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Resumo. Na perspectiva bakhtiniana de lingua- Abstract. In Bakhtin’s view of language and culture
gem e cultura o princípio da alteridade é medular, the principle of otherness is medullary, therefore,
portanto, nesta investigação, buscamos uma com- in this research we seek for an understanding of
preensão da interculturalidade na comunicação, the interculturality in communication, illustrated
ilustrada na linguagem fílmica, sob o prisma da in film language, through the prism of the theory
teoria de Mikhail Bakhtin, sobretudo nas ideias de of Mikhail Bakhtin, especially the ideas of exotopy/
exotopia/excedente de visão, constitutivas das relações vision surplus, components of intercultural relations.
interculturais. Assim, o presente artigo consiste Thus, this article is an analysis of some intercultur-
em uma análise de algumas relações interculturais al relations experienced by the characters Eugene
vivenciadas pelos personagens Eugene Martone e Martone and Willie Brown in the movie Crossroads.
Willie Brown, do filme A Encruzilhada. Consideran- Considering the complexity of film language, our
do a complexidade da linguagem cinematográfica, approach concentrated on the development of the
nosso enfoque incidiu sobre a evolução da relação intercultural relationship between the characters,
intercultural entre os personagens, o que deu con- which gave concreteness to the concepts of duplica-
cretude aos conceitos de duplicação, hibridização e tion, hybridization and finishing, central amalgam in
acabamento, amálgama central na perspectiva dia- the dialogical perspective on language and culture,
lógica de linguagem e cultura, tanto dentro quanto both inside and outside the artistic universe, at last,
fora do universo artístico, enfim, possível em todos possible in all fields of human activity.
os campos da atividade humana.
Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Attribution License (CC-BY 3.0), sendo permitidas
reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
A interculturalidade na linguagem audiovisual: estranhamento, duplicação, hibridização e acabamento
produzindo uma duplicação desta cultura” Boy, agora nas estradas, pousadas e bares do
(Janzen, 2005, p. 55). A empatia por determi- sul estadunidense, vive o Blues. Essa dualida-
nada cultura não significa uma compreensão de – Eugene Martone - Lighting Boy – é condição
da mesma – na maioria das vezes, trata-se de decisiva para o processo de hibridização vivi-
uma compreensão distorcida, pautada por ge- do pelo personagem, ou seja, diferentes vozes
neralizações e estereótipos. Em A Encruzilha- discursivas e eixos axiológicos se encontram.
da, a duplicação realizada pelos personagens
deriva de recorrentes processos de empatia, O processo pelo qual duas vozes percorrem em
mas, principalmente, de uma incompreensão um discurso é denominado por Bakhtin como
da cultura alheia. construções híbridas. Sob esta perspectiva, há
duas vozes que se entrecruzam dialogicamente,
mas que não se misturam uma com a outra. [...]
Hibridização O que determina as construções híbridas como as-
sociadas à relação intercultural é a noção de que,
A partir das concepções bakhtinianas da natureza pelo encontro com o outro, podemos entrecruzar
dialógica do enunciado, pode-se dizer que cons- diferentes sistemas axiológicos, que podem gerar
truções híbridas ocorrem quando um enunciado é uma visão ambígua, se considerados os valores
construído a partir de outros enunciados que, por do outro perante os meus próprios (Storck, 2011,
sua vez, possuem diferentes sistemas axiológicos, p. 50-52).
gerando então um novo enunciado com diferentes
eixos de valores (Storck, 2011, p. 51). Os conflitos vividos pelo personagem re-
forçam a afirmação acima. Martone continua
Na perspectiva aqui adotada, a ideia de passando por processos de estranhamento em
construção híbrida deriva da natureza dialó- que sua identidade Lighting Boy representa o
gica da concepção bakhtiniana de linguagem, contato com “o outro”, com “a outra cultura”.
ou seja, um enunciado está sempre conecta- Essa tensão identitária é constitutiva do sujei-
do a outros enunciados e o movimento entre to na perspectiva bakhtiniana, isto é, o sujei-
seus diferentes eixos axiológicos se dá pelo to não é transparente e não coincide consigo
dialogismo, pela polifonia (diversas vozes mesmo. Não sendo fixo nem absoluto em sua
discursivas plenivalentes). Em A Encruzilha- constituição, Martone é a expressão de vozes
da, esse movimento axiológico se expressa por plenivalentes, ou seja, “consciências e vozes que
gêneros secundários do discurso próprios da participam do diálogo com as outras vozes em
heterogeneidade fílmica, a qual se constitui pé de absoluta igualdade; não se objetificam,
transmutando gêneros primários à medida isto é, não perdem o seu SER enquanto vozes e
que contrapõe diversas vozes e materialidades consciências autônomas” (Bakhtin, 1981, p. 8).
significantes. A partir da concepção bakhtiniana de poli-
Como, para Bakhtin, “existe um diálogo en- fonia – das vozes plenivalentes ou equipolen-
tre o universo artístico e a vida extraliterária” tes –, “as personagens têm o poder de significar
(Janzen, 2012, p. 109), as construções híbridas diretamente, têm a possibilidade de ser sujei-
extrapolam a relação entre o autor e o herói/ tos do próprio discurso, não se constituindo,
personagem. Podemos, nesse viés, pensar na dessa forma, apenas como objetos do discurso
hibridização pela qual passam todas as pessoas autoral” (Janzen, 2012, p. 111), o que repre-
em relações interculturais, inclusive os perso- senta uma nova percepção do evento estéti-
nagens desta análise. O cruzamento efetivo de co, seja na literatura, no cinema ou em outras
diferentes sistemas axiológicos, independen- esferas artísticas. Sendo considerada também
temente do plano da análise (autor e persona- um fenômeno estético, multifacetado, a língua
gem; personagem A e personagem B; autor e é “um devir permanente e um acontecimento
interlocutor, etc.), deixará marcas tangíveis. vivo”. Não pode ser vista como “um instru-
Na segunda metade do filme, Eugene Mar- mento que serve para atingir fins exteriores a
tone passa a ser reconhecido por Willie Bro- ele, mas [...] um organismo vivo, funcionando
wn como um bluesman. O apelido Lighting em si e para si” (Bakhtin, 2009, p. 190). Essa
Boy é atribuído por Brown (Blind Dog Fulton) percepção estética da língua é central no uni-
a Martone, o que representa, na linguagem verso literário, mas incide também nos proces-
cinematográfica, amplas possibilidades de hi- sos enunciativos do campo extraliterário, isto
bridização. No contexto do filme, Lighting Boy é, ao falar nos percebemos enquanto sujeitos,
não representa aquele garoto de classe média nos identificamos e nos lançamos em uma
que estudava Blues por discos e livros. Lighting orientação apreciativa, estética. Decorrentes
No âmbito das relações interpessoais e in- [...] o tema da enunciação é determinado não só
terculturais, tanto no universo artístico quanto pelas formas linguísticas que entram na composi-
na vida extraliterária, esse caráter exotópico ção (as palavras, as formas morfológicas ou sintá-
ticas, os sons, as entoações), mas igualmente pelos estranhamento ou a uma recíproca duplica-
elementos não verbais da situação. Se perdermos ção/projeção. Eugene Martone (Lighting Boy)
de vista os elementos da situação, estaremos tam- e Willie Brown (Blind Dog Fulton), afastados
pouco aptos a compreender a enunciação como se de seus eixos axiológicos, interagem na pers-
perdêssemos suas palavras mais importantes. O
pectiva exotópica preconizada por Bakhtin.
tema da enunciação é concreto, tão concreto como
o instante histórico ao qual ela pertence. Somente a Nas palavras de Castro (2007, p. 94):
enunciação tomada em toda a sua amplitude con-
creta, como fenômeno histórico, possui um tema Estudar as coisas do mundo humano é, na ver-
(Bakhtin, 2009, p. 133-134). dade, se debruçar sobre o pensamento do outro,
sobre o texto do outro, sobre os valores do outro.
Nesse sentido, minha exotopia, meu excedente
Na linguagem cinematográfica não é dife-
de visão tem necessariamente que desenvolver o
rente; o cinema transcende a linguagem ver- contínuo exercício de captar das palavras do ou-
bal. Na cena da transcrição acima, representa- tro a sua essência epistemológica; seu ponto de
da pelo recorte da Figura 2, além do conteúdo observação valorativo do mundo, seu mirante.
e da entoação das palavras ditas e das suas
formas morfológicas ou sintáticas, são igual- Em sintonia com Castro (2007), a relação in-
mente responsáveis pela composição do tema tercultural vivida entre os personagens do fil-
os elementos não verbais. A relação dialógica me pode ser compreendida nessa perspectiva
entre as palavras de Willie Brown e as tristes exotópica da vida, já que a alteridade aqui se
notas musicais emitidas pela guitarra de Euge- deu no plano fílmico e o cinema também cons-
ne Martone tem caráter exotópico, nos termos titui o universo das “coisas do mundo huma-
bakhtinianos. Analisada em sua totalidade, a no”. Para Bakhtin (1997, p. 368), “na cultura,
cena é composta por inúmeros elementos não a exotopia é o instrumento mais poderoso da
verbais, sobretudo na representação verbal- compreensão. A cultura alheia só se revela em
-musical de Eugene, que agora toca sua guitar- sua completitude e em sua profundidade aos
ra e sente o Blues; não se trata mais da música olhos de outra cultura”.
pela música, mas sim da expressão de senti-
mentos sinceros e de experiências vividas em Considerações finais
sua plenitude no universo dos bluesmen.
Estabelecida uma franca relação de com- Neste artigo, apresentamos um exercício
panheirismo entre os personagens, o acaba- de análise alicerçada no princípio da alterida-
mento também é praticado por Willie Brown. de da perspectiva bakhtiniana de linguagem
A indiferença de Brown às aspirações de e cultura. As relações interculturais dos per-
Martone dá lugar a uma amizade sincera sonagens do filme analisado nos forneceram
e independente de quaisquer que sejam as inúmeros elementos para um diálogo entre
diferenças culturais, raciais ou socioeconô- o universo literário e o campo das relações
micas entre os dois. A relação intercultural interculturais intrínsecas da vida social nas
entre eles não se limita mais a um constante várias esferas da enunciação em que estamos
imersos. A concepção exotópica da vida pre-
sente no pensamento bakhtiniano é medular
no enfoque aqui adotado, sendo a alteridade
sua condição fundamental.
Em sintonia com Bakhtin, entendemos que
a orientação axiológica do outro nos acompa-
nha por toda a vida. “O outro vai imprimin-
do uma orientação axiológica nas palavras
e atitudes e vai-nos completando [...] já nas
primeiras experiências” (Janzen, 2005, p. 52).
As trajetórias de dois personagens do filme,
Eugene Martone e Willie Brown, ilustram
seus respectivos afastamentos valorativos,
Figura 2. Eugene Martone chora ao tocar sua
isto é, ambos têm uma orientação axiológica
guitarra.
influenciada pelo outro, reciprocamente. Para
Figure 2. Eugene Martone cries while playing
tal interpretação, o nosso enfoque incidiu so-
his guitar.
bre a evolução da relação intercultural entre os
Fonte: A Encruzilhada (Hill, 1986). personagens sob o prisma teórico bakhtiniano,