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Que é filosofia?

Gilvan Fogel

1. A pergunta é velha, antiga, mas nem por isso menos pergunta. De vez em
quando, na nossa lida acadêmica, é bom que ela seja reperguntada, isto é, repetida e
retomada. E isso para ventilar nosso exercício, arejar, reoxigenar nossa atividade.
Reoxigenar, quer dizer, para nos colocarmos e nos recolocarmos no rumo, no bom rumo
ou no bom caminho. E bom, aqui, está falando o caminho ou a direção fundadora,
inauguradora da filosofia. E isso é preciso, pois a história ensina que proveniência,
fundação ou inauguração, é porvir. No entanto, o bom caminho, de modo algum, está
falando o ou único caminho. A filosofia, o pensamento, mudando, variando, em vindo a
ser sempre outra ou outro, porém, permanece, precisa permanecer sempre filosofia,
sempre a mesma em sendo outra, em se alterando ou se diferenciando. Como isso?

2. Antes, porém, que é isso que veio a chamar-se filosofia? O que acontece, o que
irrompe realmente, então? Antes de ser uma coisa, uma disciplina, uma cátedra acadêmica
ou um evento cultural, trata-se de um modo de ser do homem, de uma até então
desconhecida experiência da e na humanidade do homem que, na perplexidade deste novo
e outro, sequer um nome tinha, sequer filosofia se chamava ou assim podia ser nomeada,
denominada. Mas que acontecimento, que irrupção é esta?
Costuma-se estudar nos manuais de história da filosofia que, na Grécia, o que
marca o surgimento da filosofia é a passagem do mythos para o lógos. Este é um registro
canônico. Por mito se entende a ou as estórias, as narrativas, e com elas, enquanto força
de compreensão e de organização de realidade, a vigência da fabulação, da fantasia ― a
louca da casa. Por lógos, sem que se explicite, entende-se a razão e, grosso modo, o
pensamento racional, isto é, o modo de apreender e representar (então de compreender e
organizar realidade) lógico-racionalmente ou, pura e simplesmente, racional ou
logicamente. O que isso seja ― bem, isso fica por dado, suposto e sabido. O esquema
põe, de um lado, o i-rracional (= mythos) e, de outro, o racional (= lógos) e, então, na
superação do irracional e na respectiva passagem para o domínio do racional estaria
lavrada a certidão de nascimento da filosofia. E conste que o racional do lógos é a medida
que mede e decide pelo irracional do mythos. Isso, assim posto, passa a valer justamente
como posto e, sobretudo, como sempre já sub-posto.
Aceitando, nesta hora, esta relação-tensão entre mito e lógos, como é possível,
talvez necessário, entender isso numa outra direção? É possível que, nesta hora, com os
chamados primeiros pensadores gregos, comece a aparecer que mito é também lógos.
Quer dizer: começa-se a ver que as estórias, as narrativas, a fantasia e a fabulação, de
modo geral, e que se mostram como a força de compreensão e de organização de realidade
― enfim, que também isso e assim é lógos, ou seja, é sentido. Lógos, agora, aqui, para
nós, está dizendo sentido. Aparece que real, todo e qualquer real, para ser real ou em
sendo real é real porque é sentido, ou seja, graças a sentido. Mas que é sentido? Sentido
antecipa rumo, direção, orientação. Na e como orientação, isto é, no sentido, ponho-me a
oriente da ou das coisas, a seu nascente, a nascente da realidade de tudo quanto é e há.
Esta ou este nascente está dizendo gênese e, adiante, dirá forma, não como fôrma, formato
ou bitola, mas como gênese ontológica, isto é, uma forma ou estrutura que, em se
diferenciando e porque se diferenciando ou alterando, se faz princípio gerador e

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sustentador de realidade, de toda e qualquer realidade. Lógos está, pois, dizendo força
geradora, gênese ontológica ou forma. Sentido não é, pois, uma coisa, um algo, mas um
modo de ser do homem, uma têmpera da vida, uma tensão da existência humana, que, à
medida que aparece, se mostra e, então, vige, me põe em sintonia e sincronia com a
gênese, como a geração do real. Assim, desse modo, passa-se a ser consanguíneo com o
real, partícipe dele, nele, pois começa-se a ver e a perguntar pelo sentido de sentido.
Realidade, toda e qualquer, é sentido (lógos) e ― como, que é sentido (lógos)? Assim,
deste modo, entra-se na gênese de gênese, na vida da vida e esta é propriamente a
dimensão do lógos. Conhecer, aqui e assim, será consanguinidade com o real, autêntica
participação vital ou co-nascimento ― con-naître. E este é um acontecimento extra-
ordinário, uma hora extra-ordinária.
Assim visto e entendido, não temos que lógos esteja recusando, negando,
ultrapassando, no sentido de evoluindo e melhorando, ao mito, como se este fora uma
condição menor (irracional!), inferior na escala, talvez, na escalada da evolução humana,
da razão, do espírito, etc, etc. Não. Subentendido e sobretudo entendido está que
realidade, toda e qualquer, é sentido, isto é, lógos, e que mito, p.ex., é também e
igualmente lógos, ou seja, sentido, princípio de realidade ou forma (= gênese
ontológica).
É neste contexto e com esta compreensão que se deve ouvir a fala de Hegel,
segundo a qual, com Tales de Mileto, ao dizer que “tudo é água”, está antecipado o
heraclítico “tudo é um” e, em assim vendo e falando, fica para trás o pensamento
“fabulatório”, “imagístico”, irrompendo, então, “a intuição simples e sem fantasia”,
“aquietando-se, desse modo, a imaginação selvagem, multicolorida de Homero”1 ― isto
é, o mito. E assim, com isso, ainda no dizer de Hegel, o pensamento “entra no seu próprio
elemento”. O elemento, o medium do pensamento filosófico é o lógos, assim visto e
entendido. Elemento, medium, isto é, ambiência, lugar ou espaço próprio. Aura. E
ganhando tal elemento ou lugar próprio, assim e por isso ou graças a isso, nasce a
filosofia, o pensamento filosófico. Ser filósofo, filosofar, em qualquer tempo ou hora,
significa precisar se transpor, saltar para este lugar próprio, para esse elemento. Sempre.
Mas que lugar ou elemento é propriamente este, “sem imagem, sem fabulação” e que
define o lugar, o espaço, o elemento da filosofia, do pensamento filosófico? O nome
deste lugar, já se viu, é sentido. Este elemento é, pois, ó lógos.

3. Ser homem é ser na dimensão do ver, isto é, ser no sentido e na determinação


do aparecer e, assim e por isso ou graças a este modo próprio de ser, poder/precisar lidar,
ocupar-se com as coisas, com o “mundo” ― o homem, então, pode/precisa ser o vivente
que é enquanto e como ser-no-mundo. O homem, assim, é uma irrupção, mesmo uma
excrescência (!) na vida, da vida. Há nisso e assim um salto. Com o surgimento da
filosofia, com a irrupção do lógos há ainda um salto dentro deste salto e para dentro deste
salto ― é quando a vida, que é salto, salta para dentro da vida, ou seja, se vê que real é
sentido (lógos) e se pergunta pelo sentido de sentido. Isto é que é propriamente o ver o
ver ou a própria vida da vida ou gênese de gênese. O homem é, sim, ver. Mas com o
surgimento do lógos como lógos, o homem não só vê, mas vê que vê. Ele passa a ver o
ver ― isso terá seu pináculo com Platão, na sua teoria das ideias. Quando Platão formula

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Cf. Hegel, G. W. F., Werke in Zwanzig Bänden, Vorlesungen über die Geschichte der Philophie,
Suhrkamp, Frankfurt, 1971, B,. 18, S. 195, u.seg. Também Hegel, Tales de Mileto, em Os Pré-socráticos,
Abril Cultural, São Paulo. É de notar-se que esta é a mesma compreensão e formulação de Nietzsche,
igualmente na leitura de Tales de Mileto, em A filosofia na época trágica dos gregos. Cf. idem., Os Pré-
socráticos, Abril Cultural, São Paulo.

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idea, ver e visão, como causa, princípio e forma de realidade, ele funda e institui com
clareza cartesiana (!) a filosofia, o pensamento filosófico como ver o ver, o ver que vê que
realidade é ver ou ser no sentido do aparecer. Isso é visto em si mesmo e como tal. O mito
(o homem, de modo geral) é ver, mas, com o surgimento do lógos (sentido) como tal, vê-
se que o ver, que é o aparecer (= real e realidade), é sentido. Nisso está o entrar no ver o
ver ou no ver que vê que vê. O homem desperta para o homem, para a sua humanidade e,
assim, a vida salta para dentro da própria vida ― o humano entra num outro regime,
numa outra dimensão, numa instância de maior tensão. É como se o homem, aqui e agora,
se fizesse mais homem, pois entra, afunda mais na sua humanidade. Este acontecimento
vital ou essencialmente humano é o despertar do homem (da vida) para o homem (vida)
e o entrar neste novo âmbito marca o surgimento da filosofia como o inaugurar-se desta
nova casa do homem. Filosofar, o modo de pensar filosoficamente, é ser, viver neste e
desde este lugar ou casa. Este modo novo de ser que assim se abre e se impõe marca
Europa, define Ocidente.
Quando tal acontecimento se dá ou se abre, com os primeiros pensadores gregos,
este desconcertante modo de ser possível e necessário do homem sequer um nome tinha.
Veio a chamar-se filosofia já com Sócrates, Platão e os sofistas. Era a busca por um nome
oportuno que dissesse o modo de ser deste novo âmbito, desta nova casa do homem.
Oportuna ou inoportunamente, vai chamar-se philosophia ― amor ao ou busca do (ao)
saber. Mas isso e o rumo que tomará, porém, já será outra estória.
Pode-se acompanhar a cunhagem deste acontecimento inaugural seguindo, p. ex.,
o fragmento 112 de Heráclito, na ordem de Diels-Kranz. “Pensar (sophronein ― phren
= diafragma – pensar é coisa de pulmão e diafragma!) é a maior coragem (areté, força,
excelência) e a sabedoria acolher a verdade (kaí sophié aléthéa légein ― dizer-mostrar o
desencoberto, o revelado) e fazer com que se ausculte ao longo do vigor (aléthéa légein
kaí poiein katá physin epaíontas) (trad. Carneiro).
Pensar, aqui, agora, não pode ser entendido como representação conceptual, como
um “poder de síntese a priori” e como expressão do assim representado e apreendido em
juízos, em enunciados, que estejam reclamando um cotejamento, visando à
correspondência/adequação, à veri-ficação, com o objeto, com a coisa do enunciado ou
juízo. Não. Pensar aparece como a excelência (“areté”), como a força maior, isto é, a
cumulação ou a consumação da realização humana ― enfim, a excelência do homem, a
sua maior tensão ou a instância em que o homem aparece como mais ou mesmo
plenamente homem (isso é seu limite, quer dizer, sua cumulação ou consumação)
enquanto e como o ver. E esta excelência consiste em poder dizer, isto é, mostrar ou tornar
visível aquilo que, de repente, se mostra, se revela ou se ilumina e isso deve se fazer à
medida e só à medida que se segue o movimento de surgimento, a dinâmica de revelação
ou de geração disso que se mostra ― tal seguir, tal acompanhar em escuta e desde escuta,
isso é ouvir ou seguir a natureza, a nascividade ou natalidade do real, ou seja, a phýsis.
Seguir e obedecer ― isso e assim é a escuta. Assim se faz, assim se cumpre o saber, a
sabedoria ― e o pensar. Pensar ainda não é philosophia, pois não há busca, mas só e
tão só o acolhimento ou o assentimento disso que assim, de repente, se mostra, se dá ―
a harmonia do e no homologein, isto é, no pensar-ver e dizer-mostrar o mesmo de
realidade (phýsis) e sentido (lógos) no ato ou no instante desta revelação/mostração
(alétheia). Pensar, aqui e agora, é testemunhar isso. Tal ser assim despertado, tal assim
seguir ou acompanhar em escuta ― isso é ser tomado, ser despertado para o sentido,
para o real enquanto real ou a sua própria gênese, a saber, ó lógos. “Ouvindo não a mim,
mas ao lógos, é sábio dizer: tudo (é) um”, diz o fragmento 50. O lógos, o sentido enquanto
sentido ou o sentido enquanto tal ― isso constitui a dinâmica de realização de toda
realidade possível, ou seja, o real, a realidade enquanto tal é o movimento de

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diferenciação ou de alteração (vir a ser outro) do mesmo, do um, isto é, de ó lógos. O
sentido, enquanto ou como sentido, é o mesmo que em si mesmo se diferencia, perfazendo
assim a dinâmica de realização de realidade ― o movimento physis e alétheia, que, em
atenção de escuta, isto é, de obediência e de seguimento, é testemunhado no e como
pensamento, ou seja, na e como escuta, obediência e seguimento a ó lógos. Há muitos
mundos possíveis, muitas realidades possíveis, enfim, muitos lógoi. E tantas são as
profundidades, as radicalidades, as intensidades quantos os lógoi, isto é, as realidades
(mundos) possíveis. A profundidade, toda profundidade, que é sempre a força do sentido,
é, porém, sempre escancarada superfície. Quem tem olhos de ver, que veja; quem tem
ouvidos de ouvir, que ouça.
Esta experiência, aqui enunciada, marca decisivamente o surgimento do pensar,
deste modo ímpar de pensar, qual seja, o ver e seguir o sentido enquanto e como gênese
do real ― o sentido ou a gênese enquanto tal, ou seja, nele mesmo ou nela mesma. Ser
partícipe do real enquanto e como gênese, geração, isto é, ser testemunha do movimento
de realização de realidade. Nasce, desperta um novo modo de ser homem, um novo
homem, que será caracterizado no mito da caverna, de Platão, na República, como o
modo de ser articulado por revelação ou desencobrimento (alétheia), espírito (cultivo do,
enquanto e como paideia) e liberdade, quer dizer, como livre, aberto, disposto ou
propenso para este modo próprio de ser, que definirá história, ou o modo do tempo desta
forma, desta estrutura se articular e se desdobrar, se expor. Mais uma vez, este modo
próprio de ser pontuará e definirá Europa, Ocidente ― sim, o querer europeu, a vontade
ocidental, a história europeia.

4. Este modo ímpar de ser cava uma brecha, abre uma distância. O homem, agora,
vivendo e sendo desde este lugar, passa a viver à parte, à distância. Este à parte ou à
distância passa a ser sua casa, seu lugar, sua hora ― o ver o próprio ver ou a pergunta
pelo próprio sentido (lógos), que é o perguntar pelo sentido de sentido e que passa a
marcar este novo modo de ver-pensar, a saber, o filosofar. Ser nessa brecha, nesse à parte
ou à distância, quer dizer: ele vive, mas também não vive, pois se faz um expectador da
vida, da existência. Um expectador interessado ― pois é, pois passa a viver no interesse
maior e máximo da vida, que é ser no modo de ser que é poder ver-se como tal, isto é,
poder ver, testemunhar seu modo próprio de ser como sendo essencialmente ver e fazer-
se, isto é, vir a ser o que é, ou seja, ser e vir a ser cumprindo (realizando) um poder-ser,
uma possibilidade, cuja configuração e exposição definirá história. Assim, à distância ou
à parte, o homem passa a participar da vida, passa a ser partícipe deste ou consanguíneo
com este acontecimento extraordinário. Sim, participar, uma vez que é uma estranha
distância, um estranho afastamento, pois afastando, distanciando, aproxima ― levando
para longe, traz para perto, para junto, a saber, para perto ou para junto da própria vida,
da própria existência humana em sua consistência mais própria, que é ser gênese, geração,
sentido (lógos) se gerando como sentido (lógos) na teia, na tessitura do real, da vida ou
da existência que, então, se faz história.
Assim, como filosofar ou ser à distância, à parte, inaugura-se a ação do ver, que é
a ação do parado. Isso é, sim, de novo, um modo novo de ser. O exercício do ver é ação
― a ação do pensamento. Este exercício é cultivo. A ação do pensar (filosófico), o seu
cultivo, é pensar (ver) e assim é guardado o lugar próprio do homem, salvaguardada a sua
essência, isto é, assim é resguardada a sua casa, a casa do homem. Só aqui e assim deve
agir o filósofo, só aqui e assim ele deve militar. Salvar, salvaguardar o lugar, o modo
próprio de ser do homem ― por quê? Para quê? Não há porquê, não para quê. É só
cumprir o que é, e há, e faz-se, e dá-se.

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Qualquer outra militância ― cruzada! ―, qualquer outro ativismo, seja social,
político, ético-religioso, ecológico ― enfim, qualquer militância estranha e fora desta
ação do parado estará falsificando a filosofia, arrancando-a de seu lugar próprio. Estará
alijando-a de seu elemento ― a distância, o à parte, lugar e hora da celebração do
exercício do ver, da ação do parado como celebração e festa do ver ou do ouvir, a se
seguir ou ouvir, p. ex., Heráclito e Nietzsche. Aqui, ver e ouvir dizem o mesmo. Na
militância, como militância cumpre-se, sempre, um desvio e um extravio do pensamento
filosófico, deste insólito modo de ser. A filosofia precisa querer não ser militância,
ativismo, engajamento ― todo e qualquer. Melhor, ela precisa não poder e não precisar
disso.
Já fizeram brincadeira e trocadilho com Descartes dizendo ser ele, na sua
intransigente reivindicação de distância e de solidão, um “Monsieur à l’écart”, isto é, um
ou o Senhor à parte ― à distância. Esta é a designação por excelência do filósofo, sua
inalienável identificação, seu intransferível DNA. Assim, neste sentido, devemos todos
ser cartesianos... O filósofo é um pierrô. Claro, um pierrô apaixonado pela sua Columbina
― o real enquanto real ou a vida que, então e assim, faz-se a vida da vida. Quem leva é
o Arlequim, mas... Ele, o filósofo, o pierrô, é um morto-vivo, o tipo pálido-corado,
presente-ausente, que é, porém, uma marca, um estigma de excelência da vida. Sempre à
parte, à distância ― interessadamente à parte, à distância. Um bom expectador. Ele não
se engaja, ele não milita, ele não protesta, não grita e não se esgana, mas, tal como a
divindade que mora em Delfos, desde o seu mirante, ele aponta, acena, insinua, propõe
― convida. A filosofia é isso e assim. E há um grande gosto, uma grande satisfação, uma
indizível alegria em nada poder, nada querer, nada precisar querer e poder, mesmo nada
ser e fazer. Só ver, só testemunhar ― ser mártir da e na pura gratuidade. É a festa da
própria vida, da existência mesma. Aí e assim, gratidão e bênção.

Petrópolis, 1º de abril de 2018...

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