Você está na página 1de 2

As iluminações de Hannah Arendt

Por Richard J. Bernstein*

No prefácio de sua reunião de ensaios de 1968, Homens em tempos sombrios,


Hannah Arendt escreveu: “Mesmo nos tempos mais sombrios, temos o direito de esperar
alguma iluminação”. Hoje, nos nossos tempos sombrios, a obra de Arendt tem sido lida
com uma urgência nova, precisamente porque ela nos dá tal iluminação.
Nascida na Alemanha em 1906, Arendt estudou com proeminentes filósofos de
seu tempo, mas deixou o país em 1933, vivendo por um tempo em Paris e, mais tarde,
nos Estados Unidos. Ela é conhecida por obras como A condição humana, Sobre a
violência, Verdade de política, Origens do totalitarismo e, especialmente, Eichmann em
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, resultado de sua cobertura da
julgamento do nazista Adolf Eichmann para a revista The New Yorker.
Ela percebeu de maneira notável alguns dos mais profundos problemas,
perplexidades e tendências perigosas da vida política moderna, muitos deles ainda hoje
presentes entre nós. Quando fala em “tempos sombrios” e alerta para as “exortações, a
moral, que de outro modo, sob o pretexto de confirmar verdades antigas, rebaixam toda
verdade à trivialidade sem significado”, podemos ouvir não apenas a crítica aos horrores
do totalitarismo do século XX, mas também um aviso sobre as forças que permeiam a
política nos Estados Unidos e na Europa hoje.
Arendt foi uma das primeiras pensadoras políticas a alertar que o constante
aumento do número de apátridas e de refugiados continuaria a ser um problema intratável.
Em um artigo de 1943, o ensaio “Nós refugiados”, baseado em sua experiência pessoal
como apátrida, levanta questões fundamentais. Ela descreve graficamente o que significa
perder o lar, a língua, o trabalho e conclui com uma afirmação mais geral sobre as
consequências políticas do novo fenômeno de massa – a “criação” de massas de pessoas
forçadas a deixarem suas casas e seu país: “Refugiados levados de país a país representam
a nova vanguarda de seus povos... O comitê de povos europeus se despedaçou quando
permitiu que seus membros mais fracos fossem excluídos e perseguidos”.
Quando Arendt escreveu isso, dificilmente poderia ter percebido quão relevantes
seriam suas observações em 2018. Quase todo evento político significativo nos últimos
100 anos resultou na multiplicação de novas categorias de refugiados e parece não haver
fim à vista. Agora, há milhões de pessoas em campos de refugiados com pouca esperança
de voltar para seus lares ou até de encontrar um novo lar.
Em sua obra de 1951, Origens do totalitarismo, Arendt escreveu sobre os
refugiados: “A calamidade da falta de direitos não é porque as pessoas são privadas da
vida, da liberdade e da busca da felicidade, ou da igualdade perante a lei e da liberdade
de opinião, mas porque elas não pertencem mais a qualquer comunidade, seja qual for”.
A perda da comunidade tem como consequência a expulsão do povo da própria
humanidade. Apelos aos abstratos direitos humanos não significam nada, a menos que
haja instituições efetivas que garantam esses direitos. O direito mais fundamental é o
“direito de ter direitos”. Ao tratar dos horrores do totalitarismo e repetir que o objetivo da
dominação total é destruir a espontaneidade, individualidade e pluralidade humana,
Arendt examina o que significa viver plenamente uma vida humana na comunidade
política e começar algo novo – o que ela chama de natalidade. Ela também busca
examinar as ameaças à dignidade da política – o tipo de política na qual indivíduos se
enfrentam como politicamente iguais, deliberando e agindo juntos – uma política na qual
o empoderamento pode crescer e a liberdade pública prospera sem violência.
Seu ensaio “Verdade e política”, publicado em 1967, poderia ter sido escrito
ontem. Sua análise da mentira sistemática e do perigo que isso representa para as verdades
factuais é urgentemente relevante. Porque verdades factuais são contingentes e
consequentemente poderiam ter sido de outra maneira, é muito fácil destruir uma verdade
factual e substituí-la por um “fato alternativo”.
Em “Verdade e política”, ela escreveu: “Liberdade de opinião é uma farsa a menos
que a informação factual seja garantida e os próprios fatos não estejam em disputa”.
Infelizmente, uma das mais bem-sucedidas técnicas para borrar a distinção entre verdade
factual e falsidade é afirmar que qualquer verdade factual é apenas uma outra opinião –
algo que ouvimos quase todos os dias do governo Trump. O que aconteceu tão
descaradamente nos regimes totalitários tem sido praticado hoje por políticos de destaque
com grande sucesso – criar um mundo ficcional de “fatos alternativos”.
De acordo com Arendt, há um perigo ainda maior: “O resultado de uma total e
consistente substituição de mentiras por verdades factuais não é que as mentiras agora
serão aceitas como verdades e que as verdades serão difamadas como mentiras, mas que
o sentido pelo qual nos orientamos no mundo real – e a categoria de verdade versus
falsidade está entre os significados mentais para este fim – está sendo destruído”. As
possibilidades de mentir não têm barreiras e frequentemente encontram pouca resistência.
Muitos liberais ficam perplexos porque quando sua checagem mostra clara e
definitivamente que uma mentira é uma mentira, as pessoas parecem despreocupadas e
indiferentes. Mas Arendt compreendeu como a propaganda realmente funciona. “O que
convence as massas não são os fatos, nem mesmo fatos inventados, mas apenas a
consistência do sistema do qual eles presumivelmente fazem parte”.
Pessoas que sentem que têm sido negligenciadas e esquecidas anseiam por uma
narrativa – mesmo uma ficcional e inventada – que dê sentido à ansiedade que estão
experimentando e que prometa algum tipo de redenção. Um líder autoritário tem enorme
vantagem explorando a ansiedade e criando uma ficção na qual as pessoas querem
acreditar. Uma história fictícia que promete resolver os problemas tem muito mais apelo
do que fatos e argumentos “razoáveis”.
Arendt não era pessimista. Para contrapor seus alertas sobre os perigos políticos,
ela elaborou uma detalhada concepção da dignidade da política. Por causa de nossa
natalidade, de nossa capacidade de agir, podemos sempre começar algo novo. O tema
mais profundo em Arendt é a necessidade de ter responsabilidade por nossas vidas
políticas.
Ela avisou contra ser seduzido pelo niilismo, cinismo e pela indiferença. Ela foi
corajosa em sua descrição da mentira, do engano, do autoengano, da construção de
imagem e da tentativa dos que estão no poder de destruir a distinção entre verdade e
falsidade.
Sua defesa da dignidade da política fornece um padrão crítico para julgar a
situação na qual muitos de nós nos encontramos, em que a oportunidade de participar, de
agir em conjunto e de se engajar em debates genuínos com pares está sendo reduzida. Nós
devemos resistir à tentação de nos excluirmos da política e achar que nada pode ser feito
diante de toda atual feiura, decepção e corrupção. O projeto de toda a vida de Arendt foi
honestamente confrontar e compreender o lado sombrio de nossos tempos, sem perder de
vista a possibilidade de transcendência e iluminação. Este também deveria ser nosso
projeto.

*Richard J. Bernstein é professor de filosofia da New School for Social Research e autor
do livro “Why read Hannah Arendt Now”, que será publicado em breve nos Estados
Unidos e aqui no Brasil.

Tradução de Adriana Novaes

Você também pode gostar