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Introdução
Hoje pode parecer óbvio que o mar e a praia são locais privilegiados de
lazer e de práúca esporúva, como também não é incomum observar homens e
mulheres desfilarem seus corpos seminus por esses espaços, ainda mais quando
nos referimos a uma cidade com tamanho litoral e tão relacionada a tais locais
como o Rio de Janeiro. Atualmente, sem dúvida, a praia e o mar são palco das
mais diversas compeúções, de uma práúca esportiva coúdiana, e uma das opções
de lazer mais utilizadas pelo carioca.
. Esse imenso litoral poderia até mesmo ter determinado um desen
volvimento precoce do remo na cidade. Mas, ao focalizarmos a história do Rio
de Janeiro no século XIX, momento de surgimento do campo esporúvo 1 no
Brasil, percebemos que o desenvolvimento de tal esporte na cidade é muito mais
complexo, significativo e esclarecedor das mudanças no seu contexto sociocul
!Ural do que apressadamente, de início, poderíamos supor. Tais mudanças
acabaram por determinar sentidos diferenciados ao uso do mar pela população
;!
fator importante a ser considerado no crescimento do remo no Rio de Janeiro.
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tuadas características rurais, governada por uma oligarquia agrícola, mas que
procurava buscar meios de identificação com as 'novidades dos países mais
desenvolvidos'. Sem faJar que o cavalo havia já algum tempo fazia parte do hábito
4
e do cotidiano da população da cidade.
Já o remo se organizou posteri01M'lnnente, e foram as diferentes injunções
em tomo de tal desenvolvimento que nos conduziram à realização deste estudo.
Por que o remo e os esportes aquáticos (corno a natação) só se estruturaram
tardiamente em relação ao turfe? Quais foram as peculiaridades que determi
naram isso? Quando o mar começou a ser utilizado para a prática esportiva e
corno f01ma de lazer pela população?
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dia. Quando chovia, o lixo era mesmo jogado nas ruas. Afirma Toussaint Samson
(apud. Mauro, 1991: 16), visitante de origem francesa, que:
A relação dos habitantes da cidade com o mar era de distância. Ele não
era utilizado para banhos ou para lazer, e até seus produtos alimentares não
gozavam de prestígio entre a população. Constantes eram os avisos em jornais
condenando o uso alimentar do peixe, supostamente um mal para a saúde.
Obviamente, parte da população, ou seja, os mais pobres, não seguia exatamente
tal16gica.
Um dos marcos apontados pelos memorialistas na mudança dessa re
lação foi a utilização por D. João dos banhos de mar para curar mordídas
inflamadas de canapato, a partir de sugestão de um médico francês. Ainda assim,
D. João não entrava no mar. Simplesmente utilizava uma banheira colocada na
areia da praia do Caju, no antigo bairro da Prainha, posterioIlllente (e até hoje)
conhecido como Saúde.
De fato, a partir do final do segundo quartel do século XIX as preocu
pações com o saneamento da cidade começaram a se tomar mais constantes,
mobilizando o esforço de médicos, sanitaristas e engenheiros, que passaram a
ocupar lugar central inclusive como administradores públicos. Mesmo que
lentamente, começaram a ser buscadas medidas que tomassem a cidade 'mais
habitável', os 'poderes' da água começaram a ser ressaltados, e os banhos de mar
passaram a ser sugeridos como prática terapêutica.6
Não por acaso, a primeira casa de saúde do Rio de Janeiro foi aberta em
Botafogo, bairro ainda dístante, mais aprazível e perto de um 'mar mais limpo' ?
A aristocracia começava a procurar locais mais 'arejados' e adequados ao clima
tropical para morar, pois o crescimento urbano desorganizado e a característica
geomorfológica da cidade tornavam 'inabitável' (para elas) o grande centro.
A população mais abastada financeiramente avançava para a Zona Sul e
observavam-se as primeiras baIlacas de banhistas atOladas na praia.8 Anterior
mente, os poucos que 'se arriscavam' a se banhar faziam uso das flutuantes,
criadas nos anos 1810. Eram na verdade barcos ancorados no meio da baía de
Guanabara, onde se chegava utilizando botes. De fato, a princípio os banhos eram
fundamentalmente considerados um luxo, um sinal de distinção e prazer, e
somente secundariamente havia uma preocupação com a saúde. Por trás dessa
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do tipo: "E expressamente proibido fazer furos nestas cabines a verruma ou pena,
os encontrados nessa ,prática devendo ser entregues à ação da polícia" (apud
1
Emundo, 1957: 837).
Assim, não é de se estranhar, tanto na Europa quanto no Brasil, os
rigorosos trajes de banho que deviam, por imposição social e muitas vezes legal,
ser utilizados:
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feita ou, como se diz, quando é bem acabada, sair e entrar no mar. (...) quando
sai, e aí está o busilis, a roupa adere ao corpo (...), se nota muito a cinrura bem
feita, o seio bem contornado" (Gazeta da Tarde, 1882, apud Renault, 1982: 173).15
As regulamentações também estavam diretamente ligadas ao que os
médicos determinavam como adequado à saúde. Havia uma série de regras, um
verdadeiro receiruário, que variava segundo as concepções de cada médico a
i
respeito dos beneficios dos banhos e dos meios de alcance de tais benef cios.
Como os banhos de mar eram concebidos como práticas terapêuticas, sua utili
zação devia ser estritamente codificada pelos detentores do 'conhecimento cien
tífico'.
Enfim, aos poucos foi-se observando o crescimento de certas preocu
pações com a saúde, que passavam pelo uso do mar para banho, agora regulamen
tado e constituindo uma prática minuciosa: "O banho de mar, em particular, e
sobrerudo a partir de 1820-1830, que explora as afirmações dos higienistas do
século Xvrll, toma-se uma prática claramente específica" (Vigarello, 1988: 150).
De acordo com Corbin (1989) a ocupação das praias na Europa teve
também relação direta com a queda da influência da visão religiosa católica acerca
do mar, que induzia a uma cena repulsa e medo. Neste esrudo não investigamos
especificamente essa questão no Brasil, mas não podemos desconsiderá-la. De
vemos levar em conta que o século XIX foi bastante rico no que se refere à chegada
à cidade de novas religiões (destacando-se as protestantes, principalmente pres
biterianas e metodistas, e o espiritismo), sem falar que no Brasil conviviam ainda
as religiões locais (de origem indígena), bem como as tradições trazidas pelos
negros, sintetizadas e sincretizadas não só com a religião católica, como também
com as tradições religiosas indígenas, sem dúvida influentes na estrurura social
16
brasileira.
Com os banhos sendo exaltados pelas propriedades terapêuticas, a praia
de Botafogo elitizou-se, sendo sempre ressaltadas, nos anúncios de aluguéis, as
facilidades de acesso nesse bairro à utilização do mar. Nos anúncios dos jornais
da época era comum chamar a atenção para o fato de que a casa oferecida
possibilitava fácil acesso às praias.
As empresas de bonde também utilizavam o mar como estratégia de
marketing, oferecendo passeios às preferidas e mais populares praias do Passeio e
do Russel (hoje, praia do Flamengo). Os passeios marítimos e as excursões às
praias mais distantes (como, na época, Copacabana) se tomaram mais freqüentes.
,
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francês, como Banhos de mar, em 1876, e COIlSelhos aos banhis/llS, do DI'. Claparede,
em 1882 CRenault, 1 982).
Criou-se uma verdadeira estrutura comercial em torno dos banhos de
mar, que ia desde sua utilização como pano de fundo para propagandas ligadas a
remédios e tônicos ou a produtos específicos para os banhos Ccomo os sapatos de
lona), até sua utilização como vantagem oferecida por casas de saúde e hotéis. Por
exemplo, em 1879 o Hotel do Leme anunciava a possibilidade de banhos de mar
tranqüilos, inclusive com o oferecimento de salva-vidas para os hóspedes
17
CRenault, 1982).
Em 1878, medida governamental muito polêmica agitou a cidade. O
governo deu a Joseph Fogliani a concessão de banhos públicos, concedeu-lhe
uma subvenção de 8.000 réis, ftxou o preço a ser cobrado pelo banho em 200 réis
18
e divulgou que 'distribuiria' 600 banhos à população que não tivesse dinheiro.
A imprensa e a população criticaram ferozmente a iniciativa, que não avançou.
Curiosamente, também fora concedida uma permissão para que aulas de
natação19 e ginástica fossem ministradas.
Nesse ínterim mudanças signiftcativas ocorreram no que se refere à
ocupação/utilização do mar e das praias. As areias da raia começaram a ser
R
utilizadas para atividades de lazer como piqueniques, o para a realização de
corridas de cavalo Cantes da organização efetiva do turfe), até que ftnalmente
surgiram as primeiras corridas de canoa.
Inicialmente, a utilização de canoas/barcos não estava ligada à realização
de competições, mas sim à contemplação do mar e da praia a partir de um outro
ângulo. Estava relacionada a uma nova orientação estética, perceptível no próprio
desenvolvimento dos modelos de contemplação do romantismo. Já as corridas
de canoa (primórdios ainda não estruturados do remo) carregavam um sentido
mais notável de desafto: ao outro, a si mesmo, mas também ao próprio mar. Tal
diferença de sentidos ftca clara quando observamos duas manifestações próximas
. . . 21
que se desenvoIveram d'e llerenClad amente: o lausmo e o remo.
Enquanto o remo logo se desenvolveu enquanto competição, o iatismo
ainda guardou durante um bom tempo, e de certa fOI'llIa ainda mantém, o sentido
de viagem contemplativa pelo mar. Aliás, é curioso observar que o iatismo nunca
logrou grande êxito na cidade do Rio de Janeiro, ao contrário de Niterói, até hoje
�
um grande pólo da prática de iatismo no Brasi local de origem dos principais
2
campeoes olímpicos brasileiros na modalidade.
A primeira corrida de canoa mais divulgada no Rio de Janeiro foi
realizada em 1846, com as canoas LambeAgua e Cabocla, já contando com grande
,
público na assistência.
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tem a sua história e os seus determinantes (...). E mesmo preciso que as imagens
do corpo mudem para que os constrangimentos possam mudar também" (Vi
garello, 1988: 10).
Nos últimos 25 anos do século XIX, os banhos de mar já eram também
encarados como exercícios fisicos para a melhoria do padrão estético corpóreo, o
que se articulava plenamente com um outro parãmetro de saúde. Identificamos
mudanças claras nessas práticas. Ainda não se dizia 'ir à praia' e sim 'ir ao banho
de mar', os banhos ainda continuavam sendo realizados bem cedo, mas, por
exemplo, as mulheres já começavam a freqüentar mais constantemente as praias.
Surgiram dois horários para os banhos. Um bem cedo, destinado aos idosos e às
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vida, a uma nova opção de prazer, a novos códigos de conduta: "A beira-mar, ao
abrigo do álibi terapêutico, no choque da imersão que mistura o prazer e a dor
da sufocação, constrói-se uma nova economia das sensações. Elabora-se, para as
classes ociosas, uma nova maneira de experimentar o corpo (... )" (Corbin, 1989:
108).
Enfim, no que se refere à ocupação e à utilização do mar, diferentes
setores das classes ociosas tinham apreensões diferenciadas. A prática de esportes
e a realização de competições estavam mais diretamente ligadas aos interesses e
peculiaridades de uma parte desses setores.
Não é dificil entender, portanto, o número de iniciativas governamentais
de apoio e incentivo ao remo na virada do século. Embora Odemira (como já
vimos) e principalmente Olavo Bilac criticassem a falta de incentivos governa
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mentais ao remo, não é dificil identificar que alguma fOIma de ajuda já existia
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no final do século XIX. Podemos perceber isso nas palavras de Mendonça ( 1909:
80) acerca do Campeonato do Rio de Janeiro realizado em 1897:
Reúna-se a esse fato a valiosa proteção que hoje lhe
dispensam os Exmos. Srs. Presidentes da República, que além de com
parecerem oficialmente nessas solenidades, ofertam medalhas honrosas
e ricos objetos de arte aos seus vencedores e patenteado fica a aceitação
e o legítimo interesse que o sport náutico desperta em todas as classes
• •
sociais.
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De acordo com Corbin (1 989: 85), quando, "no início dos anos 1840, na
Europa inteira, a estrada de ferro atinge o litoral e um novo dispositivo de
progresso vem alterar a fisionomia das estâncias (... ) a figura da praia se turva, os
mitos de entrecruzam, os estereótipos se acumulam em uma confusa concorrên
cia",
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Conclusão
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Notas
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Maiores informações podem ser obtidas 18. Encontramos aqui mais um exemplo
no estudo de Vigarello (1988). de preocupação, embora bem restrita, de
14. Curioso observar que, segundo Alain 22. Um breve olhar sobre a cultura
Corbin (1 989), em Brighlon, em 1876, de esponiva da cidade de Niterói já é
acordo com um guia, homens indiscreros suficiente para chamar a atenção para sua
tentavam a todo custo observar as peculiaridade. Podemos observar aí o
mulheres por ocasião de seus banhos de desenvolvimento de espanes pouco
mar. difundidos no Brasil, como o nlgby, e
15. Iniciativas governamentais de mesmo de práticas quase extintas, como o
jogo do bolão. Provavelmente isso
regulamentação dos banhos de mar são
também está ligado às colônias de
observáveis na cidade até os anos 1920.
imigrantes que lá se estabeleceram. Tal
16. Sobre a síntese das religiões cidade sem dúvida merece um estudo
afro-brasileiras e sua influência na mais aprofundado.
sociedade brasileira, ver O estudo de
23. E interessante observar que nesta
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26. Para se ter uma idéia: Club de 33. Quando o remo começou a freqüentar
Regatas Guanabarense (1873); as páginas dos jornais da cidade, o turfe já
Paquetaense (1884); Cajuense (1885); tinha um bom espaço. As primeiras
Internacional (1887); Union des colunas especificamente esportivas foram
Canotiers e Fluminense (1892); Botafogo em grande parte dedicadas ao turfe e
(1894); Gragoatá, Icaraí e Flamengo
• • • •
27. Ernesto CurveUo Júnior, grande XX essa nova estéúca corporal chamou a
incentivador da prática do remo, que atenção de um compositor popular (Noel
Rosa), que chegou a compor uma música
• • • •
29. A União controlava o crescimento dos 36. Por exemplo, o Boqueirão, o Vasco, °
Flamengo, o Guanabara.
clubes (os clubes eram mesmo
freqüentemente obrigados a entregar o 37. Interessante observar que em 1878 já
nome das embarcações e o número de fora criado em Botafogo um clube
sócios), estabelecia as categorias específico para a prática da natação: o
(profissionais, amadores e novos), Club de Boiton.
38. Em muitos jornais da cidade os
regulamentava os barcos e até os
uniformes, tendo ainda a possibilidade de
clubes divulgavam suas realizações.
aplicar punições aos que descumprissem
Notadamente encontramos fanos
exemplos no Paiz, na Gazela de NOlícias e
o código.
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Referências bibliográficas
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