutense de Madrid, doutor em Medicina,
docente da graduação em Medicina e do mestrado em Biociências e Saúde da Universida-
de do Oeste de Santa Catarina (Unoesc).
3. Pós-doutora em Bioética pela Universidad Complutense de Madrid, doutora em Enfer-
magem (UFSC), docente do Mestrado Profissional em Ciências da Saúde (CCS/UFSM) e
membro do Comitê de Bioética do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM)
História
Segundo Digilio (2004), o desenvolvimento histórico dos comitês
pode ser ilustrado por alguns casos célebres na bibliografia
mundial, que permite, ao mesmo tempo, categorizá-los de
acordo com suas funções e estrutura, como ético-praxiológicos,
jurídico-científicos (Julgamento de Nuremberg) e deontológicos-
-técnicos (Códigos de Ética Médica), sendo os organismos em tela
inseridos na primeira classificação, explicitada no novo método
que recupera o conceito aristotélico da deliberação prudente e
acrescenta elementos filosóficos dos valores humanos (GRACIA,
2004).
Referências
ABEL, F. Reflexión sobre los comités de ética asistencial. In: MARTINEZ, J.
L (Ed.). Comités de Bioética. Bilbao: Desclée de Brouwer-Universidad
Pontificia Comillas, 2003. p. 43-70.