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03 A 15 dezembro / 2013
Av. ALMIRANTE BARROSO, 25, CENTRO

www.caixacultural.com.br

Curadoria Pedro henrique ferreira

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Ao longo de sua história de 152 anos, a CAIXA consolidou uma imagem de
empresa de sucesso, presente em todos os municípios brasileiros, através de
mais de 60 mil pontos de atendimento.

Atuar na promoção da cidadania e do desenvolvimento sustentável do País,


como instituição financeira, agente de políticas públicas e parceira estratégi-
ca do Estado Brasileiro, é a missão desta empresa pública cuja história visita
três séculos da vida brasileira.

Foi no transcurso desta vitoriosa existência que a CAIXA vem, ao longo das
últimas décadas, consolidando sua imagem de grande apoiadora da nossa
cultura, e detentora de uma importante rede de espaços culturais, que hoje
impulsiona a vida cultural de sete capitais brasileiras, onde promove e fo-
menta a produção artística, e contribui de maneira decisiva para a difusão e
valorização da cultura.

A mostra, “Miklos Jancsó - A dança da Utopia” exibirá durante duas semanas


uma retrospectiva inédita dos principais filmes do diretor húngaro e a CAIXA
reafirma sua política cultural, sua vocação social e a disposição de democra-
tizar o acesso aos seus espaços e à sua programação artística.

A CAIXA agradece sua participação e acredita, desta maneira, estar contri-


buindo para a renovação, ampliação e fortalecimento das artes no Brasil, e
ampliando as oportunidades de desenvolvimento cultural do nosso povo.

Caixa Econômica Federal

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ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
Pedro Ferreira

A AURA DA HISTÓRIA 14
Andrew James Horton

Glauber/Jancsó:
do mito à civilização 26
Raul Arthuso

A Experiência Miklós Jancsó 32


Thiago Brito

A consagração de
um novo rito: 38
Os anos 60 e 70 na carreira
de Miklós Jancsó
Fabian Cantieri

“Agora é a hora de
apodrecer para sempre” 44
Os filmes de Jancsó no período
entre 1981 e 1991
Jaromír Blazejovsky

A HISTÓRIA DESFIGURADA 56
Luís Alberto Rocha Melo

FILMES 62
BIOGRAFIAS 72
FICHA TÉCNICA 74

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APRESENTAÇÃO Pedro Henrique Ferreira

E mbora Miklós Jancsó seja um dos gigantes do seus primos, que surge nos muitos ícones bíblicos
cinema europeu e mundial dos anos sessenta e de sua filmografia; o espírito nômade e a aproxi-
setenta, é notório que sua obra é pouco conhecida mação com o universo folk do leste europeu, que
e pouco difundida, obscurecida pela vicissitude do aparecia como uma forma de resistência cultural
tempo. No Brasil, o caso é ainda mais alarmante: após a invasão alemã.
com exceção de Os Sem Esperança (Szegénle-
Mas, além da pluralidade cultural, diversas expe-
gények, 1966), é bastante provável que nenhuma
riências envolvendo guerras e lutas políticas tive-
de suas obras tenha sido exibida, pelo menos nos
ram efeito em seu estilo. Cursou direito (comprou

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últimos trinta anos. Não se sabe ao certo a que
uma parte do diploma, aquela sobre direito inter-
exatamente se deve este destino cruel; se foram
nacional) devido ao seu interesse por filosofia, o
as ideias modernistas dos anos sessenta que saí-
que se afina um pouco com sua predileção pela
ram de moda ou se foi a ideologia comunista que
temática da justiça e dos conflitos de poder. Du-
APRESENTAÇÃO
entrou em colapso, o que, de algum modo, teria
rante a Segunda Guerra Mundial, chegou a se alis-
tido seus reflexos na popularidade do diretor. O
tar contra os invasores nazistas, sendo obrigado
que se sabe é que um importante expoente do
Pedro Henrique Ferreira a fugir, e se tornando prisioneiro de guerra – ex-
cinema modernista – não tão somente um segui-
periência marcante para sua primeira fase. Nela,
dor, mas alguém que ajudou a fundá-lo e que de-
podem ser incluídos os longas-metragens reali-
senvolveu um de seus desmembramentos mais
zados desde o autobiográfico Meu caminho para
significativos junto a figuras como, por exemplo,
casa (Így jottem, 1965) até, pelo menos, Silêncio
Michelangelo Antonioni, Jean-Marie Straub, Glau-
e grito (Csend és kiáltás, 1968). Ao retornar da
ber Rocha e Sergei Parajanov – não encontra hoje
Grande Guerra, cursou direção cinematográfica e
o mesmo respaldo, o mesmo lugar imaginário que
trabalhou, por cerca de sete anos, com filmagens
estes encontraram.
jornalísticas, que, se não chegavam a ter uma car-
Nascido em 1921 na Transilvânia, próximo a Bu- ga ideológica ostensiva, indicavam, pelos temas,
dapeste, em um período de turbulência – um ano uma orientação à propaganda comunista.
após a assinatura do tratado de Trianon1 e dois
Apesar de ter estreado seu primeiro longa-metra-
anos após a ascensão do comunista Béla Kun2
gem em 1958, a obra que o consagrou internacio-
ao poder –, Jancsó sofreu influências de diversas
nalmente3 foi Os Sem Esperança, primeira parte
culturas que disputavam o território na época.
de uma trilogia que também inclui Vermelhos e
Dentre elas, a parte romena, da família de sua
Brancos (Csillagosok, katonák, 1967) e Silêncio e
mãe; a magyar, especialmente via camponesa,
Grito (Csend és kiáltás, 1967). A trilogia é o cerne
muito mais do que a imperial; a cultura judaica de

1. Tratado que fixava a Transilvânia como território da Romênia, após inúmeras disputas.
2. Político húngaro que liderou a revolução bolchevique no país em 1919. Seu governo durou pouco, mas até hoje é um marco
no imaginário dos húngaros: a possibilidade frustrada de formação de uma comunidade paradisíaca muito espelhada no olhar
de Jancsó.
3. Nomeado à Palma de Ouro em Cannes, 1966.

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ APRESENTAÇÃO Pedro Henrique Ferreira

da primeira fase do diretor, genericamente intitu- repressão do governo em cima dele. Eternamente de coveiros Pepe e Kápa. Ressurgindo das cinzas ção, as aspirações de Jancsó apontavam para outro
lada como realista, quando comparada às obras otimistas, seus personagens entoam: “Vivam os após um período sem filmar, suas obras cômi- lugar que, se não chega a ser pacifista (como nos
posteriores. Nela, temas históricos são pano de trabalhadores, vivam os direitos, viva a sociedade cas atuais refletem sobre o estado histriônico do levaria a crer uma de suas obras que teve justa-
fundo para uma análise elaborada sobre as rela- dos camponeses” - mesmo quando caminhando mundo e da cultura – sua permanente falta de mente este título), parece, a todo o momento, in-
ções entre opressores e oprimidos, encenadas em rumo à morte. história, sua incapacidade de ser conhecida atra- dagar o destino do uso da força, e querer enxergar
uma profusão de planos-sequência meticulosos vés das ferramentas teóricas atuais–, sobre o uma alternativa – por mais que esteja longínqua,
Em meados dos anos setenta, Jancsó passou a por mais que seja fadada ao fracasso. Neste sen-
nas pustzas húngaras, vazias, com pouquíssimos grande vácuo de sentido deixado pela derrota das
dividir seu tempo entre a Itália e a Hungria, rea- tido, a utopia de Jancsó é a utopia de um mundo
elementos cênicos. O mise-en-scène perfeitamen- experiências comunistas no Leste Europeu e sobre
lizando coproduções e aproveitando a sua reputa- sem opressões, contra todas as formas possíveis
te calculado destes retratos trágicos dos proces- a barbárie generalizada que haveria tomado conta
ção internacional para conseguir financiamento. de tirania. Mas, nem por isso, uma utopia calada.
sos históricos conflituosos persistem praticamen- de uma geração cujo grande arquétipo seria Ham-
Todavia, a experiência na Itália não foi muito bem Como diz a protagonista de Electra, Meu Amor,
te durante toda a sua filmografia em P/B. let. Curiosamente, foi justamente o público jovem
sucedida. Segundo alegações do próprio diretor, o “amaldiçoados sejam todos os tiranos e aben-
aquele que melhor recebeu este conjunto de fil-
Estas experiências estéticas começariam a ser motivo foi ele não ter pleno conhecimento de de- çoados sejam todos que resistirem à tirania”. No
mes. Outrora tido como uma figura revolucionária
mais desenvolvidas e levadas adiante – em um terminadas tradições locais. Na Itália, certas obras fundo, trata-se de uma utopia materialista. Uma
em todos os seus aspectos, Jancsó é, hoje, uma fi-
universo muito mais particular, abstrato e sim- foram acusadas como pornográficas, por conta utopia que é sinônimo da liberdade do povo.
gura mais pop, caricatural, que atua em filmes de
bólico – a partir de Ventos Cintilantes (Fényes do excesso de nudez. Na Hungria, os filmes ainda
novatos e habita o imaginário da juventude, como
Szelek, 1969), seu primeiro longa-metragem em obtiveram boas recepções de público e da crítica.
uma espécie de Andy Warhol.
cores. Dos poucos personagens que se movimen- Outro destaque deste período é Electra, Meu Amor
tavam em quadro coreograficamente, passamos a (Szerelmem, Elektra, 1974), uma adaptação do Diante de uma cinematografia de tantas reinven-
verdadeiros musicais, a balés repletos de danças mito de Orestes transformada em um grito pela ções, de tantas montanhas-russas na recepção
folclóricas húngaras. Cada vez menos, o indivíduo liberdade do povo. de público e crítica, retomar a obra de Jancsó,
tem espaço na trama. O grupo e sua dinâmica hoje, não é apenas se deparar com a obra ador-
Nos anos oitenta, três obras marcariam um pro-
se tornam os personagens-arquétipos. Pombos, mecida de um dos gigantes da história do cinema
cesso de transição na carreira de Jancsó: Coração
velas acesas, corpos nus, a água, a cor vermelha, que, com o tempo, ficou obnubilado. Envolto no
Tirano, aliás, Boccaccio na Hungria (A Zsarnok
violinos, sinos, cavalos e outros objetos começam olho do furacão modernista, Miklós Jancsó é re-
szíve, avagy Boccaccio Magyarországon, 1981),
a formar um repertório hermético e simbolista presentante de um conjunto de ideias e teorias
que foi a primeira obra a se passar predominan-
que é muito mais enfatizado do que as ações da de uma época em que se acreditava plenamente
temente em interiores; Temporada de Monstros
trama Estas, por sua vez, agora versam menos so- na possibilidade de uma revolução cultural, sen-
(Szornyek évadja, 1987), a primeira a se passar em
bre os horrores da guerra e mais sobre a dualidade do a arte justamente o lugar onde a utopia deve-
um cenário contemporâneo; e O Horóscopo de Je-
repressão-liberdade no interior de regimes de na- ria se concretizar em sua plenitude, unindo a via
sus Cristo (Jézus Krisztus horoszkópja, 1989), que,
tureza socialista. Assim, a partir dos anos setenta, material com o espiritualismo.
repetindo a experiência de ambas, inauguraria o
de trágico, o tom se torna cada vez mais utópico.
humor negro, a sátira, a bricolagem e o uso mais Tais divagações perpassam a obra de inúmeros
A forma mais plena desta segunda fase talvez denso de citações históricas. Em síntese, os três realizadores atuantes no mundo inteiro (p.ex. Wa-
seja Salmo Vermelho – o povo ainda quer mais! pilares que definiriam a passagem de Jancsó do jda, Rocha, Bertolucci, Godard, Straub) que pensa-
(Még kér a nép, 1972), que lhe rendeu o prêmio cinema modernista ao pós-moderno. vam, naquele momento, as possibilidades de ação
de melhor direção em Cannes. Trata-se de uma política sob o espectro das guerras e dos governos
Este salto se consolida em Em Budapeste, o Se-
obra que foi inspirada em cânticos de um levante totalitários que marcaram o século. Enquanto,
nhor deu uma lanterna em minhas mãos (Nekem
camponês do século XIX e que aborda o desen- quase em uníssono, levantava-se a bandeira do
lámpast adott kezembe az Úr, Pesten, 1999), o
volvimento interior do movimento, bem como a confronto armado como revolta contra a domina-
primeiro de uma série de sete filmes com a dupla

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A AURA DA HISTÓRIA Andrew James Horton

C onsiderando principalmente os seus longas- do estado israelense, assim como cenários con-
-metragens realizados nos anos 60 e 70, Miklós temporâneos, com os quais o cineasta vem traba-
Jancsó é normalmente visto como um diretor inte- lhando desde meados dos anos oitenta.
ressado nas dinâmicas de poder das revoluções e
O alcance de seu escopo naturalmente enviesa
nos levantes populares. Isto pode até ser verdade,
para a história mais recente, mas o período que
mas é muito mais interessante perceber que Janc-
representou mais vezes do passado foi o ano de
só vem notoriamente evitando as escolhas mais
1919. Este é o pano de fundo para três dos seus
óbvias de temas para seus filmes. Apesar de ter
filmes: Os Vermelhos e os Brancos (Csillagosok,

2
realizado uma coprodução Hungria-União Sovi-
katonák, 1967) que mostra voluntários húngaros
ética que deveria celebrar o quinquagésimo ani-
lutando ao lado dos bolcheviques na guerra civil
versário da Revolução de Outubro de 1917, a obra
russa, Silêncio e Grito (Csend és kiáltás, 1968) que
resultante, Os Vermelhos e os Brancos (Csillago-
se passa no período subsequente aos curtíssimos
A AURA DA HISTÓRIA1
sok, katonák, 1967), se passa dois anos após a
anos do regime húngaro de 1919, e Agnus Dei (Égi
guerra civil russa. Trabalhou também com copro-
bárány, 1970) que descreve os últimos dias deste
dutores franceses, mas nunca fez um filme sobre
Andrew James Horton mesmo regime3.
a Revolução Francesa ou suas consequências (ao
contrário de seu conterrâneo da Europa Central Dentre as inúmeras possibilidades de varreduras
que também retratava as opressões históricas, o na história a serem realizadas, e dentre tantos
polonês Andrzej Wajda). E, a despeito de ter um conflitos de poder que poderiam ser escolhidos
intenso interesse na história da Hungria, nunca como tema, por que Jancsó retornou três vezes
rodou uma representação direta do levante de a este mesmo ano específico? A escolha levanta
1956, possivelmente a cicatriz mais profunda na ainda mais dúvidas, dado que o uso que Jancsó
psique do povo Magyar2. faz das épocas retratadas normalmente são in-
cidentais, havendo pouco ou nenhum esforço em
Ao contrário do esperado, Jancsó foca sua obra
expandir a era representada como pano de fundo.
nos momentos mais marginais e infaustos do
Este é um dos fatores que lhe rendeu a reputação
passado. A variedade de períodos que optou por
de um diretor difícil, talvez porque a ausência de
representar é considerável: inclui mitos gregos,
“ganchos” que detalhem o período indique que
antiguidades romanas, o reino de Átila (o Huno),
o diretor espera que seu público esteja familiari-
tempos medievais, rebeliões de camponeses no
zado com o desenrolar da História. Para Jancsó,
século XIX, o período do entreguerras e a queda

1. Publicado originalmente na revista eletrônica Kinoeye #3, vol. 3 – 17 de Fevereiro de 2003


2. À primeira vista, pode parecer que 1956 foi um tópico tabu para os realizadores durante o período comunista. Contudo,
o tema foi abordado antes de 1989 por Márta Mészáros (esposa de Jancsó entre 1960-73), Károly Makk, Pál Sándor, Péter
Gothár e outros. Além disso, Jancsó certamente tinha como driblar a censura e realizar – e distribuir – filmes contra as auto-
ridades húngaras. Há leituras famosas dos filmes de Jancsó como alegorias de 1956, em especial sobre Os Sem Esperança
(Szegénylegények, 1965).
3. O período também é brevemente retratado em Rapsódia Húngara (Magyar Rapszódia, 1978), como parte da biografia ficcio-
nal do mártir e político húngaro Endre Bacjsy-Zsilinsky. Esta obra, no entanto, não será abordada aqui.

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ A AURA DA HISTÓRIA Andrew James Horton

como se tornará mais claro ao longo deste artigo, continuou a usá-lo para enfrentar as incursões dos alimentos e o excesso de armas não ajudaram a triunfante de Trotsky, “sem guerra, sem paz”,
a ausência de detalhes e ganchos históricos indica russos ( razão pela qual nenhuma das grandes po- estabilizar a situação. também poderia servir como uma descrição satí-
somente que o diretor considera que a época nar- tências fez objeção a esta violação do acordo de rica da Europa Central e Oriental entre os anos de
O caos foi agravado pelo fato de que a maioria dos
rada é, de modo geral, irrelevante, e que ele pre- tréguas). Enquanto isso, a Polônia invadiu a Lituâ- 1918 e o início dos anos vinte.
países na região sofria de uma disfunção estrutu-
fere deixar o espectador concentrar suas atenções nia e tomou Vilnius, e a fronteira Polônia-Lituânia Pode-se argumentar que a paz nunca se enraizou
ral. A Polônia, por exemplo, nasceu dos pedaços de
em outras temáticas no interior das ações. não foi estabelecida até 1922. de fato, e que os problemas não resolvidos na Pri-
três impérios diferentes e teve que mesclar moe-
meira Guerra cozinharam até ferverem em 1939.
É compreensível que Jancsó deseje que esqueça- A Tchecoslováquia se aproveitou do envolvimento das, sistemas de taxa e sistemas legais completa-
Mas isto, porém, já é outra história...
mos o cenário histórico, mas muitos espectado- da Polônia em sua fronteira do leste para invadir mente distintos, problemas com os quais a Tche-
res passam ao largo desta expectativa. Os não- e tomar a cidade de Teschen, e a Polônia também coslováquia, a Romênia e a Iugoslávia também
Cores Contrastantes
-húngaros, sobretudo, assistem a estes filmes e perdeu território quando a Silésia foi repartida, tiveram que lidar. O transporte também era uma
os acham densos e impenetráveis. Portanto, irei dando seguimento a uma série de levantes. O re- questão, já que muitas das estradas ligavam as Portanto, estes três filmes se passam em tempos
fazer justamente aquilo que Jancsó não quer que cém-formado reino da Sérvia, Croácia e Eslovênia antigas fronteiras dos impérios. Assim, a Polônia e de caos extremo e trauma social. Isso se reflete
façamos – prestar a maior atenção ao fundo his- (que em seguida se tornaria a Iugoslávia) também a Romênia tinham duas medidas de trilho diferen- nas temáticas, nas estruturas narrativas e nos
tórico – para que, assim, possamos, relaxados e causou inúmeras disputas de fronteira com seus tes em sua rede de trens (cujas terras haviam sido elementos estilísticos, o que faz com que muitos
confiantes, fazer aquilo que ele quer que façamos. novos vizinhos, incluindo a Bulgária, a Itália, a herdadas da Rússia), e a Tchecoslováquia não ti- espectadores tenham problemas com eles. Parti-
Examinando o contexto de 1919, espero também Áustria e a Hungria. Esta última perdeu território nha uma linha de trem em suas fronteiras que cor- cularmente, Graham Petrie considera Agnus Dei
lançar luz sobre o interesse particular do diretor para a Áustria depois do levante popular que le- resse de Praga à Eslováquia – a maioria das rotas (Égi bárány, 1970) “provavelmente o mais obscuro
naquele ano. vou a um plebiscito. Algumas partes eslovacas da na parte Tcheca do país ia para Viena, assim como e enigmático filme de Jancsó”, e Os Vermelhos e
Tchecoslováquia foram ocupadas pela Hungria em as linhas de trem na Transilvânia seguiam para os brancos (Csillagosok, katonák, 1967) ganhou
Tempos Conturbados Novembro de 1918 até Janeiro de 1919, e o país foi Budapeste, e não Bucareste, e assim por diante. notoriedade pela demanda que faz do espectador
invadido novamente na primavera de 1919, quan- para conseguir seguir a trama4.
Os livros de História contam que a Primeira Guerra Os padrões de troca também foram perturbados.
do o curto governo comunista de Béla Kun tentou
Mundial terminou na décima-primeira hora do déci- Os madeireiros eslovacos, por exemplo, já não Descrições dos enredos dos filmes, sem um de-
recobrar os territórios que havia perdido. A Romê-
mo-primeiro dia do décimo-primeiro mês de 1918. podiam mais enviar madeira para a Hungria por talhamento das ações cena a cena, se tornam
nia, que tinha ganhado territórios da Hungria, ficou
Para a Rússia, o fim havia chegado até mais cedo, conta das altas tarifas de importação – ainda um tanto vagas e genéricas. Os personagens nos
ostensivamente preocupada com este reclame das
em Março de 1918, com a assinatura do Tratado que fossem os rios eslovacos a principal forma de filmes de Jancsó normalmente não têm nomes, e
fronteiras pré-guerra e invadiu o país. Os romenos
de Brest-Litovsk. Mesmo antes disto, o país se en- transporte de madeira, pois fluíam para dentro do há, frequentemente, pouco esforço do diretor em
ocuparam Budapeste até o colapso do governo Kun,
contrava em uma situação “sem guerra, sem paz”, país. A Hungria perdeu o acesso ao mar (ironica- definir um deles como o protagonista. Assim, há
e as metas expansionistas da Hungria chegaram a
para parafrasear a máxima de Trotsky ao descrever mente, o regente do território na época era Miklós pouco ou nenhum arco narrativo de experiência ou
um fim (pelo menos na agenda imediata) com o
o recuo unilateral das hostilidades. Porém, a tensão Horthy, um almirante). E isto sem mencionar o de desenvolvimento pessoal do indivíduo.
devastador Tratado de Trianon em 1920, que con-
e os conflitos continuaram pela região central e deslocamento de grupos étnicos – particularmen-
firmou as perdas de território da nação. Os Vermelhos e os brancos (Csillagosok, katonák,
oriental da Europa até meados de 1920. te os húngaros – de suas terras natais, à medida
1967) é o mais visualmente matemático e, talvez,
Além do beligerar entre exércitos, havia inúme- que as fronteiras da Europa Central e Oriental
A Guerra Civil na Rússia avançou entre 1918 e o mais árido dos três. A ação se passa na Ucrânia,
ras incursões de bordas pela região, o terrorismo eram redesenhadas.
1921 e a Guerra Russo-Polonesa, entre 1919 e na linha de frente da Guerra Civil Russa, onde os
político fervilhava e o continente inteiro estava
1921, com os poloneses tomando Kiev antes de Após os horrores da guerra, a “paz” que prevaleceu “brancos” tzaristas enfrentam os “vermelhos”
coberto de soldados tentando encontrar seu cami-
serem forçados a recuar até Varsóvia, e, depois, foi como um conforto gelado. De fato, a máxima bolcheviques, estes últimos com a assistência de
nho de volta para casa – no contexto da Segunda
reconquistando boa parte de suas perdas. A Ale-
Guerra Mundial, este tema foi ilustrado em Ca-
manha também manteve um exército ativo nas
minho para casa (Így jottem, 1964). A falta de 4. Graham, Petrie. “Introducing Miklós Jancsó”, Hungary in Focus at the Riverside Studies: The Cinema of Miklós Jancsó (Lon-
terras bálticas (contrariando o acordo de paz) e dres: Centro Cultural da Hungria, 2003). Pg. 4-9.

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ A AURA DA HISTÓRIA Andrew James Horton

forças internacionais independentes, incluindo os um pelotão que marcha para a morte em uma das observações de Graham Petrie, que o filme é uma seus homens. Tal qual estabelecido nos stills ini-
húngaros. Há poucos elementos que permitem ao sequências visualmente mais impressionante da constatação antiguerra mais forte que a maioria ciais, o terror branco está acontecendo, reforçado
espectador distinguir os dois lados (apesar de os obra. A imagem final, igualmente memorável, é dos filmes do gênero (que imitam convenções pelas primeiras sequências, quando um “Verme-
soldados brancos normalmente terem uniformes um (raro) close-up de András Kozák. Ele havia che- narrativas e estilísticas dos filmes heroicos de lho” é assassinado pelas costas durante uma mis-
menos surrados). gado, com suas tropas, tarde demais para salvar guerra) justamente por conta dos mesmos fato- são espúria que envolve subir uma duna de areia
os seus companheiros, empunhando uma espada res que levam algumas pessoas a achar os filmes para recolher um ramo.
O primeiro cenário no qual nos concentramos é um
frente à sua fronte, em memória dos mortos. difíceis: seu sentimento desumano, confuso.
monastério abandonado onde um insurgente do Os dois protagonistas são István (András Kozák),
exército vermelho (András Kozák) escapa de uma O approach de Jancsó ao despir a guerra em Os Ver- um soldado vermelho escondido em uma fazen-
“Nós não somos a revolução”
batalha ao longo do rio. Os vermelhos acabaram melhos e os brancos (Csillagosok, katonák, 1967) é da, e um comandante local (Zoltán Latinovits). O
de capturar o edifício, arrancaram os uniformes delineado no seguinte esquema, que é o resumo Dos três, Silêncio e Grito é o mais fácil de seguir comandante conhece o passado bélico de István,
dos prisioneiros brancos e os libertaram nus. O daquele adotado por Matt Johnson5: narrativamente. Talvez por ser um dos filmes mas parece ignorá-lo e ativamente o protege
exército branco, então, retoma o edifício, e os ofi- mais convencionais de Jancsó no que se refere à quando a carroça na qual se esconde é parada para
A guerra como um ritual predeterminado onde
ciais tzaristas fazem jogos cruéis com a vida dos narrativa, foi marginalizado em revisões da carrei- inspeção. As razões para esta atitude não ficam
os personagens aceitam o seu destino;
homens que eles capturam, mas alguns deles con- ra do realizador, sobretudo quando comparado a claras: talvez seja porque os dois se conheciam
seguem escapar. Seguindo estes fugitivos, o cená- Uma ausência completa de “regras do jogo”; Os Sem Esperança e a Os Vermelhos e os brancos, quando mais jovens, ou porque o comandante
rio passa a ser, então, um hospital que ladeia um ainda que os três juntos, por vezes, sejam conside- simplesmente quer manter István vivo caso pre-
Uma inversão das convenções dos filmes de
rio, local que os oficiais brancos invadiram em sua rados como uma “trilogia”. Não obstante, trata-se cise incriminá-lo para resolver alguma situação
guerra (ações importantes – particularmente
caça. Os soldados brancos são novamente violen- de uma experiência imersiva e que antevê traba- penosa. A relação de poder entre István e o co-
aquelas que levam à mudança de poder –
tos com os vermelhos capturados, mas também o lhos como Agnus Dei, Eléctra, Meu Amor (Szerel- mandante é sublinhada por seu hospedeiro Károly
acontecendo fora de campo, cantos de
são com as enfermeiras e mesmo uns com os ou- mem, Elektra, 1974) e Temporada dos Monstros (hospedeiro nominal, pois quem “entretêm” o
pássaros como trilha sonora);
tros (um deles, flagrado violentando sexualmente (Szornyek évadja, 1986), por se concentrar em desejo dos homens e sanciona a estadia de István
uma mulher, é assassinado na hora). Confusão deliberada sobre quem está de que duas personalidades de ideologias opostas. são sua esposa e sua irmã). Karóli (József Mada-
lado, a ponto de o espectador se perguntar se ras) é humilhado pelo comandante, obrigado a
Em realidade, são as enfermeiras que são sujeitas O estilo visual do filme também é um premonitó-
o “lado” realmente importa; ficar parado com seus melhores trajes em seu pró-
a uma das formas mais bizarras de humilhação rio. Foi o primeiro trabalho com Janós Kende como
prio terreno por aparentemente nenhum motivo,
de todos os filmes de Jancsó. Elas são agrupadas Não temos acesso à subjetividade dos persona diretor de fotografia (ele foi assistente em Os
sendo, depois, acusado de assassinato. Por outro
– presume-se que serão fuziladas ou estupradas gens (p.ext.: falta de psicologização) Vermelhos e os brancos), e uma estética distinta,
lado, também se sente humilhado pelos afetos de
– e levadas a uma floresta. Lá, são forçadas a co- de movimentos de câmera meticulosamente co-
Rejeição da individualização nos processos de sua esposa e de sua irmã por István.
locar roupas elegantes e dançar valsas enquanto reografados, se encontra aqui em sua forma em-
massa (não há personagens reconhecíveis);
os oficiais assistem. Em seguida, é permitido que brionária. O filme se assenta em uma entressafra, O confronto final acontece entre István e o co-
retornem para o hospital, ilesas. Vitória que leva à humilhação (graças a uma au em termos de fotografia, não tendo nem a aus- mandante. István descobre que a esposa e a irmã
sência completa de metas militares maiores); teridade geométrica de Os Sem Esperança ou Os de Károly estão envenenando o hospedeiro e sua
O hospital é, então, recapturado pelo exército ver-
Rejeição do sentido da vitória Vermelhos e os brancos, nem a exuberante bravata mãe e resolve reportá-las. Porém, para denunciar
melho. Estes atiram nos brancos que decidem não
Johnson considera Os Vermelhos e os brancos balética de um Agnus Dei ou Eléctra, Meu Amor, um crime, é preciso registrar uma identidade, e,
mudar de lado e em uma enfermeira que os aju-
uma comédia do absurdo (ainda que ele admita ambos filmados em cor. Sem dúvida, isto também assim, revelar o seu status como fora da lei. O co-
dou a encontrar seus inimigos no acampamento.
que ela “não tem graça”) e conclui, atentando a não contribuiu muito para a reputação da obra. mandante o leva até a duna de areia vista no início
Os húngaros independentes são agrupados em
do filme para sacrificá-lo, mas muda de ideia e de-
O filme tem início após a vitória de Horthy sobre as
cide que seria melhor se o culpado se suicidasse.
forças vermelhas de Kun, representada na monta-
5. JOHNSON, Matt. “Pardoxical Phase”, Universidade de Austin. Texas. Disponível em versão para internet: http://www.ute- István, possivelmente por capricho, decide usar a
xas.edu/ftp/depts/eems/Jancs_.html gem de fotografias narrando o triunfo de Horthy e

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ A AURA DA HISTÓRIA Andrew James Horton

única bala que lhe é dada disparando no coman- de sua rebelião. Claramente, István derrotou o co- mente entre duas ideologias, como acontece em os só pode ser resolvida, de uma maneira insigni-
dante (cujo corpo ouvimos cair fora de campo após mandante, mas é uma vitória pírrica, dado que ele Os Vermelhos e os brancos. Ela se dá, agora, entre ficante, através da morte de um deles. Em outros
o disparo). O filme termina com a imagem estática só tinha uma única bala e que os outros soldados dois homens. Como Varga e o oficial violinista in- aspectos, faz recordar Os Vermelhos e os brancos,
de István, diminuído pela imensidão da duna de hão de lhe derrubar. terpretado por Olbrychski estão normalmente do já que seu clima final é de uma calmaria reflexiva
areia atrás dele. Ele recuou alguns poucos passos mesmo lado, a luta pelo poder entre indivíduos se após atrocidades monstruosas.
desde o disparo, fazendo com que a situação pa- Implorando por piedade torna o tema dominante (ainda que a batalha en-
Em vez de tentar “recontar” a história de forma
reça uma antítese da litografia dinâmica de Joseph tre os vermelhos e os brancos seja bastante apa-
Após Silêncio e Grito, Jancsó realizou primeiramen- linear, examinar estes motes recorrentes é o me-
Beuy em 1972, em Nós somos a revolução (We are rente no primeiro ato do filme).
te Ventos Cintilantes (Fényes szelek, 1968), que se lhor método para descrever o filme. Com esta fi-
the revolution), no qual o artista progride cheio de
passa em 1947, seu primeiro longa-metragem em Estilisticamente, é mais próximo de Salmo Ver- nalidade, o esquema que enfatiza a forma mítica
intenções em direção ao espectador.
cores (e que pode praticamente ser considerado melho - o povo ainda quer mais! (Még ker a nép, do filme, elaborado por Péter Józsa, vale a pena ser
Mesmo que, de modo geral, Silêncio e Grito pos- um musical). Então veio O Inverno de Sirocco (Si- 1971) nos motivos visuais da obra: mulheres nuas, examinado profundamente7. Parafraseando o seu
sa ser alinhado a Os Vermelhos e os brancos em rokkó, 1969), uma coprodução Franco-Húngara cavalos, soldados fardados, velas, fumaças, can- resumo de motes da obra:
sua condenação da brutalidade e em sua análise sobre os rituais e as intrigas internas de um grupo ções populares – tudo de uma forma tão estilizada
1. Os Vermelhos sob o poder da contrarrevolução.
incisiva da natureza do poder político, o esquema terrorista. Seu filme seguinte, Agnus Dei, retorna que seu uso agora não pode, em hipótese alguma,
de análise de Johnson só é parcialmente aplicável ao ano de 1919. O título faz remissão ao momen- ser considerado realista. É, antes, simbolista. Isto O motivo é visto duas vezes e, da segunda vez,
aqui, o que, por sua vez, reflete o desenvolvimento to da missa cristã que é introduzido pelas palavras tudo é acentuado pela fotografia, com movimen- mais enfaticamente.
das ideias de Jancsó de um filme a outro: Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere no- tos de câmera ornamentais dançando em torno 2. A estilização ideológica da contrarrevolução.
bis (Cordeiro de Deus, que morreu pelos pecados dos atores que, por sua vez, estão sempre em
A consolidação da paz (ao invés da guerra) é Evidente nos sermões do padre Varga, tão emoti-
do mundo, tenha piedade de nós)6. Mais do que movimentos de arcos e círculos. As imagens são
apresentada como um ritual; vos que até lhes dão um aspecto de esquizofrenia.
sobre a parte do “Cordeiro de Deus”, o filme se brilhantes e calorentas, adicionando mais uma
Há “regras do jogo”, mas elas são absurdas concentra sobre o trecho “tenha piedade de nós” incongruência ao realismo do filme (e constituin- 3. Conflitos internos da igreja
e injustas; – esta súplica queixosa a uma força onipotente do, assim, mais uma subversão às convenções do Este é particularmente visível entre o padre
para quem deveríamos passivamente nos ajoelhar gênero). Márk, simpático à causa dos vermelhos, e o
Os lados estão agora muito bem definidos;
e que pode ou não nos salvar. O filme é um mundo padre Varga, que mais tarde o assassina. O
O clima do longa-metragem está evidente em seu
Há um reconhecimento do indivíduo (p.ext.: gélido de homens que brincam de Deus, e, neste padre Varga também tem uma discussão com
final enigmático. Oldvrychski começa a fazer amor
personagens com nomes), que é despido sentido, a análise de Johnson de Os Vermelhos e os outros dois membros do clero.
com uma mulher nua, que deita submissa. Repen-
como uma vítima no processo das massas; brancos também se aplica aqui.
tinamente, o trem chega e ele se levanta, deixan- 4. Ação punitiva pelos Brancos
Convenções do gênero (apesar de, talvez, o Agnus Dei, assim como Silêncio e Grito, se con- do o seu violino sobre o corpo dela. Após entrar e
Inclui o massacre de soldados ativistas, prisio-
gênero aqui ser o western) são observadas no centra em um grupo de poucos personagens, e, sair do trem, o personagem atira casualmente no
neiros, garotas associadas ao exército verme-
sublinhar do “herói” na sequência final. Elas são particularmente, em dois homens: um oficial do padre e volta para dentro do trem em movimento.
lho, o pai Márk, dois comissários e, enquanto
todavia, usadas ironicamente para capturar os exército branco (Daniel Olbrychski) e Varga, um
É um assassinato enigmático e inquietante. Em outras vítimas estão sendo incineradas em
valores ambivalentes, ao invés dos valores positivos. padre popular e histérico (Jószef Madaras). Como
alguns sentidos, nos lembra o final de Silêncio e valas, os membros do acampamento inimigo.
em Os Vermelhos e os brancos, os dois exércitos
Os únicos fatores que continuam constantes são Grito, no qual a oposição ideológica entre indivídu-
se revezam no poder, oprimindo, torturando e
a falta de psicologização dos personagens e a re-
executando uns aos outros. O exército branco está
jeição do sentido da vitória, expressado por um
claramente levando vantagem e, no desenrolar da
István hesitante, congelado como que para sem- 6. É provável que tenha sido o tom religioso do título desta obra que inspirou o uso de “Salmo Vermelho” como título interna-
trama, é anunciado que Horthy tomou o poder. cional de Még hér a nép (literalmente, “o povo ainda quer mais”).
pre no quadro final, penitenciado a um inferno
Mas a disputa entre vontades não se dá exata- 7. JÓZSA, Péter. “Gondolatok as Égi bárányól”, Valósag. Setembro de 1971, citado em Brachtlová, Ingrid. Miklós Jancsó (Praga:
absurdo, onde ele terá de penar por consequência Ceskoslovensky filmovy ustav, 1990). Pg. 110-111.

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5. O cavalo e a carroça como símbolo de poder 9. Sacrilégio uns dos outros. Lançando um olhar sobre os três, nação como forma de elevar a intensidade dra-
Isto é primeiramente visto com o grupo de Primeiramente, em nome do exército ver- contudo, se torna claro que, apesar das diferenças mática (“realismo”) das cenas, mas não têm um
oficiais vermelhos, mas, depois, as imagens melho, quando o pastor Márk arranca da nos temas e nas metas de cada, há semelhanças impacto mais profundo na trama como um todo.
da vitória da contrarrevolução (os brancos cruz uma coroa de flores para enfatizar que na forma como Jancsó evoca o período:
A exceção é possivelmente o anúncio, em Ag-
montados a cavalo) dominam, até que a figu- o Cristo já não é um deus do amor, mas sim Os confrontos entre os personagens são míti nus Dei de que Horthy passou a dominar o país.
ra simbólica de Satan (p.ext.: o violinista de um deus da vingança. Em seguida, em nome cos, apresentadas de maneira trágica. Mas, ainda que isto tenha um efeito na ação, o
Daniel Olbrychski) ascende. do exército branco, quando o violinista ataca evento histórico é, por sua vez, marginalizado e
A respeito disto, é curioso que Jancsó citou
com uma baioneta um banner da igreja, reve- poderia, ainda, ser considerado como de dimen-
6. Mulheres nuas e a Morte sua admiração pelos westerns de John Ford.
lando-se como Satã. sões míticas, tal como as – inexplicadas – fotos
Na segunda tomada, uma moça nua que es- Em 1961, ele realizou um curta-metragem
10. O beijo de Satã, o violino, morte intitulado Indian Story (Indián torténet), que das marchas heroicas de Horthy no princípio de
tava a se banhar conduz o cavalo para fora
descortina o massacre de uma tribo e a Sight Silêncio e Grito.
da água. Uma jovem moça que está despida O violinista beija a moça assassinada. Mais
tem uma descrição sórdida de uma possível adiante, ele toca o violino enquanto conduz & Sound, em 1969, após chamar a atenção Além destes dois casos isolados, os detalhes
tortura, lida para ela em voz alta (por uma os jovens à vala. No final do filme, ele beija e para Índian torténet, indica que “não são ape- descritivos se manifestam com precisão no
moça mais velha, atraente), ainda que nada atira no pastor Varga. nas os currais, os casebres solitários, os diálo- figurino e nas canções do período – mas nun-
realmente lhe ocorra. Uma menina aliada ao gos lacônicos e os trajes de cavalaria que su- ca, em nenhuma destas três obras, através de
Como pode ser percebido no esquema acima, o gerem uma afinidade do diretor húngaro com
exército vermelho é despida pelos soldados eventos específicos. Nos anos setenta, viria a
filme tem um tom apocalíptico. Não há sentido os [w]esterns.” Com efeito, muitas das cenas
brancos e assassinada. Satan, tocando o vio- se tornar claro que este tipo de “realismo” era
algum em julgar os eventos que se passam na tela de seus longas-metragens – por exemplo, o
lino, conduz um grupo de jovens a um poço, um meio, e não uma finalidade para Jancsó, na
com rigor narrativo ou com espírito de zombaria. final de Silêncio e Grito e muitas das sequên-
onde chamas flamejantes os cercam. medida em que o realizador passou a incorporar
Há uma impressão de que se trata de uma cena cias de Os Vermelhos e os brancos ou Agnus elementos anacrônicos (como o helicóptero em
7. Mulheres nuas e o Diabo do Último Julgamento8. Exceto pelo fato de que Dei, que se servem de cavalos – adotam o es- Electra, Meu Amor), mecanismos narrativos que
Uma festa musical tem início com a chegada aquilo que Hieronymous Bosch fez com monstru- tilo visual de um western. Jancsó esquivou-se cortam o realismo deliberadamente (p.ex.: a
de uma moça seminua e imoral. Esta garota osos demônios mutantes, Jancsó atinge (com o do “triunfo sobre as adversidades” dos faro- ressurreição de alguns personagens) e pessoas
deita ao chão, e o Diabo ajoelha a seu lado mesmo efeito alucinógeno) apenas olhando para o estes clássicos e, tal como Sergio Leone tam- reais sendo apresentadas como alter egos (Rap-
e toca violino. Mais perto do final do filme, ser humano exposto a nenhuma fábrica social e à bém faria nos anos sessenta, os transformou sódia Húngara – Hungarian Rapszódia, 1978).
uma garota nua deita sobre o milharal e o desintegração coletiva de sua identidade (o tempo em tragédias. No caso de Jancsó, trata-se de
Diabo, após começar a fazer amor com ela, de Bosch é evocado quando a descrição da tortura fábulas morais sobre o poder. Em 1974, Janc- O ano de 1919 é utilizado como arquétipo.
coloca o violino em seu corpo. Como Ivana é lida para a menina). só se volta mais para o mito e adapta a ence- Novamente, a comparação com o gênero do fa-
Brachtlová notou, o violino colocado sobre o Aqui, 1919 se torna a materialização horrífica do nação teatral de Eléctra, Meu Amor, baseada, roeste é instrutiva. Por exemplo, se assistirmos
seu corpo é o sinal da união sexual de Satã status de “sem guerra, sem paz” que a Europa vivia por sua vez, na mitologia grega. a um western que começa com um título indi-
com as meninas. à época descrita anteriormente. O ano, anunciado cando o ano dos acontecimentos, é improvável
A época está subordinada à realização destes
8. A espada como símbolo de poder por uma única cartela sombria que expande até pre- conflitos de poder como mito. que o diretor deseje que nos atenhamos ao seu
encher o quadro no começo do longa-metragem, é pano de fundo político exato. Essa informação
A espada é passada adiante durante todo o Os detalhes históricos são utilizados na ence-
um arquétipo estilizado a seu próprio modo.
filme, assinalando as mudanças de poder.
Durante boa parte da obra, ela é revezada
O passado como arquétipo 8. Pode parecer uma referência estranha para um esquerdista ateu, mas deve ser lembrado que Jancsó frequentou um colégio
cisterciense e manteve, durante toda a vida, um enorme interesse pela cultura judaica. O imaginário bíblico não é apenas
por um padre e um oficial do exército branco,
familiar, mas atua como um quadro de referências muito próximo à sua maneira de pensar. Além, é claro, do tom anticlerical
mas, ao final, ela é entregue ao Diabo. Os três filmes têm elementos em comum e tam- que o material religioso lhe permite.
bém têm elementos incomuns, que os distinguem 9. HORTON, Andrew James. “Esta profissão estúpida”, Kinoeye, vol. 3, #3, 17 de Fevereiro de 2003.

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ A AURA DA HISTÓRIA Andrew James Horton

é obviamente colocada para evocar determi- Apresentando auras para os Aquele que inventou o título em inglês do longa-
nadas associações mais amplas com a época. espectadores estrangeiros -metragem certamente seguia a tendência de
Tais associações são, provavelmente, mais preparar o público para uma batalha mitológica
Ocidentais costumeiramente respondem às
arquetípicas do que representações diretas do entre forças sociais opostas ao desdenhar do
obras de Jancsó assumindo que não possuem o
período. Jancsó usa o ano de 1919 de maneira título original (em literal, “chapéus estrelados”,
background histórico necessário para se apro-
semelhante. Isto acontece de maneira mais retirado, como muitos dos filmes de Jancsó, de
ximarem devidamente delas. É o que conduziu,
dramática em Agnus Dei. uma canção) e adotar “Vermelhos e Brancos”.
por exemplo, a uma versão de Os Vermelhos e os
Contudo, para além desta inventiva mudança de
Portanto, Jancsó não tem interesse pela “mera brancos com uma introdução explicando a épo-
título (politicamente motivada, provavelmente),
citação dos eventos”, mas em explorar sua ca da Guerra Civil Russa, o que jamais houve na
a recepção comum de Jancsó diz que seus filmes
“aura”.10 Naturalmente, este é um ano que versão original. No caso de Jancsó, isso complica
são “sobre a História” de uma forma que os faro-
teve impacto enorme em sua juventude. É tam- mais do que descomplica. O título “1919”, no iní-
estes e os mitos gregos não são.
bém provável que a sua “metafísica do caos” cio de Agnus Dei, pede gritantemente para ser to-
(para citar Gábor Gelencsér) fica melhor expres- mado como uma referencia simbólica para uma Este pode ser um dos motivos pelo qual Jancsó
sa quando lidando com um período que carrega luta de poderes em proporções míticas. Este ano se sentiu confortável ao passar dos longas-me-
por si só este mesmo atributo. O ano de 1919, é o marco zero onde as forças devem ser recons- tragens históricos para dramas contemporâneos
com todos os seus deslocamentos, é um vácuo truídas (ou onde estão sendo construídas, como após 30 anos trabalhando no gênero. Talvez tenha
perfeito para que forças opostas se confrontem no caso de Silêncio e Grito). sentido que trabalhar no presente era a melhor
de maneira mais elementar – o cenário ideal maneira de retirar do espectador a crença de que
Será que os distribuidores de Os Vermelhos e
para seus contos mitológicos de tragédias e seus filmes tinham uma “carga histórica”. Talvez,
os brancos no Ocidente teriam pensado que os
apocalipses, da mesma forma que o Oeste no outro fator que pode ter contribuído para a mu-
espectadores se engajariam melhor nas obras
século XIX era o cenário ideal para a mitologia dança foi a falta de habilidade do público contem-
caso, na Inglaterra, por exemplo, os letreiros ini-
dos faroestes. porâneo em detectar esta “aura” e o impacto da
ciais fossem substituídos por “Inglaterra, 1642”
História, uma inabilidade da qual, em certo senti-
Repetidas vezes, Jancsó se referiu ao ano de (apesar da óbvia contradição entre as palavras e
do, os seus trabalhos recentes zombam.
1919 como “um período especial” na história, as ações)? Ou se nos EUA, o público tivesse sido
porque ele acredita se tratar de um exemplo introduzido à obra com “Virgínia, 1862”? Ou, tal- Seja qual for o motivo, é claro que Jancsó reali-
puro e raro entre duas forças fundamentais: vez, teria sido mais efetivo, adaptando-se às in- zou muito mais do que obras “sobre a História”.
os opressores e os oprimidos.11 Em realidade, tenções do diretor, se o público estrangeiro visse E isto certamente influencia a forma como nos
os filmes de Jancsó são muito mais complexos, um intertítulo com as palavras “Mycenae, milha- aproximamos delas.
visto que os opressores e oprimidos frequente- res de anos antes de Cristo”. Se isto tivesse sido
mente trocam de lugar. De todo modo, afirma- feito, os críticos continuariam inclinados a ver os
ções como estas servem de argumento à leitura filmes como “mecânicos” e “sem tramas”, e, as-
de 1919 como cenário mitológico. sim, estariam mais afinados à natureza épica e
arquetípica destas obras?

10. HOUSTON, Penelope. “The Horizontal Man”, Sight and Sound, verão de 1969, reproduzido no CD-ROM Jancsó
(Budapeste: Inforg, 2000).
11. Op. cit. HORTON.

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Glauber/Jancsó: do mito à civilização Raul Arthuso

N as mais de quinhentas páginas de Revolu- político. Por sua vez, apesar de jovem, Glauber Ro-
ção do Cinema Novo, de Glauber Rocha, há uma cha já era um cineasta reconhecido, com inúmeras
única menção a Miklós Jancsó. No texto “Assim participações em festivais importantes, um prê-
se faz a revolução no cinema”, datado de 1970, mio de direção de Cannes e reconhecimento críti-
Glauber narra um encontro em Roma “de quatro co em solo europeu. Não seria difícil imaginar que
das maiores figuras do cinema de hoje”: Bernar- Jancsó, ainda que mais velho que o brasileiro, vis-
do Bertolucci, Pierre Clementi, Jean-Marie Straub se em Glauber um cineasta inspirador e influente
e Miklós Jancsó. nesse panorama do cinema político.

3
Nas palavras de Glauber: “Se Bertolucci é um re- Isso é o que nos interessa aqui: se Jancsó e Glau-
belde ainda em busca de estilo, Jancsó é criador ber construíram duas obras bastante diversas, é,
de um estilo original de filmar e de dirigir atores, entretanto, possível observar pontos de conta-
e sua celebridade nasce disso. Desenvolvendo to, seja pelo momento do cinema nos anos 60,
Glauber/Jancsó: experiências de Antonioni quanto ao uso do es- quando a política estava na pauta do dia; seja
paço e dos objetos de cena, Jancsó praticamente por uma possível influência de Glauber na obra
do mito à civilização destruiu a história, a anedota do roteiro e faz do cineasta húngaro.
filmes a partir de evoluções de personagens,
por Raul Arthuso *
paisagem, arquitetura, cores e sons. O ritmo do
seu cinema é mais próximo da música do que do 1966: Os sem-esperança começa com gravuras
teatro, mas todo esse requinte estético não é de artefatos de guerra, tortura e armas de fogo.
abstrato e visa a demonstrar uma tese revolucio- O filme se passa num vilarejo do interior, não há
nária: a burocracia estrangula o homem, a liber- muito mais do que esse tipo de localização per-
dade é um preço muito caro pago ao progresso, ceptível pela cenografia e pela disposição espa-
a revolução precisa de homens nobres e puros e cial: uma casa e um forte prisional; de resto, um
não de moralistas corruptos etc. Enfim, no pano- campo aberto até o horizonte. A rigor, se está no
rama do cinema contemporâneo, Jancsó reflete meio do nada, em qualquer lugar.
muito mais do que protesta”.
Já aí se percebe em Jancsó algo muito próximo
Em seguida, Glauber relata as conversas ocor- a Glauber Rocha: a alegoria. Principalmente, um
ridas nesse encontro, diálogos provavelmen- entendimento da história como um processo
te inventados pelo brasileiro ou, no mínimo, que perpassa todos os tempos e lugares, sen-
transcritos de memória, o que torna possível o do, portanto, passível de se extrair uma espécie
questionamento da veracidade do relato. Pouco de sumo, uma mitologia. O sertão de Deus e o
importa: o interessante desta única citação a Diabo na Terra do Sol ou o interior húngaro de
Jancsó no livro é atentar para a posição do hún- Os sem-esperança são cenários particulares ale-
garo dentro do cenário do cinema daquele mo- gorizando uma história universal de opressão
mento. Glauber reconhece em Jancsó um de seus cuja cadeia precisa ser quebrada. Nos filmes de
pares, vê em seus filmes até aquele momento Jancsó, pouco ou quase nada de informação e
um vigor estético valoroso com fins ao cinema particularização é oferecida ao espectador, seja

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ Glauber/Jancsó: do mito à civilização Raul Arthuso

na localização espaço-temporal da ação dramáti- mera de Os sem-esperança supraorganiza a ação, europeu. Afinal, esses contextos se confundem em gestação para dialogar com o estado atual do
ca, seja sobre os nomes ou o passado das perso- joga com toda a falta de sentido e superficialida- no filme: quem são os “vermelhos” e “brancos”? mundo.
nagens. Os primeiros filmes de Jancsó acontecem de do drama principal, numa coreografia plástica O que os diferencia? Para além dos figurinos,
Quando uma das personagens toma consciência
na superfície aqui-agora, mas, ao mesmo tempo, que causa o verdadeiro conflito do filme. O dra- cujos detalhes servem como pistas, e de alguns
dessa tragédia – o ciclo inescapável de violência
antes e depois. Passado e presente coincidem ma propriamente dito, relator da opressão histó- rostos reconhecíveis, as personagens de Verme-
e morte – ao final de Vermelhos e Brancos, dois
nesse espaço alegórico. rica que o filme alegoriza, briga o tempo inteiro lhos e Brancos são figuras ainda em preparação,
gestos chamam atenção: um olhar e uma ação.
com as construções formais do quadro, com os estágios de personagens, o barro ainda em es-
Em Os sem-esperança se está diante da opressão. O olhar é direcionado a nós, espectadores: por-
movimentos de câmera e com a coreografia da tado de molde esperando sua vez ao fogo para
Os agentes da lei, mantedores (em teoria) da or- tando uma espada sobre o rosto, a personagem
massa de figurantes, que ameaça invadir a ação tornar-se homem. Ou seja, mesmo falando da
dem e da justiça social, são artífices da violência mira, compartilha sua consciência do mundo e
principal e rodeia o centro da cena como um coro Rússia, Vermelhos e Brancos alegoriza uma la-
e da morte. A autoridade assassina a sangue frio, da tragédia – ecoando o olhar para a câmera e
grego comentando sem palavras, só com sua tente “pré-história”.
julga e executa os prisioneiros como regulação de a profecia de Corisco no filme de Glauber. Diante
movimentação. Essa supraordenação da mise
sua própria existência. Para um deles, acusado Vermelhos e Brancos guarda uma semelhança da arbitrariedade, sua ação é o sacrifício. O mito
en scène vai minando o terror do drama e chama
de três assassinatos, a salvação está na delação ainda mais estreita com Deus e o Diabo na Ter- dá a ver seu ato final: ao completar sua trajetória,
a atenção para a realização dos planos, tornan-
de alguém que cometera mais assassinatos que ra do Sol. Os dois filmes tomam emprestado o dá espaço para o interlocutor realizar a História.
do duplamente opaca a fruição do filme. A mise
ele. Há, como motores dessa autoridade, o medo, tratamento do faroeste fordiano para criar uma
en scène subverte o movimento contínuo desse *
a coerção, a violência e a morte. Jancsó vê nessas narrativa mitológica em seus respectivos paí-
“sumo histórico” alegorizado por Jancsó e quebra
estratégias o “sumo” da opressão. Como dito no ses. Tanto o interior da Rússia quanto o sertão 1974: O cinema mudou. Especialmente: O cine-
o ciclo: a atenção é progressivamente tirada do
filme: “não era único em seus métodos”. brasileiro são lugares agrestes de sociedade, de ma político mudou.
drama e se volta para a beleza armada da reali-
moral, de ciência. A história propriamente dita
O cineasta político, contudo, não deve se con- zação fílmica. A radicalização do “princípio ativo” da obra de
está na terra, no campo, nas montanhas, nas
tentar em atestar esse “sumo da história”. Sua Jancsó visto em Elektra parece sofrer influência
Em Vermelhos e Brancos, por sua vez, a coreogra- pedras. Enfim, na paisagem. Tanto Deus e o Dia-
missão histórica é quebrar a cadeia de eventos direta de O dragão da maldade contra o santo
fia se radicaliza na medida em que sua organiza- bo… quanto Vermelhos e Brancos narram um ci-
alegorizada no filme. Glauber Rocha, em Barra- guerreiro, possivelmente o filme de Glauber Ro-
ção se faz de desmedida e delírio. O filme é pura clo de violência. As personagens se movem por
vento e em Deus e o diabo na terra do sol, usa cha de maior projeção internacional após sua exi-
superfície, ação e movimento. As personagens esta terra mitológica tentando criar raízes, mas a
personagens também alegóricos: Firmino e An- bição e prêmio no Festival de Cannes.
atravessam o filme sem fincar raízes na drama- guerra ou a pistolagem abortam a fixação. A elas
tônio das Mortes são elementos perturbadores
turgia, o encadeamento das cenas (quase sempre resta essa dança: selvagem em Glauber, rumo Em Elektra, mantém-se a relação com uma ale-
da realidade que causam o confronto. Dentro da
resolvidas em um longo plano) remonta a uma ao Sertão Mar; em Jancsó, um baile viscontiano, goria da história instalada em uma narrativa mi-
lógica glauberiana da revolução, são eles os pro-
aleatoriedade que reforça a ausência de passado, cujas regras, arbitrárias, ainda estão para se- tológica, agora de forma direta, pela adaptação
pulsores da desalienação do povo e de sua pos-
de sentido e de normatização das ações. É uma rem desvendadas. A mise en scène milimetrada de uma peça, por sua vez, inspirada em um mito
terior revolta.
dança moderna, talvez a mais moderna possível: em cada canto do cinemascope em Vermelhos e clássico. Após o chamamento à ação histórica,
Jancsó, por sua vez, atesta um violento poder sua coreografia é o caos. Resta o abismo diante Brancos espelha uma lógica inacessível ao inte- ao final de Vermelhos e Brancos, Jancsó constrói
como fim em si, voltado para manter esse ciclo desse cenário. lecto. Sua apreensão se mantém no visível e no progressivamente uma noção de constituição da
de opressão eternamente. Torna-se marcante a sensível – Tempo e Espaço. Vermelhos e Brancos civilização - entendida aqui como um conjunto
Apesar de indicar a localização das ações no iní-
alegoria dos prisioneiros encapuzados que são casa perfeitamente com Os sem-esperança como de regras e mediações estabelecidas arbitraria-
cio do filme, através de um mapa, e apesar das
obrigados a rodarem num grande círculo, como um díptico de alegoria de uma pré-história, um mente pela vivência de um grupo de pessoas.
indicações que os diálogos dão sobre o contexto
um carrossel, num castigo tão despropositado funcionamento das estratégias de poder e or- Essas regras são, de alguma forma, conhecida
histórico, Vermelhos e Brancos é uma alegoria de
quanto cruel. dem quando as regras do jogo social ainda não por todos. O que faz o homem passar para um
um mundo em formação, mesmo retratando um
estão claras. Portanto, tomando o faroeste for- estado civilizado se dá pelo estabelecimento
A mise en scène, então, tensiona o filme. A câ- evento político e social codificado do século XX
diano como exemplo, formulam uma civilização desses limites organizacionais. A História, nesse

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ

sentido, é a narrativa das formas de organização, está envolta pelo aparato teatral introduzido na
dos limites e suas mudanças, das regras e suas escritura cinematográfica. Electra, Meu Amor se
transformações. dá assumidamente como representação.

A construção dessas regras já se mostra em Ven- E, mais uma vez, a obra de Jancsó entra em con-
tos Cintilantes e Salmo Vermelho - o povo ainda tato com Glauber Rocha, alinhando-se à lenda
quer mais!. Neles, apesar das construções do transformada em representação a céu aberto de
drama continuarem abertas, sem explicações O dragão da maldade…. Lá, como cá, o persona-
ou motivações marcadas para as personagens, a gem do violeiro ganha destaque, costurando a
forma do filme se baseia em um papel presen- narrativa com canções folclóricas; nos dois, um
te de canções tradicionais húngaras e da dança. grupo de pessoas acompanha a narrativa prin-
Nos dois filmes, vemos uma consciência de povo cipal como uma massa espectadora que assiste
se formando, as regras se fazendo, a ciência e ao mesmo tempo em que participa, pontuando a
a razão em estado latente, como que aflorando narrativa com sua presença, seu olhar, seus mo-
através de uma coreografia que extrapola as mar- vimentos; em Glauber e Jancsó, a personagem fe-
cações cênicas e que se torna o motivo da mise minina – as duas usando um longo vestido roxo
en scène. A conjunção música e dança represen- – carregam certa melancolia existencial, como
ta, em Jancsó, o início de outro olhar para a civi- uma mãe natureza distorcida que, ao invés de
lização, numa organização mais complexa e que parir o mundo, marca sua ruína e transformação.
encontra seu ápice em Electra, Meu Amor. Assim como o filme de Glauber Rocha apontava
uma transição de um mundo arcaico rural para
Este filme se reduz como nunca aos aspectos
um grande país civilizado e interligado por imen-
mais simples da encenação: um espaço aberto
sas rodovias – o plano de Antônio das Mortes
com poucos elementos – um estábulo, uma cer-
andando pela estrada, com caminhões e carros
ca de pedra, um casebre –, os atores represen-
passando, marca essa passagem – Electra, Meu
tando as personagens principais e um conjunto
Amor também aponta um novo mundo, do qual
de figurantes que acompanham a narrativa e par-
todos fazem parte. No filme, um helicóptero so-
ticipam dela eventualmente. Tudo se dá no mes-
brevoa o “mundo”, volta e entrega os protagonis-
mo espaço, os elementos compartilhando o local
tas a uma grande ciranda de esperança e futuro
da encenação durante todo o tempo do filme.
compartilhados, de música e dança, de beleza e
Enquanto suas outras obras faziam-se de uma
rigor, de comunhão e limites claros, dos quais o
desconstrução do classicismo cinematográfico
anjo exterminador – aquele que, como Antônio
pela supremacia da evidência, Electra, Meu Amor
das Mortes, resolverá a questão do poder pela
se apropria da lógica espacial do drama grego – o
violência – e o tirano que será morto por ele não
teatro a céu aberto, a ação principal no centro e o
podem participar. Há agora limites e experiências
coro comentando pelas bordas – criando uma re-
compartilhadas. A História já pode ser contada. O
presentação mitológica que, por sua vez, dá mais
ciclo de violência dá lugar a uma ciranda coletiva.
ênfase à representação que ao mitológico. A ação
de Electra, Meu Amor a é tão alegórica quanto
a de Vermelhos e Brancos, mas, aqui, a alegoria

30 31
A Experiência Miklós Jancsó Thiago Brito

I
Havia tempo que eu não sentava e assistia aos questionamentos, enquadramentos, deambu-
filmes de Miklós Jancsó. A primeira vez que tive lações narrativas e construções de personagens
esta oportunidade foi na Cinemateca do MAM, das obras épicas de John Ford, e salpicá-las com
onde assisti a Os Sem-Esperança, há mais ou o cotidiano e o vulgar da tradição europeia do ci-
menos cinco anos. Lembro-me de ficar eston- nema Moderno.
teado com o uso do plano-sequência por Jancsó,
Como John Ford (ou Wadja, contemporâneo de
toda fluidez, ritmo e marcação implementados,
Jancsó), Miklós Jancsó estruturou a narrativa
ao mesmo tempo em que me perguntava como
de muitos de seus filmes a partir da História

4
é que eu mal tinha ouvido falar dele antes. Com
de seu país, a Hungria. Filho de mãe romena e
esta Mostra, tive a oportunidade de finalmente
de pai húngaro, Jancsó passou uma boa parcela
parar e me dedicar a seus filmes, surpreenden-
de sua vida na Transilvânia, antes de se decidir
do-me tanto com a força de sua obra, quanto
por estudar cinema em Budapeste, onde iniciou

A Experiência Miklós Jancsó


pelo momento oportuno em que “Miklós Jancsó
sua carreia, realizando cinejornais e documentá-
– A Dança da Utopia” chega ao Rio de Janeiro.
rios. O que é próprio do diretor, por outro lado, é
por Thiago Brito As principais características da obra de Jancsó maneira como realiza pontes conceituais para a
podem ser lidas e relidas nos poucos textos que construção de seus filmes históricos. Se Os Sem-
se encontram espalhados pela internet ou em -Esperança é um filme que remonta a 1860, é
papel impresso, de modo que me parece inútil curioso ter em mente os 12 anos posteriores à
ficar repetindo-os. Mas, de uma forma ou de Revolução Húngara de 1848, na qual o campesi-
outra, digo que me impressionei com a maneira nato levantou-se contra o poderio e despotismo
como seu cinema desafiou monstruosamente o do Império Austríaco. Em Vermelhos e Brancos,
seu tempo, impondo um tipo de poética e esté- coprodução soviético-húngara, Jancsó posiciona
“A magyarok istenére

tica que tanto flertava com o cinema de arte eu- sua narrativa em um descampado “terra de nin-
Esküszünk,
Esküszünk,
ropeu - com seu uso decisivo e marcante do pla- guém”, em 1919, no final da Guerra Civil Sovi-
hogy rabok tovább
Nem leszünk!”
no-sequência como desafio e afirmação, quase ética, realizando, ao mesmo tempo, uma ponte
- Petõfi Sándor1
um atestado de que nos encontrávamos diante com a revolta húngara de 1956, quando o povo
de um filme investigativo e artístico – na mes- buscou se libertar do regime soviético e foi vio-
“I know that we the new slaves
ma medida em que me parecia dever, e muito, lentamente reprimido pelo governo de Nikita
I see the blood on the leaves”
a uma tradição do cinema norte-americano das Krushev. Já Salmo Vermelho – o Povo ainda quer
– Kanye West2
mais influentes. Refiro-me ao western, já que mais!, é um filme que remonta a 1890 e versa
uma figura como John Ford pode ser vista como sobre a ressaca da Revolução de 1848, inspirado
uma grande referência e inspiração para a cons- em um verso do poeta Petõfi Sándor que indaga
trução do universo do diretor húngaro. Jancsó seu legado e desejos incontidos.
me parece ser o diretor que soube, talvez como
Mas Jancsó não está interessado em nos entre-
ninguém em sua época, incorporar e atualizar os

1. “Pelo Deus da Hungria/ Juramos/ Juramos que não seremos mais escravos!”
2. “Eu sei que somos os novos escravos/Eu vejo o sangue nas folhas”

32 33
MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ A Experiência Miklós Jancsó Thiago Brito

ter com aulas de história, ou em estipular marcos buscam sobreviver em meio à guerra –, às vezes pelo exército vermelho (aquela que da espada e da ver em um filme de Jancsó um ato paradigmático
paradigmáticos em que algo, supostamente glo- simbólico – quando personagens arquetípicos arma nada sabe). da continuação das mesmas questões em nosso
rioso, “desandou”. Como no de John Ford, o con- perambulam cantando, sangrando, desafiando- cenário contemporâneo?
Ao mesmo tempo, esta suspensão mítica e, em
junto de filmes de Jancsó que abrange as décadas -se. São, porém, momentos que falam sempre
certo sentido, arquetípicos, resguardam um sen- Digo que sim, digo que não. Afinal, a busca do per-
de 60 e 70 parecem, paulatinamente, convergir sobre processos de transformação, seja ela de
tido de cotidiano e do “subterrâneo” fortíssimo. sonagem de János Gajdar, em Os Sem-Esperança,
para um tipo de universo abstrato, onde os ele- revolução, seja de repressão. Estados, portanto,
Se os elementos em cena não se dão à represen- por delatar alguém que tivesse assassinado mais
mentos, símbolos e questões são balizados por de flutuação histórica.
tação alegórica em estrito senso, e se de deter- do que ele, em troca de sua vida, expressa uma
um olhar toda vida realista, fraternal e materia-
O texto de Andrew Horton “A Aura da História”, minado personagem não sabemos mais do que situação específica em um tempo-espaço deter-
lista da via-crúcis humana na terra, onde o em-
presente neste catálogo, é extremamente ilus- sua presença física nas circunstâncias apresenta- minado, ao mesmo tempo em que a extrapola e
bate entre a vontade de poder e a vontade de ir-
trativo no que diz respeito a essa questão his- das, fere-me imediatamente um senso do dia-a- interpõe para outros tempos ou momentos limí-
mandade se digladia, inevitavelmente, até o fim.
tórica, demonstrando como, na obra de Jancsó, -dia como verdadeiro caminho revolucionário na trofes em que o terror é instaurado e os princípios
Seus filmes parecem expandir-se para um tipo
o ano de 1919 se torna um tanto quanto para- obra de Jancsó. Isto é: enquanto alguém poderia que norteiam todos os homens tornam-se meros
de abstracionismo que se revela uma experiência
digmático, sendo continuamente reinterpretado ver interesse no momento da queda da Bastilha, penduricalhos de segunda mão. O princípio ati-
sinfônica, musical, em que a polifonia dos rostos,
em filmes como Agnus Dei, ou mesmo no já ci- Jancsó estaria mais interessado no papo de bo- vo é a necessidade da sobrevivência, filmada de
corpos e vozes compõe um tipo de olhar caleidos-
tado Vermelhos e Brancos. No entanto, é preci- teco sendo feito dois meses antes, dois meses forma continua e fluida por Jancsó, sem creditar
cópico em que a gente se depara com um sem-
so perceber que Jancsó pretere em absoluto os depois, enviesando significativamente nossa ao personagem uma força de primeiro plano, mas
-número de vontades, medos, destinos, acasos.
momentos-chave de função histórica, em razão perspectiva e, ao mesmo tempo, retirando a “áu- sem também dedicar-lhe um posto de figuração
Libertando-se consideravelmente da necessi- de situações que – influenciado pelo gosto do rea” histórica que, romanticamente, levamos em – tanto ele quanto os outros personagens são
dade de eleger protagonistas ou personagens cineasta por arenas isoladas, áridas, onde os per- mente como exemplo mítico de um salto evoluti- integrados e engolidos pela aridez ao redor, um
de forte recorrência narrativa, investindo no uso sonagens perambulam entre a sobrevivência e a vo da história da humanidade. espaço que nos traz à mente o prenúncio de um
fluido do plano-sequência e arrematando com sobrepujança – eu chamaria de “limítrofes”. triste fim, desde o início da projeção.
No entanto, Jancsó sabe que se trata de um filme
um tipo de enquadramento que se compõe qua-
Tal sentimento me “joga” também para outros inspirado em um momento histórico. A minú-
se sempre em um leve plongée, nos eliminando
filmes engajados realizados na década de 60 e 70, cia com que trabalha seus planos e o respeito e III
a ideia de um horizonte para onde nosso olhar
particularmente para a obra de Glauber Rocha, ou- cuidado com que retrata suas personagens de-
poderia se distrair e descansar, fixando-nos à A ideia do triste fim, ou mesmo de destino, me
tro cineasta influenciado pelo western. Mas onde monstram a seriedade com que o cineasta encara
terra e aos homens, seus filmes se revelam uma vem também pela maneira como Jancsó enqua-
a obra de Rocha ecoa para o alegórico, a obra de o assunto. Sua dedicação me parece mais aliada
experiência cinematográfica no melhor sentido dra. Ele sempre enquadra em um leve contraplon-
Jancsó ecoa para o metafórico e simbólico, estres- a certo questionamento ético, estético e moral
da palavra: é quase como se alguém nos arre- geé. O que ele elimina? O horizonte. Seu contra-
sando bastante uma condição quase existencial dos pressupostos que o levaram a, exatamente,
messasse em uma espiral enorme de histórias e plongée não me parece dever a Mizogouchi, mas
que joga não apenas no plano ideológico, mas me fazer o filme. Sua vontade não consiste, quieta
vidas, e logo depois nos encontrássemos parados creio que ajudem a dar este ar de suspensão que
parece caminhar palmo a palmo com questões hu- e complacente, em um ato de retratar a época
no meio da rua, ainda sentindo o pequeno soco seus filmes impregnam. É quase como um invó-
manísticas de sentido mais pleno. Ou seja, o gesto (“Tirar foto é fácil, quero ver quem se retrata”3),
que recebemos na sessão. lucro, onde a ideia de “História” talvez possa se
dos filmes de Jancsó nos intromete a repensar a mas em um assumir questões contemporâneas e
ancorar – onde as histórias já estão escritas des-
própria lógica de com se daria uma dada transfor- encontrar seus ecos nos becos, beiras, pradarias,
de o princípio do filme, não há o que se fazer. Ou
II mação do mundo, onde “Deus e o Diabo” não se limites do passado.
mesmo uma noção oposta: a da abertura, do filme
apresentam como oposições claras, mas sim como
No entanto, Jancsó não retrata momentos his- Este fio é, portanto, dialético? Isto é, devemos que se termina em estado de aberto, no qual os
meios intercambiáveis – em que a enfermeira de
tóricos “importantes”. Muito pelo contrário, en-
Vermelhos e Brancos será escorraçada, de uma for-
contramos em seus filmes um tipo de cotidiano
ma ou de outra, tanto pelo exército branco, quanto
que se prova às vezes banal – quando homens 3. Babylon by Gus, Black Alien.

34 35
MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ

processos descritos permanecem se desenrolando adoração das mesmas, já que continuamente


no fio do cotidiano do lado de fora do cinema; uma questiona sua validade cotidiana, afastando-se
ferida aberta caso a metáfora seja desejada. do fixo Estado.

Isto também é uma forma de se pensar o cinema Quando, no início, eu disse achar oportuna a pas-
de Jancsó, um cinema sem horizontes, em que sagem da obra de Jancsó pelo Rio de Janeiro atual
isto é, ao mesmo tempo, uma cápsula que tudo é exatamente por esta política e ética do olhar
fecha, ou uma fenda que tudo abre. do diretor, um olhar inquisidor que não soube
acalmar-se e cooptar-se por esta ou por aque-
la ideologia maior, sem uma defesa inconteste
IV
para aquela ou esta figura mítica da revolução.
O que, a meus olhos, eleva ainda mais o interes- Ao contrário. Seus filmes possuem o gesto e a
se em sua obra é esta maneira direta e corajosa energia dos revolucionários exatamente porque
com que Jancsó olha: a ética e a força de seu não se deitam, não aquiescem, doa a quem doer.
olhar. Mesmo que não saibamos nem mesmo O que importa são nossas vidas na prática, e não
o nome desta ou daquela mulher, é impossível um suposto bem maior, que nada sabe do menor.
passar incólume quando a vemos sendo primei-
Jancsó está mais para um livre pensador anar-
ramente abusada por um grupo de soldados, para
quista, um tipo de artista que sem sombra de
logo depois ser morta, julgada por traição. Pos-
dúvida se transforma em contemporâneo dos
sivelmente, nunca havia visto um filme em que
questionamentos e incongruências de nossa vida
tanta gente é executada como em Vermelhos e
atual e, claro – principalmente em se tratando de
Brancos, e, certamente, não havia assistido a um
Jancsó – sempre cotidiana.
filme em que estas questões fossem tratadas
de forma tão obrigatoriamente frontal como fez
Jancsó. De uma forma ou de outra, isto me faz
sentir a absurdidade geral da guerra ou da insen-
sibilidade que, muitas vezes, nos cega neste ca-
minho perverso pela Vontade de Poder. A batalha
humana pela soberania se torna um teatro triste,
um caminhão atropelando todas as minorias que
se debatem no chão.

Não iremos encontrar em Jancsó cooptação. Não


iremos encontrar passividade. Ir a um filme de
Jancsó é deparar-se com uma sinceridade absur-
da na maneira de tratar e retratar os seus temas,
indo sempre ao coração das coisas, sem se per-
turbar com babaquice, apertos de mão com este
ou aquele Estado. Jancsó me parece interessado
e comprometido com ideologias, mas não com

36 37
A consagração de um novo rito Fabian Cantieri

N o folclore eslavo, o pássaro de fogo – análo- contrarrevolucionários tomarem o poder e repo-


go à fênix na mitologia grega – é a criatura má- sicionarem as peças de caça às bruxas: o “Ter-
gica que carrega consigo tanto a benção quanto ror Branco”, que viria a torturar e executar, sem
a danação para quem a captura. Das cinzas à julgamento, comunistas, outros esquerdistas e
materialização do ser, é o símbolo de renovação, judeus, comumente associados à liderança do
ou melhor, de sua possibilidade. É o eterno nas- partido.
cimento pós-morte, a imanência da esperança.
Jancsó nasceu nesse contexto e cresceu entre
Uma figura que não deixa de ser, também, uma
dois períodos quase igualmente turbulentos. O

5
bela analogia do desenho que Miklós Jancsó faz
primeiro, sob comando de Miklós Horthy (1920
da Hungria no século XX – um país que sempre
até 1946), viu a repressão do Estado em cima
carrega a fé na transformação, mas quando esta
de comunistas e judeus, momento em que até
se efetiva em poder de benção, vira danação.
leis foram criadas de modo a limitar judeus na
A consagração de
Não importa o lado, seja vermelho, seja branco,
economia, na cultura e sociedade, definindo-os
seja esquerda ou direita: uma vez apossado, teu
como pertencentes a uma raça em vez de a uma
um novo rito: nome é opressão.
religião. O segundo período, ao fim da Segunda
Os anos 60 e 70 na carreira de Miklós Jancsó Falamos de um país que já teve um partido co- Grande Guerra, corresponde ao começo de mais
munista assumindo o poder após seu primeiro uma transformação, quando, sob o comando de
Fabian Cantieri presidente pós-monarquia austro-húngara ten- Mátyás Rákosi (até 1956), passou-se a conviver
tar conciliações com minorias não húngaras, com um estado totalitarista e sob forte influên-
como romenos e eslovacos, e instaurar conceitos cia soviética. Enquanto cultuava a sua imagem e
pacifistas no período entreguerras, desarmando a de Stalin, Rákosi insistia no desenvolvimento
seu exército enquanto seus vizinhos se fortale- armamentista, reestruturando a agricultura (his-
O pássaro de fogo deve morrer a cada dia para renascer no dia
ciam. Os “vermelhos” vieram ao poder muito por toricamente, o grande propulsor da economia do
seguinte. E, uma vez que proprietários de terras e de fábricas
serem a única força combativa organizada. Sua país) para um estado de baixa produção alimen-
deixem de ser proprietários e que não haja burguesia ou proleta-
popularidade era muito mais baseada no pro- tícia, para além do quase tradicional encalce à
riado, rico ou pobre, opressor ou oprimido, uma vez que não exis-
grama de restauração das fronteiras húngaras oposição: executava e aprisionava os “inimigos
ta muita comida para uns e não haja o suficiente para outros,
do que na sua agenda revolucionária e em pouco do povo”, como aristocratas, generais, militares,
quando tudo se assente como igual à mesa da justiça, quando
tempo, com os sucessivos fracassos em recupe- industrialistas e outras classes superiores.
o espírito brilhar em toda janela, então, e só então, o homem
rar alguns dos territórios perdidos na Primeira
deverá viver a vida digna dele mesmo. Uma vida de liberdade, Mesmo com este longo contexto histórico, é
Grande Guerra, sobrevieram a pressão e insatis-
alegria e paz. E, ainda assim, o pássaro de fogo deverá, ainda, bastante comum, na pouca literatura que acha-
fação popular. Como resposta, o “Terror Verme-
voar aqui acima de nós, e, ainda, perecer todo dia para renas- mos sobre Jancsó, ler ora que sua obra é sobre a
lho” capturava e executava qualquer um que se
cer ainda mais magnífico no dia seguinte. Abençoado seja teu denúncia de um passado, ora que este passado
mostrasse contrariado em relação ao governo.
nome, revolução.1 pouco importa para o autor. Não é bem assim:
Eram enquadrados como aqueles que cometiam
entre dois pesos tão dissonantes, cabe uma me-
Electra, meu amor “crimes contra a revolução”. Não tardaria para os

1. Tradução livre

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ A consagração de um novo rito Fabian Cantieri

dida “nem lá nem cá”. Quando Andrew James II) e, dependendo de quem visita a casa, entra plano e enquadramento de onde se começou com nome. Em A pacifista, Monica Vitti quebra seu
Horton (em um artigo incluído neste catálogo) outra moldura por cima. Os ditadores passam e a vã esperança juvenil de que “nós mudaremos estatuto pacífico, mata o colega neofascista de
comenta sobre a “trilogia de 1919” e critica a in- a repressão permanece. É interessante perceber todo o mundo pelo amanhã”. E o amanhã teima seu amor e espera ser presa. “Quanto barulho faz
trodução explicativa inserida a fórceps na versão como Jancsó, apesar de aparentar ser um alien em ser a mesma luta de hoje. O amanhã nunca uma pistola! Mas precisamos fazer barulho para
inglesa de Vermelhos e Brancos, apontando que o em meio à cinematografia européia dos anos 60, é mais destes jovens, “aqueles que começam de sermos ouvidas”. Um close em freeze frame de
ano é apenas um fundo mítico como os faroestes de certa maneira, está alinhado a um mesmo onde deixamos e seguem adiante”. Sempre será um olhar etéreo. Olhar pela igualdade, que nos
tanto faziam, Horton acerta ao inferir que seus pensamento cinemanovista – aquele que Jean de outros. leva ao mesmo tempo ao céu e ao hospício.
filmes não são propriamente sobre a História, Luc Godard viria a parafrasear mais tarde como
Ventos Cintilantes é de 1969. Todos os filmes Este olhar dúbio e eterno – no mais rígido sen-
mas ao deixar completamente este passado de o período subserviente à “morte do cinema”.
anteriores a ele parecem ser da mesma auste- tido de apreensão do tempo que a fotografia
lado, o crítico deixa também de enxergar a natu- Quanto a esse problema, Jancsó foge da saída
ridade descrente. Essa austeridade não é ne- empresta – é o começo de uma virada que Salmo
reza filosófica primordial de filmes que espelham marxista clássica (e primordialmente hegeliana)
nhum niilismo ou existencialismo pessimista, ao Vermelho - o povo ainda quer mais! materializa
uma constante recente da terra natal de Jancsó: o que é a revisita ao passado. Não é mais possível
contrário do que Cantata: Dissolução e Ligação ainda com mais força. Apesar da insistente (e
caráter fenomênico do poder. ter fé no alcance da reconciliação entre Espírito
poderia parecer indicar. Os sem esperança já in- acertada) crítica às traduções inglesas, Salmo
e Mundo a partir do olhar retrospectivo e reme-
O poder é este fora de quadro que sempre ron- dica, pelo próprio título, o círculo tortuoso e sem Vermelho - o povo ainda quer mais! é o axioma
morativo do ego pensante. Entender o passado
da o libelo da liberdade que é a puszta húngara. brechas pelo qual os prisioneiros irão passar. Seu perfeito para a obra que viria consagrar Jancsó em
para lutar no presente com as armas da consci-
Os campos abertos de Miklós Jancsó são o sinal fim é seco, momentaneamente enganoso, até Cannes. O encadeamento aristotélico dá lugar a
ência histórica em punhos tornara-se inútil. Em
intermitente de um livre arbítrio ferido, de um recair na regularidade do assassinato político em uma estrutura litúrgica. Ao invés de uma narrati-
Allegro barbaro, um senhor de idade empunhan-
movimento cerceado, de uma eterna clausura – a massa. Caminho para casa e Vermelhos e Bran- va, de um personagem e sua jornada, temos uma
do a bandeira dos “trabalhadores da pátria” (a
roda, a ciranda, o cerco – que persegue, sonha e cos têm finais modernistas por excelência. No aglomeração de indivíduos que se revezam – se
munkásoknak hazát) declara sem desvios: “A
mata. A mise en scène de Jancsó é a eminência do primeiro filme, depois de Jozsef ser impelido a encontram e se dispersam a partir dos bardos
verdade histórica não consegue parar nem o der-
mal se transfigurando como gestalt – um dese- fugir no trem; no segundo, depois de Laszlo che- cantadores que começam, naturalmente, pela
ramamento de sangue, nem a opressão”. É pre-
nho ainda em formação, delineando as relações gar tarde demais e ver todos seus companheiros Marseillaise do trabalhador. É fácil vislumbrar,
ciso achar outra saída. É aí que nos enfurnamos
de poder que acabam sempre por instaurar a mortos - ambos os personagens vividos pelo a partir daí, o pôr-em-cena de Jancsó como uma
num complexo paradoxo jancsoniano: a História
opressão (Vícios Privados, Virtudes Públicas pare- mesmo ator – András Kozák - ao fim, viram para dança que baila com o fora de quadro. No lugar
nos inspira a manter a luta, a morrer pela causa,
ce ser não só uma exceção, como uma ideia com- câmera e olham para a lente. Do mesmo gesto da mímesis, a coreografia, na qual os corpos têm
mas não nos ensina nada de prático. Pior: a apre-
bativa, conforme veremos). Este quadro não vem preconizado por Bergman em Monika e o desejo, como grande parceiro o percurso da câmera e o
ensão da História é como a nuvem de fumaça que
pela fé enganosa de um lado, pois por mais que quebram a diegese, o pacto de naturalismo e a zoom da lente. Dançam ao redor da vil fogueira
obnubila o levante da bandeira e esconde a morte
todo filme de Jancsó seja um manifesto comunis- opacidade do artifício. Aludem ao enfrentamen- ou como judeus ao redor de mulheres na bacia de
pela bandeira, esta morte que, pela eterna repe-
ta de certa forma, este manifesto, antes de polí- to e ao convite de participação do espectador. No banho. Oram o sagrado discurso comunista2, en-
tição, perde sua significação. Nos deixa desarma-
tico, é de Espírito. Antes de defender a esquerda primeiro longa-metragem pós Ventos Cintilantes, tre outras palavras de fé. Seus lenços vermelhos
dos, desnudos.
ou a direita (ele nunca o faria), é preciso combater Inverno de Sirocco, Marco Lazar morre para não são sua hóstia. Rituais são postos em cena, uns
um terceiro lado – o de cima – aquele vigente no “Oh que brilhante são os ventos que sopram nos- ser entregue depois que o governo da Iugoslávia atrás dos outros: de pombos, copos jogados às
poder agora, cronicamente incorrompível de seu sa bandeira” diz a líder estudantil quase ao fim e Alexandre II chegam a um acordo. Fica o movi- costas, até turíbulos que incensam os socialistas
estatuto repressor. d’Ventos Cintilantes. Mas esses ventos não so- mento que promete matar Alexandre II em seu arrependidos.
pram para frente. Enquanto em Allegro barbaro o
Em O inverno de Sirocco, logo no começo, ve-
nevoeiro vem calar o discurso do senhor da ban- 2. “Socialismo, seu reino chegou. Aqui e por todo lugar do mundo! Através do respeito e devoção diante das pessoas, as ta-
mos uma mudança quase cômica do quadro dos
deira, em Ventos Cintilantes, depois de todo um xas deviam ser menos, o pão devia ser mais e a vida mais fácil. Povo, libertai-vos da opressão comum aos direitos humanos,
chefes de Estado. Eles são trocados na mesma pois eles merecem sofrer a punição que desenharam pra si mesmos. Dinheiro não nos deixai cair em tentação, pois por você,
ciclo, num filme sobre juventude, educação e fu- muitos vendem seus princípios e se juntam como escravos aos opressores do povo. O mundo da ciência deveria iluminar
moldura (e, na verdade, sendo sempre Alexandre
turo, termina-se no mesmo lugar, com o mesmo nossos cérebros para realizar esta causa sagrada. Amém”.

40 41
MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ

A mise en scène já habitual do autor só corrobo- Libertação é a ausência de constrangimento, a


ra para a sensação de consagração plena. Nesse posse da faculdade de locomoção. A verdadeira
sentido, dois elementos formais são fundamen- liberdade é a aspiração máxima da revolução, a
tais: o corte, que quase sempre é usado como “admissão ao mundo político”. Jancsó vai ainda
elipse, como uma incisão no espaço (dificilmente além: a verdadeira liberdade é livrar-se dos gri-
há uma construção de imersão num “tempo na- lhões da História para se reconciliar com o mun-
tural”, de um escamoteamento do corte, de rac- do, a partir de uma comunhão com a terra. É se
cord); e o fora de quadro, que, além de manifestar remoldar-com-o-outro. Em Electra, meu amor,
a latência do poder opressor e de bailar com os como uma fênix, reconfigura-se o mito pela te-
corpos em seu fluir constante (de lente, de eixo, chné do cinema. Os gregos diziam que ninguém
de dolly), se configura artisticamente como o pode ser livre, a não ser entre seus pares. E é
epítome da libertação, o bel prazer de estar em assim que a liberdade se manifesta em Vícios
movimento. Um terceiro elemento constante, Privados, Virtudes Públicas. Uma ordem precisa
não exatamente formal, mas insistentemen- insurgir sobre a outra. Um imperador precisa
te pinçado (normalmente mal interpretado) é a cair para que seu herdeiro, o liberto e insano,
nudez. Especialmente em Salmo Vermelho - o provoque novas relações ritualísticas de poder.
povo ainda quer mais!, a nudez corrobora com a Irrompe-se com a violência, abre-se um para-
ideia de integração ritualística. O ritual da terra, digma, nasce um novo senso de comunidade.
o rito do plantio vai tomando o lugar do ritual da Numa cena de sexo, o homem come a mulher
consagração. A liturgia não é canônica, não es- que come o homem.
queçamos, mas revolucionária. E pela revolução
Enquanto os “cinemas novos” no mundo todo
de Jancsó, antes das armas, passa-se pela trans-
se viam sem História, sem Deus, sem télos para
cendência da terra.
os guiar e só conseguiam vislumbrar uma possi-
Sim, muitas vezes a nudez foi um escombro da bilidade de saída mergulhando na própria arte (o
humilhação humana (Os sem esperança, Verme- cinema como escape que finda no maneirismo),
lhos e Brancos). No entanto, em Salmo Vermelho Jancsó, enfim, revela sua real faceta alienígena:
- o povo ainda quer mais! ela passa a ser parte precisamos inventar um novo tipo de consagra-
constituinte da luta, parte criadora de um projeto ção. Por uma política da arte que reinvente o
político de arte em que nasce um mito re-insti- conceito de revolução. Tout a changé dans l’ordre
tuinte: a fundação da verdadeira liberdade. Aqui, physique; et tout doit changer dans l’ordre moral
vale lembrar que entre libertação e a verdadeira et politique.
liberdade há um vão de escombros3. Libertação
é a aspiração mínima da revolução (palavra esta
que tem seu conceito ressignificado a partir das
Revoluções Americana e Francesa, ou seja, é
essencialmente um conceito da Era Moderna).

3. Diferenciação político-filosófica, antes de filológica, que Hannah Arendt cria em “Da Revolução”.

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“Agora é a hora de apodrecer para sempre” Jaromír Blazejovsky

N ão é exagero dizer que uma revolução per- O filme que não foi
manente, simbolizada pelo helicóptero vermelho
A linha evolutiva das revoluções é, no entanto,
na cena de encerramento de Electra, meu amor
interrompida no final dos anos 70, e uma lacu-
(Szerelmem, Elektra, 1974), é o princípio que
na surge na cinematografia de Jancsó: um filme
abrange, estilística e conceitualmente, todo o
ausente. Este, que nunca chegou a ser realizado,
trabalho de Jancsó. Raramente encontramos
é Concerto – a terceira parte da trilogia Vitam et
alguma obra em sua filmografia cujas caracte-
sanguinem, inspirada na vida do político húnga-
rísticas não sejam descritas como “inovadoras”,
ro Endre Bajcsy-Zsilinszky. Miklos Jancsó foi pre-

6
“extremas”, “estilisticamente revolucionárias”
miado com o lifetime achievement, em Cannes,
ou “radicalmente novas” (ainda que, a partir dos
pelas duas primeiras partes da trilogia – Rapsó-
anos setenta, tenha surgido um número cres-
dia Húngara (Magyar rapszódia, 1978) e Allegro
cente de críticos que falaram de fadiga, manei-
Barbaro (Magyar Rapszódia 2, 1978) – mas, da
“Agora é a hora de
rismo e estereótipo).
terceira parte do projeto, somente o roteiro pode
Inovações estilísticas e revisões de atitudes ide- ser lido2.
apodrecer para sempre” ológicas aconteceram nos vários ciclos ou órbitas
Mais tarde, o diretor explicou que problemas
Os filmes de Jancsó no período entre 1981 e 1991 da carreira de Jancsó. Uma transformação funda-
financeiros, além da dificuldade do ator Gyorgy
mental, por exemplo, se passou entre a primeira
Cserhalmi continuar envolvido com o projeto,
De Jaromír Blazejovsky1 e a terceira parte de sua primeira trilogia: dos
e sua própria fadiga foram os motivos pelos
planos de aproximadamente 45 segundos, ro-
quais não chegou a realizar Concerto3. Podemos,
dados pelo diretor de fotografia Tamás Somló,
contudo, assumir que a verdadeira causa des-
em Os Sem Esperança (Szegénylegények, 1965),
se abandono foi outra. Após as duas primeiras
passou-se às tomadas de dois a três minutos
Agora é a hora de renovar as forças partes do Vitam et sanguinem, ficou claro que
em Silêncio e Grito (Csend és kiáltás, 1968),
Agora é a hora de apodrecer para sempre a combinação entre o estilo cinematográfico e
realizadas por János Kende. E se o primeiro tra-
Agora é a hora dos músculos se contraírem a atitude ideológica havia chegado a um limite.
balho da era “coreográfica” de Jancsó, Ventos
Agora é a hora de ser ferido no peito Podemos caracterizar esta mistura como radi-
Cintilantes (Fényes szelek, 1968), uniu a foto-
calmente revolucionária e igualmente antito-
(Temporada dos Monstros) genia sedutora da juventude esquerdista à sua
talitária, articulada em formas baléticas plenas
crítica sarcástica, a peça mais pura do gênero,
de pathos4. Jancsó e Hernádi utilizavam este
Salmo Vermelho – o povo ainda quer mais! (Még
sistema desde Égy bárány (Agnus Dei, 1970). A
kér a nép, 1971), era, ao contrário, uma expres-
trilogia Vitam et sanguinem deveria representar
são passional e simples do pathos da revolução.
uma síntese: deveria ser uma versão húngara

1. Publicado originalmente na revista eletrônica Kinoeye #3, vol. 4 – 3 de março de 2003.


2. Gyula Hernádi e Miklós Jancsó, Vitam et sanguinem, Budapeste, Magveto Konyvkiadó, 1978.
3. Ingrid Brachtlová, Miklós Jancsó. Praga: Cs. Filmovy ústav, 1990, p. 142.
4. Gábor Gelencsér escreve: “os principais pilares expressivos de Jancsó são os seguintes: pensamento de esquerda, visão
dialética da história, tendência à abstração, e uma postura radicalmente vanguardista.”
5. József Marx, Jancsó Miklós két és tobb élete. Budapeste: Vince kiadó, 2000, p. 294.

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ “Agora é a hora de apodrecer para sempre” Jaromír Blazejovsky

dos grandes épicos que começaram a surgir no enclausura no interior de uma suposta residência um final digno dos outros trabalhos de Jancsó. tarde, o realizador alegou ter “feito por dinheiro”.
cinema mundial na segunda metade da década real que mais se assemelha a um teatro, a uma Comparado às ilusões anteriores, a planície que Trata-se de um documentário televisivo sobre
de setenta – Terra Prometida, de Andrzej Wajda, catedral, a um spa ou a um estádio. A trama en- se descortina parece ser a verdade nua e crua. Os uma apresentação do lendário grupo húngaro de
Novecento, de Bernardo Bertolucci, Siberidade, trecorta referências a Hamlet, ao mito de Édipo atores levam tiros enquanto vagam em direção rock Omega, que, em Novembro de 1982, come-
de Andrei Konchalovsky etc5. e à lendária figura de Erzsébet Báthory,– célebre ao horizonte. Durante os créditos finais, ouvimos morou o seu vigésimo aniversário. A banda es-
aristocrata húngara que se banhou no sangue de uma canção que fala da necessidade de se apro- teve no auge da carreira entre os anos de 1968
Todavia, nos trabalhos de Hernádi e Jancsó, o
virgens e ficou conhecida como a “Duquesa do ximar as nações da Hungria e da Alemanha. e 1971, principalmente graças ao compositor
tempo épico da História normalmente não se
sangue”. A referência a Boccaccio, no título origi- Gábor Presser. O famoso disco 10.000 passos
apressa. O momento de celebração é que se Em Coração tirano, aliás Boccaccio na Hungria,
nal, é um pega-trouxa, já que um padroeiro mais (Tízezer lépés), que traz o hit “A menina com pé-
estende. Durante estas comemorações, impor- Jancsó demonstra a ilusão a que se resume a
apropriado ao filme seria Freud ou Borges. rolas nos cabelos” (Gyongyhaju Iány) data desta
tantes instâncias históricas de revolta e terror grande história que ele havia levado a sério até
época.
se repetem ritualmente. Portanto, o voo épico Em pleno século XV, o príncipe Gáspár (László então. Gáspár vagueia por um labirinto de intri-
de Vitam et sanguinem conflitava com a força Galffy) acaba de chegar ao reino, vindo do exte- gas, informações erradas, presunções e adivinha- A ideia de convidar um cineasta para o show de
gravitacional do estilo de Jancsó. Este conflito rior, acompanhado de seu amigo italiano Filippo ções – a metáfora da condição humana em um aniversário foi provavelmente motivada pelo
resultou em uma passagem espetacular da ide- (Ninetto Davoli). Assim que retorna ao lar, des- regime totalitário, durante o qual a aparência se exemplo de outro grupo, “Illés”, com o qual o
ologia do trabalho para, pura e simplesmente, a cobre que seu pai – que havia supostamente torna realidade e a realidade se esconde por trás Omega competiu durante muitos anos. O show
sua forma estética. Rapsódia Húngara e Allegro morrido em uma batalha com os turcos – fora, na das paredes de um palácio. Agentes de forças nostálgico de “Illés” foi organizado e filmado por
Bárbaro são os únicos dois filmes de Jancsó aos realidade, dilacerado por um urso e que sua mãe, internacionais conspiram dentro do palácio, en- Gábor Koltay, sob o título A koncert. O filme foi,
quais cabe o rótulo de “acadêmico”. Estes tam- a rainha Katalin (Thérèse-Ann Savoy), sacrifica, quanto as pessoas de modo geral não têm influ- por muito tempo, um sucesso nos cinemas hún-
bém são seus últimos filmes com uma mensa- todas as noites, uma virgem para se banhar em ência alguma nos eventos que se desenrolam e, garos. Em contrapartida, dois anos depois (em
gem revolucionária, otimista, suas últimas obras seu sangue, e, assim, permanecer jovem eterna- com isso, acabam reduzidas a vítimas. 1984), o lançamento de 75 minutos de material
modernas. Tudo que Jancsó realizaria em seguida mente. Além disso, talvez esta jovem e bela rai- em vídeo filmado pela equipe de Jancsó no Sport
Jacsó faz um uso inovador de uma dramaturgia
viria marcado por ambiguidades, dúvidas, iro- nha não seja a mãe verdadeira de Gáspár. Como Hall, em Budapeste, foi distribuído nos cinemas
carnavalesca, espaços interiores cambiáveis e
nias, intertextualidades, alusões a personagens se não bastasse, seu tio Károly (Jószef Madaras), sob o título de Omega, Omega... e teve péssima
do Verfremdungseffekt (“efeito V”) brechtiano.
e a eventos da memória cultural do ocidente e, amante da rainha e possivelmente pai do prínci- recepção do público.
Exemplo disso é o momento em que Ninetto Da-
enfim, por uma percepção pós-moderna do mun- pe, talvez tenha assassinado o rei, seu verdadeiro
voli (que traz uma vilania angelical, típica dos fil- Curiosamente, a performance bombástica do
do e da história (p.ex.: na pluralidade de pontos pai. O tio e um bispo certamente estão escon-
mes de Pasolini) esfaqueia a si mesmo, mas logo Omega justapôs-se às obsessões padrões de
de vista da narrativa, em que ninguém pode se dendo alguma coisa de Gáspár. Ou, talvez, quem
sorri e se desculpa com o espectador por não ter Jancsó: contava com uma profusão de velas,
orgulhar de possuir a verdade absoluta). sabe, a história toda não seja apenas uma amis-
se lembrado de levar o ketchup, rompendo com mulheres nuas, figurinos folks e até mesmo com
tosa piada encenada por uma companhia errante
a diegese. A transformação mais significativa é, uma batalha de creme. A marcha militar durante
Teatro de tiranos de comediantes?
portanto, uma relação irônica com a história e um a canção “10.000 passos” termina em uma paró-
A coprodução Coração tirano, aliás Boccaccio No fim, Gáspár é informado de que o seu verda- ceticismo ontológico: o mundo é apenas um tea- dia tanto de Jancsó como do Omega. Nem as en-
na Hungria (A zsarnok szíve, avagy Boccaccio deiro pai é o emissário turco (Gyorgy Cserhalmi), tro; a verdade é incognoscível. trevistas triviais ou majestosas de Gyula Hérnadi
Magyarogszágon, 1981), na qual se juntam as que, ao engravidar a rainha, queria garantir que com os membros do grupo de rock, nem o esforço
vertentes húngaras e italianas dos trabalhos de o trono fosse de seu sultão. O drama culmina Pedra militar para mostrar músicos mais velhos como modes-
Jancsó, se assemelha mais a um repouso entre em muitos assassinatos após os quais os atores tos e malandros e nem mesmo a abertura do
Jancsó também utilizou a ironia em sua obra se-
dois trabalhos do que ao início de um novo pe- descansam, comemoram uma performance bem Assim falou Zaratustra, lida por Richard Strauss
guinte, mais leve: Omega, Omega..., que, mais
ríodo. Desta vez, a ação não se desenrola ao ar sucedida e se preparam para seguir adiante. As
livre das planícies. Praticamente toda a trama se grades do palácio se abrem para o mundo real em
6. Gelencsér, op. cit.

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ “Agora é a hora de apodrecer para sempre” Jaromír Blazejovsky

ajudaram muito o filme. Mas Omega, Omega... na, é em detrimento da racionalidade.”8 Mas o que significa o monstro que supostamen- confunde com Jesus e imprime seu rosto sangrento
teve papel significativo na cristalização do novo te espreita no lago (onde jovens comunistas em sua camisa branca. Nós quase nos rendemos à
Os personagens que personificam estas ideias
estilo de Jancsó; Gábor Gelencsér também con- costumavam se banhar, dezoito anos antes)? tentação de acreditar que ele é o herói defendido
abstratas se encontram no dia 20 de agosto (ani-
sidera que os outros trabalhos televisivos do di- Conforme podemos perceber, a água está com- pelo filme, especialmente quando o vemos, reso-
versário da constituição húngara) em uma festa
retor nos anos 70 e 80 foram fundamentais na pletamente envenenada e inflama, espontane- luto, enfrentar Komondy. Somente quando eles
de seu ex-professor (Ferenc Kállai). O conflito
formação do novo olhar de Jancs6. amente, em chamas. Pelo comportamento do juntam forças para assassinar o Cristo é que enten-
acontece entre o neurocirurgião, Komondy (József
monstro, podemos concluir que ele personifica a demos que são iguais – as ideias de ambos tem o
Madaras), que propaga a ideia da igualdade, e o
violência cometida em nome de metas maiores, mesmo valor social. Ambos têm a intenção de tra-
O monstro do lago psiquiatra, Bardócz (Gyorgy Cserhalmi), que re-
particularmente em nome da igualdade. O mons- zer uma mudança violenta na realidade.
presenta a ideia do aristocratismo. Em seguida, a
Oito anos se passaram desde Allegro Bárbaro até tro no lago é um repositório do mal – tragando
ideia de catástrofe é levantada como uma solução Retomando o fio da meada aberto por Ventos
que Jancsó e Hernádi investissem seriamente carros com artistas mortos e devolvendo um jipe
para problemas globais; a ideia do terror a segue, Cintilantes, encontramos o personagem de Kati
em dar continuidade às suas principais buscas que permaneceu submerso desde a época de
e, finalmente, é trazida à tona a ideia do amor cris- (Júli Nyakó), que parece dar continuidade ao pro-
artísticas. Desta vez, escolheram uma narrativa Ventos Cintilantes. O monstro é um símbolo da
tão, cujo expoente é um Jesus Cristo quixotesco. grama extremista de Jutka e Tereza, duas prota-
ambientada no presente. Sob o título Tempora- ameaça que a civilização carrega consigo quando
gonistas do filme anterior. Jutka e Tereza eram
da dos monstros (Szornyek évadia, 1986), eles Uma série de alusões a Ventos Cintilantes apon- age sob o disfarce dos ideais igualitários.
parte dos anos quarenta, mas tinham dentro de
desnudaram um conflito de ideias que levou o tam para o passado extremista dos protago-
No fim das contas, Komondy tem uma conexão si um radicalismo do novo esquerdismo de 1968.
mundo à sua catástrofe. Gyula Hernádi listou nistas: András Kozák encena um policial agora,
secreta com o monstro; ele controla as forças do Kati, por outro lado, representa certo esgota-
quais são estas ideias em uma entrevista: “uma Lajos Balázsovits veste uma camisa vermelha
lago e, com um gesto mágico de suas mãos, con- mento do movimento estudantil dos anos ses-
delas é a igualdade, um dos principais proble- semelhante àquela que ele utilizou antes e, se eu
jura labaredas de fogo em um palheiro. Ele alme- senta que conduziu ao terrorismo como um de
mas que a humanidade vem enfrentando atra- não estiver errado, o lago com um ancoradouro
ja atingir a harmonia da igualdade manipulando seus desmembramentos na década seguinte. Os
vés da história, dos ensinamentos de Cristo, da onde os jovens membros das Folk Universities
os neurônios em cérebros humanos; para atin- ensejos eróticos de Kati (Komondy era o amante
Revolução francesa e até do ideário socialista. A (Nékosz) se banhavam é o mesmo que é as-
gir sua meta, coloca um grupo de pessoas para de sua mãe, e agora também ela se sente atra-
outra é o elitismo, a crença na ordem estabeleci- sombrado por um monstro em Temporada dos
dormir com injeções, desseca tecidos humanos ída por ele) podem ser interpretados como uma
da por uma elite, cujo ideário é o de que a única monstros. Além disso, quando Komondy em-
e assassina artistas. Como o bardo (encarnado aproximação entre o jovem terrorismo e o velho
coisa que existe é a capacidade diferenciada, a purra um carro carregado com corpos mortos no
por Tamás Cseh, figura indispensável nos filmes totalitarismo, semelhante à aproximação entre a
inteligência. (...) A terceira seria o medo; isto é lago, um guindaste retira de lá um veículo com-
de Jancsó desde Salmo Vermelho – o povo ainda ultrarradical Jutka e o oficial Andris nos momen-
frequentemente manifesto hoje em dia pelas pletamente diferente – um jipe policial igual ao
quer mais!) canta sobre ele: tos finais de Ventos Cintilantes.
teorias de desastres da moda.”7 de Ventos Cintilantes.
“Seus lábios são canivetes, ele tagarela, Lembremos-nos de um episódio em Ventos Cinti-
Este longa-metragem foi um retorno, após 18 Desta maneira, o diretor nos recorda que a geração
Os peixes morrem no lago em que se banhou, lantes: membros do Nékosz desafiaram os semi-
anos, a Ventos Cintilantes. Como Hernády expli- que está hoje no auge das suas forças experimen-
As flores em suas mãos são carnívoras, naristas para debater três questões - o papel do
ca: “Muitos dos atores são os mesmos – 18 anos tou a juventude em uma época em que o stalinis-
O tempo insano o empurra em nossa direção, indivíduo no desenrolar da história, se o mundo
mais velhos. (...) em Ventos Cintilantes, nós, de mo era abraçado com entusiasmo. Diversos sím-
Tempo carnívoro, tempo insano.” é ou não cognoscível e a relação entre religião e
alguma forma, tentamos confrontar a utopia en- bolos e conceitos surgem como frutos daqueles
comunismo. Acontece que os alunos de Nékosz
tusiasmada com a desilusão. Hoje em dia, perce- tempos. Tudo parece aguardar um novo showdo- Apesar da performance de Cserhalmi, Bardócz é
acreditavam ter a resposta, e, por isso, nenhum
bemos que quando - e se,- a esperança predomi- wn, semelhante ao traumático ano de 1956.9 tão carismático que Annabella (Katarzyna Figura) o

7. Gyula Hernádi e Miklós Jancsó, Vitam et sanguinem, Budapeste, Magveto Konyvkiadó, 1978.
10. Jancsó também adicionou: “O mundo rejeita qualquer tentativa de explicação com a ajuda das coisas nas quais acredita-
8. Ingrid Brachtlová, Miklós Jancsó. Praga: Cs. Filmovy ústav, 1990, p. 142. mos, ou conhecemos, ou vimos como explicação. Os vários filósofos, as várias hipóteses e religiões produzidas há milhares
9. O bardo canta na introdução: “Trinta anos atrás, meus amigos / nós falhamos no grande exame / o velho vinho fede / e as de anos atrás, todas dão explicações puramente subjetivas. Embora, francamente, eu não saiba dizer se existe alguma expli-
camisas estão manchadas / com o sangue do cordeiro”. cação objetiva plausível.” Hungarofilm Bulletin, op cit, p. 17

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ “Agora é a hora de apodrecer para sempre” Jaromír Blazejovsky

dos seminaristas se dispôs ao debate. Mas Janc- substituído pelas montagens de écrans, as telas Enquanto isso, um grupo obscuro de homens uma espécie de balé político. Mostra a Hungria
só e Hernádi nos deram respostas, anos depois, ubíquas, a técnica do vídeo. nostálgicos recorda Stalin em um restaurante lu- após a queda do comunismo: os cidadãos são eva-
em Temporada dos Monstros: se o indivíduo tem xuoso. Recitam textos de Lênin, se reúnem sob sivos e afiados; ninguém realmente trabalha; to-
A relação entre os planos longos e close-ups se
a intenção de salvar o mundo, só pode terminar guarda-chuvas negros e enterram um compa- davia, manifestos nacionalistas são declamados.
transforma. Nos filmes anteriores de Jancsó
por exercer um papel negativo; o mundo de hoje nheiro de luta. Coletivamente, representam for- Notícias agourentas chegam da União Soviética:
(p.ex.: Ventos Cintilantes) os planos fechados
é incognoscível, ao menos através das ideologias ças sombrias. Suas ações, registradas em vídeo, aconteceu um coup d’état reacionário e Gorbachev
eram raramente utilizados, mas a técnica pas-
atuais10; e o Cristianismo, com o seu amor ao são acompanhadas por paródias de melodias foi derrubado e executado. Ordenados e sem-
saria a ter uma força expressiva excepcional em
próximo, ocupa um lugar humilhante. revolucionárias adaptadas ao estilo pop. São as pre alertas, os stalinistas húngaros, para quem
seus filmes urbanos, à medida que as “cabeças
canções de filmes anteriores de Jancsó, as mes- mesmo a liderança de János Kádár teria sido uma
Jancsó e Hernádi mostram que a entropia cresce falantes” em telões de TV se tornaram mais im-
mas canções que inspiraram uma nação prestes traição aos princípios comunistas, se preparam
como um resultado de forças irracionais: o es- portantes. As telas tornam o espaço-tempo in-
a mergulhar no conflito de classes (“Na era do ho- para a tomada de poder. Os democratas, unidos,
paço é saturado com os atributos da civilização certo: mostram às vezes eventos sincronizados,
mem pré-histórico, oh... oh... yoho! / Não havia os derrotam, mas no exato momento em que isto
moderna, televisores são instalados em todos às vezes o passado imediato, e às vezes podemos
ricos ou pobres, oh... oh... yoho...”). acontece, tanques soviéticos invadem o país no-
os cantos, e, através deles, tudo se torna visível até ver eventos que só se desenrolam nas “mol-
vamente e o exército vermelho assassina todos ,
sem por isto se tornar compreensível; helicópte- duras da realidade”. Até certo ponto, O Horóscopo de Jesus Cristo é uma
incluindo os simpáticos ao regime stalinista.
ros voam pelas comemorações e, ocasionalmen- obra de citações: assistimos a um documentário
te, um homem pegando fogo passa por lá. É um Kaf(f)ka em Budapeste na TV sobre a visita oficial de Nikita Krushchev Deus caminha para trás é a primeira comédia de
universo pré-diluviano que tem início após o seu em 1958; ouvimos a célebre carta de Lênin ao Jancsó. Presume-se que houve duas influências
Temporada dos Monstros dá início a uma nova
fim. Enquanto os trabalhos anteriores de Janc- Congresso, criticando a conduta de Stalin; Josef K que conduziram o diretor ao gênero: primeiramen-
série que Gábor Gelencsér chamou de “trilogia do
só e Hernádi mediavam a experiência da mani- conta como Mátyás Rákosi convidou um ex-líder te, Karl Marx e a tese de que a história se repete
caos”11. A trilogia foi logo expandida para uma
pulação, violência e terror nas obras, agora eles dos social-democratas, Árpád Szakasits, para jan- como farsa (o desenvolvimento do coup d’état em
tetralogia em reação aos transtornos políticos na
atacam as ideias que presumem manipulação, tar em 1950 e permitiu que ele fosse preso; uma Moscou, agosto de 1941, previsto por Hernádi e
Europa Oriental durante a transição entre o re-
violência e terror. previsão meteorológica alarmante. O Horóscopo Jancsó no longa-metragem, comprova a veracida-
gime totalitário e a democracia. O Horóscopo de
de Jesus Cristo se consolida como um noir político de da máxima), e, em segundo lugar, a personali-
Ao mesmo tempo, Temporada dos Monstros re- Jesus Cristo (Jézus Krisztus Horoszkópja, 1988)
que testemunha a atmosfera de um curto período dade de Károly Eperjes no papel principal. Eperjes
presenta outro ponto de transição estilística, por foi realizado como o segundo filme da tetralo-
histórico quando a perestroika e glasnost de Gor- não tem a intenção de ser somente uma figura na
ser o último trabalho que Jancsó filmou (na maior gia. Desta vez, o tema é explicitamente a agonia
bachev já haviam lançado luz sobre as questões paisagem (justamente o que Jancsó mais exigia de
porção) ao ar livre, usando o efeito de horror ge- do comunismo. Cserhalmi encarna um poeta de
tabu do passado, mas a velha guarda de líderes e seus atores). Ele concentrava a atenção dos espec-
rado pelos espaços abertos. Trata-se, além disso, aparência demoníaca chamado Josef K (que, ao
seu aparato de segurança militar ainda estavam tadores sobre si: faz piadas, fica se mostrando; se-
do primeiro dos filmes “urbanos” do diretor. O contrário do autor de O Processo, tem o seu so-
no poder na Europa Ocidental. gue a linha de Ninetto Davoli em Coração Tirano,
início do longa-metragem se passa em um dos brenome escrito Kaffka) o qual, vestido com um
aliás, Boccaccio na Hungria e antecipa a “paspalhi-
hotéis mais novos de Budapeste, com um pas- chapéu preto e um sobretudo, caminha por diver-
Velhos stalinistas, ce” de personagens como Pepe e Kapa nos filmes
seio dramático pelas ruas da cidade. Enquanto sos apartamentos e hotéis em Budapeste e tem
novos democratas mais recentes de Jancsó.
nas obras “agorafóbicas”, encenadas nas planí- relações misteriosas com três mulheres: Márta
cies ao ar livre, a ação se expande em direção à (Ildikó Bánsági) e a ex-policial Kata (Dorottya Ud- O primeiro longa-metragem realizado pela dupla András Kozák, que normalmente personifica
profundidade do campo, em seus filmes urba- varos) são assassinadas em circunstâncias enig- Jancsó-Hernády após a queda do muro de Ber- guerrilheiros de esquerda ou agentes secretos,
nos, compostos de modo mais claustrofóbico, o máticas; Josef K, então, evapora na frente de Juli lim foi uma ficção política, Deus caminha para obteve o papel de um conspirador bolchevique
foco infinito é complementado e logo totalmente (Juli Básti), uma meteorologista. trás (Isten hátrafelé megy, 1990). A introdução que alega que “mesmo hoje em dia, uma estre-
se passa próximo ao Bastião dos Pescadores no la de cinco pontas pode ser sacada de primeira”.
Castelo Buda, quando uma equipe de TV roda József Madaras faz o papel de um novo demo-
11.Op. Cit. Gelencsér, 1992

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ “Agora é a hora de apodrecer para sempre” Jaromír Blazejovsky

crata, e seu traje branco nos deixa com a mais nha para trás é o primeiro filme de Jancsó/Her- ção, mas também é amante de sua esposa (Ildikó cantor folk Tamás Cseh, sorrindo enquanto um
absoluta desconfiança. Naturalmente, deve nádi que faz uma sátira de si mesmo e em que Bánsági). A amante do primeiro ministro, por sua segurança levanta um guarda-chuva para prote-
haver, como de costume, a presença de uma ambos os autores aparecem frente à câmera. vez, é médica particular do líder e de sua esposa. gê-lo. A melodia da valsa retorna em diferentes
moça nua: desta vez é a francesa Nathalie, Com solidariedade, eles aceitam a responsabili- A quinta pessoa é um oficial de polícia que tam- variações durante todo o filme.
símbolo da revolução. Dois policiais, chamados dade de seu ofício deixando-se filmar da mesma bém serviu ao regime antigo. Como de costume,
A narrativa lembra o conto Milagre secreto,
Baixo e Alto, querem ensaboá-la e soldados forma que seus personagens. Desta maneira, o esse papel é de András Kózak.
de Borges, na medida em que o herói recebe a
querem dormir com ela, mas ela escapa e pre- filme ainda é parte da “trilogia do caos”, mas, ao
Junto com a esposa dele, o primo planeja o as- oportunidade concebida por Deus de viver mais
vine a tentativa de coup d’état. mesmo tempo, anuncia as transições futuras na
sassinato do primeiro ministro. O assassinado um segundo antes da morte. O momento de
poética de Jancsó. Esta mudança se consolida no
Portanto, Deus caminha para trás apresenta a acontece, mas a viúva do premier é encontrada bifurcação acontece no décimo terceiro minuto
exercício estilístico O grande derrame cerebral da
decadência da política: a velha política bolchevi- morta, possivelmente por suicídio, pois sofria de da obra, quando o herói, após uma briga com o
Hungria (A nagy agyhalál, 1996), parte do proje-
que é semelhante à política dos comunistas re- câncer. Os representantes do estabelecimento primeiro-ministro, se encontra no quarto onde
to coletivo de Pál Sandor, Károly Makk e Miklós
formatórios, ou à dos nacionalistas e liberais. As urgem que o herói admita ter cometido o crime será assassinado: ele considera, por um instante,
Jancsó intitulado Amem uns aos outros (Szeres-
telas de televisão, colocando ações paralelas em e o aconselham a justificá-lo como um crime suicidar-se e, involuntariamente, sem fazer es-
suk egymast, gyerekek, 1995), e na série de sá-
eventos paralelos, são um componente estilísti- passional, o que poderia ajudá-lo politicamente. forço, toca a própria testa.
tiras cinematográficas que começou em 1998 e
co tanto quanto foram em Temporada dos Mons- Quando ele se recusa, acaba por testemunhar um
continua até hoje. À época em que foi produzido, Valsa Danúbio
tros e O Horóscopo de Jesus Cristo. Miklós Jancsó assassinato misterioso do padre (Laszló Gálffy)
Azul parecia ser um corajoso filme político, que
e Gyula Hernádi finalmente riem de si mesmos com quem acabou de se confessar, e também do
Novos democratas apontava a venda das riquezas nacionais, a cor-
e dos acontecimentos do passado.Eles criam um policial encenado por Kozák.
no Danúbio Azul rupção no alto escalão da política e a influência
“filme dentro do filme” e levam o espectador a
Para evitar se tornar vítima também, ele foge devastadora das estruturas de poder. Jancsó e
uma sala de projeções. O que estava sendo exi- No meio tempo, Miklós Jancsó ainda rodou outro
com a médica. No fim do longa-metragem, retor- Hernádi previram a tensão, mesmo os crimes,
bido acabou de chegar a um fim, e o diretor pede longa-metragem que pode ser considerado a ce-
na ao quarto de hotel onde a história começou e, que realmente aconteceriam durante os anos no-
desculpas aos seus amigos pelo cheiro ruim na reja da “tetralogia do caos”. Lançou-se em uma
finalmente, leva um tiro na cabeça. Enquanto ele venta no antigo bloco ocidental.
sala. Então, os convida para curtir um champa- tentativa no gênero do thriller político com Val-
jaz esparramado, agonizando, nos damos conta
nhe e um strip-tease. sa Danúbio Azul (Kék Duna keringo, 1991), uma Todavia, esta tentativa de se lançar em um thril-
do loop temporal cujo ciclo acabou de terminar:
coprodução com o produtor norte-americano Mi- ler político não tem a mesma beleza que espe-
Desta forma, Jancsó ri dos modismos pós-totali- tudo aconteceu dentro de sua mente e a visita do
chael Fitzgerald.12 ramos de Miklós Jancsó (até as mulheres nuas
tários de preencher tudo com mulheres peladas, investidor milionário acontecerá agora, na reali-
estão em falta para aqueles espectadores que
e, ao mesmo tempo, reconhece que esta é a única Novamente, a trama se passa no presente: um dade. Em um helicóptero, ouvimos o diálogo fi-
respondem aos filmes neste nível). Sobrecar-
coisa com o qual parte de seu público consegue ex-patriota milionário chega à Hungria e tem nal do coronel com uns policiais: “Ele era um tolo.
regado em diálogos, o filme tem barrigas ente-
se relacionar. Um papo sobre o filme é seguido a intenção de comprar uma fábrica lucrativa, Disse tudo que pensava. Na era comunista, ou
diantes no segundo ato. Nos cinemas húngaros,
por um comentário humorístico, no qual o autor fechá-la, demitir os trabalhadores e construir mesmo hoje em dia, ele sempre falava a verdade.
foi um desastre; somente 5754 espectadores lhe
faz piadas amargas sobre a moral pós-totalitária escritórios. Um primeiro ministro puxa-saco, ves- Dizem que a vida inteira de uma pessoa aparece
assistiram em seu primeiro ano.13
e a classificação dos cidadãos de acordo com o ní- tindo um traje branco, (József Madaras) o recebe nos momentos logo antes da morte.”
vel de colaboração, sofrimento e resistência. Na com boas-vindas. Está acompanhado por seu Valsa Danúbio Azul também era a última coisa
A obra é emoldurada pela “Valsa de Kádár” com
última tomada, Jancsó e Hernádi são filmados na primo (Gyorgy Cserhalmi), outrora um dissidente, que podia ser dita sobre a ideia de revolução.
letras de Géza Bereményi (poeta, compositor
rua, mas não sabemos quem está os filmando. mas, agora, membro do parlamento que critica Jancsó e Hernádi haviam analisado vários as-
e cineasta) afinado à melodia do Danúbio Azul
o primeiro ministro. O personagem de Cserhalmi pectos do conceito, em sua maioria a partir de
Com a exceção de Omega, Omega..., Deus cami- de Strauss. A canção é interpretada pelo grande
ajudou o primeiro ministro a conseguir sua posi- posições de esquerda, por um quarto de século;

12. Op. cit. Marx 13. Op. cit. Marx.

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ

eles acompanharam o conceito desde sua nas-


cença (Silêncio e Grito, Salmo Vermelho – o povo
ainda quer mais) até o seu enterro (O Horósco-
po de Jesus Cristo) e sua ressurreição nas novas
estruturas democráticas. Então, em seu próximo
longa-metragem, Em Budapeste, o Senhor deu
uma lanterna em minhas mãos (Nekem lámpást
adott kezembe az Úr Pesten, 1998), Jancsó inda-
ga, de um jeito grosseiro, uma pergunta distinta
e que, em certo sentido, já estava anunciada em
Temporada dos Monstros: Sou só eu ou o mundo
todo enlouqueceu?

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A HISTÓRIA DESFIGURADA Luís Alberto Rocha Melo

O cinema de Miklós Jancsó, além de estar longe da câmera, com o ritual da interpretação dos ato-
de ser redutível a um determinado estilo, oferece res e com alguns dos procedimentos estilísticos
ao espectador de hoje um bom número de dificul- mais em voga nos anos 1960-70, como a disten-
dades. Por um lado, é tentador aprisioná-lo em são temporal dos planos. Foram filmes como Os
determinadas classificações temáticas e formais, sem-esperança, Vermelhos e Brancos (Csillagosok,
associando de forma vaga e imprecisa a desdra- katonák, 1967) e Silêncio e grito (Csend és kiáltás,
matização da narrativa, o uso de recursos como 1968), bastante representativos desse tipo de
o plano-sequência, o formato da tela larga e a proposta formal, que projetaram mundialmente

7
lente zoom, a coreografia dos atores em espaços o nome de Jancsó como uma “assinatura” reco-
amplos e a alegorização da História, entre outros nhecível e duradoura, mesmo quando o cineasta
procedimentos e efeitos recorrentes em sua obra, se dividiu entre a Hungria e a Itália, dirigindo obras
àquilo que entendemos como sendo o traço auto- menos festejadas, como A pacifista (La pacifista,

A História desfigurada
ral de um típico cineasta dos anos 1960-70. 1970), Vícios e prazeres (Vizi privati, pubbliche vir-
tù, 1976) e os telefilmes La tecnica e il rito (1972)
Mas no que consiste esse “traço autoral”, dentro
e Roma rivuoli Cesare (1974).
Luís Alberto Rocha Melo da extensa filmografia de Miklós Jancsó? Sabe-
ríamos defini-lo mais concretamente? Será que Nos árduos anos 80, Jancsó manteve-se, ao
esse traço se encontra tanto em um filme como mesmo tempo, à margem da domesticação ge-
Cantata: dissolução e ligação (Oldás és kotés, ral do chamado “cinema de arte” e fiel ao modo
1963), marcadamente influenciado por Anto- de criação não naturalista, marcado pela ence-
nioni, quanto em Os sem-esperança (Szegény- nação teatral e musical, com planos-sequência
legények, 1966) ou em Salmo vermelho – o povo de forte impacto visual, de que são exemplos
ainda quer mais! (Még kér a nép, 1972), trabalhos filmes realizados na contramão do que se fazia
que, ao contrário do primeiro, aprofundam o dra- não só em Hollywood, mas também na própria
ma histórico e recusam a elaboração psicológica Europa, como Coração tirano, aliás Boccaccio na
individualizada? E, mesmo que concordássemos Hungria (A zsarnok szíve, avagy Boccaccio Ma-
com essa tese, como reduzir ao espírito de ape- gyarországon, 1981), Temporada dos monstros
nas duas décadas o trabalho de um realizador (Szornyek évadja, 1987) ou O Horóscopo de Jesus
que começou a filmar no início dos anos 1950 e Cristo (Jézus Krisztus horoszkópja, 1989). Em um
que, aos 92 anos de idade, mantém-se ativo até típico paradoxo dos anos 1980, a força do estilo
hoje, filmando de forma praticamente ininter- de Jancsó soava também como a mais clara evi-
rupta durante todo esse período? 1 dência de seu anacronismo.

Por outro lado, é inegável que a força do cinema Os anos 1990 coroam a histérica guinada mun-
de Jancsó decorre justamente da maneira pessoal dial rumo ao neoliberalismo e conferem ao ci-
como o realizador trabalhou com a movimentação nema de Jancsó outra significação. Em um país

1. O filme de longa-metragem mais recente dirigido por Miklós Jancsó, Oda az igaszág, inédito no Brasil, é de 2010; ele também
realizou um episódio para o longa coletivo Magyarország 2011, produzido por Béla Tarr e lançado na Hungria no ano passado.

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ A HISTÓRIA DESFIGURADA Luís Alberto Rocha Melo

como o Brasil, ele é praticamente ignorado (sal- desconcertante carga de apelo juvenil. mografia anterior. A autorreferência é evidente, Em filmes como Os sem-esperança e Vermelhos e
vo quando, aqui e ali – e sempre em termos ge- mas parece escapar o tempo inteiro da cômoda Brancos, por exemplo, o drama histórico encontra
As aventuras de Pepe e Kapa na Hungria do sé-
rais –, falava-se no “cinema de autor” dos anos apreensão do espectador. Sendo assim, em que na encenação horizontal seu espaço privilegiado.
culo 21 felizmente contradizem a visão esque-
1960-70). Na Hungria, porém, Jancsó consegue medida e de que forma esses seis filmes procu- A horizontalidade se exprime não apenas nas
mática que enxerga em Miklós Jancsó aquele
um êxito comercial fora do comum, lançando no ram de fato se distanciar ou estabelecer algum vastas planícies húngaras ou nas aldeias russas
cineasta do passado, preso ao virtuosismo ope-
final da década a comédia de longa-metragem diálogo – irônico ou não – com o conjunto da obra que cercam o Volga, mas no próprio uso do for-
rístico dos anos 1960-70. Mas não se prestam
Em Budapeste, o Senhor deu uma lanterna em de Jancsó? mato 2:35:1 (lente AgaScope, o correspondente
também a classificações apressadas: esses seis
minhas mãos (Nekem lámpast adott kezembe ao CinemaScope na Hungria). Os enquadramen-
filmes igualmente traduzem e reforçam (às vezes Seria necessário, aqui, retornar aos anos 1960-
az Úr, Pesten, 1999), protagonizada pela dupla tos e movimentos de câmera reforçam a hori-
de forma amarga e frequentemente autoirônica, 70, a filmes como Os sem-esperança, Vermelhos
Zoltán Mucsi (Kapa) e Péter Scherer (Pepe), es- zontalidade, em travellings e panorâmicas que
mas sempre bem-humorada) a própria condição e Brancos, Silêncio e grito, Ventos cintilantes
pécies de “O Gordo e o Magro” do fim do milênio. acompanham as evoluções militares, os confron-
“inclassificável” da concepção cinematográfica (Fényes Szelek, 1969) e Salmo vermelho – o povo
Entre 2000 e 2006, Jancsó rodará outras cinco tos a céu aberto ou a coreografia dos prisioneiros,
de um realizador como Miklós Jancsó na contem- ainda quer mais! Voltar, portanto, ao momento
comédias com a mesma dupla: Mãe! Mosquitos sempre dispostos em filas ou círculos. Os planos
poraneidade. O realizador tem consciência de seu da carreira de Miklós Jancsó no qual o objetivo
(Anyád! A szúnyogok, 2000); A última ceia no são longos e recusam a fragmentação do teatro
papel na história do cinema húngaro e brinca com central, a necessidade básica, era a de figurar a
Cavalo Cinza Arabês (Utolsó vacsora az Arabs de guerra: é na duração concreta das ações, nos
a própria imagem de celebridade. Não por acaso, História, isto é, representá-la não de forma na-
Szürkénél, 2001); Acorde, cara, não durma (Kelj espaços vazios e na distância real entre corpos e
ele mesmo aparece como personagem de si pró- turalista ou descritiva, mas recriando seu sen-
fel, komám, ne aludjál, 2002); A batalha de Mo- territórios que se inscreve o verdadeiro palco do
prio (as himself), aparentemente tão “perdido” tido oculto e seu movimento interior através da
hács (A Mohácsi vész, 2004) e Ede comeu minha drama.
quanto os demais no universo caótico em que encenação audiovisual. É, portanto, no drama
refeição (Ede megevé ebédem, 2006).
transitam seus heróis. histórico (em Os sem-esperança e Vermelhos e Essa horizontalidade ainda permanece em Ven-
Ao lado de fiéis e antigos colaboradores, como o Brancos, sobretudo), gradualmente substituído tos cintilantes (primeira experiência em cores de
Os filmes com Pepe e Kapa não deixam de ser
fotógrafo Ferenc Grunwalski e o roteirista Gyula pela abstração épica em Silêncio e grito, Vento Jancsó, que continua a usar o formato da tela
também uma reflexão sobre o próprio cinema, ou
Hernádi (1926-2005), com quem Jancsó traba- cintilante e Salmo vermelho, que se afirma o ci- grande), mas começa a sofrer uma gradual mo-
melhor, sobre a perda de prestígio de determina-
lhou desde Meu caminho para casa (Így jöttem, nema de Jancsó, em toda a sua força e impactos dificação até ser reconfigurada por completo em
do tipo de cinema (aquele pelo qual Miklós Jancsó
1965) e para quem o último filme da série foi visuais e sonoros. Salmo Vermelho. Neste filme de 1972, o drama
se tornou mundialmente conhecido). Não é a me-
dedicado, essas seis comédias contam também histórico definitivamente dá lugar à coreogra-
nor das ironias que essa reflexão tenha começa- A necessidade da figuração histórica pressupu-
com a participação de diversos nomes ligados fia épica, ao mesmo tempo em que as linhas
do com um sucesso de público, Em Budapeste, o nha a necessidade da crença no drama e na ence-
ao universo pop da música húngara, tais como horizontais se verticalizam. Ventos cintilantes
Senhor deu uma lanterna em minhas mãos, filme nação épica. Talvez aqui se possa falar mais obje-
os cantores e compositores András Lovasi (que já apontava para essa mudança, não só pela
que, como os outros cinco feitos em seguida e a tivamente no uso “revolucionário” da linguagem
aparece em todas elas) e Miklós Paizs, o rapper tendência pronunciada à abstração e à alegoria
despeito do apelo pop que os atravessa, igual- cinematográfica em alguns cineastas dos anos
Sub Bass Monster e a banda de rock Burzsoá histórica, mas, sobretudo, pela própria utilização
mente explora uma encenação complexa em pla- 1960-70, não somente como a afirmação de es-
Nyugdíjasok. Não se trata de simples autores dos espaços arquitetônicos varados pelas linhas
nos longos (a “marca estilística” do diretor) e faz tilos pessoais no mercado de celebridades, mas
de trilhas sonoras, mas de “astros” que surgem verticais e dos símbolos religiosos como montes,
constantes referências ao passado húngaro. Mais também – e, em alguns raros casos, sobretudo –
subitamente em meio à narrativa, em números torres e crucifixos. Cada vez mais, a câmera aban-
do mesmo? Errado: é impossível ver nessas co- como um instrumento de confronto ideológico e
musicais encenados e montados à maneira dos dona o olhar exterior e se interessa em penetrar
médias uma mera e pedante repetição do “estilo de projeção das utopias. Até a primeira metade
videoclipes. Essas intervenções musicais dão aos e em permanecer no centro da evolução dos ato-
Jancsó”. As comédias com a dupla Pepe e Kapa dos anos 1970, a filmografia de Miklós Jancsó é
filmes com a dupla Pepe e Kapa um ar ainda mais res, tornando secundários o plano de fundo e as
parecem verdadeiros corpos estranhos na traje- bastante afirmativa desse projeto.
insólito, pois misturam ao humor negro das situ- extensas paisagens.
tória do cineasta e, no entanto, apresentam-se
ações e às constantes e irônicas referências polí-
também como espelhos distorcidos de sua fil-
ticas, históricas e culturais uma surpreendente e

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ A HISTÓRIA DESFIGURADA Luís Alberto Rocha Melo

Jancsó enfatiza a verticalização em Salmo Verme- prédios abandonados ou em ruínas. Deslocando- contrário dos filmes dos anos 1960-70, a mon- da opressão das políticas de cúpula, a História
lho ao abandonar o formato widescreen e centrar- -se de um nível a outro, a câmera surpreende tagem exerce aqui um papel ditatorial, crian- mantinha-se intacta. O mesmo pode ser dito
-se no corpo humano como medida de toda a en- ações absolutamente díspares: um conjunto de do falsas contiguidades e explosivas rupturas sobre Salmo Vermelho e seu grande Personagem-
cenação. Se em Vermelhos e Brancos as águas do dança folclórico convive, dois andares acima ou espaços-temporais. Mesmo quando as cenas são -Coletivo (os operários/camponeses). Já no caso
Volga reforçavam a horizontalidade do curso da abaixo, com o tiroteio entre grupos mafiosos ou realizadas em plano-sequência, a montagem in- dos seis filmes com Kapa e Pepe, esse esquema
História, em Salmo Vermelho é o fogo que marca guerrilheiros ou com um conjunto de rock e dan- terna impõe movimentos, atmosferas e persona- está definitivamente desestruturado, e a própria
a metáfora da força operária. As labaredas revolu- çarinas adolescentes de programa de auditório. gens em conflito, que se falam e se tocam, mas noção de “líderes históricos” já não se sustenta.
cionárias que envolvem e destroem a torre de uma Contrariamente ao que ocorria em Ventos cintilan- não necessariamente se entendem ou se vislum- Não só eles estão ausentes, como sequer são
igreja também estão ali, no frágil tremular das ve- tes ou em Salmo Vermelho, já não temos o espaço bram. A estrutura cênica é aparente, concreta, lembrados. Ou, então, são evocados como mo-
las que os camponeses seguram. Por outro lado, a teatralizado e protegido em sua unidade espacial, nua. O cinema é, mais do que nunca, artifício. E numentos, o que reforça a sua imobilidade inútil.
câmera mergulha ainda mais no centro da coreo- temporal e de ação, mas sim o estilhaçamento de o “símbolo” – trunfo da linguagem cinematográ- Os grandes círculos formados pelos camponeses
grafia (baseada fundamentalmente na dança em um drama múltiplo, ao qual ironicamente faltam fica “culta” – transformou-se em mero jogo de e operários, unidos pelos braços sobre os om-
círculos) e o uso das teleobjetivas torna a paisa- personagens e motivações concretas. palavras ou disposição jocosa de objetos de cena. bros, foram substituídos pela tola corrida de dois
gem ainda mais fluida, demarcando com maior Nesse sentido, Acorde, cara, não durma, quarto garçons em volta de uma mesa disposta em um
Sendo assim, qualquer um pode ocupar o papel
nitidez as relações entre figura e fundo. filme da dupla Pepe e Kapa, é um dos mais bem- estádio, sustentando taças presas às bandejas e
que bem quiser. Kapa e Pepe ora são garçons,
-sucedidos exercícios de metalinguagem de Janc- banhados por um melancólico e poeirento sol de
Vale dizer que essa passagem da horizontalidade patrões, policiais, reis, fantasmas, anjos ou sol-
só. É também a mais poética, sombria e triste fim de tarde. Se não é televisionada, a História
do drama histórico para a verticalização da ence- dados, tudo isso às vezes em um único filme. O
das seis comédias. Neste filme, Kapa aconselha não se perpetua. A única coisa a ser compartilha-
nação épica não altera o fato de que, em ambos mundo contemporâneo verticalizou as ações, in-
o próprio Jancsó, a quem trata por Mikki Bacci da coletivamente é a amnésia.
os casos, Miklós Jancsó continuava fiel à neces- terrompeu o fluxo horizontal totalizante da refle-
(Tio Mikki), a parar com essa insistência em criar
sidade de figurar a História. E a História, por sua xão histórica e despedaçou o que restava da uni- As comédias com Pepe e Kapa traduzem a neces-
“símbolos” que ninguém entende.
vez, ainda era vista nos anos 1960-70 como um dade lógica do drama. Tampouco há espaço para sidade de outro olhar (mais compreensivo e me-
ponto de partida figurado para que se pudesse a encenação épica, a não ser como farsa ou como Em Os sem-esperança e Vermelhos e Brancos, os nos complacente) sobre a contemporaneidade.
exercer a crítica do presente e a defesa de uma reciclagem musical-televisiva. Nesse processo, al- personagens que encarnariam a função de líde- Os antigos esquemas de figuração já não funcio-
nova utopia socialista. tera-se a própria relação entre figura e fundo, tão res históricos populares estão ausentes ou ocu- nam, justamente porque estamos diante de uma
marcadamente estilizada em Ventos cintilantes pam papéis secundários e não se destacam do História desfigurada. É necessário reaprender a
É outra, no entanto, a realidade dos anos 1990-
ou em Salmo Vermelho. Em A última ceia no Cava- conjunto. Mas ainda assim, catalisam os anseios ver para contar algo de novo, ou a mesma coisa
2000, quando Jancsó realiza os seis filmes com a
lo Cinza Arabês, por exemplo, Kapa e Pepe conver- ou organizam os grupos que estão diretamente de forma nova. Não por acaso, essas seis comé-
dupla Pepe e Kapa. Aqui, a encenação verticaliza-
sam, mas o diálogo, filmado à maneira tradicional ligados a eles. Opera-se, nesse sentido, uma tí- dias, marcadas por um espírito francamente sur-
da é retomada de forma radical, mas em sentido
hollywoodiana do campo/contracampo, põe os pica figuração realista da confluência entre per- realista, invariavelmente começam com planos
inteiramente diverso do que se verifica em um
dois personagens ora contra um fundo urbano, ora sonagens comuns que agem movidos pela crise de crianças cantando, brincando ou entretidas
filme como Salmo Vermelho. Ela deixa de ser a
contra exuberantes cataratas. ou pela força esmagadora de situações-limites, com jogos infantis. Jancsó repensa, assim, a pró-
“medida do homem” para se tornar o abismo de
e a importância do destino histórico encarnado pria noção de criação. Interpretar, brincar ou jogar
uma ruptura. A câmera agora sobe a alturas ini- O mergulho vertical proposto pelas comédias
pelos líderes populares, que compreendem esses (to play) é o que ousadamente fazem Pepe, Kapa
magináveis, mantêm-se acima de enormes mo- com Pepe e Kapa é também um mergulho no uni-
anseios e servem como símbolos revolucionários e o próprio Miklós Jancsó, desobedecendo às re-
numentos históricos de onde se pode ver toda a verso onírico. O fio da História é uma estrutura
ou espécies de politizados guias espirituais. gras e escapando às armadilhas de um fim de sé-
cidade, acompanha personagens que alçam voos em abismo, e os personagens tanto são mani-
culo que ilhou as utopias e transformou o desejo
ou desabam em quedas vertiginosas. pulados pelo “grande narrador” (Miklós Jancsó), Ainda que a ambiguidade dos filmes de Janc-
pela História em um vento sem esperanças.
quanto manipulam ou desobedecem a essa “en- só coloque sempre nas frestas dessa estrutura
Nas comédias de Pepe e Kapa, frequentemente
tidade”, simultaneamente criador e criatura. Ao uma visão crítica e denunciadora das ilusões e
as ações se passam em diferentes andares de

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FILMES

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ FILMES

Cantata: Dissolução e Ligação Meu caminho para casa Os sem-esperança Vermelhos e Brancos
(Oldás és kotés) (Így jöttem) (Szegénylegények) (Csillagosok, katonák)

Após um erro durante uma cirurgia cardíaca, um Nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, um Em 1868, na Hungria, soldados austro-húngaros Considerado por alguns como propaganda comu-
médico perde a sua autoconfiança e se retira para jovem húngaro está retornando para casa. Passan- reúnem um grupo de camponeses em uma cadeia nista, o filme é na verdade uma evocação mini-
a fazendo de seu pai, onde passa por um longa do pelo interior de um país tomado pelos detritos para procurar o líder de um grupo de partidários malista da falta de sentido da guerra. A história
jornada existencial. Apesar de não ser o primeiro da guerra, ele é capturado e aprisionado pelos rus- da revolução Kossuth de 1848. Os interrogadores segue o exército vermelho e o exército branco
longa-metragem de Jancsó, é aquele que rendeu sos. Deixado à custodia de um soldado soviético, usam tortura, assassinatos e jogos psicológicos que se enfrentam em meio à Revolução Russa,
seu fama inicial, e que o próprio diretor considera os dois jovens formam um laço de amizade apesar para forçar os camponeses a revelar a identidade liderada por Lênin, transformando o país em uma
o seu primeiro longa-metragem maduro. Inspira- de não saberem falar a língua um do outro. Quarto do ex-líder. Nomeado à Palma de Ouro em Can- guerra civil pela formação da União Soviética. Se-
do principalmente por A Noite, de Michelangelo longa-metragem de Jancsó, realizado a partir de nes, é consagrado como uma de suas principais gundo filme da trilogia completa por Csend és
Antonioni, Oldás és kotés foi traduzido interna- experiências autobiográficas e retratando a situa- obras-primas. kiáltás e Szegénylegények.
cionalmente por Cantata devido à canção de Béla ção do leste europeu no pós-guerra, é considerado
Direção Miklós Jancsó Direção Miklós Jancsó
Bártók, Cantata profana. a primeira obra-prima do realizador.
Produtora MAFILME IV. Játékfilmstúdió Produtora Mafilm, Mosfilm
Direção Miklós Jancsó Direção Miklós Jancsó Elenco János Gorbe, Zoltán Latinovits, Tibor Elenco József Madaras, Tibor Molnár, András
Produtora Budapest Filmstúdió e Mafilm Produtora Mafilm Molnár, Béla Barsi, Gábor Agárdy, András Kozák Kozák, Jácint Juhász, Anatoli Yabbarov
Elenco Zoltán Latinovits, Andor Ajtay, Béla Elenco Zoltán Gera, András Kozák, Béla Barsi País Hungria País Hungria, União Soviética
Barsi, Miklós Szakáts, Gyula Bodrogi País Hungria Ano de Lançamento 1966 Ano de Lançamento 1967
País Hungria Ano de Lançamento 1965 Duração 90 min Duração 90 min
Ano de Lançamento 1963 Duração 109 min
EXIBIÇÃO EM 35mm EXIBIÇÃO EM 35mm
Duração 94 min
EXIBIÇÃO EM DVD
EXIBIÇÃO EM 35mm

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ FILMES

Silêncio e Grito Ventos Cintilantes O Inverno de Siroccó Salmo vermelho -


(Csend és kiáltás) (Fényes Szelek) (Sirokko) o povo ainda quer mais!
(Még kér a nép)
A história se passa durante a instabilidade po- Ventos Cintilantes retrata um grupo de jovens co- Na fronteira entre a Yuguslávia e a Croácia, um
lítica no ano de 1919, quando os comunistas munistas que chega a um monastério no interior grupo de terroristas realiza atentados e conduz Inspirado em cânticos de uma revolta camponesa
lutavam para tomar o poder. O exército reprime da Hungria para ensinar e debater com os alunos assassinatos políticos. Marko é um destes revo- nos campos da Hungria em 1890, Még kér a nép
as forças insurgentes e um jovem comunista se católicos as ideias de Marx. Em princípio, sob lucionários, nacionalista e paranoico, que após é composto por longos planos, danças e canções
esconde em uma área rural. Um oficial do exér- uma liderança idealista, o movimento aos poucos retornar de um atentado, passa o tempo em uma folks, e retrata o ânimo, a utopia e a repressão da
cito conhece o jovem porque foram amigos de se torna violento. Além de ser o primeiro longa- casebre com seus compatriotas e oficiais húnga- revolução popular. Possivelmente a sua principal
infância. Ele o ajuda a se esconder em uma pe- -metragem a cores de Jancsó, Ventos Cintilantes ros. Ele desconfia de todos e interroga os mais obra, Még kér a nép lhe rendeu o prêmio de me-
quena granja, onde um fazendeiro e sua família o inaugura as danças típicas do folclore húngaro, co- suspeitos, temendo a traição. Filmado em menos lhor diretor em Cannes e até hoje figura entre os
hospedam, mas o embate entre os dois amigos, reografadas meticulosamente com a câmera, que de vinte planos, O Inverno de Siroccó é o retrato grandes filmes europeus da década de setenta.
agora em lados opostos, é inevitável. marcará o estilo simbolista do diretor no decorrer visceral de uma situação limite.
Direção Miklós Jancsó
dos anos setenta.
Direção Miklós Jancsó Direção Miklós Jancsó Produtora Mafilm
Produtora Mafilm Direção Miklós Jancsó Produtora Mafilm STUDIO 1, Marquise Elenco József Madaras, Tibor Orbán
Elenco Zoltán Latinovits, András Kozák, Joszef Produtora Mafilm Elenco Jacques Charrier, Marina Vlady, Ewa País Hungria
Madaras, Mari Torocsik, Andrea Drahota Elenco Andrea Drahota, Kati Kovács, Kajos Swann, József Madaras Ano de Lançamento 1972
País Hungria Balázsovits, András Kozák, József Madaras País França e Hungria Duração 87 min
Ano de Lançamento 1967 País Hungria Ano de Lançamento 1970
EXIBIÇÃO EM 35mm
Duração 73 min Ano de Lançamento 1969 Duração 80 min
Duração 80 min
EXIBIÇÃO EM 35mm EXIBIÇÃO EM DVD
EXIBIÇÃO EM 35mm

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ FILMES

Electra, Meu Amor Rapsódia Húngara Allegro Barbaro Coração Tirano, aliás,
(Szerelmem, Elektra) (Magyar Rapszódia) (Magyar Rapszódia II) Boccaccio na Hungria
(A zsarnok szíve, avagy Boccaccio Magyarországon)
Adaptação da peça de László Gyukó, Jancsó se Magyar Rapszódia é a primeira parte de uma tri- Continuação da trilogia Vitam et sanguinem,
utiliza do mito grego de Orestes para represen- logia dramática sobre a história da Hungria, da agora Istvan uniu forças com os camponeses Hungria, século XV. O jovem príncipe Gaspar retor-
tar o povo húngaro e sua história de sofrimento. virada do século até a segunda guerra mundial, e repensou suas alianças com a classe dos pro- nou ao castelo de sua família, acompanhado por
Quinze anos após a morte de seu pai Agamenon, intitulada Vitam et sanguinem e inspirada na prietários de terra, e trabalha com o povo contra uma companhia itinerante de atores, após a morte
Electra ainda espera o retorno de seu irmão Ores- vida do político Endre Bajcsy-Zsilinszky. A histó- a sua família e sua própria classe. Os dois filmes de seu pai para se preparar para assumir o trono.
tes para juntos derrubarem o tirano Aegisztosz, ria é narrada através do ponto de vista de István deveriam ser uma síntese monumental de um Ao chegar, descobre que sua mãe se encontra em
que conspirou com sua mãe para assassinar o seu Zsadányi, filho de um proprietário de terras milio- certo estado de espírito, e as obras mais caras ja- uma espécie de transe, casada a seu tio, e que as
pai e lhe tomar o trono. “Amaldiçoado sejam to- nário. Após descobrir que ele foi responsável pela mais produzidas na Hungria. A recepção do públi- circunstâncias da morte de seu pai são misterio-
dos os tiranos”, diz Electra, “e abençoados sejam morte de inúmeros camponeses, faz o voto de ser co e da crítica foi péssima, o que obrigou Jancsó sas. Enredado em mentiras e conspirações, parece
todos que resistirem à tirania.” “o homem do povo” quando as hostilidades che- a repensar a terceira parte, Concerto, que nunca que nada a sua volta é real. Refletindo temas clás-
garem a um fim. foi produzida. sicos de Hamlet e Édipo, este é o primeiro filme de
Direção Miklós Jancsó
Jancsó que se passa quase inteiramente em inte-
Produtora Mafilm Hunnia Stúdió Direção Miklós Jancsó Direção Miklós Jancsó
riores, num castelo que se assemelha mais a um
Elenco Torocsik, Gyorgy Cserhalmi, József Madaras Produtora Objektív Film Produtora Mafilm Dialóg Filmstúdió, Mafilm
palco de teatro ou a uma caverna.
País Hungria Elenco Gyorgy Cserhalmi, Lajos Balázsovits, Objektív Filmstúdió
Ano de Lançamento 1974 Gábor Koncz Elenco Gyorgy Cserhalmi, Lajos Balázsovits, Direção Miklós Jancsó
Duração 70 min País Hungria Zsuzsa Czinkóczi Swann, József Madaras Produtora Mafilm Budapest Filmstúdiói,
Ano de Lançamento 1979 País Hungria Radiotelevisione Italiana (RAI), Bocca di Leone
EXIBIÇÃO EM 35mm
Duração 103 min Ano de Lançamento 1979 Cinematografico
Duração 73 min Elenco Laszlo Galffy, Teres Ann Savoy, József
EXIBIÇÃO EM DVD
Madaras, Ninetto Davoli
EXIBIÇÃO EM DVD
País Hungria
Ano de Lançamento 1981
Duração 96 min

EXIBIÇÃO EM DVD

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MOSTRA DE CINEMA MIKLÓS JANCSÓ FILMES

Temporada dos Monstros O Horóscopo de Jesus Cristo Em Budapeste, o Senhor deu


(Szornyek évadja) (Jézus Krisztus horoszkópja) uma lanterna em minhas mãos
(Nekem lámpast adott kezembe az Úr, Pesten)
Zoltai é um professor húngaro que acaba de re- Josef Kaffka é um poeta de aparência demoní-
tornar dos Estados Unidos. Após uma entrevista aca que vaga entre hotéis e apartamentos em Após um intervalo de cerca de oito anos sem re-
à televisão, ele comete suicídio e deixa um reca- Budapeste. Tem relações com três mulheres que alizar longas-metragens ficcionais, Jancsó volta a
do para o seu antigo amigo Dr. Bardocz. O doutor desaparecem misteriosamente. Repleto de cita- ativa com uma obra que abandona praticamente
e um colega do professor, Komindi, se juntam à ções e referência icônicas ao passado histórico do todo o seu cinema anterior. É o primeiro longa-
polícia em uma investigaçãoo sobre o que levou comunismo, O Horóscopo de Jesus Cristo é uma -metragem da série com os comediantes Pepe e
o homem ao suicídio. Este drama surrealista é o narrativa enigmática sobre as forças políticas em Kápa, dois coveiros que vivem situações surreais
primeiro filme de Jancsó em um cenário urbano e confronto durante o período sombrio de abertura. e respondem a elas com o mais absoluto sarcas-
contemporâneo. mo. Em Budapeste, o Senhor deu uma lanterna
Direção Miklós Jancsó
em minhas mãos é a primeira comédia de uma
Direção Miklós Jancsó Produtora Budapest Filmstúdió
série de sete filme onde figuram os dois coveiros.
Produtora Mafilm Elenco Gyorgy Cserhalmi, Juli Básti, Ildikó Bánsá-
Elenco József Madaras, Gyorgy Cserhalmi, Ferenc gi, Dorottya Udvaros, András Kozák Direção Miklós Jancsó
Kállai, Júlia Nyakó, Andras Balint País Hungria Produtora 3J+1 Bt., Kreatív Média Muhely
País Hungria Ano de Lançamento 1989 Elenco Zoltán Mucsi, Péter Scherer, József Szarvas
Ano de Lançamento 1987 Duração 90 min País Hungria
Duração 88 min Ano de Lançamento 1999
EXIBIÇÃO EM 35mm
Duração 103 min
EXIBIÇÃO EM DVD
EXIBIÇÃO EM 35mm

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BIOGRAFIAS

Fabian Cantieri é mestrando em filosofia pela UFRJ, crítico de cinema na re-


vista Cinética e editor na revista musical SaxPax. Realizou o curta-metragem
Página 325 e o média-metragem Carapebus.

Raul Arthuso é cineasta e crítico do cinema. Escreve na revista de crítica ci-


nematográfica Cinética, e colabora em outros veículos como Teorema e Ta-
turana. Como realizador, dirigiu os curtas-metragens Mamilos (2009) e O pai
daquele menino (2011). Mantêm o blog O Perseguidor.

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Luís Alberto Rocha Melo é cineasta, pesquisador e professor do Curso de Ci-
nema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e
Linguagens do Instituto de Artes e Design da UFJF. Dirigiu, entre outros tra-
balhos, os longas Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo

BIOGRAFIAS (ficção, 82’, 2012, HD) e Legião estrangeira (doc., 70’, 2011, HD); o curta Que
cavação é essa? (ficção, 19’, 2008, 35 mm); e o média O Galante rei da Boca
(doc., 50’, 2004, DV).

Thiago Brito é crítico de cinema, realizador e sócio da Dilúvio Produções. Re-


dator na revista de crítica cinematográfica Cinética. Foi curador da mostra “O
Cinema é Nicholas Ray”. Como realizador, dirigiu o curta-metragem “Crisáli-
da” (2012).

Andrew Horton James é Editor de Cultura no Central Europe Review e no jor-


nal eletrônico Kinoeye. Também colabora em outros jornais. É especialista
nos mercados audiovisuais da Europa Central.

Jaromír Blazejovsky é crítico de arte, professor na Faculdade de Artes de Ma-


saryk, na República Tcheca e pesquisador. Publicou inúmeras obras e artigos
acadêmicos sobre a televisão e o cinema do Leste Europeu.

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FICHA TÉCNICA

Presidenta da República Textos


Dilma Vana Rousseff Andrew James Horton
Fabian Cantieri
Ministro da Fazenda
Guido Mantega Jaromír Blazejovsky
Luís Rocha Melo
Presidente da Caixa Econômica Federal Raul Arthuso
Jorge Fontes Hereda Thiago Brito
Realização Revisão e Padronização
Dilúvio Filmes Natália Francis

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Apoio Agradecimentos Especiais
Embaixada da Hungria Brasília
Miklos Jancsó
Curadoria Szíjjártó Csaba
Pedro Henrique Ferreira
FICHA TÉCNICA Coordenação Geral
Agradecimentos
Andrew James Horton (Kinoeye)
Orsolya Balogh Béla Tóth (Mokép-Pannóia Kft.)
Dorottya Szorényi (MaNDA)
Produção Executiva
Pedro Henrique Ferreira Dudás Mihaly
Laszlo Benko
Assistente de Produção Márta Bényei (Magyar Filmúnio)
Eduardo Cantarino

Identidade Visual
Flávia Trizotto A. Richard

Website
Gabriel Calderon
Thais Gallart

Assessoria de Imprensa
Sérgio Luz

Produção Apoio Patrocínio

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Produção Apoio Patrocínio

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