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Traduções
do castelhano: Janice Lapeyre Espina, Joana Vieira e Sérgio Filipe dos Santos Mariano
do francês e do italiano: Maria de Fátima de Noronha Galvão Telles, Maria Teresa de Noronha de Galvão Telles,
Maria Luiza de Saldanha e Annick Tryer
do inglês: Sónia Catarina Peres Duarte
Revisão
Gabinete Lisboa, Cidade Educadora – Município de Lisboa
A revisão e editing das biografias dos autores e dos artigos «Ao leitor», «A cidade das pessoas», «Cidades educado-
ras, uma aposta de futuro», «Utopias dialécticas» e «À deriva» são da responsabilidade do Gabinete de Estudos e
Planeamento Editorial do Município de Torres Novas.
Paginação
João Reis – Município de Azambuja
Agradecimentos aos membros do Comité Executivo; aos autores/autoras; aos presidentes das câmaras municipais
que participam no livro; à Câmara Municipal de Barcelona; à UNESCO; CGLU; aos municípios da Comissão de
Coordenação da Rede Territorial Portuguesa das Cidades Educadoras – que colaboraram nesta edição – Azambuja,
Évora, Lisboa e Torres Novas.
Agradecemos a Richard Sennett pela autorização para traduzir e reproduzir neste livro o capítulo «À deriva», extraí
do do livro The Corrosion of Character: The personal consequences of work in the New Capitalism.
ISBN: 978-84-9850-419-4
Depósito legal: 353832/13
Proibida, salvo excepção prevista por lei, qualquer forma de reprodução, distribuição,
comunicação pública e alteração desta obra sem autorização dos titulares da proprie-
dade intelectual. A infracção dos direitos mencionados pode constituir delito contra a
propriedade intelectual (artigos 270 e seguintes do Código Penal Espanhol).
Índice
Ao leitor ……………………………………………….……....….............……................ 7
Eulàlia Bosch
Introdução
A cidade das pessoas …….………………………………......................................….…. 13
Pasqual Maragall
Cidades educadoras, uma aposta de futuro …………….….......................................... 17
Pilar Figueras Bellot
O conceito de «cidade educadora», hoje ………………….……..............................… 23
Joan Manuel del Pozo
Barcelona: o compromisso de uma cidade com a educação ………….....……………... 35
Jordi Hereu
Epílogo
Epílogo de Koïchiro Matsuura, director-geral da UNESCO (1999-2009) .................. 329
Ao leitor
Eulàlia Bosh
Este livro divide-se em três grandes partes. Richard Sennett, revendo o conceito clássi-
co de «carácter», reflecte sobre as tendên-
Na primeira observam-se os processos de cias contemporâneas da não existência do
transformação que actualmente afectam os «longo prazo» que caracteriza as vivências
sistemas urbanos e alteram profundamente a da maioria das pessoas. Esta percepção ge-
nossa vida social. neralizada de fragilidade representa um de-
safio dificílimo de enfrentar. No processo de
Conforme diz David Harvey, nas primeiras aprendizagem e de consolidação do saber,
linhas do artigo aqui publicado, «não pode- não há nada pior do que a instabilidade, a
mos separar o tipo de cidade que desejamos inconstância e o imediatismo.
da forma como queremos viver as nossas vi-
das e do tipo de pessoas que pretendemos Neste capítulo, os artigos abordam temáticas
ser.» Esta observação, tão intimamente liga- como o debate intercultural (Nestor García
da ao próprio conceito de «educação», é o Canclini), as funções das bibliotecas como
leitmotiv da secção de abertura «Os novos guardiãs do conhecimento desde a antigui-
desafios da vida urbana», cujos artigos abor- dade (Alberto Manguel), a ideia da cidade
dam temas como: as mutações contemporâ- como arquivo (Vyjayanthi Rao), a relação
10 Ao Leitor
entre ensino e educação nas cidades de hoje volvidas em cerca de 400 cidades, por todo
(Maxine Greene) e a ideia do próprio meio o mundo.
urbano como espaço educativo (Jaquelline
Moll). Reflecte-se também sobre a relação Este capítulo inclui, ainda, os testemunhos
entre educação e justiça (Juan Carlos Tedes- dos presidentes de câmara de algumas destas
co) e a educação e a vida política das ci- cidades que escolheram, deliberadamente, a
dades (Joan Subirats). E, por fim, debate-se educação como ícone da sua acção política.
a inevitabilidade do processo de aprendiza-
gem contínua dos cidadãos (Philippe Mei- Encerra-se esta edição com um texto de
rieu e Joan Manuel del Pozo). Koïchira Matsuura, director-geral da UNES-
CO (entre 1999 e 2009), que destaca a edu-
Finalmente, mas não menos importante, na cação e a formação como os tesouros mais
terceira parte apresenta-se uma breve me- valiosos das cidades no contexto da globali-
mória dos congressos (bienais) da Associa- zação. Pessoalmente, desejo que este livro
ção Internacional das Cidades Educadoras. sirva para propagar esta ideia e para inspirar
A história destes encontros revela a evolu- novas formas de compreender a educação,
ção de uma ideia que há apenas vinte anos estreitamente ligadas ao desejo de realiza-
parecia um tanto extemporânea e que hoje ção pessoal a que todos os seres humanos
está na base de múltiplas iniciativas, desen- aspiram e à qual têm direito.
Introdução
A cidade das pessoas
Pasqual Maragall
«What is the city but the people?» interrompido de forma sangrenta e tentara
William Shakespeare, Coriolanus (1608) a todo o custo eliminar. Era a geração dos
Acto 3, cena 1 anos trinta, a geração da República, aque-
la que em anos convulsivos, num país divi-
Há 25 anos, o tempo de uma geração, Bar- dido, tinha confiado nos valores supremos
celona, a minha cidade, encontrava-se en- da educação e da cultura para resolver os
volvida num processo de reconstrução ur- problemas do atraso secular e de “difícil
bana. A cidade emergia então de um longo convivência” que abalava a Espanha dessa
período caracterizado pela falta de demo- altura. Era a geração da Instituição do Ensino
cracia e auto-governo, pela desregulação Livre, do «Instituto-Escola» que com perso-
urbanística, pela falta de investimentos pú- nalidades como a pedagoga Marta Mata, ve-
blicos (ou privados), de ambição e de auto- readora do pelouro da Educação da cidade
-estima colectiva. Saíamos de uma ditadura de Barcelona (1987-1995), corporizava uma
e tudo ou quase tudo estava por fazer. Mas declaração de princípios.
não partíamos do vazio, do nada. Não era
preciso construir uma cidade: tínhamos ape- Havia que recuperar os valores daquela
nas que reconstrui-la, refazê-la. Estes eram geração e fazer deles o mote para a nossa
os “verbos” utilizados por nós naquela épo- actuação. A nossa missão era criar um am-
ca. Porque sabíamos que dentro da cidade biente urbano de educação que, respeitan-
existiam os elementos, as ferramentas e, so- do o passado, projectasse a cidade no futu-
bretudo, as pessoas que tornariam possível ro, um ambiente que sarasse feridas que o
a renovação. Éramos herdeiros de Mies van planeamento urbanístico não democrático
der Rohe (pavilhão de 1929) e de Gaudi, do da cidade havia infligido no tecido urbano
funcionalismo e do barroco moderno. e social; um ambiente urbano que envol-
vesse as pessoas e as fizesse sentir orgulho-
Tudo havia começado em 1979, com a re- sas, uma vez mais, de pertencerem a esta
conquista da democracia municipal, no cidade; um ambiente de consenso entre di-
mesmo ano em que se aprovara o Estatuto ferentes parceiros sociais e que aproveitas-
de Autonomia da Catalunha, fruto da Cons- se a força criadora do mercado livre para o
tituição Espanhola de 1978. À frente desta bem comum (naquele tempo os trabalhistas
responsabilidade encontrava-se a geração de britânicos diziam: «não veneramos o mer-
Narcís Serra, e a minha, de Xavier Rupert de cado, servimo-nos dele»). Tudo isto foi con-
Ventós, Josep A. Garcia Durán, Josep Maia figurando uma maneira de fazer, um mo-
Vergara, etc., nascida no pós-guerra civil, fi- delo que, de certa forma, culminou com a
lhos da geração marcada pela República e organização dos Jogos Olímpicos, ficando
pela guerra. Porque muitos de nós tínhamos conhecido como «modelo Barcelona» que
vivido em casa dos nossos pais, sentíamos a despertou interesse por todo o mundo. Nos
necessidade de voltar a abraçar a tradição anos anteriores a 1992 fizemos diversas
democrática que a ditadura de Franco havia viagens pela Europa e pelos Estados Uni-
16 Introdução
dos para explicar o que estávamos a fazer e fazer não deve ser feita por outra superior).
quais eram os nossos objectivos. Lutámos para que as escolas fossem geridas
pelos municípios, junto das famílias e do
Recordo-me, particularmente, de uma des- professorado. Mas também sabíamos e, por-
sas viagens. Estávamos em Boston, a cidade ventura, isso será o mais importante, que as
mais “inglesa” dos Estados Unidos. Numa cidades educam. Sabíamos que uma cidade
conversa, no Ateneu de Boston, utilizei uma “educada” – com um traçado arquitectónico
expressão que resumia o que estávamos a inteligente e um planeamento urbano que
fazer: «a cidade é a sua gente». Um homem sirva as necessidades de todos, que garan-
mais velho de entre o público fez-me notar: ta a segurança pessoal e rodoviária e onde
«Isso é Shakespeare!». Com efeito, incons- as pessoas, os bairros e as colectividades
cientemente, eu estava a citar Shakespea- tenham nas suas mãos o poder de decisão
re, mais concretamente, Coriolano, uma – tem mais probabilidades de criar um forte
tragédia sobre o mundo da política e dos sentimento de comunidade do que muitos
políticos, uma reflexão sobre a formas de programas educativos, por mais bem inten-
governação. Quando os tribunos mandam cionados que sejam.
prender Coriolano, utilizando a força da
plebe, Sicínio lembra: «E o que é a cidade A ideia de que a cidade pode e deve ser, si-
senão a gente, o povo?» multaneamente, marco e agente educador,
é o mote que inspira as «cidades educado-
Esta era também a nossa convicção. Defen- ras», conceito que nasceu há quase 20 anos.
díamos um poder mais próximo das pessoas. Um projecto dirigido à cidade e, atrevo-me
(A União Europeia acabaria por adoptar esta a dizer, ao mundo, dirigido às pessoas com
ideia entre os seus princípios fundamentais, o desejo de que seja assumido, partilhado,
que conhecemos sob o nome de «subsida- redefinido por tantas outras cidades e por
riedade», utilizado na doutrina social da muito mais gente. Este livro é dedicado a
igreja católica, o que significa que aquilo esta experiência.
que uma administração mais próxima possa
Cidades educadoras,
uma aposta de futuro
Com o passar do tempo verificamos que a queremos precisar que a cidade é educado-
Carta serve, de uma só vez, a cada uma e ra quando imprime esta intencionalidade à
a todas as cidades, de ferramenta, de cons- forma como se apresenta aos seus cidadãos.
trução e de evolução individual e, também, Confirmamos a importância dos governos
colectiva. locais na construção de cidades educado-
ras: os representantes dos cidadãos escutam,
Hoje a experiência permite-nos ratificar animam, sugerem, coordenam, propõem, li-
algumas afirmações apontadas no ano de deram e executam, conforme os casos.
1990 e adicionar outras novas.
A cidade educadora é, ao mesmo tempo,
A educação é uma tarefa partilhada: família uma proposta e um compromisso necessa-
e escola, mas também muitos outros agen- riamente partilhados, basicamente, pelos
tes não reconhecidos até hoje, formam um governos locais e pela sociedade civil.
novo cenário, um novo «sistema» educativo
que vai acompanhar toda a vida do cidadão Como não podia deixar de ser, para a cidade
e que tem de ser revelado, considerado e de- que se pretende educadora, este factor – a
senvolvido. educação em sentido amplo – constitui o
eixo fundamental e transversal do seu pro-
Reiteramos que esta tarefa partilhada não jecto político.
pode escamotear de modo algum o papel
fundamental da família e das escolas e, acres- O conceito de cidade educadora está direc-
centamos, que ambas devem reposicionar-se tamente relacionado com outros, tais como,
dentro do contexto deste novo cenário. a equidade, a cidadania inclusiva, a coesão,
a sustentabilidade ou a educação para a paz.
Dia-a-dia, comprovamos que é inquestioná-
vel a planificação urbana, a cultura, os cen- É importante recordar que o conceito de ci-
tros educativos, os desportos, as questões do dade educadora assenta em três pilares:
meio ambiente e da saúde, económicas e
orçamentais, as que se referem à mobilida- Boa comunicação das oportunidades que
de e viabilidade, à segurança, aos diferentes a cidade oferece a todos e a cada um dos
serviços, as correspondentes aos meios de cidadãos. No que respeita aos governos lo-
comunicação, etc., contêm e incluem diver- cais, estes devem esclarecer o porquê e o
sos valores, conhecimentos e competências como das suas políticas, isto é, devem fazer
que é necessário considerar como vectores da política uma pedagogia;
de educação para a cidadania. Certificamos
que a cidade educadora é um novo paradig- Participação co-responsável dos cidadãos:
ma cujo núcleo constitui o conhecimento, definindo e acordando previamente o alcan-
a consciência e o desenvolvimento destes ce, os limites e os campos;
vectores educativos presentes nas distintas
políticas e actuações, em todos os sectores Avaliação do impacto educativo das diferen-
e também na avaliação dos seus impactos. tes políticas e também do seu grau de utili-
dade e eficácia.
Como no preâmbulo da Carta das Cidades
Educadoras se afirma que toda a cidade É necessário que os governos locais, princi-
«…dispõe de inúmeras possibilidades edu- pais promotores da adesão à Carta se em-
cadoras mas que também nela podem in- penhem na criação de um discurso político
cidir forças e inércias deseducadoras…», que convença os cidadãos e os representan-
Cidades educadoras, uma aposta de futuro 21
Entre 1982 e 1996, Joan del Pozo fez parte do parlamento espa-
nhol. Na Câmara Municipal de Girona desde 1995, ocupou o car-
go de vice-presidente e foi responsável pelos pelouros da Partici-
pação, Informação e Relações de Cidadania (1995-1999), da Edu-
cação (1999-2003) e da Presidência e Educação (2003-2006). Joan
del Pozo, entre 2004 e 2005, coordenou o Pacto Nacional para a
Educação, no âmbito da co-responsabilidade dos municípios na
Educação, e foi membro do Consell Escolar de Catalunya. No ano
2006, foi conseller da Educação e das Universidades do governo
regional autónomo da Catalunha (Generalitat de Catalunya). Foi
também deputado do parlamento catalão (de Novembro de 2006
a Janeiro de 2008) e é, desde Janeiro de 2008, membro do conse-
lho consultivo da Corporação Catalã dos Meios Audiovisuais.
O conceito de «cidade educadora», hoje
Em 1990 Marta Mata, a grande mestra e pe- das Cidades Educadoras, a qual inspira as
dagoga catalã da segunda metade do sec. considerações que se seguem.
XX, plenamente activa até a sua morte em
2006, com responsabilidade política na Para além da importante formalidade de acei-
Câmara deslumbrou Barcelona ao propor tar e subscrever os vinte Princípios da Carta,
ao mundo um ideal cívico e educativo que uma cidade educadora foi antes da reforma,
se plasmou no conceito de Cidade Educa- e continua a ser depois de renovada, a que,
dora. Como todos os conceitos que, lon- liderada pelos seus representantes democrá-
ge da perfeição e inamovibilidade do céu ticos, estimula e oferece vias de realização
platónico, se enraízam na complexidade e à capacidade educadora em sentido amplo
fluência da realidade humana, o conceito que têm sempre todos os membros da cida-
de cidade educadora muda com a mudan- de, tanto individual como colectivamente.
ça própria das vidas da cidade e dos seus Um dos sentidos principais da educação é
habitantes; isto não implica uma mudança a capacidade de promover o melhor cresci-
que a «subordine» condescendentemente mento possível ou desenvolver as potencia-
às crescentes pressões e dificuldades de lidades e projectos das pessoas e dos grupos
toda a ordem mas sim uma mudança que humanos; por um lado, é interessante notar
a «coordene» ou adapte às novas caracte- o facto de que a interacção entre as pessoas
rísticas e necessidades das cidades. O seu e as instituições, associações, empresas ou
espírito genuíno inicial não se perde na grupos de qualquer tipo tem precisamente a
mudança porque desde a sua origem ele virtude de gerar estímulo para o crescimento
responde a constantes humanas e sociais e para plenitude de todos os que convivem
de fundo e porque a evolução permanente no espaço urbano, ou seja, tem capacidade
é, ela própria, uma constante individual e educativa. Pode dizer-se que toda a acção
social. Assim, todo o projecto com sentido humana individual ou de grupo tem sempre
da realidade - mesmo albergando algum um valor educativo ou deseducativo porque
ideal - deve saber articular-se e encontrar toda a acção humana não tem um resultado
ancoragem suficiente nos novos perfis ur- neutro ou indiferente para o desenvolvimen-
banos e na sua componente humana indi- to humano e cívico das restantes pessoas. A
vidual e colectiva. cidade educadora adquire e esforça-se por
difundir a consciência de todas as possíveis
Na mira de adaptar o conceito de Cidade repercussões mútuas que as pessoas e gru-
Educadora e suas propostas à evolução in- pos exercem entre si dentro do espaço pú-
tensa que vivem as nossas cidades, a AICE blico da cidade e procura descobrir todas as
elaborou e aprovou no seu Congresso cele- suas potencialidades positivas em ordem ao
brado em Génova (Itália) em 2004, catorze progresso pessoal e social de todos os seus
anos depois, uma nova redacção da Carta componentes.
26 Introdução
1
A parte principal dos conteúdos destas análises das 2
Como exemplo que retorna com regularidade à
mudanças e seus efeitos sobre a cidade contemporânea provocação colectiva, as fotografias publicitárias de
fez-se a partir de diversos estudos do livro de González Oliviero Toscani para firmas internacionais de roupa:
Quirós, José Luis (ed. intr.) e vários autores, Cidades tais fotografias e campanhas constituem um exemplo da
possíveis, elaborado na Escola Contemporânea de espectacularização e mercantilização de verdadeiros
Humanidades, ed. Lengua de Trapo, Madrid, 2003. problemas humanos e sociais - a imigração, o VIH,
a anorexia - ; é interessante reflectir sobre qual será
o elemento predominante: será a «arte» fotográfica
por si mesma a «temática humana» ou finalmente
- melhor finalistamente - comércio puro e cru? Em
todo o caso, as cidades e seus habitantes vêem-se
convertidos respectivamente em cenário e espectadores
de um exibicionismo impúdico mas talvez útil como
tomada colectiva de consciência? Ou prejudicial
como «homologador» de arnomalidades como no
caso da anorexia? ou descaradamente imoral pela
instrumentalização interessada da dor humana?
O conceito de «cidade educadora», hoje 27
pessoais remotas e virtuais que deslocam Com respeito ao fecundo conceito de espa-
as próximas e presenciais; o individualismo ço público, Jordi Borja5 assinala a relação
que interpreta a vida urbana como um risco existente entre a sua configuração física e
onde, subjectivamente, predomina o factor o exercício de cidadania, entendida como
da oportunidade sobre o factor perigo e onde o estatuto que permite exercer um conjunto
se acentua a competitividade para alcançar de direitos e deveres cívicos, políticos e so-
posições de domínio nas alterações constan- ciais: «a qualidade do espaço público pode-
tes que a cidade proporciona; individualismo rá ser avaliada sobretudo pela qualidade das
que reclama uma protecção crescente - fre- relações sociais que facilita pela sua força
quentemente desmedida - contra os perigos capaz de misturar grupos e comportamentos
que o risco - inicialmente assumido como e pela aptidão para estimular a identificação
oportunidade - traz consigo. simbólica, a expressão e a integração cultu-
rais». Recentemente Bauman voltou a insis-
Por outro lado e de forma parecida, outras tir na transcendência do espaço físico da ci-
análises3 insistem nos efeitos da aceleração dade com aquela capacidade «misturante»,
das mudanças como cenário óptimo para condenando a política urbana de homoge-
uma «cultura do instante» um tempo que neizar os bairros e depois reduzir ao mínimo
já não é circular nem linear mas sim estrita- inevitável todo o comércio e comunicação
mente «pontilhista» que cria nos habitantes entre eles (…), fórmula infalível para avivar
das nossas cidades uma concepção presen- e intensificar o desejo de excluir e segregar.
cial da cultura marcada pela precariedade (…) A fusão que requer o entendimento mú-
das identidades individuais e dos vínculos tuo só pode provir da experiência partilha-
entre umas e outras até ao ponto de ele pa- da; e partilhar a experiência é inconcebível
recer representar a substância da liberdade se antes não se partilhar o espaço»6.
individual na nossa cultura. Esta cultura já
claramente líquida - carente de referências De entre os progressos que muitos movi-
seguras ou sólidas não fomenta o afã de mentos de cidadãos implementaram junto
aprender e acumular e mais parece uma cul- dos seus governos, destacam-se a revalo-
tura do distanciamento, da descontinuidade rização do ambiente urbano, a qualidade
e do esquecimento. Nesta situação - quase de vida nos bairros ou a criação de novas
no grau zero de definição e compromisso centralidades urbanas. Assim, melhora-se
- o espaço público democrático e a coesão a cidadania democrática, a concertação e
social e territorial da cidade vêem-se forte- participação em planos e projectos e con-
mente ameaçados4. tribui-se para o reforço dos governos locais
3
Considerações extraídas do opúsculo de Zygmunt 5
Ibid.
Bauman, Els reptes de l`educació en la modernitat lí- 6
Baumann, Z., Confiança e Temor na Cidade, Ed. Arcá-
quida, Ed. Arcádia, Barcelona, 2007. dia, Barcelona, 2006, p. 38.
4
Já em 1998, Jordi Borja em «Cidadania e espaço pú-
blico» salientava o «temor ao espaço público. Não é
um espaço protector nem protegido. Em alguns casos
não foi indicado para dar segurança mas sim para certas
funções como circular ou estacionar ou, muito simples-
mente, para espaço residual entre edifícios e vias. Em
outros, foi ocupado por classes perigosas da sociedade:
imigrantes, pobres ou marginais». Colaboração publi-
cada na AAVV, Ciutat real, ciutat ideal. Significat i fun-
ció a l`espai urbà modern, «Urbanitats», nº 7, Centro de
Cultura Contemporânea, 1998.
28 Introdução
7
Baumann, Z., Els reptes..., p.38, ss.
O conceito de «cidade educadora», hoje 29
8
Jaeger, Werner, Paideia: Os ideais da cultura grega,
F.C.E., México, 2ªed., 2ª reimp., 1971, p. 3.
30 Introdução
Vejamos então: com a ideia do «direito à ci- nhecimento do direito dos cidadãos ao que
dade educadora» pretende-se dar um passo chamávamos, há pouco, «valor acrescenta-
em frente com o fim de oferecer aos habitan- do» à educação escolar e ao fomento práti-
tes de todas as cidades aquilo por que elas co e efectivo desse valor. Contudo seria uma
legitimamente aspiram, isto é, a redefinição interpretação redutora e não conforme ao
da sua cidade como educadora, como dota- espírito da Carta, se considerássemos os ad-
dora das oportunidades de qualidade de vida ministradores municipais, como únicos su-
pessoal e democrática, do melhoramento do jeitos desse compromisso; na realidade, não
espaço público para poderem desenvolver se fala de compromisso da «Câmara Muni-
em plenitude a sua cidadania; neste sentido, cipal» mas da cidade; portanto, para além
o ideal da cidade educadora passa a ser o da natural liderança dos representantes de-
de uma proposta voluntariosa e, desde logo, mocráticos, entende-se que o dever do com-
bem-intencionada que, como direito, possa promisso é para toda a cidade. Dessa forma,
ser reclamada por qualquer pessoa na sua o direito à cidade educadora converte-se
cidade. Escusado será dizer que a efectivida- num verdadeiro direito-dever para todos: os
de desse direito dependerá, na vida real, de representantes, sem dúvida, mas também os
outras instâncias, que não são as da própria cidadãos e as cidadãs. Além de tudo, este
Carta, mas esta é o gérmen para o avanço compromisso é «ao serviço integral das pes-
nessa direcção. Por isso, no artigo primeiro soas», como reza o terceiro título que, de
se menciona tal direito à cidade educadora propósito, no seu sentido gramatical está li-
como «extensão» do já efectivamente exis- gado ao segundo. Com efeito, pretende-se
tente - nos Direitos Humanos, nas constitui- que cada pessoa que vive na cidade se sinta
ções democráticas - e que é o direito fun- realmente ponto de atenção do conjunto da
damental de todas as pessoas à educação. cidade e, principalmente, dos seus repre-
Na sua interpretação mais elementar, já se sentantes democráticos; que se sinta sujeito
está a dizer que só no contexto de uma ci- de direitos de cidadania como pessoa com
dade educadora se adquire em plenitude o possibilidade real de desenvolver, a todo o
direito fundamental de uma pessoa a uma momento e em pleno, as suas capacidades
educação formal ou escolar. Dito por outras - objectivo clássico e principal da educação
palavras, a educação puramente escolar é - e de alcançar melhor qualidade de vida,
essencial e necessária mas não suficiente: na objectivo genérico e básico de toda a gover-
cidade educadora há um valor acrescentado nação democrática, única possível numa ci-
ao qual os cidadãos também têm direito. O dade educadora.
segundo e terceiro assuntos podem dar uma
melhor resposta ao primeiro, em conjunto Sem entrar em pormenor na descrição de
do que em separado: reconhecido tal direito, cada um dos vinte artigos, cremos que seja
a cidade deve responder precisamente com útil destacar resumidamente, a fim de com-
um «compromisso da cidade» - segundo tí- pletar o conceito de cidade educadora, os
tulo - posto «ao serviço integral das pessoas» aspectos que na reforma de 2004 voltaram
- terceiro título. É importante sublinhar, em a incorporar-se ou melhoraram claramente
primeiro lugar, a ideia de compromisso que a sua presença ou definição da Carta inicial,
ultrapassa, pela sua conotação de exigência tendo em vista adaptá-la às novas caracte-
ético-política, a simples obrigação de uma rísticas e necessidades das cidades, no prin-
cidade e sua administração democrática cípio de um novo século. Os vectores prin-
gerirem eficaz e honestamente os assuntos cipais da reforma foram, em primeiro lugar,
do dia-a-dia; com a ideia de compromisso a insistência na necessidade e o direito de
reclama-se uma posição pró-activa de reco- todas as pessoas à formação, ao longo da
O conceito de «cidade educadora», hoje 31
vida9, princípio assumido nos mais diversos mática mas também para saberem seleccio-
fóruns internacionais como uma exigência nar, entender e tratar o grande caudal de
essencial num mundo sujeito a alterações informação disponibilizada e evitar, assim,
tão rápidas, não só por causa do perma- uma das novas razões de exclusão social,
nente aperfeiçoamento das capacidades há algum tempo inimaginável. Por outro
laborais mas também familiares, cívicas, de lado, a reforma deu igualmente atenção ao
comunicação e sociais. Outro critério im- novo e cada vez mais necessário concei-
portante foi o de melhorar e universalizar to de «desenvolvimento sustentável» com
o acesso de todos, sobretudo daqueles que menção expressa ao equilíbrio entre cidade
têm incapacidades funcionais ou quaisquer e natureza, ao direito a um meio ambiente
dependências, a todos os serviços, edifícios saudável e à participação nas boas práticas
e equipamentos urbanos10, necessidade de um desenvolvimento sustentável13. Ou-
principal num contexto de qualificar a con- tra sustentabilidade está a chamar a nossa
vivência urbana. Também se insistiu num atenção: a sustentabilidade democrática
aspecto que, por si mesmo e pela evolução que, como se diz no preâmbulo da Carta,
das populações, merece consideração: o não tem uma configuração suficiente no
diálogo e a cooperação inter-geracional11, novo âmbito ou dimensão global de tudo
com o fim de atingir a maior integração so- quanto ocorre; por isso, a nova Carta adi-
cial possível entre as pessoas de todas as ciona, em diversos pontos, referências mais
idades e o aproveitamento recíproco dos fortes e mais explícitas que as contidas na
conhecimentos e experiências vitais. Em redacção inicial, mais dirigidas à promoção
relação próxima com os critérios anteriores dos valores essenciais da vida democrática:
- idade adulta ou avançada e a acessibili- a liberdade, a igualdade, a diversidade cul-
dade - e em ligação com a nova sociedade tural ou a cooperação solidária internacio-
globalizada do conhecimento, insistiu-se nal14; e insiste-se ainda no artigo final, em
na necessidade de que a cidade educadora modo de fecho, no que poderíamos chamar
garanta a todas as pessoas, principalmente os fundamentos da cultura democrática, a
às dos sectores mais distanciados da forma- formação de todas as pessoas nos valores
ção, seja pela idade, seja por outros mo- do respeito, tolerância, participação, res-
tivos, o acesso à formação em tecnologias ponsabilidade e interesse pela coisa públi-
de informação e de comunicação12, não só ca, seus bens e seus serviços15.
para aprenderem a usar aparelhos de infor-
9
Artºs. 1 e 19 da Carta das Cidades Educadoras, refor- 13
Artº. 11
mada em Génova, 2004 14
Artºs. 1 e 2
10
Artºs. 1, 8 e 10 15
Artº. 20
11
Artº. 3
12
Artº. 19
32 Introdução
16
Art. 1 19
Art. 9
17
Art. 4 20
Arts. 8 e 10
18
Art. 5 21
Arts. 9, 12 e 18
22
Art. 13
23
Art. 15
24
Art. 14
O conceito de «cidade educadora», hoje 33
25
Art. 17
26
Art. 15
27
Art. 16
Barcelona:
o compromisso de uma
cidade com a educação
Jordi Hereu
Voltei a ler a Carta das Cidades Educadoras ra possível: pondo a circular a ideia genero-
que se implementou no primeiro congresso sa e elevada de cidade, como educadora da
internacional celebrado na nossa cidade em população de todas as idades, de todas as
1990 e que foi revisto em mais duas oca- condições, de todas as procedências. Sem
siões, 1994 e 2004. As primeiras palavras menosprezar as mais poderosas ferramentas
do preâmbulo: «hoje, mais que nunca, a educadoras: as famílias e a escola.
cidade, grande ou pequena, dispõe de in-
contáveis possibilidades educadoras mas Estamos num momento de redefinição da
também podem incidir nela forças e inércias educação no referente às novas tecnologias
deseducadoras». É um bom começo. Sobre- - com suas toneladas de informação sem
tudo se tivermos em conta que o último dos crítica - que inundam o espaço mental e fí-
artigos da Carta diz: «a cidade educadora sico dos adolescentes e jovens. Estamos até
deverá oferecer a todos os seus habitantes, a redefinir toda a nossa sociedade, de cima
como objectivo crescentemente necessário a baixo: a maneira de viver, de nos relacio-
para a comunidade, formação em valores e narmos, de empobrecermos, tudo hoje está
práticas de cidadania democrática: respeito, em transformação - pois que o fenómeno
tolerância, participação, responsabilidade da globalização sacudiu as antigas parcelas
e interesse pelo público, pelos seus progra- onde habitávamos e que conhecíamos como
mas, bens e serviços». a palma da nossa mão. Não obstante, as
mudanças são boas: abrimo-nos ao mundo,
Este é um objectivo partilhado na actualidade temo-lo inteiro nas nossas casas, dispomos
por centenas de cidades em todo o mundo, de mais instrumentos mais eficazes para en-
cada uma com as suas próprias condições frentarmos os desafios. Mesmo assim, toda a
culturais e sociais, económicas e políticas alteração profunda implica uma crise. É pre-
mas todas vinculadas pela vontade de ele- ciso estarmos conscientes de que vivemos
var a qualidade de vida dos cidadãos, não só uma crise do sistema educativo, compreen-
no plano material - o ambiente, os serviços dendo o termo «crise» num sentido constru-
- como também a construção cívica. É uma tivo. Saíremos em frente porque sabemos o
maneira empolgante de ver a cidade por- que nos está a acontecer.
que nos mostra a ligação entre o indivíduo
e o colectivo. É certo que a implementação Barcelona é uma cidade que desde sempre
deste programa - desta concepção - surgiu se comprometeu com a educação pública
de uma Barcelona entusiasmada com o pro- de qualidade. Há mais de cem anos - desde
cesso de transformação que arrancou com a o princípio da existência da Câmara Muni-
democracia e que era a vocação de construir cipal de Barcelona - que trabalhamos nes-
uma cidade mais justa, mais amável, mais ta linha e podemos afirmar, sem pecar por
equitativa, mais digna. De certo modo, Bar- exagero, que a cidade tem lutado por uma
celona queria partilhar com o mundo este importante renovação pedagógica e, tem
impulso, esta força e fê-lo da melhor manei- principalmente, a forte vontade de avançar
38 Introdução
novas gerações muito própria do século XXI menta para a integração e para a igualdade
- um século que valoriza a criatividade e o de oportunidades. Conseguimos uma esco-
talento? la para toda a gente; agora devemos pros-
seguir para uma escola de mais qualidade,
Em segundo lugar, gostaria de pôr a tónica exigente, moderna, totalmente integrada na
sobre Barcelona, a cidade que resolve os sociedade complexa de hoje. Mas isto tudo
seus conflitos através de pactos e entende ainda não é suficiente: a cidade inteira tem
os processos que a eles conduzem como de ser coerente com os valores que a escola
educativos em si mesmo. Não é um cami- oferece, tem de ser exigente consigo mesma
nho fácil, já que frequentemente é preciso e com os cidadãos, processo que nós já vive-
descobrir o ponto de equilíbrio entre grupos mos aqui mas que devemos intensificar até à
e sectores que têm, cada um, uma razão, excelência tanto educativa como cívica.
perante a qual a Câmara deve actuar como
árbitro e não só: deve escolher o lugar do Para terminar, voltamos à nossa história
«bem comum» acima das «razões individu- comum de cidades educadoras. A Câmara
ais». Avançámos pactos sobre a mobilidade, Municipal de Barcelona assumiu desde o
sobre o antagonismo entre ócio nocturno e primeiro dia o compromisso de exercer uma
descanso dos vizinhos, incluindo casos de liderança social: com vocação de fazer da
grupos de jovens imigrantes sul-americanos política, pedagogia. Estamos convencidos de
que, longe de correr o risco de segregação que o potencial educativo da cidade é o seu
ou de condutas anti-sociais, lográmos trans- potencial cívico e vice-versa. A qualidade
formar, por vontade dos implicados em… cívica da cidade converte-se em educadora
entidades culturais! É certo que para esta para os cidadãos novos (e também para os
conversão se avança mais lentamente mas antigos). Assim, a nossa responsabilidade é
consegue-se decisivamente uma legitimação aprofundar na democracia a participação, a
da autoridade que deve existir mas ser exer- coesão social e, decididamente, os valores,
cida democraticamente. conforme plasma, ponderada e minuciosa-
mente, a Carta fundadora deste movimento
Uma cidade que transforma a memória em que se estendeu a todo o mundo como uma
criação e que pactua a saída para os seus embaixadora de boa vontade.
conflitos é uma cidade educadora. São va-
lores postos em prática. E estes valores dos Todos os dias novos municípios se juntam
cidadãos devem aliar-se estreitamente à es- ao compromisso das cidades educadoras.
cola e a todos os níveis de formação dispo- Como presidente da Associação Internacio-
níveis para que se fortaleçam. A qualidade nal das Cidades educadoras sinto-me satis-
do ensino é crucial tanto para a competi- feito. Estamos trabalhando para um mundo
tividade futura da nossa economia como melhor e, dia após dia, vamos conquistan-
para a viabilidade da nossa convivência. A do-o.
escola é desde os primeiros anos uma ferra-
1
Os novos desafios
da vida urbana
Utopias dialécticas
David Harvey
O sociólogo urbano Robert Park definiu a o nosso desejo, é um dos mais preciosos de
cidade como: todos os direitos humanos.
«a mais consistente e, em geral, mais Mas qual é o significado de tudo isto? O rit-
bem-sucedida tentativa de refazer o mun- mo e a escala extraordinária da urbanização
do em que se vive segundo o desejo do ao longo dos últimos cem anos dificilmente
seu coração. Mas, se a cidade é o mun- se têm reflectido na tese de Park. Nós fomos
do que o homem criou, é o mundo em feitos e refeitos várias vezes por forças que
que ele passa a estar condenado a viver. estão aparentemente fora do nosso controlo.
Assim, indirectamente, e sem qualquer Os construtores da cidade - os empreiteiros,
noção clara da natureza da sua missão, o financiadores e os interesses da construção
homem ao fazer a cidade refez-se».1 muitas vezes auxiliados e incitados pelos go-
vernos centrais e municipais - têm sido im-
A questão do tipo de cidade que queremos pelidos pela sede de lucro, pela necessidade
não pode ser separada, portanto, da questão de acumular e absorver excedentes de ca-
sobre o tipo de pessoas que eu, tu, nós e eles pital cada vez maiores, apoiados pelas leis
nos queremos tornar: que tipo de relações coercitivas da concorrência capitalista. A
sociais são valorizadas, que sistemas de pro- preocupação com o bem-estar humano tem
dução e relações de trabalho são considera- sido ocasional, com os imigrantes a concen-
dos criativos e gratificantes, que relação com trarem-se nas cidades, transformando de for-
a natureza é que nos interessa preservar, que ma radical o cenário urbano, são movidos
sentidos estéticos se desejam cultivar, que mais pelo desespero do que pela reflexão
tecnologias são consideradas adequadas e, consciente sobre a tese de Park. O direito de
mais propriamente, como é que as pessoas mudar a cidade não é um direito abstracto,
querem viver as suas vidas. A existência de mas, pelo contrário, um direito inerente à
um consenso social sobre todas estas ques- prática quotidiana. A dialéctica da urbani-
tões seria preocupante. O importante é co- zação e da transformação social funcionam
locá-las na linha da frente do debate num constantemente em nosso redor e nós tanto
momento em que a população mundial está sofremos como contribuímos para os seus
cada vez mais «condenada a viver» nalguma efeitos - bons, maus e indiferentes - à medi-
forma de configuração urbana e, quando é da que vivemos, construímos, trabalhamos,
certamente claro que as pessoas não se vão fazemos compras, interagimos e circulamos
tornar necessariamente melhores por essa por diferentes ambientes urbanos. Mas como
razão. Devemos, pelo menos, concordar nos podemos tornar mais conscientes da na-
que o direito de fazer e refazer a cidade e, tureza da nossa tarefa? Como podemos ima-
consequentemente, a nós mesmos, segundo ginar os nossos comportamentos e adaptar o
1
Park, R., «Sobre o controlo social e o comportamento
colectivo», (Chicago, Chicago University Press), p.3.
46 Os novos desafios da vida urbana
mundo urbano de forma a moldar a cidade benéficos. É sabido que «não há nada mais
mais de acordo com os nossos desejos? Pode desigual do que tratar de forma igual o que
um regresso à tradição utópica fornecer-nos é diferente». Os mercados livres não podem
alguma pista? As utopias urbanas têm sido, produzir resultados justos quando as condi-
afinal, ao longo da história, expressões re- ções de partida não são iguais, quando se
correntes do desejo do Homem de encontrar exercem poderes de monopólios e quando
um melhor ou mais perfeit modo de vida. os quadros institucionais das transacções
são afectados, e são sempre, por assimetrias
A maioria dos planos que designamos por de poder e de informação. Há muitos países
“utópicos” é fixa e formal. São aquilo a que que, em nome do mercado livre, praticam
chamo «utopias de formato espacial» – cida- tremendas violações dos direitos humanos e
des e comunidades que ao longo dos anos retiram o direito de subsistir àqueles de cujo
nos têm conduzido erradamente a pensar trabalho retiram vantagens competitivas. A
que a harmonia será uma certeza e que to- liberalização não só das relações comerciais
dos os desejos humanos serão plenamente mas também dos mercados financeiros à es-
saciados ou realizados. O problema destas cala global desencadeou uma “tempestade”
utopias é que acabam por se tornar repres- de poderes especulativos, especialmente no
sivas para o espírito humano, frustrando o mercado imobiliário e no sector da constru-
desejo de novidade e de descoberta. Da ção, em que o capital tem saqueado o mun-
forma como foram postas em prática têm do em detrimento de todo o resto (especial-
conduzido a resultados muito mais autori- mente das relações sociais e do ambiente).
tários e repressivos do que emancipadores. Alguns fundos especulativos, exercendo o
Estas utopias pressupõem ainda que a histó- seu direito de fazer lucro e protegidos pela
ria pare, que nada de novo aconteça e que ficção legal que lhes atribui o estatuto de
não haja novos episódios para serem con- pessoa de direito privado, espalham-se pelo
tados. As únicas inovações permitidas são mundo destruindo, através da especulação,
aquelas que permitam manter a harmonia economias inteiras (como na Indonésia, em
previamente existente. Tal como o conceito 1997 e 1998 e na Argentina, em 2001). Pior
estático de Paraíso dos cristãos, estas utopias ainda, para funcionar, o mercado neolibe-
são tão aborrecidas que ninguém quer viver ral exige a escassez. Se a escassez não for
submetido a elas.2 real, tem de ser socialmente inventada. É
isto que a propriedade privada e a corrida
Mas depois há todo um conjunto de uto- ao lucro produzem. O cerco ao que é públi-
pias sobre o processo social. Nos tempos co e a destruição dos direitos sobre os bens
mais recentes, os neoliberais têm procu- públicos através das privatizações e da co-
rado convencer-nos de que o mercado e o mercialização de tudo e mais alguma coisa
comércio livres associados à propriedade é uma condição necessária à acumulação
privada e ao empreendedorismo individu- do capital. A educação, a saúde, a água e o
al trarão riqueza, segurança e felicidade a saneamento têm de ser privatizados e postos
toda a gente, que os mecanismos do mer- ao serviço do regime dominante dos direitos
cado nos oferecerão as cidades dos nossos favoráveis à circulação e acumulação de ca-
sonhos. Mas os efeitos práticos desta utopia pital. Aquilo a que chamo «acumulação por
neoliberal nas nossas vidas e cidades, na espoliação» é o lema dominante.3
nossa segurança e perspectivas não têm sido
2
Harvey, D., Spaces of Hope (Edimburgo, Edinburgh 3
Harvey, D., A Brief History of Neoliberalism (Oxford,
University Press, 2000). Oxford University Press, 2005).
Utopias dialécticas 47
O direito colectivo à cidade desapareceu. todos os lugares, sem excepção. Nos Estados
A cidade transformou-se para dar lugar às Unidos, para vermos um caso paradigmáti-
engrenagens crescentes das financeiras, dos co, também se tem permitido que o máximo
empresários, dos especuladores e dos usurá- de um por cento dos cidadãos aumentasse
rios. O resultado é o desnecessário despoja- os seus rendimentos em mais de 8 por cen-
mento (desemprego, perda do acesso à habi- to em 1970 e próximo dos 20 por cento na
tação, etc.) no meio da abundância. Daí os actualidade. Ainda mais dramaticamente o
sem-abrigo e os pedintes no Metro. A fome máximo de 0,1 por cento das pessoas que
ocorre num mundo em que há excesso de têm rendimentos aumentaram a sua quota
alimentos. As necessidades básicas, como entre 2 e até superior a 6 por cento do ren-
água potável, são negadas àqueles que não dimento nacional entre 1978 e 1998 (hoje,
têm possibilidades de as pagar. Os excluídos certamente será ainda maior). Isto tem acon-
são obrigados a beber água em rios infesta- tecido em todos os lugares onde ocorreu o
dos de cólera. Este é o resultado da acção retorno ao neoliberalismo. O neoliberalismo
dos mercados livres. É isto que a defesa dos foi simplesmente acontecendo com base na
direitos inalienáveis da propriedade privada restauração do poder de classe para uma pe-
e da corrida ao lucro significam, indepen- quena elite de executivos e financeiros. Com
dentemente das afirmações mais piedosas influência desproporcional sobre os meios
emanadas pelos principais centros do poder de comunicação social e sobre o processo
capitalista. Até o Banco Mundial admite que político, essa elite tenta convencer-nos de
a pobreza, absoluta ou relativa, tem aumen- como estamos todos melhor sob um regime
tado, e não diminuído, nos anos dourados neoliberal de poder político-económico. E
do neo-liberalismo no mundo. No entanto, para eles, que vivem confortavelmente nos
continua obstinadamente a afirmar que só seus guetos dourados, o mundo é realmente
através da propagação dos direitos neolibe- um lugar melhor. As cidades contemporâ-
rais, da propriedade privada e da corrida ao neas estão mais segregadas, fragmentadas
e fracturadas pela riqueza e poder do que
lucro através do mercado é que a pobreza
jamais estiveram. Esta não é a cidade social-
pode ser eliminada, quando o resultado, re-
mente justa dos meus sonhos.
conhecido pelas Nações Unidas, é a produ-
ção de um «planeta de bairros de lata».4
«Cada forma de governo emite leis de acor-
do com os seus interesses», diz Trasímaco na
Por razões óbvias que se servem a si pró-
República, de Platão, de tal forma que «o
prias, aqueles com riqueza e poder apoiam
direitos e liberdades que relacionam com a justo é sempre igual em toda a parte; a van-
máquina do sonho neoliberal, procurando tagem é sempre do mais forte». Karl Polanyi
convencer-nos da sua universalidade e da diz o mesmo com outras palavras: quando
sua bondade. Trinta anos de liberdades neo a ideia de liberdade «degenera numa mera
liberais trouxeram-nos imensa concentra- defesa da livre iniciativa» ela passa a ser «a
ção de poder nas empresas de energia, dos liberdade plena para aqueles cujo rendi-
meios de comunicação, dos produtos farma- mento, lazer e segurança não necessitam de
cêuticos, dos transportes e até de retalho e crescer e uma mera esmola para a maioria
construção. A liberdade do mercado acaba das pessoas que em vão procuram, fazen-
por ser nada mais do que os meios conve- do uso dos seus direitos democráticos, a
nientes para espalhar o poder do monopólio protecção dos detentores da propriedade.5
das empresas, condomínios e Coca-Cola por
5
Polanyi, K., The Great Transformation: The Political
and Economic Origins of our Time (Boston, Beacon
4
Davis, M., Planet of Slums (Londres, Verso, 1996) Press, 1957), pp. 249-58
48 Os novos desafios da vida urbana
Zygmunt Bauman
«Ágora é o lugar onde oikos (casa, reino do manecer vigilante e cautelosa com o apeti-
«privado») e oikoumene (a política, esfera te para a conquista que pode levar um ou
do «público») se encontram. Eles reúnem-se outro dos parceiros do diálogo a apropriar-
para conversar, e o propósito explícito ou -se do espaço do encontro totalmente para
implícito de troca (em todas as suas formas o si mesmo, tomando-a sob a sua própria e
- de discursos formais recebidos com aplau- exclusiva administração e permanentemente
sos, assobios ou vaias , do argumento frio ou limitar o direito de entrada do outro parcei-
quente, de arenga ou prelecção, negociação ro, reservando-se o direito de monopólio ou
ou discusão, etc) é chegar a uma solução sa- quase monopólio da tradução oficial. Assim
tisfatória ou pelo menos a uma tradução em como o vento só existe através da acção de
duas direcções aceitável: de preocupações soprar, e o rio que flui, a Ágora só existe atra-
e desejos privados em questões públicas, e vés da actividade livre contínua, sem restri-
das necessidades públicas e ambições em ções e sem interrupção de tradução.
direito privado e deveres. É na ágora que o
espaço compacto que integra particulares Idealmente, ambos os limites, portanto, se-
numa totalidade social (seja ela uma tribo, parando a Ágora do domínio do privado de
uma comunidade local, um estado-nação, e, um lado e do domínio do público, por ou-
prospectivamente, a humanidade) é sempre tro, são marcados por dois sentidos de tráfe-
uma nova renegociação, reforma e reconfir- go pesado. Ocasionalmente, no entanto, o
mação. tráfego através de um ou outro limite pode
ser reduzido a um fio que possa tornar a tra-
A Ágora deve ser, portanto, um espaço aco- dução, que é a razão de ser da ágora e sua
lhedor ao mesmo tempo, e igualmente, para modalidade de ser, insuficiente ou ineficaz,
os recém-chegados de domínio público e que pode estar até mesmo totalmente pre-
do privado, mas para ser e permanecer aco- so. Nenhuma das fronteiras não são nada a
lhedor, é preciso defender firmemente a sua não ser seguramente fortificadas; mal guar-
independência de ambos. Não pode ser pro- dadas e eminentemente permeáveis, ambos
priedade ou meramente um posto avançado continuam vulneráveis e estão permanente-
de uma das duas. Se fosse assim, o fluxo de mente expostas à invasão. Como a necessi-
tradução seria constantemente ameaçado dade de deixar a tradução para os perigos
pela ruptura e os resultados poderiam ser da livre iniciativa e livre de oposição pode
distorcidos. No caso extremo, a tradução se- ser sentida por cada um dos lados pesada e
ria ficar paralisada e resultar numa falha de desconfortável, suprimindo essa necessida-
comunicação, como uma das duas línguas de e espero que se livre dele completamente
eliminaria a outra que era para ser encontro pelo menos por um momento, ao invadir e
em condições de igualdade. conquistar a Ágora está em todas as vezes a
tentação dos actores tanto do sector privado
Convidando tanto para o oikos como para como da esfera pública. A Ágora nunca está
a oikoumene, a Ágora, portanto, deve per- segura e raramente se sente auto-confiante.
54 Os novos desafios da vida urbana
Ela não pode contar com a boa vontade dos Alemanha, na sequência do brutal desman-
ocupantes de um dos dois reinos vizinhos e telamento de instituições democráticas e
com a sua submissão voluntária ao código da invasão e conquista da Ágora do Estado.
de comportamento (com a regra de respeito Pode-se dizer, parafraseando Marx, que du-
mútuo, em especial) que deve ser observado rante a maior parte do século passado, um
se o diálogo continuar sem esmorecer. A so- fantasma pairou sobre a Europa: o espectro
brevivência da Ágora depende unicamente do totalitarismo, seja na sua versão fascis-
do seu próprio espírito de independência e ta ou na sua versão comunista. E a marca
do seu próprio ritmo e vigor. mais visível do totalitarismo foi a coloni-
zação intransigente da Ágora pelo estado e
Durante a maior parte do século XX, as a sua submissão à autoridade exclusiva do
mentes mais perceptíveis e perspicazes de estado.
todo e qualquer político / denominações
ideológicas concentraram sua atenção preo A tentação de invadir e colonizar a Ágora e
cupada quase exclusivamente na fronteira / as ameaças que os Estados podem sucum-
primeira linha que separa / que liga a Àgora bir a essa tentação parecia ainda mais rea-
e Oikoumene, na sua versão moderna, res- lista para o realismo das ambições estatais
pectivamente, e bürgerliche Gesellshaft1 e para a exclusiva e indivisível soberania ter-
Estado-nação. A maior parte deste século, ritorial. Embora às vezes todas as realidades
foi vivido na sombra de dois poderes totali- do poder estarem paradas longe do ideal
tários baseados na regra a nível mundial, e avançada pela reivindicação de soberania,
da sua memória fresca traumática. que chegou mais perto de modelo comple-
to e descomprometido como da soberania
O impacto dos dois regimes totalitários es- do Estado que em qualquer outro período
palhou-se muito além das fronteiras do seu da história, e certamente muito mais do que
estado. As respostas radicais e totalitárias no nosso tempo de globalização acelerada,
implacáveis à incerteza vexatória associada planeta atravessado por uma informação de
com as configurações sociais centradas em formas e queda no valor de defesa do es-
torno de roda livre tipo polígono, a Ágora paço. No final do processo de construção
(configurações conhecidas sob o nome de da nação associado com a fase «sólida» da
«democracia») foi considerada pelos ha- modernidade, a possibilidade de se integrar
bitantes de muitos regimes democráticos socialmente, culturalmente e economica-
nomeadamente como modelos para copiar; mente grandes territórios e as suas popula-
jornalistas dos órgãos de imprensa mais ções em totalidades políticas foi acompa-
proe minente dos países democráticos, os nhado pela capacidade técnica de cercar
próprios símbolos do espírito democrático tais totalidades por fronteiras praticamente
que algumas décadas antes pareciam domi- impermeáveis dentro do qual a plena sobe-
nar o mundo pós-iluminista e ser percebido rania, e no tripé económico, cultural e po-
como o ápice do progresso político / ético, lítico das autarquias em que foi presumido
líricas ao pintar a imagem de ordem, a es- e tiveram deficar, poderia ser eficazmente
tabilidade, a paz social e a disciplina dos prosseguido, estabelecido, e doravante, de-
cidadãos, que desceram sobre a Itália ou a fendido.
1
O seu equivalente Inglês, «sociedade civil» é um
pouco enganador. Na tradução, a união pessoal entre
o proprietário / gerente da oikos e do cidadão da po-
lítica, presumida pela compressão dos seus nomes em
alemão, foi perdida.
Espaço público 55
Enquanto uma ágora vigorosa e cheia de re- dos, o seu carácter ilimitado o torna espe-
cursos composto pela rede de associações cialmente eficaz em relação ao indivíduo,
autónomas e instituições parece o meio o seu carácter silencioso faz com que a
mais confiável e durável para cumprir essa seja mais fácil de o legitimar, e seu carác-
possibilidade, a «inclinação totalitária» ter dinâmico transforma-o num mecanis-
(como Hannah Arendt lhe chamou), a ten- mo de silenciamento que pode ser cada
dência para continuar através de atalhos, ao vez mais confiável.
invés de seguir voltas e reviravoltas de rotas
longas e arriscadas teve que ser levada em Esse método de distorção comunicativa mais
consideração - dada a crescente capacidade sofisticado e refinado (mas pelo mesmo mo-
e desenvoltura dos poderes do Estado. «Ata- tivo mais difícil de se notar e de resistir) irá
lhos», para pedir emprestada a terminologia em toda a probabilidade aumentar em im-
de Jürgen Habermas fermentou para multi- portância à custa de expedientes ortodoxos.
plicar as distorções comunicativas, impedin- Pela primeira vez, é potencialmente mais
do a todos ou a alguns postulados prestes a eficaz, uma vez que é mais radical: ele lan-
entrar na Ágora do outro,»o final provado, ça a repressão política fora do âmbito do
de ser articulado, e em alguns casos a arti- discurso político e a acção é reconhecida
culação já ocorreu, antecipando a possibili- como prática política, batendo no ponto
dade de os expressar. A arregimentação dos em que é barrada a entrada na Ágora aos
media e da censura dos seus conteúdos são os postulados ainda que não tenha atingido
mais conhecidos e uma vez das mais utili- o limite de articulação e assim, da política.
zadas ferramentas de distorção intencional, Além disso, e ainda mais importante, inde-
mas também há uma menos crua, menos sa- pendentemente das vantagens do «silêncio
liente e menos intrusivo (e, portanto, menos silencioso» possa ter, alternativas ortodoxas
propensos a provocar resistência) significa como a arregimentação dos media e a cen-
o mesmo efeito, no valor de (como Thomas sura torna-se cada vez mais difícil a aplica-
Mathiesen2 o coloca), «silêncio silencioso»- ção de qualquer medida de sucesso, tendo
em conta a globalização do fluxo de infor-
um processo «que está tranquilo em vez mação ter evoluído por agora muito além do
de barulhento, oculto ao invés de aberto, alcance dos poderes do controle de gestão
despercebido e não visível, invisível e não do Estado. Essas alternativas estão, porém, a
visto, não - físico mais do que físico.» O tornar-se cada vez mais irrelevantes, e pro-
silêncio silenciador «é estrutural, é uma vavelmente até mesmo contra-producentes:
parte da nossa vida quotidiana, é ilimita- a produção cada vez mais intensa e a cada
do e por isso é gravado em cima de nós, vez mais rápida distribuição de informações
é silencioso e, portanto, passa desper- («distribuição» no sentido de «tornar dispo-
cebido, e ele é dinâmico no sentido em nível», mas não necessariamente no sentido
que se espalha na nossa sociedade e se de «entrega», deixando de lado a «aquisi-
torna sempre mais abrangente. O carácter ção», para não mencionar a «retenção»)
estrutural de representantes «isentos» do transformaram a informação da mais valiosa
silenciamento do Estado, da responsabi- fonte de conhecimento no maior impedi-
lidade, por isso, o torna «inevitável» do mento para a formação do conhecimento.
ponto de vista daqueles que são silencia- Quando uma edição de domingo do New
2
Ver Thomas Mathiesen, Silenciosamente Silenciadas:
Ensaios sobre a Criação da Aquiescência na Sociedade
Moderna, Waterside Press, 2004, p. 9, 14.
56 Os novos desafios da vida urbana
York Times contém mais informações do vavelmente podem) expor os indivíduos que
que um homem mais primorosamente edu- saíram da linha e/ou defender demandas
cado da Renascença encontrou no decurso impopulares com os poderes que são, para
de sua vida inteira, e dado que o volume de a ameaça de uma retaliação imediata ou até
informações criadas nos últimos 30 anos ul- mesmo a incapacidade de preferência, mais
trapassou o volume produzido nos anterio- um golpe na já diminuída auto-confiança
res quinze mil anos de história humana, a e determinação dos potenciais agentes da
informação e o conhecimento têm os seus Ágora.
caminhos separados e a diferença entre eles
parece estar a aumentar sem parar. A mentira política está na cara do oposto do
sigilo (ao contrário de segredos de Estado,
Entre os factores maioritariamente anti-ágora eles são declarados publicamente em voz
(desde que destrutor de comunicação), dois alta em o nome de «consciência pública»
outros fenómenos, talvez, actualmente po- e martelado com vigor incansável para bem
dem manter o estado de medo de invasão dos próprios «sujeitos»), embora a sua im-
da Ágora vivo: segredos de Estado e mentira plantação efectiva no ataque contra a liber-
política - ambos estão em rápido crescimen- dade da Ágora não seria viável se não for no
to tanto em volume como em frequência de pressuposto de que o Estado sabe de coisas
implantação, e (discutivelmente) no seu im- que os seus sujeitos são incapazes de apren-
pacto sobre a eficácia do debate político. der e melhor não saberem a menos que o
saber seja necessário «para o seu próprio
Segredos que já foram mostrados por Georg bem.» Contrariamente ao segredo (isto é, o
Simmel como sendo avidamente procurados estado de retenção de uma parte das infor-
por todos os lados num conflito para que mações que esse tem), no caso de uma men-
um dos lados possa obter mais do que um tira política, o estado fabrica um pedaço de
adversário privado do acesso aos factores informação que apenas finge possuir, apesar
potencialmente significativos da situação de novo, ser para o próprio bem dos sujei-
e, portanto, obrigado a tactear no escuro, tos não se poder divulgar o seu conteúdo e
onde e quando o outro lado se pode mover fontes; todo e qualquer questionamento pe-
com confiança. Além disso, a própria cons- los cépticos é, assim, desclassificado ante-
ciência (ou apenas uma mera suspeita) que cipadamente e obrigado a permanecer sem
o «outro lado» tem algumas partes (desco- resposta. Recorrer a uma mentira política
nhecidas e não - definíveis) da cena escura, envolve poucos riscos, uma vez que todas
gera uma atmosfera de incerteza e pode, em as provas possíveis e os argumentos são fir-
conse quência consumir profundamente a memente entrincheirados no reino inacessí-
auto - confiança e a determinação dos seus vel dos segredos de Estado, o bluff do esta-
potenciais detractores. Estes são efeitos ge- do não pode ser chamado, pelo menos não
rais e extra-temporais do segredo. Nos nos- «para além de qualquer dúvida razoável.»
sos tempos, no entanto, graças à crescente Em caso de decepção é desmascarado e ex-
facilidade de técnicas de recolecção, arma- posto pelos acontecimentos posteriores que
zenamento e processamento de informação, o Estado não pode controlar (como no caso
também o reino do segredo pode ter cresci- das armas de destruição maciça que Sa-
do enormemente em tamanho. Pode agora ddam Hussein teria sido capaz de esconder
(e pode com toda a probabilidade) incluir nas ilhas britânicas em menos de uma hora),
o «pessoal», muitas vezes informações ínti- o estado ainda pode contar com o espaço de
mas e, potencialmente, difamatórias e com- memória públicos lamentavelmente breve e
prometedoras, que também podem (e pro- continuamente em diminuição e os notórios
Espaço público 57
hábitos da atenção pública à deriva. A men- ser uma alternativa atraente. Para tornar esta
tira será rapidamente esquecida, ou no mo- nova legitimação da autoridade do Estado
mento da sua divulgação não será mais foco eficaz, os governos são tentados no entanto
de interesse público. Na maioria dos casos, em exagerar o volume e a intensidade das
as questões nunca serão definitivamente res- ameaças à segurança, estão também com
pondidas e os cépticos nunca seriam capa- uma necessidade desesperada de demons-
zes de provar que suas dúvidas eram funda- trar, em público a resolução e a eficácia na
mentadas, pelo menos não antes do fim do luta em resposta contra a ameaça, arrancan-
prazo legal (30 anos na Grã-Bretanha), de- do o mal pela raiz. No esforço de satisfazer
pois do qual os arquivos do Estado devam ser tanto as necessidades através da manuten-
abertos ao escrutínio público. Se os avisos do ção do clima de constante emergência, in-
estado sobre um desastre iminente não são certeza e ansiedade, a mentira política reve-
confirmados (como no caso de fecho tempo- la-se um expediente ideal; um estratagema
rário dos aeroportos e introdução de novas susceptível de ser inventado, não estivesse
«medidas de segurança» rigorosas e severas já firmemente enraizado na prática política.
após o anúncio da descoberta de uma cons-
piração que envolvia as «bombas líquidas»), O segredo de Estado, a mentira política, e a
nunca seria capaz de determinar com certe- promoção da segurança pessoal para a clas-
za se a ameaça não se concretizou graças à sificação de prioridades superiores públicas
vigilância do governo e eficiência das suas têm um impacto debilitante na Ágora. Elas
contra-medidas, ou porque foi baseado ou derivam da articulação e promoção de al-
enganado, informações reunidas de forma ternativas de questões públicas, antecipan-
descuidada e de outra maneira não confiável do assim a possibilidade de apresentação da
- ou até mesmo totalmente inventadas. sua gravidade e urgência para a apreciação
pública e formação de uma opinião públi-
Tudo isso garante que a expectativa de se ca informada e equilibrada. A longo prazo,
recorrer a mentiras políticas, num futuro prejudica as habilidades do público em dois
próximo se pode tornar mais comum nas sentidos, interesses privados versus questões
práticas governamentais. No tempo em que públicas, em tradução: que o sangue da
os estados urgentemente buscam novos fun- vida da ágora, e através dele da democra-
damentos para a sua autoridade e deman- cia viável, a condição indispensável de uma
da de obediência (as fundações existentes, comunicação eficaz entre oikos e oikoume-
a promessa e, em grande medida a prática ne. Dessa forma, eles liberarem o espaço da
do «Estado social» em assegurar os cidadãos Ágora para outra invasão e conquista - ain-
contra os golpes do destino e individual- da que a partir do lado menos esperado: a
mente sofridos, apesar do infortúnio causa- invasão dos interesses individuais privados
do socialmente, tendo sido progressivamen- e as preocupações já não chegam à Ágora
te debilitado e temido de ser desmontado para procurar a sua tradução para o voca-
na totalidade), os cuidados de segurança bulário de tarefas comuns, mas para terem
pessoal (protecção contra alimentos, me- a sua privacidade e a sua individualidade,
dicamentos, gases nocivos ao organismo, quer queira quer não e, por padrão ao invés
contra criminosos sexuais, pedófilos e viola- de design, juntamente com a futilidade de
dores, vagabundos, perseguidores e mendi- qualquer tentativa de buscar soluções colec-
gos intrusivos, comportamento desviante em tivas para problemas individuais, reiterou e
locais públicos, motoristas em excesso de reforçou. Gostaria de sugerir que esta inva-
velocidade, ladrões, assaltantes, assaltantes são inesperada recente, actualmente em ple-
armados, terroristas, fumadores, etc.) parece no andamento, constitui a principal ameaça
58 Os novos desafios da vida urbana
mais terrível e menos resistível para a vivaci- ra aberta ao sector privado é um aspecto do
dade e eficácia da Ágora. Mas quais são as processo, mas o fornecimento de um escudo
fontes dessa nova ameaça? protector contra a eventualidade dos proble-
mas individualmente sofridos definindo a
A diminuição consistente da soberania do lista de tarefas comuns, é outra. Qualquer
Estado - Nação na sequência da cedência de tentativa de traduzir os problemas indivi
muitos dos seus poderes aos órgãos supra- duais em questões públicas é provável que
-nacionais e outras potências evaporadas no seja reflectida de volta para a esfera da «po-
«espaço global de fluxos» (para usar a ex- lítica da vida» e volte para a lista de tarefas
pressão de Manuel Castells), tem um impac- que os indivíduos precisam de enfrentar e
to de desactivação das suas capacidades de tentar cumprir por conta própria, aceitando
lidar com muitas das funções que anterior- a responsabilidade total em caso eles acaba-
mente eram realizadas ou previstas e tinha rem em fracasso.
prometido realizar. Os poderes remanescen-
tes do estado ficam aquém do volume que Os indivíduos são deixados sozinhos, con-
os órgãos e instituições do Estado exigiriam denados a auto-critério, à auto-referência
abraçar toda a gama de suas funções anterio- e auto-ajuda. Votar ao abandono a comu-
res. De acordo com as circunstâncias, os go- nidade pré-concebida, pré-fabricada e pré-
vernos dos estados-nação vêem-se forçados -estabelecida da espécie a que pertencem,
a «contratar» uma grande e crescente parte antes de começar a agir, eles precisam para
do seu repertório tradicional para as forças tecer as suas próprias redes de protecção
de mercado politicamente descontroladas, social, podando o fio fino e friável dos la-
enquanto «subsidiam» grande parte do resto ços interpessoais (e os fios precisam de ser
do reino da «política da vida, «domínio da amarrados frouxamente, para os tornar mais
iniciativa individual, os recursos individuais fácil de desatar, quando a necessidade che-
e de responsabilidade individual, fechado ga como certamente irá chegar). Uma vez
dentro dos limites da oikos. que participam numa ou noutra iniciativa da
Ágora, as pessoas só se conhecem uns aos
O último processo ostensivamente «autori- outros, com excepção de alguns profissio-
za» o universo da oikos e os seus residen- nais ou compadres amadores, animadores
tes: na verdade, as tendências gémeas de ou conselheiros a conspirarem e a instiga-
«desregulamentação» e «individualização» rem as suas manobras e a pronunciar-se so-
amplamente divulgadas foram amplamen- bre os seus resultados. Não há nada à vista
te retratadas como passos decisivos para a que seja reconhecível como oikoumene.
emancipação dos indivíduos da pessoal- Qualquer que seja a «Totalidade» vista den-
mente dependência debilitante, intrusiva e tro de uma Ágora, só pode ser um produto
desagradável do «Estado-ama», e em suma lateral provisório de sua interacção, tão vo-
como uma expansão sem precedentes dos látil e frágil como as redes que tecem e o
poderes individuais para escolher e agir so- fio que usam para tecê-las. Essa «totalidade»
bre as escolhas feitas. Numerosos observa- é sempre ainda não - completa e até nova
dores, no entanto, repostaram que os indiví- ordem, eminentemente revogável a pedido,
duos, as metas do exercício pretensamente presumida desde o início (e esperada) para
emancipatório, encontraram os resultantes durar apenas o tempo que desejar, e não um
desafios da vida esmagadores e na sua pró- momento longo. Essa «totalidade» não é es-
pria maneira incapacitantes, ultrapassando perada ou desejada para substituir o ausente
as suas competências e recursos e no final da comunidade, a sua função é cobrir o va-
usurpador de poder. O lançamento da Ágo- zio deixado pelo desaparecimento das co-
Espaço público 59
gado para as margens, o ressentimento mais um longo tempo, talvez para sempre. Com
virulento. No futuro, as relações tempestuo- todas as pressões actuais (quer seja coerciti-
sas entre o «individual» e a «comunidade», va, persuasiva ou lavagem cerebral, que é a
tanto quanto na sua longa história, os gritos mistura de persuasão com coerção), entregar
«volta comunidade, está tudo perdoado», uma parte ou mesmo a totalidade da liber-
muito provavelmente a ser ouvido intermi- dade de escolha em nome do compromisso
tentemente pelo ou ao longo das trombetas não foi feito impossível. Foi apenas mais di-
dos combatentes da liberdade individual. fícil, mais arriscado e mais caro (a saber, me-
nos popular...). Forçado a combater possibi-
Contrariamente à sugestão dada a entender lidades incríveis contra o qual se encontra
pelas variedades mais populares da Ágora de pé, parece improvável que seja o curso
contemporânea, o que tem sido discutido da acção tomada pela «maioria estatística»
até agora não implica que o triunfo actual de homens e mulheres contemporâneos e de
de escolha sobre o compromisso seja defi- uma «maioria estatística» das suas situações
nitivo ou completo. O tribunal ainda está de vida.
sentado, e vai permanecer sentado durante
Lidar com a
heterogeneidade:
migrações, alterações demográficas
e consequências culturais*
Blair A. Ruble
*
O autor gostaria de agradecer a Marjorie Mandelstam Balzer, Lisa Hanley, Galina
Levina, Boris Koptin, Renata Kosc- Harmaty, Liz Malinkin e Mejgan Massoumi pela
sua colaboração na elaboração deste capítulo.
Lidar com a heterogeneidade
Uma curiosa história surgiu na imprensa de entrelaçar de culturas e religiões que carac-
Montreal há dois invernos atrás.1 No meio terizam a vida de Montreal, no alvorecer do
de um típico Fevereiro rigoroso do Québec, século XXI. Filipinos, latinos procedentes de
pais filipinos e hispânicos andavam com os vários cantos do globo, sacerdotes da Igreja
filhos doentes pelas ruas cheias de neve de Ortodoxa Grega, e Católicos Romanos pro-
um pequeno complexo de apartamentos no curam agora São Lourenço, em busca dum
bairro de periferia de São Lourenço. As mães símbolo do milagre cristão descoberto por
e os pais desesperados imploravam a uma um muçulmano devoto.
imagem da Virgem Maria para curar os seus
filhos doentes. Abderezak Mehdi, o gerente A metrópole francesa do Canadá não é a
muçulmano de um bloco de apartamentos única. Os Migrantes de todos os tipos - imi-
da baixa, descobriu a imagem da Virgem no grantes, emigrantes, refugiados, deslocados,
lixo. De acordo com Mehdi e o padre Orto- trabalhadores convidados têm-se tornado
doxo Grego Michel Sayde, a Virgem derra- numa presença significativa nas comunida-
mava lágrimas de óleo que poderiam curar des urbanas em todo o mundo. De acordo
os enfermos e atormentados. Michel Parent, com a Divisão da População das Nações
o chanceler da Arquidiocese Católica Ro- Unidas, cerca de 200 milhões de pessoas
mana de Montreal, aconselhou cepticismo, - ou 3 por cento da população - vive fora
observando que «embora fosse verdade que do país onde nasceu.2 Tais projecções po-
nada é impossível para Deus, historicamen- dem não contar com as pessoas que vivem
te, não é assim que Deus age». num novo país sem a documentação com-
pleta, nem englobam os migrantes que se
Essa pequena cena de cura passava-se num deslocam de um lado para o outro das fron-
bairro sombrio construído numa época em teiras de um determinado Estado. A popula-
que Montreal estava profundamente dividi- ção mundial está em constante movimento,
da entre os falantes do Francês e do Inglês afectando todas as sociedades mundiais.
- os chamados francófonos e anglófonos,
em meados do século XX, no Québec. Du-
rante as últimas três décadas, essas barreiras Diversidade em movimento
linguísticas foram absorvidas por um novo
As pessoas não se movem apenas; assentam
1
Esta história foi originalmente relatada em Ann
num determinado lugar. Num mundo, no
Carroll, «Faithful Flock to See Virgin Mary’s Tears of qual pela primeira vez, a maioria dos seres
Oil» Montreal Gazette (28 de Fevereiro, 2004). Este humanos vive em cidades, são cada vez mais
reconto já tinha aparecido anteriormente em Blair os migrantes que se estabelecem em áreas
A. Ruble, Criaçao da Capital da Diversidade. Os
Migrantes Transnacionais em Montreal, Washington e
Kiev (Washington, Baltimore / DC, Maryland: Woodrow
Wilson Centre Johns Hopkins University Presses, 2005), 2
Jason DeParle, «In a World on the Move, a Tiny Land
p. 43-44, e em «Cidades Heterógeneas» Blair A. Ruble, Strains to Cope», New York Times (24 de Junho de
Wilson Quarterly, vol. 30, n º. 3 (2006), pp 56-59. 2007).
66 Os novos desafios da vida urbana
tentativas frustradas em realizar todas essas havendo comunidades pobres em áreas pe-
metas; falhas que muitas vezes têm sido riurbanas e na periferia da cidade. O dete-
marcadas por explosões de violência na co- riorado centro histórico da cidade remonta à
munidade. Conseguir acomodar a diversida- época colonial e pré-colombiana, enquanto
de criada pelos imigrantes recém-chegados - as zonas residenciais da classe média e dos
sejam nacionais ou transnacionais - mesmo abastados no interior são separadas do res-
de forma parcial ou temporal é o objectivo tante da cidade por uma miríade de barrei-
primordial na hora de pensar como devemos ras físicas, psicológicas e simbólicas.6 Essas
organizar a heterogeneidade. divisões têm uma longa história. Os coloni-
zadores espanhóis transformaram a cidade -
que surgiu como um importante centro no
Remodelação do espaço, norte do Império Inca no final do século XV
aprender com Quito - num importante centro colonial estabeleci-
do em conformidade com as Leis da Índia de
Reconfigurar o espaço público de modo a in- inspiração grega de 1523. Uma explosão de
centivar as várias comunidades que integram industrialização pós-colonial levou a uma
a cidade para compartilhar uma experiência expansão dramática da cidade no virar do
mútua de comunidade representa um desa- século XX, ao qual o desenvolvimento mo-
fio incómodo para os líderes municipais no derno orientado para a indústria automóvel
momento em que os meios buscam separar- adicionou centros comerciais alternativos e
-se eles próprios da sociedade em geral. As bairros residenciais para os abastados no fi-
recompensas políticas e económicas favore- nal do século.7
cem os esforços para a privatização do espa-
ço através da concessão de privilégios a pro- Na década de 90, o centro histórico da cida-
jectos comerciais ou através da construção de de Quito continua a ser o ponto fulcral da
de muros e portões. A paisagem fragmentada vida política e religiosa local, enquanto um
resultante acentua a diferença ao invés de novo centro comercial na zona norte tinha
promover um senso de destino compartilha- emergido como o lar de grandes empresas
do. Isto é especialmente verdade nas cida- internacionais. Os migrantes que fogem da
des que lutam para gerir a migração de um pobreza rural foram atraídos para as praças
interior rural pobre, ao mesmo tempo que da cidade colonial e para os monumentos,
estabelece relações com uma economia ca- os bairros mais antigos de Quito tornaram-
pitalista global.5 Previsivelmente, poucas ten- -se o lar de uma vibrante economia informal
taram revigorar os seus centros das cidades dominada por vendedores ambulantes. Os
para atrair capital internacional, ampliando a líderes municipais começaram a encontrar
presença e a participação dos seus morado- maneiras de atrair turistas internacionais e
res mais pobres. Quito, Equador, marca um da burguesia local para o centro da cidade,
contra-exemplo importante para a persegui- que oferecia os símbolos que tinham sido
ção global explícita da exclusão social. partilhados no passado.
Como toda a América Latina, Quito está
dividida em diferentes zonas territoriais,
6
Para uma discussão mais aprofundada sobre o desen-
volvimento de Quito, consulte Fernando Carrión e Lisa
M. Hanley, Regeneração Urbana e Revitalização nas
Américas: Rumo a um estado estável (Washington, DC:
5
Susan Chrisopherson, «A Cidade Fortaleza: Espaços Kennan Institute of the Woodrow Wilson Center, 2007).
Privatizados», em Ash Amin, editor, Pós- Fordismo: Um 7
Lisa M. Hanley e Ruthenburg Meg, «As consequências
leitor (Oxford: Blackwell Publishing, 1994), pp 409- simbólicas de Revitalização Urbana: O Caso de Quito,
427. Equador», em Ibid., Pp 177-202.
68 Os novos desafios da vida urbana
8
Fernando Carrión M., «O Centro Histórico como um
objecto de desejo», Ibid, pp 19-65; Garcés Eduardo
Kingman e Ana Maria Goetschel, «O património como
um dispositivo de disciplina e banalização da memória:
uma leitura histórica dos Andes», Ibid, p.
9
Como foi o caso da maior cidade do Equador, Guaya-
quil, durante os últimos quinze anos. Veja X. Andrade,
«Mais Cidade, Menos Cidadania: Renovação urbana e 11
Ibid.
a aniquilação do espaço público», Ibid, pp 107-141. 12
Lisa M. Hanley e Ruthenburg Meg, «As consequên-
10
Mena Diego Carrión, «Quito: Os Desafios de uma cias simbólicas de Revitalização Urbana: O Caso de
Nova Era». Ibid., p. 151-156. Os Novos Desafios da Quito, Equador», Ibid, p. 214-215.
Vida Urbana. 13
Ibid., Pp 198-199.
Lidar com a heterogeneidade 69
14
Walberg Peder, Martin McKee, Shkolnikov Vladimir,
Raphaelle Laurent, Leon A. David, «Mudança Econó- 18
Pavel Viacheslavovich Rusakov nasceu com grande
mica, Crime, Crise e Mortalidade na Rússia: Análise aparato como o habitante número 5,000,000 de Leni-
Regional», British Medical Journal, v. 317 (7154); 1 de negrado a 25 de Fevereiro de 1988. «S dnem rozhde-
Agosto de 1998. niia, Leningradets!», Sovetskaia Rossiia (February 26,
15
Irina Titova, «A esperança de vida russa em queda», 1988). Os números oficiais do Censo de 2002 da Fe-
St. Petersburg Times (17 de Janeiro de 2003). deração Russa podem ser encontrados no Serviço de
16
Vladimir M. Shkolnikov, Alexander D. Deev, Øystein Estatísticas, Números e Distribuição da População do
Kravdal, Tapani Valkonen, «As diferenças educacionais Estado da Confederação Russa: Resultados de todos os
na mortalidade masculina na Rússia e norte da Europa. censos russos de 2002 (Moscow: Russian Federation Fe-
Uma comparação de um estudo epidemiológico gera- deral State Statistics Service, 2004), Vol. 1, p. 93.
cional de Moscovo e São Petersburgo com as popula- 19
Sobre a população recente de São Petersburgo, con-
ções masculinas de Helsínquia e Oslo», Demographic sulte o site oficial do Governo da Cidade de São Peters-
Research, vol. 10, article 1, pp. 1-26 (9 de Janeiro de burgo http.//eng.gov. spb.ru/figures/population.
2004). 20
De acordo com o site oficial do Governo da cidade
17
Julie Da Vanzo e Gwen Farnsworth, A crise demográ- de São Petersburgo, a produção industrial cresceu cer-
fica da Rússia (Santa Monica, CA: RAND Corporation, ca de 131.4 % apenas em 2002 http.//eng.gov.spb.ru/
1996). figures/industry
70 Os novos desafios da vida urbana
31
EE Chebotareva, «Tolerância Com Estilo: Análise
28
Ibid, pp. 8–19. Conceptual da Gestão Empresarial num Ambiente
29
Entrevista a Boris Aleksandrovich Koptin, 25 de Abril Multi-Cultural», trabalho para conferência, Conferência
de 2007. Internacional Académica-Prático sobre Tolerância e In-
30
Pravitel’stvo Sankt-Peterburga Komitet po vneshnim tolerância na Sociedade Moderna, Universidade Estatal
sviaizam, «Programma garmonizatsii mezhethnicheski- de São Petersburgo, São Petersburgo, Rússia, em 25 de
kh I meshkul’turnykh otnoshenii, profilaktiki proiavlenii Abril de 2007.
ksenogobii, ukrepleniia tolerantnosti v Sankt-Peterburge 32
«Saban tuyi», na Enciclopédia Tártara (Kazan‘: Insti-
na 2006 - 2010 gody (programma «Tolerantnost»)», pp. tuto da Enciclopédia Tártara, Academia de Ciências da
12-13. Républica do Tártar istão, 2002).
72 Os novos desafios da vida urbana
dos com muita comida e música que vão O início do programa de tolerância na cida-
desde coros folk à música rock estridente. de pode parecer surpreendente relacionada
Os presidentes Russos Boris Yeltsin e Vladi- com a imagem generalizada do desenvol-
mir Putin, têm abraçado a festa como uma vimento político russo contemporâneo que
maneira aparentemente benigna para de- acentua um afastamento das instituições da
monstrar a diversidade do seu país, embo- sociedade civil, uma tendência em direc-
ra o Sabantuyi mantenha um forte senso de ção à retórica nacionalista e uma crescen-
identidade Tatar autónoma. te separação entre o Estado e sociedade. A
experiência de São Petersburgo sugere que
O Sabantuyi de São Petersburgo é realizado esse entendimento convencional da política
fora da cidade, na vizinha região de Leni- contemporânea russa é limitado. Mais signi-
negrado com o apoio do governo da cida- ficativamente, o programa de tolerância de
de, das administrações regionais, federais e São Petersburgo indica que as autoridades
da Tartária, bem como o apoio de grandes da cidade não têm de ser inibidas nos seus
empresas locais.33 Mais de 60 mil compare- esforços para enfrentar os desafios da hete-
ceram no Sabantuyi de 2006, duplicando o rogeneidade pelas limitações de um maior
número de pessoas a fazerem o caminho de ambiente político nacional.
menos uma hora até ao norte da cidade em
2007 para um campo ao longo da autoestra- O impacto do programa de tolerância de
da Siargi fora da vila de Kuzmolovo. Uma São Petersburgo está longe de ser certo.
vez lá, os residentes de São Petersburgo pas- Ataques de gangues eticamente e racica-
sam o dia a desfrutar de passeios, a explorar mente inspirados continuam com uma fre-
exposições culturais Tártaras, e a ouvir uma quência assustadora nas ruas da cidade,
variedade de música a partir de três grandes no sistema de transportes públicos e nos
palcos. parques e outros espaços públicos. A res-
posta da Polícia a tais incidentes continua
Para as autoridades locais, as celebrações a ser decepcionante, enquanto o sistema
Sabantuyi representam um esforço para tor- judicial se esforça para dar seguimento aos
nar a diversidade «normal» e «confortável». julgamentos. Os orçamentos para financiar
Vêem a popularidade óbvia do festival como estes programas de actividades são inade-
uma oportunidade de espalhar a palavra de quados.
que o convívio com pessoas que são diferen-
tes - pelo menos no ambiente controlado de A mudança profunda teve lugar na sequên-
um encontro empresarial e reuniões patro- cia da resposta de São Petersburgo à intole-
cinadas pelo município - não é ameaçador. rância cultural e racial ao longo dos últimos
Essa forma doméstica de interacção cultural dois a três anos. O governo da cidade e os
é vista como um reforço das qualidades da seus líderes estão firmemente a condenar a
sua cidade. Não menos importante, as au- intolerância e a violência. As agências da ci-
toridades acreditam que o Sabantuyi ajuda dade promovem activamente oportunidades
as pessoas a perceberem que «a diversidade para destacar as contribuições dos diversos
pode ser divertida».34 grupos económicos para o bem-estar geral
da cidade. Os funcionários municipais abra-
çam publicamente a diversidade com mais
33
Por exemplo, o Grupo Interleasing foi um dos prin- entusiasmo do que nunca antes na história
cipais patrocinadores corporativos para o Sabantuy de russa. Finalmente, esforços a longo prazo
São Petersburgo de 2007 (www.ileasing.ru). estão em curso para assegurar que os futuros
34
Entrevista com Boris Aleksandrovich Koptin, 25 de
Abril de 2007. residentes de São Petersburgo considerem a
Lidar com a heterogeneidade 73
diversidade como sendo uma maneira de es- ção de imigrantes do exterior.39 Em segundo
tar comum no século vinte e um.35 lugar, os migrantes para Montreal, como em
todo o Canadá, têm cada vez mais chegado
das Caraíbas, África, Ásia e América Latina.40
Tirando benefício da diversidade, Em terceiro lugar, os imigrantes de Montreal
aprendendo com Montreal vieram cada vez mais das sociedades de lín-
gua francesa na África, Caraíbas, e Sudeste
Montreal tem evoluído ao longo do último Asiático.41 Uma consequência dessas ten-
terço do século de uma cidade dividida en- dências surgiu na contagem do Censo de
tre dois fundamentos linguísticos e comu- 2001 no Canadá, que revelou que «minorias
nidades culturais - Francês e Inglês - numa visíveis» tinham-se tornado quase um quinto
complexa metrópole inter-cultural enraizada (18,7%), da população global da cidade.42
no conhecimento geral comum do Francês.36
Na maioria dos recentes anos, a economia Esta transformação é mais evidente nos prin-
da cidade tem-se expandido dado que uma cipais bairros transnacionais de Montreal,
comunidade de líderes de negócios e de di- tais como o Côtes-des-Neiges e o vizinho
rigentes políticos aprenderam a tirar proveito
destas mudanças. Na verdade, a migração
transnacional para Montreal durante os pri-
meiros anos do século XXI tornou-se essencial
para o bem-estar da cidade dadas as precipi-
tadas projecções contrárias, de queda da po-
pulação total e da força da migração laboral.37
Notre-Dame de Grâce43. Por vezes conheci- Dadas as inimizades históricas entre angló-
do como o «Bronx» de Montreal, o Côtes- fonos e francófonos bem como entre católi-
-des-Neiges em particular, tornou-se casa cos e protestantes «que são», nas palavras da
para os Africanos, os Árabes, os Camboja- jornalista do La Presse Laura Julie Perreault,
nos, os Judeus, os Filipinos, naturais do Laos, «uma espécie de milagre através do qual
Vietnamitas, Chineses, Latino-Americanos, Montreal não se tornou uma segunda Irlan-
Portugueses, Haitianos, e membros de vá- da do Norte».47 Pelo contrário, como reporta
rias outros grupos que vivem em estreita Perreault, o antigo regime multi-confessio-
proximidade uns com os outros.44 Na déca- nal da cidade com 350 anos tornou-se uma
da de 90, os bairros Côtes-des-Neiges e o ferramenta de marketing para a indústria
Notre-Dame de Grâce eram casa para mais burguesa do turismo da cidade. O resultado
de 154 mil moradores que sustentam os flo- nem sempre é feliz, como se pode ver nos
rescentes distritos dominados por pequenas romances populares de Stephen Henighan
empresas locais de investidores étnicos.45 As sobre Montreal do final de nosso século.
empresas locais estavam a produzir receitas Para citar o autor de uma revisão da história
de publicidade durante o início dos anos 90 de Henighan de 2004 «As Ruas do Inverno»,
suficientes para apoiar duas dezenas de jor- os habitantes de Montreal são incapazes, ou
nais das etnias e dos bairros publicados em não querem abrir mão do preconceito indi-
diversas línguas africanas, árabe, camboja- vidual e cultural, nostalgia e da expectativa
no, hebraico, filipino, laociano, vietnamita, que os aliena nas suas buscas pela verdadei-
chinês, latino-americano, crioulo francês, ra Montreal. Uma vez profundamente divi-
francês do Quebéc, e inglês.46 dida pela linguagem, Montreal converteu-se
«numa grelha de muitas solidões».48
Montreal entrou no século XXI com uma
mistura surpreendente de comunidades étni- Esta «grelha de solidões» tem recuperado
cas, religiosas, raciais e linguísticas, muitas algum do seu dinamismo económico histó-
vezes sem limites bem definidos entre elas. rico em parte porque os novos habitantes
de Montreal foram chegando todos os dias.
Migrantes de zonas próximas do Quebec,
43
Côte-des-Neiges tem sido objecto de extensa pesqui- no Canadá, e mais além representam novas
sa em ciências sociais, em parte devido ao seu carácter
diverso e complexo e, em parte, devido à presença no adições críticas a uma força de trabalho
bairro da Universidade de Montreal e do seu corpo do- que, de outra maneira, poderia estar em de-
cente e estudantes. Uma excelente colecção de artigos clínio acentuado. O crescimento futuro da
sobre diversos aspectos da vida do bairro na década economia regional de Montreal depende da
de 1990 pode ser encontrada em: Deidre Meintel, Vic-
tor Piché, Danielle Juteau e Sylvie Fortin, editores, Le actualização do perfil de competências e da
Quartier Côtes-des- Neiges Montreal um. Les interfa- entrada de trabalhadores mais jovens numa
ces de la pluriethnicité, (Montreal / Paris: L’Harmattan, população envelhecida que tem ficado
1997). atrás do Canadá e das regiões metropolita-
44
Myriame El Yamani com o auxílio de Jocelyne Dupuis:
«Bronx» construção La mediatique du de Montreal, em nas dos EUA em resultados de educação.49
idem, pp 29-52. Os migrantes têm reforçado a vitalidade
45
Daniel e Sylvie Juteau Paré, «empreendedorismo
L’Côtes-des-Neiges: le périmètre Victoria / Van Horne»,
em Ibidem, p. 129-160. 47
Laura Julie Perreault, «Embouteillage sur le dieu - pris
46
47 Myriame El Yamani com o auxílio de Jocelyne Montrealais», La Presse (12 junho de 2004).
Dupuis, «A construção mediática do «Bronx» de 48
Solie Karen, «As muitas solidões em Montreal», Glo-
Montreal» p.35. Para uma discussão mais alargada da be and Mail (12 de Junho, 2004).
imprensa «étnica» de Montreal, ver Sylvie St-Jacques, 49
«Análise Territorial da OCDE de Montreal», OECD
«Des Nouvelles de leurs mondes», La Presse (21 de Observer Policy Brief (Paris, OCDE, 2004), p. 2-3
Abril, 2004). (www.oecd.org/ publications /) Pol_brief.
Lidar com a heterogeneidade 75
económica da cidade e da região e devem ves estudos de caso revelam o quão difícil é
continuar a agregar valor à economia local a tarefa de reorganização das comunidades
se a cidade está a prosperar. A experiência urbanas para a heterogeneidade poder ser.
de Montreal demonstra a necessidade de in- O espaço público foi reconfigurado em Qui-
culcar migrantes urbanos em estratégias de to, para ser mais abrangente; os currículos
desenvolvimento económico. A diversidade escolares foram reescritos em São Petersbur-
deve ser reconhecida como uma oportuni- go para promover a tolerância, e o empreen-
dade para o sucesso económico para que a dedorismo; Montreal criou mais empregos
cidade e a região se desenvolvam economi- entre os migrantes transnacionais. Poucos
camente. visitantes e residentes iriam identificar estas
cidades como sendo um ideal urbano.
Josep Ramoneda
1. Julien Gracq, um peculiar escritor francês única imagem para definir a forma de Barce-
que sempre foi considerado um inadaptado lona, ser-nos-ia mais útil recorrer ao Ensan-
aos tempos que correm, num livro sobre a che que à Sagrada Família, a Gracia que a
sua cidade natal - Nantes - fala da forma da La Pedrera. No fundo, a forma de Barcelona
sua cidade1. A forma da cidade tem que ver é uma série de povoações agrupadas como
com a sua representação mas também com teias de aranha, ou ensanche (extensão),
a maneira de viver. Quando a cidade perde que as insufla de nova vida. Por isso, fala-
a sua forma - a caligrafia própria e irrepetível -se frequentemente de Barcelona no plural
- deixa de ser cidade para se converter em Barcelonas (Manuel Vasquez Montálban) ou
«urbanalização» (dormitório), utilizando a as Barcelonas de Barcelona. O resultado é
expressão com que Francesc Muñoz identifi- uma forma peculiar em que a racionalidade
ca a multiplicação de espaços habitacionais de fundo só conseguiu penetrar, em parte,
sem vontade cívica, consagração da pior nos espaços mais distorcidos das velhas po-
versão do individualismo burguês, que vão voações que hoje compõem Barcelona. Este
tomando os círculos concêntricos de habi- jogo duplo é a forma da cidade. A mesma
tação que se expandem como as ondas das que acolhe uma avalancha desconhecida de
águas no rio, nos arredores das cidades. imigração estrangeira, tornando realidade
aquela ideia de Dipesh Chakrabarty de que
Da forma da cidade falam pouco os meios sempre vivemos em moradas, lugares onde
de comunicação. Provavelmente é uma outros estiveram antes de nós2. Precisamente
questão demasiado subtil para captá-la. E já por isto, a forma da cidade é como que um
se sabe que as subtilezas não têm demasia- desleixo que, pela sua forma arquitectural e
do espaço na simplificação mediática. A for- urbana, marca e determina o espírito da ci-
ma da cidade é física mas física vivida, por dade. Isto fá-la diferente de todas.
assim dizer, habitada. O Plano Cerdà não é a Os media são transmissores da forma da ci-
forma de Barcelona, é o Ensanche/Extensão dade? Temo muito que não.
do plano Cerdà, convertido em carne, isto
é, trabalhado pelas pessoas. Mas a forma 2. Os media dirigem-se à cidadania. E a ci-
da cidade não é configurada pelos edifícios dadania é a peça angular da cidade. No dia
emblemáticos, museus, lojas, bares, restau- de hoje não se conhece espaço mais aberto
rantes que aparecem nos guias turísticos. a um reconhecimento mais amplo da con-
dição de cidadão que a cidade. Os Estados
Em todo o caso isto pode ser a propaganda. põem todo o tipo de problemas para o re-
A forma da cidade é mais complexa e di- conhecimento da condição de cidadão aos
fícil de monumentalizar, de reduzir a uma que vêm de fora. Os Estados vivem da divi-
imagem. Se tivéssemos que recorrer a uma são entre nacionais e estrangeiros o que para
2
Dipesh Chakrabarty: «Humanism in an Age of Glo-
1
Refiro-me ao livro de Julien Gracq: «La forme d`une balization», minuta da conferência pronunciada em
ville». Ed. Jose Corti. Paris, 1986. Essen, 2006.
80 Os novos desafios da vida urbana
nós é factor de coesão. Ainda em tempo de não ocupe mais de dez segundos. O ideal
restrições aos fenómenos migratórios como televisivo é a confrontação simples conver-
os actuais, as cidades têm a mão mais aberta tida em espectáculo. Neste sentido este será
que os Estados. Em Barcelona basta recen um prolongamento da cena democrática: se
sear-se para obter os direitos básicos como a o parlamento é a sublimação dialéctica do
assistência médica. É a maneira de levar os conflito, a cena televisiva será um estádio
ilegais pelo caminho da cidadania. mais nesse exercício.
3
Veja-se Daniel Bell: «As contradições culturais do ca- 4
Sobre este tema é muito interessante o ensaio de
pitalismo», Alianza Editorial, Madrid, 1976 e Herbert Michela Marzano: «La mort espectacle. Enquête sur
Marcuse: «One Dimensional Man», Beacon, Boston, l`horreur-realité». Gallimard, Paris, 2007.
1964 (edição espanhola de Seix Barral, 1968).
Os media, a cidade e a educação. Entre o hiperactivismo e a indiferença 81
degradação da phisis (desgaste físico)5. Aqui xidade cultural grande. Na cidade mistura-se
convido alguns autores a criar realidade o cosmopolitismo com o discurso identitário
através da literatura como forma de resistên- e por entre as mínimas pautas partilhadas
cia ao êxtase (exasperação e decomposição) emergem várias formas de transversalidade
da informação e como resposta ao eufemis- cultural e novos imaginários que, embora
mo na linguagem política6. sejam tecidos aqui, têm a música original
em lugares muito distantes.
O paradigma televisivo é o que domina a
cena política. É certo que fracassaram as pro- A primeira coisa a ter em conta é que os
fecias que anunciavam a morte dos meios de meios de comunicação de massas são uma
comunicação antigos sempre que aparecia janela virada para fora num ambiente priva-
um novo. Nem a rádio acabou com a im- do que presta informação a que a maioria
prensa escrita, nem o cinema com a rádio, dos cidadãos nunca tinha tido acesso. Pode
nem a televisão com a rádio ou o cinema, ser uma informação superficial, banal, tudo
nem (de momento, pelo menos) o telemóvel o que se quiser. Só vendo televisão - e quase
e a internet com a televisão, com a rádio, toda a gente vê - se aprendem coisas e se
o cinema e a imprensa. Mas, hoje em dia, acede a uma variedade de informação vinda
quem manda é o paradigma televisivo. É fá- de todos os lados que antes era privilégio de
cil ver como os outros meios - até toda a im- uma reduzidíssima minoria.
prensa - tentam adaptar-se às suas leis. Basta
ver a evolução das maquetas e o tipo de le- Esta flui evidentemente a jorros, pouco orga-
tras dos jornais nos últimos anos. É através nizada do ponto de vista pedagógico e mais
da televisão que o efeito ressonância, assim virada ao entretenimento e a uma socializa-
chamado pelos estrategas da comunicação, ção plana das pessoas. No entanto, quem
se torna eficaz. O importante é o zum-zum pensar que os tempos passados eram melho-
que uma informação deixa, o ruído que che- res engana-se.
ga àqueles que nunca lêem um jornal.
Precisamente o fluxo informativo, que os
3. Perante este panorama, sucintamente des- meios de comunicação de massas nos en-
crito, qual é a contribuição dos meios de viam, torna natural a diversidade de opiniões
comunicação de massas - imprensa, rádio e maneiras de ser, o que não é banal por-
e televisão (Internet é outro mundo à parte) que a aceitação do outro, o reconhecimento
- para a educação das pessoas, logo para a de que não existe apenas uma maneira de
construção da cidadania? entender o mundo, custou muito sangue à
humanidade. Os meios de comunicação fa-
Zygmunt Bauman afirma que a «cidade é zem com que a liberdade de expressão se
um lugar onde os estranhos co-existem sem vá incorporando na cidadania como uma
deixarem de ser estranhos»7, quer dizer, é segunda pele e, que quando esta não exista,
um espaço de relação polivalente e a níveis ela seja notada e vivida como uma mutila-
muito diferentes. Isto significa uma comple- ção inaceitável.
4. Mas avancemos um pouco mais. Nem formação das pessoas, submetidas ao dever
todos os meios de comunicação actuam de comprar permanentemente a felicidade9.
da mesma maneira. A imprensa escrita Cada vez é mais difícil concentrar o esforço,
está a tornar-se cada vez mais minoritária, fixar a atenção. Já não é o esquecimento de
destinada a um sector da população, os qualquer forma contemplativa ou delibera-
que lêem. Tem, portanto, uma função mais tiva, é a necessidade de estar simultanea-
complementar. Ultimamente alguns jor- mente dependente de meia dúzia de coisas.
nais optaram por se libertar, como forma Diante da televisão não há calma para o
de sobrevivência, da atracção fatal que é o espírito, tudo conduz aos extremos: hiper-
paradigma televisivo para se situarem num -acção ou indiferença. De certo modo, um
terreno de reflexão e debate mais próprio alimenta o outro. Interessar-se por tudo ou
da cultura democrática. A rádio que chega interessar-se por nada é bastante parecido.
mais directamente ao ouvinte estimula mais
que qualquer outro media as reacções de Nos tempos de hoje, em que diferentemente
carácter sentimental. Não é em vão que é do que se passou ao longo da existência da
um media quente. Importante nas batalhas humanidade, a informação não é um bem
políticas é, em muitos aspectos, um meio de escasso, bem ao contrário, é excessiva; o
combate. Para demonstrar o poder da voz, problema é como orientar-se num mar de
vou contar uma experiência pessoal. Pre- inputs. A hierarquização e a ordenação são
parando a exposição «O Ocidente visto do decisivas. E a televisão é o máximo hierar-
Oriente», ponderámos se deveríamos pôr ou quizador. Por isso a sua responsabilidade
não vídeos das execuções de cidadãos oci- educativa é extraordinária. E, por isso tam-
dentais sequestrados pelo terrorismo islami- bém, poderíamos dar a volta à questão: a
ta. Perante a crueza das imagens tentámos a única maneira de tornar positivo o impacto
opção de deixar só o som. Era muito mais in- da televisão é proporcionar um bom ensino
suportável. Finalmente, cingir-me-ei à televi- para que as pessoas se tornem intelectual-
são que continua a ser o primeiro alimento mente adultas diante do écran. Mas a televi-
espiritual dos cidadãos. são é o media a que se chega logo quando
se é pequeno.
Era Georg Simmel que dizia que a vida urba-
na gera ansiedade, estímulos nervosos que De uma maneira acrítica foi-se aceitando
determinam a sensibilidade do homem mo- um tópico da sociedade liberal moderna:
derno8. Eu creio que a televisão com a du- que os meios de comunicação privados têm
pla publicidade-zapping se converteu num campo livre para fazer o que agrada ao pa-
mecanismo de activação nervosa que trans- trão na sua luta sem limites pela audiência e
forma os seus utilizadores em potenciais que são os meios públicos, financiados pe-
hiperactivos. Hiperactivos especialmente los impostos dos cidadãos, que devem co-
orientados para uma tarefa precisa: a insa- brir os deficits comunicativos. Se pensarmos
tisfação permanente no consumo. A necessi- que a única coisa que costuma diferenciar
dade cada vez mais acelerada de lutar para os públicos dos privados é o facto dos noti-
conseguir uma compra nova ainda antes de ciários dos primeiros estarem sob a tutela di-
possuir a última acabada de pagar. Esta di- recta do governo, esta distinção é ainda mais
nâmica, nestes tempos acelerados, dá-me absurda. A audiência é a obsessão de toda a
a impressão de ter sérias consequências na televisão, pública ou privada. Esta audiên-
8
Georg Simmel: «A metrópole e a vida moderna». Des- 9
Por exemplo, Pascal Bruckner: «A vida boa» («La vie
te texto há várias versões em espanhol na internet. bonne»). Breus, CCCB, Barcelona, 2006.
Os media, a cidade e a educação. Entre o hiperactivismo e a indiferença 83
cia é o resultado de um sistema enviesado uma opinião tão equivocada sobre a televi-
porque a oferta é orientada e restringida e são. De um país onde sucede um atentado
a procura tem uma capacidade limitada de terrorista só nos chegam imagens de horror,
fazer-se ouvir. O discurso sobre a audiência não sabemos nada da absoluta normalidade
é feito com base num engano: as emissoras do resto. Tudo isto conduz-nos a um ponto, a
dizem que fazem o que a gente quer ver e meu ver, essencial: a televisão tem um papel
a gente diz que só pode ver aquilo que nos fundamental na construção da ideologia do
oferecem; basta observar a semelhança que medo tão viva no ocidente onde, em nome
há entre todas as cadeias. E, apesar de, os da segurança, todos os dias se cortam liber-
programadores de televisão serem pessoas dades perante a indiferença geral. O medo,
com uma importância determinante na for- como se sabe, é desmobilizador – lida com
mação da cidadania, o seu critério não é o a indiferença e a não solidariedade. Qual o
da cidadania mas o da audiência. sentido de uma educação que faz prevalecer
estas duas atitudes?
5. Na televisão não há vontade de educar.
No fundo, a vontade é de negócio e con- 6. Conclusão: A sociedade onde predomi-
trolo político que emana de um equilíbrio na a televisão tem mais quantidade de in-
complexo entre proprietários dos meios de formação que qualquer outra até aos nossos
comunicação (e seus interesses), Estado re- dias. Porém, esta informação não contribui
gulador e profissionais dos meios. A capa- forçosamente para melhorar a capacidade
cidade de incidência da televisão é grande; de emancipação dos cidadãos – isto é, para
daí ser um instrumento poderoso que os po- pensar e decidir por eles mesmos. Exacta-
deres querem ter sob controlo. Há montes mente o contrário, tende a activar neles os
de exemplos da sua utilização político-eco- frames, como definem os sociólogos ame-
nómica. Mas às vezes também lhes sai o tiro ricanos aqueles hábitos mentais instalados
pela culatra como aconteceu em França nas que nos levam a que vivamos determinadas
vésperas das presidenciais de 2002. Durante coisas como próprias, simplesmente porque
meses as televisões privadas estiveram atu- assim as foram inculcando no nosso espíri-
lhadas de informação sobre criminalidade. to desde pequenos. A televisão não é uma
Tratava-se de criar um clima de insegurança escola de atitude crítica. Esta ou se aprende
que fizera perder o então primeiro ministro antes ou uma vez diante do televisor, já é tar-
Jospin. Mas o resultado foi que Le Pen pas- de. O televisor só favorece a acomodação, a
sou à segunda volta no meio do pânico ge- indiferença; tende a isolar, fomentando um
ral. De um só golpe, desde a primeira noite individualismo acrítico que tem pouco do
eleitoral, a criminalidade desapareceu dos individualismo moderno e que, em troca dos
noticiários como se a delinquência tivesse seus vícios traz, por exemplo, o desinteresse
desaparecido por milagre. pelos outros.
Existe um problema estrutural entre infor- A televisão deveria ser «para maiores com
mação e formação. A origem está na pró- reservas». Mas afortunadamente estamos
pria definição de notícia. A singularidade do numa sociedade aberta e ela é o meio de
facto que merece a condição de noticiável. comunicação que está ao alcance de todos.
Diz-se: não é notícia se um cão morde um Tenho a impressão que, se se ensinasse a ver
homem; notícia é, se um homem morde um televisão, o rendimento educativo que se
cão – desviando-se a informação para o lado poderia retirar dela seria maior mas talvez
mais negativo, sem que venha acompanha- então a primeira consequência fosse que a
da de uma visão crítica das coisas. Daí surgir veríamos menos.
Competitividade e cooperação.
Justiça e paz
Arcadi Oliveres
tais carências têm um impacto mais doloro- prática de levar a termo as iniciativas legisla-
so quando se trata de populações concentra- tivas populares e constata-se finalmente que
das especialmente nas periferias das grandes os municípios, o primeiro escalão da demo-
cidades. cracia, apenas dispõem de 16% dos fundos
públicos frente aos 53% que corresponde ao
Assim, tais mecanismos, não só impedem governo central.
que se mantenha a dignidade de muita gen-
te, como também geram diferenças crescen- Se ascendermos à escala europeia e mun-
tes entre as populações do Norte e do Sul dial temos, sem dúvida de lamentar a prática
e as do interior de cada país. Se nos anos inexistente de democracia. Um Parlamento
cinquenta do século XX há uma relação de Europeu sem plenas faculdades legislativas,
30 para 1 na dimensão do PIB per capita en- umas Nações Unidas com um voto para
tre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres cada estado e, portanto completamente des-
da população mundial, na actualidade esta proporcionado em relação à sua população,
diferença situa-se numa relação de 103 para um Conselho de Segurança com um incom-
1. E o mesmo, ainda que numa proporção preensível direito de veto para cinco países
mais pequena, encontraríamos no âmbito privilegiados, umas instituições como as de
interno dos estados onde, ao mesmo tempo, Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo
aumenta a participação do rendimento do Monetário Internacional) onde o voto cor-
capital e diminui o rendimento do trabalho responde à sua cota, demonstra-o de forma
no PIB total. Em ultima instância, as cidades manifesta. E tudo isto sem esquecer que, aci-
repetem o mesmo esquema e provavelmente ma dos organismos formais, são os poderes
de uma forma mais agravada. de facto, desde o G-8 ao Fórum Económico
de Davos, desde a Câmara de Comércio de
Bruxelas ao Clube Bilderberg, que determi-
3. A governabilidade nam impunemente nomeações, políticas,
democrática em questão decisões económicas e acções bélicas.
Em sentido estrito, a politica é o governo da Por outro lado, se a liberdade das pessoas
«polis», isto é, da urbe e seguramente que as é um imperativo da democracia, podemos
primeiras experiencias democráticas apare- observar como tal liberdade diminui a pas-
ceram nas cidades. Não obstante, as actuais sos largos em função do crescimento do
formulações da democracia representativa controlo social. As máquinas fotográficas
deixam muito a desejar a todos os níveis. em lugares públicos e privados, as ilegais
Começando desde um dos instrumentos bá- escutas telefónicas, a dissecação fotográfica
sicos da participação dos cidadãos, que são do território, o controlo do correio electró-
os partidos políticos, constatamos imedia- nico e de entradas na Internet, a informati-
tamente três deficits importantes: a falta de zação de qualquer tipo de dados pessoais,
eleições «primárias» para escolher os seus etc. Funcionam com pleno resultado justifi-
candidatos, a prática da inexistência de lis- cados por falsos medos de terrorismos que,
tas abertas e as disputas que as suas neces- frequentemente, são promovidos pelos go-
sidades de financiamento geram com os po- vernos e, quando o não são, precisam de
deres económicos. A nível estatal, as coisas outras formas de resposta. Novamente, são
não melhoram e vemos como se descrimina os habitantes das cidades os que suportam
entre cidadãos de primeira e de segunda ao a pior parte destes ataques à intimidade e à
não conceder-se o direito de voto aos imi- privacidade.
grantes. Observa-se ainda a impossibilidade
Competitividade e cooperação. Justiça e paz 89
estimativas dos organismos internacionais, UNESCO na sua carta de fundação, faz falta
na actualidade, este já atinge a cifra de apagar as guerras da nossa mente. É eviden-
1.200.000 milhões de dólares anuais, isto te, que hoje não se pode falar de guerra justa
é, 22 vezes mais do que a Organização sob nenhum pretexto e se entendemos, tal
Mundial da Agricultura e Alimentação como alguns disseram, como guerra justa a
(FAO) crê que faria falta para a eliminação que os aliados levaram a termo no ano de
anual da fome no mundo. Em segundo 1991 para reconquistar o Kuwait, com bai-
lugar, aparecem as surpreendentes cifras de xas de 300 soldados norte-americanos, com
pessoal adstrito às forças armadas, uns 26 270.000 iraquianos mortos e com o posterior
milhões de pessoas, quando, segundo as embargo que gerou, segundo a Unicef, mais
Nações Unidas, seria mais do que suficiente de um milhão de vítimas entre as crianças
meio milhão de capacetes azuis em todo o menores de cinco anos, será necessário que
mundo para apaziguar os possíveis focos reexaminemos de forma imediata e profun-
e situações de conflito. Em terceiro lugar, da os nossos conceitos morais. De qualquer
a mais que perversa investigação com modo, se o conflito já estalou deveremos
fins militares, apesar da sua inaceitável proceder rapidamente a negociações de paz
dimensão ética, justifica-se com a desculpa incondicionais.
do aproveitamento civil das suas inovações.
Desculpa insustentável já que, está mais O processo de pacificação deverá continuar
que demonstrado que este aproveitamento com o desarmamento nuclear e convencio-
é escassíssimo, e que a via de transferência nal, com a redução dos efectivos das forças
da tecnologia parte do civil para o militar, armadas, com a destruição dos arsenais e
que as novas descobertas em armamento a reconversão da indústria militar para fins
alcançam níveis absolutamente degradantes civis. Como quase sempre se trata de deci-
no que respeita às pessoas humanas. Em sões políticas, deveria ter-se em conta que
quarto lugar, a produção e transferência de estas hão-de ser impulsionadas por pressão
armamentos que pressupõe, frequentemente, dos cidadãos mediante os movimentos so-
um fluxo Norte-Sul que enche de benefícios ciais e os compromissos individuais. Neste
os países ricos ao mesmo tempo que leva momento ninguém negará a razão moral
a guerra aos empobrecidos. Em paralelo, que acompanhava todos os que se manifes-
o tráfico de droga produz-se em direcção taram contra as provas nucleares, a guerra
inversa, e muitas vezes pode falar-se de do Vietname ou a invasão do Iraque, para
armas que se pagam com droga e de falar de casos concretos. Da mesma manei-
drogas que se pagam com armas. Por outro ra que agora todo o mundo já entendeu as
lado, esta actividade de venda de armas, é razões dos objectores de consciência ao ser-
indigna e indignante no caso espanhol que viço militar e que começam a ser entendidas
ocupa um lugar destacado como exportador as objecções fiscais, financeiras, laborais e
mundial e como fornecedor de munições científicas com tudo aquilo que tenha rela-
em guerras africanas, tal como denunciou ção com a preparação da guerra.
Intérmon-Oxfam.
Neste capítulo deixamos para o fim um
Sim, dizíamos que apesar de tudo, a paci- aspecto central como é a educação para a
ficação é possível; em verdade podemos paz. Em primeiro lugar, deve entender-se a
acreditar nisto. Sempre e quando, natu- educação para a paz e, sem dúvida, a paz
ralmente, a vontade pessoal e politica nos em si mesmo, num sentido amplo que pre-
leve à obtenção de determinadas condições. viamente exige a justiça, o desarmamento, o
Como elemento básico, e como bem disse a respeito pelos direitos humanos, a igualdade
Competitividade e cooperação. Justiça e paz 91
social, o desenvolvimento dos povos, o cui- do Norte acolhemos estes fluxos. A resposta
dado pelo ambiente e muitos outros requisi- infelizmente é bastante negativa. Fechamos
tos. Neste sentido, educação para a paz será as nossas portas à sua vinda e possibilitamos
toda aquela que nos leve aos objectivos ci- um tráfico mafioso de pessoas que origina a
tados. Mas evidentemente a educação para sua morte, não lhes damos a documentação
a paz leva-nos também a tomar consciência necessária e colocamo-los em situações de
dos privilégios de que usufruímos nós, os ci- precariedade laboral e social, não lhes da-
dadãos do Norte, à renúncia da competitivi- mos a plenitude de direitos como cidadãos
dade, à exclusão de qualquer tipo de descri- e permitimos o seu mau trato e a sua descri-
minação, de fanatismo e de patriotismo e à minação.
consideração do valor da dignidade humana
acima de qualquer interesse material, indi- É necessário corrigir todos estes mal-enten-
vidual ou colectivo. Em última instância, a didos e estar conscientes de que as migra-
educação para a paz terá de supor também ções são um facto tão antigo como a própria
uma eliminação da violência virtual cada humanidade, que sempre se moveu, fugindo
vez mais presente nos filmes, nas histórias da fome e da guerra. É preciso entender que
de quadradinhos, nas consolas, nos compu- para as sociedades envelhecidas como as
tadores, nos jogos de rol, nos brinquedos bé- europeias a imigração é um maná de juven-
licos e em qualquer instrumento formativo e tude e de força de trabalho, ainda que não
de ócio para crianças, jovens e adultos. seja por isso que devemos recebê-los mas
porque têm todo o direito. Em última instân-
De forma simultânea e complementar a cia, é preciso entender que contrariamente
educação para a paz, a investigação sobre a ao choque cultural, de que tanto se fala, as
paz é básica, sim devemos procurar as origens migrações estão na origem dos nossos há-
dos conflitos e suas possíveis soluções. bitos, costumes, riqueza artística e patrimó-
Paradoxalmente está pouco valorizada em nios literários.
comparação com a investigação para a
guerra. É bom conhecer que nesta direcção e Não obstante, é preciso reconhecer que as
seguindo modelos já consolidados no Norte mútuas inter-relações nem sempre se produ-
da Europa, se iniciou, com a aprovação do ziram da mesma maneira. Algumas vezes,
Parlamento da Catalunha, o Instituto Catalão os processos de enriquecimento e de os-
Internacional para a PAZ (ICIP) que tem mose respectiva funcionaram bastante bem
raízes na Lei do Fomento da Paz e a posterior enquanto noutras circunstâncias se deram
criação do Conselho Catalão de Fomento confrontos, criação de guetos e até situações
para a Paz, órgão consultivo que vincula a de dominação de uns sobre os outros. Na
sociedade civil e as instituições políticas em nossa realidade, trata-se mais de descrimina-
temas relacionados com a paz. ções sociais que étnicas. Assim, por exem-
plo, quando nos inteiramos dos distúrbios
nas «banlieues» francesas, devemos pensar
5. A imigração, chave da vida sobre tudo num protesto pela quebra da
citadina «promoção social» resultante das políticas
laborais e de rendimentos dos governos de
A cidade é o espaço migratório por excelên- direita mais do que lutas entre grupos de po-
cia. As injustiças citadas no 2º capítulo e as pulação procedentes de etnias ou territórios
guerras analisadas no 3º, evidenciam as ra- diferentes.
zões das saídas e dos fluxos de população.
Interessa-nos agora conhecer como a partir Ainda assim, passeando por Barcelona se
92 Os novos desafios da vida urbana
pudermos passar um momento pela Rambla tem origem nos anos cinquenta e cuja efer-
del Raval damo-nos conta de que a convi- vescência começa a partir dos anos setenta
vência é perfeitamente plausível e de que do século XX. Com efeito, uma vez refeitas
ainda estamos a tempo de não cair nas du- as sociedades do golpe da Segunda Guer-
ras realidades vividas em algumas cidades ra Mundial, o mundo ocidental e, de uma
europeias. Agimos bem, sempre que formos maneira particular, as suas empresas dão-se
capazes de travar os traços racistas que so- conta que no consumo se encontra a base
bressaiem em alguns meios de comunica- do lucro e a partir daí começa uma cuida-
ção, de eliminar os espíritos xenófobos de da planificação que, mediante a psicologia
determinados grupos de população autócto- e as técnicas publicitárias investiga as mo-
ne e de praticar políticas públicas, abertas e tivações dos compradores, hipnotiza-os pe-
respeitosas com os imigrantes. rante os produtos, oferece-lhes espaços nos
quais predispõem os cinco sentidos para a
Uma pequena nota à margem, antes de aca- atracção pelas mercadorias, proporciona-
bar este capítulo, sobre o tratamento pouco -lhes acessos, horários e facilidades de pa-
favorável que em Espanha se dá, desde há gamento e coloca os cidadãos perante um
quase trinta anos, aos refugiados e aos exila- falso sentimento de felicidade.
dos políticos. Não deixa de ser um paradoxo
que na medida em que as práticas da liber- É o que convém aos governos democráti-
dade na vida pública tenham melhorado, se cos ou não, que cria cidadãos conformados
tenha perdido em contrapartida a capacida- com modelos de vida, virados para o con-
de de acolher aqueles que fogem da guerra e sumo e ócio, uniformes e pouco dispostos
da repressão e que chegam a nossa casa não a levantar a voz contra o sistema sobretudo
só para melhorar as suas condições de vida se, para além disso, como no caso espanhol,
mas principalmente para salvá-la. Desapa- têm a responsabilidade de pagamentos hi-
receu das nossas cidades a pluralidade e a potecários de longo prazo. O Maio francês
riqueza que representou a chegada de ex- de 68 foi evidentemente, um toque de alerta
pulsos pelas ditaduras latino-americanas dos perante esta situação compreendido só por
anos setenta do século XX e, numa posição determinadas minorias. Para o resto, a porta
absurda contrária à que nós desfrutámos a do pensamento único ficava completamente
seguir ao fim da Guerra Civil, negamo-nos a aberta.
receber refugiados, excepto em quantidades
simbólicas procedentes da Bósnia, do Koso- Os resultados não se fizeram esperar
vo e da Chechénia para não falar dos total- demasiadas décadas e na actualidade
mente inexistentes do Ruanda, do Sudão e podemos constatar duas coisas. Primeiro,
do Iraque, a título de exemplo. que o actual nível de consumo é impossível
fazer chegar à totalidade da população
mundial. Como muito bem se disse na
6. Consumismo: limitação Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento
dos recursos Sustentável, que teve lugar em Joanesburgo
no ano 2002, se a Humanidade inteira
O último elemento que devemos considerar quisesse ter acesso aos mesmos recursos
dentro dos grandes problemas que afectam naturais (água, minerais, fontes de energia,
as sociedades actuais e, muito particular- madeira, etc.) de que dispomos nós, os
mente a vida urbana tem que ver com o habitantes do mundo industrializado, e
crescimento exponencial do consumismo que representa uma quinta parte do total,
e a progressiva limitação dos recursos, que necessitaríamos de três planetas. Em
Competitividade e cooperação. Justiça e paz 93
losofia do «ter» pela do «ser», a da compe- dam de uma forma definitiva que a sua mis-
tência pela da cooperação e a da ganância são é o serviço público a todos os cidadãos
material pela do bem-estar colectivo. As em- e não aos mais poderosos e privilegiados,
presas, pela sua parte, devem assumir verda- que a fiscalidade deve ser verdadeiramente
deiramente o conceito de Responsabilidade distribuidora e que os direitos económicos,
Social no sentido pleno da palavra e não, sociais e culturais devem ser tão respeitados
como sucede frequentemente, mais como como os direitos civis e políticos.
uma estratégia de marketing. Entendendo-
-se que a Responsabilidade Social é preciso Neste contexto, a cidade não é mais do que
tê-la com os trabalhadores, com os clientes um espaço de constatações pouco afortuna-
e usuários, com os fornecedores, com os das e ao mesmo tempo um laboratório de
concorrentes comerciais, com os sub-adju- provas que poderiam ser, de verdade, fer-
dicados, com as repartições públicas com as ramentas de transformação. Se fosse assim
administrações a todos os níveis. Por parte poderíamos falar, com todo o conhecimento
das administrações, é necessário que enten- de causa, de cidades educadoras.
Cultura urbana: em busca
da «autenticidade»
Sharon Zukin
Com a maioria da população mundial a vi- os subúrbios ou até mesmo para outras par-
ver nas cidades, a cultura urbana devia ser tes do mundo, e os artistas e os proprietários
uma poderosa expressão de identidade co- de pequenas empresas - desde os vendedo-
lectiva. Mas poucas cidades têm a certeza res ambulantes até aos aspirantes a chefes
de qual é a sua identidade. Mais vulneráveis de cozinha, passando pelos galeristas - co-
do que nunca às ondas de migração e aos meçaram a tirar partido do centro que tinha
movimentos de capital, são cada vez mais sido abandonado. As suas actividades trou-
diversificadas socialmente mas com a mes- xeram uma nova vitalidade aos bairros anti-
ma aparência. A sua continuidade cultural gos, enquanto surgiam novos centros finan-
é desafiada por grandes mudanças sobre as ceiros, sedes de bancos, empresas e novos
quais não têm nenhum controlo: o fim das grupos de comunicação social, dando assim
indústrias tradicionais como a têxtil, a side- sinais de uma nova era.
rurgia, a construção naval e de automóveis,
o aumento da influência das elites transna- Os professores, escritores, advogados e
cionais em matéria de finanças e meios de profissionais de negócios aventureiros mu-
comunicação, bem como a presença ge- daram-se para as velhas casas e lofts, crian-
neralizada de novos migrantes em todas as do um novo estilo de vida urbana entre os
áreas da vida social. As cadeias globais de boémios e burgueses. Os lugares que eles
meios de comunicação, auxiliadas pela In- ocuparam - locais públicos como cafés, res-
ternet, promovem e popularizam as novas taurantes e boutiques e mesmo os espaços
atracções, tornando possível evitar interac- privados das suas casas - depressa atraíram
ções cara a cara. As novas formas de cultu- a atenção pelos seus elegantes designs in-
ra urbana, desde a arquitectura icónica até dustriais e pela sua clientela famosa. Com o
aos restaurantes de fast food e bandas de hi- crescimento constante dos meios de comu-
phop, impuseram um modernismo universal nicação e das artes, esses espaços adquiri-
no sentido local de espaço e do tempo dos ram uma dinâmica irresistível: eram visíveis
moradores da cidade. Expressando a ansie- sinais de uma nova cultura urbana.
dade que muitos homens e mulheres sentem
sobre essas mudanças, a cultura urbana so-
fre de uma crise de autenticidade. No início dos anos 70, o gradual crescimento
destes espaços públicos, conhecidos como
Esta crise é mais evidente no centro das ci- «bairro dos artistas» ou «lugar dos burgue-
dades. Nos primeiros anos da década de 60, ses» deu novas ideias aos governantes e in-
nas cidades mais ricas do mundo, a grande vestidores privados: usar o «capital cultural»
falta de investimento deixou uma quantida- para levar a cabo uma reabilitação urbana
de de armazéns abandonados, docas a apo- de maior envergadura. Esta estratégia pro-
drecer e torres de escritórios parcialmente metia renovar os centros das cidades, sem
vazias. As fábricas, escritórios e os morado- o trauma de derrubar edifícios históricos e
res mais ricos começaram a mudar-se para sem deslocar um grande número de antigos
98 Os novos desafios da vida urbana
residentes mas foi alterada de acordo com Embora os novos centros comerciais insta-
os gostos culturais de um grupo social com lados nos antigos centros urbanos tenham
um alto grau de educação e conhecimentos. trazido um número recorde de consumido-
Na América do Norte e na Europa Ociden- res ao centro da cidade, estes compradores
tal, a preferência desse grupo de homens e não circulavam pelas ruas da cidade velha.
mulheres pelos bairros antigos com edificios Os investidores imobiliários de novos mer-
históricos e lugares com significado estético cados urbanos criaram espaços fechados
muito rico, deram uma nova definição de em si mesmos, quase «gradeados» onde os
autenticidade. Também os colocou no meio clientes podiam procurar, comprar, comer,
de moradores da cidade mais velhos, mais beber e visitar um museu de arte, cinema ou
pobres e menos adaptáveis, cujo direito à ci- aquário, envoltos num sentimento de segu-
dade dependia da família, dos hábitos, dos rança, abundância e divertimento. Os peri-
locais e dos laços sociais. gos desconhecidos da vida da cidade eram
controlados por guardas de segurança pri-
Ao mesmo tempo, uma maior iniciativa vada contratados por agentes imobiliários
para remodelar o centro da cidade iniciou- que eram os proprietários e gestores do es-
-se nos EUA, onde já nos anos 50 os comer- paço, bem como pela legislação local que
ciantes locais tinham começado a abando- proíbia a presença dos sem-abrigo, mendi-
nar os centros históricos da cidade para se gos e de outros elementos perturbadores.
mudarem para as zonas suburbanas e para Como resultado, os críticos queixavam-se
os novos centros comerciais. As imobiliá- que esses projectos urbanísticos imporiam
rias e as autoridades municipais pensaram no centro urbano uma ordem social sem
transformar a cidade num novo tipo de regras, semelhante à Disneylândia privan-
espaço comercial, que devolveria ao cen- do os moradores e visitantes de encontros
tro, a classe média, atraíria os visitantes espontâneos com estrangeiros que fazem
dos subúrbios e os turistas, transformando com que a cidade perca a sua autêntica
o antigo centro da cidade num «merca- experiência de Distinção. Os mercados em
do festivo». Tal como o enobrecimento de centros históricos “encenavam” a autentici-
certas zonas históricas das cidades, estes dade como uma experiência de consumo,
projectos de desenvolvimento urbano se- muito parecida com a do famoso comple-
guiram também uma estratégia cultural. As xo de entretenimento «salsicha» (cachorro
imobiliárias utilizaram os edifícios antigos quente, ou grande atracção) da Disneylân-
como pano de fundo histórico da identida- dia no centro, segundo a famosa frase de
de local e também como marca de estética. Walt Disney. Mas esse tipo de encenação
Esse «mercado festivo» dependia de uma convenceu os investidores imobiliários e
nova consciência - o valor que esses edifí- clientes para correrem o risco de investir na
cios históricos tinham enquanto património vida da cidade. O sucesso comercial do Fa-
cultural. Mas também reflete a crescente neuil Hall, em Boston, do Porto Interno de
importância dos centros comerciais como Baltimore e de Plaza Horton em San Diego
locais tanto para o consumo de lazer indi- logo incentivaram imitações em muitas ci-
vidual e cultura pública.1 dades dos EUA e geraram ainda mais es-
paços ambiciosos, com aquários, cinemas
1
Lizabeth Cohen, A República dos Consumidores: A
política do consumo de massa na América do pós-guer-
ra (New York: Knopf, 2003), Bernard J. Frieden e Lynne
B. Sagalyn, Inc. Baixa: Como a América reconstrói ci-
dades (MA Cambridge: MIT Press, 1989).
Cultura urbana: em busca da «autenticidade» 99
IMAX, centros de convenções e lojas, entre Mas sendo uma zona de muito movimento e
Barcelona e Singapura.2 diversão, também atraiu o perigoso comér-
cio do sexo e drogas. Dado que os agentes
imobiliários não mostraram nenhum interes-
Times Square se na área, a presidência da Câmara propôs
vários projectos diferentes, mas nenhum de-
A reconstrução de Times Square, a famosa les atraiu muita atenção - até à década de
zona de entretenimento no centro de 80, quando os investidores corporativos fize-
Manhattan, mostra como a autenticidade ram os seus próprios planos para uma nova
encenada de espaços centrais representa um Times Square com torres de escritórios: de-
dilema para aqueles que querem conservar finitivamente não era um mercado festivo e
a cultura popular antiga da cidade mas que não era de todo consistente com a autêntica
reconhecem a necessidade da renovação dureza e o brilho de néon de Times Squa-
económica. Durante a maior parte do século re. Este plano causou tanta oposição que o
XX, Times Square era um vigoroso centro de projecto foi adiado por vários anos, até que
entretenimento, com tudo, desde shows da o potencial financiamento desapareceu no
Broadway e cinemas com néons luminosos, declínio do mercado de acções.3
cartazes publicitários e multidões rotineiras a
todas as horas do dia e da noite. No início Grande parte da oposição veio dos homens
da década de 90, a sua aura cosmopolita e mulheres que apoiaram a preservação his-
permitiu aos Nova-iorquinos chamar-lhe, com tórica e chefiavam muitas das instituições
algum exagero, «a encruzilhada do mundo». culturais da cidade. Encabeçado pela So-
Em termos de aspirações nacionais, Times ciedade Municipal de Arte, os adversários
Square era tanto o centro geográfico como fizeram campanha para proteger a autenti-
metafórico da cultura popular americana. cidade de Times Square, valendo-se de um
Homens e mulheres reuniram-se ali para argumento estético, o de preservar o seu
ler as últimas notícias que eram exibidas no aspecto. Propuseram uma lei exigindo que
enorme ecrã eléctrico da Motogram e foi em cada edifício no bairro usasse um grande
Times Square que Alfred Eisenstadt tirou a sua letreiro luminoso na sua fachada, tornando
famosa fotografia, publicada na revista Life, cada prédio, na verdade, um cartaz electró-
de um marinheiro que levantou uma jovem nico gigante. Os teatros da Broadway, com
do chão e a beijou para comemorar o fim a ameaça de serem vendidos pelos proprie-
da Segunda Guerra Mundial. Times Square tários dos terrenos onde estavam instalados
continuou a atrair visitantes, incluindo e serem engolidos por um novo edifício de
famílias com crianças, até os anos 60. escritórios, inspiraram uma nova lei. Essa lei
permitiu aos proprietários dos teatros vender
«os direitos do ar», importante pela oportu-
nidade que estes oferecem para a constru-
2
Sharon Zukin, Paisagens de poder: De Detroit ao
Disneyworld (Berkeley e Los Angeles: University of ção de um edifício muito mais alto no local,
California Press, 1991); John Hannigan, Cidade Fantasia
(New York: Routledge, 1998), Don Mitchell e Lynn A.
Staeheli, «Limpa e segura? Propriedade Restruturada, 3
William R. Taylor, ed, Inventando Times Square: o
Espaço Público e Sem-Abrigo na baixa de San Diego», Comércio e a cultura na encruzilhada do mundo (Nova
em Smith e Neil Setha Low, ed, A política do espaço York: Russell Sage, 1991); Lynne B. Sagalyn, Times
público. (New York: Routledge, 2006), p. 143-75. Square Roleta (Cambridge, MA: MIT Press, 2001);
“Encenando Autenticidade” de Dean MacCannell, O Sharon Zukin, As Culturas das Cidades (Oxford e
Turismo: Uma Nova Teoria da Classe Ociosa, 3 ª ed. Cambridge, MA: Blackwell, 1995), Marshall Berman,
(Berkeley e Los Angeles: University of California Press, Na cidade: Cem Anos de Espectáculo em Times Square
1999). (Nova York: Random House, 2006).
100 Os novos desafios da vida urbana
para os proprietários de imóveis nas proxi- como para o grupo. Colocar a Disney em Ti-
midades. A venda dos direitos do ar iria pro- mes Square conduziu a uma união saudável
teger a concentração de edifícios de teatros entre a cultura popular de entretenimento
baixos nas ruas laterais, enquanto arranha- orientada para a família da Disney e a reno-
-céus se erguiam nas avenidas largas ao seu vação moral que o governo da cidade dese-
redor, começando na Broadway em si. Ao java. Com as novas leis a proteger o espaço
mesmo tempo, o Departamento de Polícia na área para os teatros legítimos da Broa-
de Nova Iorque iniciou uma limpeza vigo- dway, os promotores privados começaram a
rosa de pornografia das calçadas e das lojas, planear novas instalações de entretenimento
retirando os proxenetas, os traficantes, e os para alugar a outras empresas que queriam
clientes ofegantes e arrebatados que subiam estar junto da ideia inicial da Disney. Na dé-
a rua 42 depois do anoitecer tão ameaça- cada de 90, quando a Disney ainda parecia
dores, especialmente para as mulheres. Por um grupo gigante invencível com recursos
força adicional, o governo da cidade expro- populares universais, a empresa abriu uma
priou locais ocupados por lojas de porno- loja em Times Square e renovou um teatro
grafia, cujos proprietários se recusaram a histórico, o Nova Amesterdão, na porta ao
mudar de ramo ou a fechar, vendendo-as a lado, para a estreia de «A Bela e o Monstro».
agentes imobiliários que iriam substituí-las Eles foram em breve acompanhados pela es-
por empresas menos problemáticas. tação de televisão de música orientada para
os jovens MTV e uma grande quantidade de
A combinação de «legislação estética», poli- restaurantes temáticos, bares e casas de es-
ciamento e a expropriação forçada preparou pectáculos com nomes de marcas bem co-
Times Square para uma mudança de cultu- nhecidas - desde o Museu Madame Tussaud
ra popular, que se baseou, não coinciden- e a Virgin Megastore até à Blues BB King’s
temente, na empresa Disney. O conhecido Club e uma loja da Hello Kitty.
arquitecto de Nova Iorque, Robert A M Stern
relacionou estas estratégias, pois tanto traba- Pelas medidas comuns de requalificação
lhava para a direcção empresarial da Disney urbana, Times Square é um grande sucesso.
como supervisionava um estudo de planea- Todos os anos, 26 milhões de visitantes vêm
mento local para preservar a zona dos tea- para se fascinarem com as luzes brilhantes,
tros da Broadway. Stern não se lembra, ao comer em restaurantes, comprar no Toys
passar por Times Square, um dia no final dos ‘R’ Us, e, talvez, ir ao teatro - pelo menos
anos 80, de quantas pessoas, especialmente ao teatro da Disney. O impacto económico
mulheres, chegavam às sessões da tarde nos da região, de acordo com a Times Squa-
teatros da área em autocarros apanhados re Alliance, um grupo empresarial local, é
perto das suas casas nos subúrbios. Teve de- igual ao conjunto das economias da Bolívia
pois - então relembra - a ideia da construção e Panamá. Embora as atracções culturais tra-
de atracções que tornariam Times Square se- gam multidões que enchem a praça desde
gura o suficiente para que os visitantes ali se a rua 42 até à rua 50, dia e noite, a área é
sentissem em casa. Por sorte, no início de rodeada por edifícios de escritórios de em-
1990, o grupo Walt Disney também estava a presas dos principais sectores de trabalho da
pensar em expandir os seus negócios através economia simbólica da cidade - meios de
da produção de espectáculos para o teatro comunicação e finanças. A sede da Condé
comercial que apresentavam personagens Nast, a Hearst Corporation, e o New York Ti-
dos seus filmes e parques temáticos. A en- mes estão nas proximidades, bem como a
trada da Disney na Broadway, era então uma sede do Nasdaq, os escritórios das empresas
perspectiva atraente tanto para os urbanistas financeiras Lehman Brothers e Morgan Stan-
Cultura urbana: em busca da «autenticidade» 101
Hoje, os vencedores dessas competições são não conhecia o nome do Museu de Arte Mo-
«arquitectos estrelas» possuidores de mui- derna pelas siglas. Tal como Times Square e
tos prémios e muitos projectos. No caso do outros centros de entretenimento urbano,
Centro Pompidou, a escolha de um design estes bairros culturais são muito frequenta-
industrial, que deixava a descoberto muitas dos, mas nem todos eles são populares entre
partes da estrutura do edifício e estava pin- os locais. O grande espaço aberto em frente
tado de cores vivas, correspondia à vontade ao Centro Pompidou encheu-se de turistas e
de criar uma série de programas inovadores artistas de rua, jovens e dançarinos de dan-
que forçosamente converteriam Paris (e, por ças urbanas, muitos deles franceses, desde a
extensão a França) numa das paragens fun- abertura do museu. Enquanto isso, o grande
damentais nos meios artísticos e culturais. espaço aberto em frente ao Museu Gugge-
nheim, em Bilbao geralmente está vazio,
Na década de 90, quando os líderes locais com excepção dos turistas que o visitam. Ao
em Bilbao e Hong Kong projectaram umas contrário do Centro Pompidou, que é pro-
instalações culturais de grande envergadura, priedade do governo francês e gerido pelo
pensaram nas diferentes maneiras em que mesmo, o Guggenheim de Bilbao é uma su-
estas poderiam ajudar as suas cidades a al- cursal da cadeia dos museus Guggenheim.
cançar e manter um papel importante nos Concebido como um símbolo que chama a
mercados financeiros globais. A única coisa atenção para o triplo objectivo da cidade -
que perguntaram foi se estas ajudariam os fazer desaparecer as indústrias em declínio,
artistas locais na exposição das suas obras limpar os detritos das indústrias siderúrgicas
ou se atrairiam até eles a atenção dos meios e estaleiros navais da orla marítima, e reali-
de comunicação. zar uma campanha contra-terrorista pacífica
contra os separatistas bascos - o museu tinha
Os novos bairros culturais realmente atraem muitos usos locais. Mas, tal como os dirigen-
a atenção dos meios de comunicação. Um tes da Empresa Disney, que decidiram abrir
número crescente de revistas de arte, guias uma loja na Times Square, o director do Mu-
de viagem e sites da Internet são dedicados seu Guggenheim, com sede em Manhattan,
às cidades e ao lazer promovendo a cultura já estava preparado para a expansão.
e locais para visitar. Embora o público possa
não ter a menor ideia do que é exactamente Desde meados de 80, Thomas Krens tinha
a arte, ela é mostrada em novas instalações, planeado abrir várias filiais em outras ci-
e ouvem o «falar» dela. As tarifas aéreas dades do mundo, bem como patrocinar
mais baixas, mais tempo livre e uma forte um novo Museu de Arte Contemporânea
ênfase na mobilidade individual incentivam de Massachusetts (MassMoCA), em North
o turismo cultural, especialmente entre os Adams, uma cidade industrial em declínio
ricos, homens e mulheres cultos que prova- situada nas montanhas Berkshire da Nova
velmente recolhem novas experiências des- Inglaterra. O Museu Guggenheim tinha mais
ses locais que visitam. Os jovens, até mes- obras de arte do que tinha espaço de expo-
mo estrangeiros, estão muitas vezes mais em sição para as mostrar, e muitas obras recen-
sintonia com o surgimento destes bairros e temente adquiridas eram tão grandes que
instituições culturais, do que os moradores. precisavam de um museu só para elas.
(Penso no jovem casal italiano que eu vi,
não há muito tempo, quando na Quinta Ave- Tal como o projecto de Times Square, a re-
nida ao entrarem para o autocarro pergun- vitalização da zona portuária industrial de
taram ao motorista se aquele passava pelo Bilbao incorporava uma desejada sinergia
«MOMA», o motorista ficou preplexo pois entre as estratégias económicas dos em-
104 Os novos desafios da vida urbana
que os turistas. Os preços das entradas são o futuro da cultura urbana. A repetição destes
altos para as pessoas de Bilbau, onde a taxa projectos têm levado à imposição de um úni-
de desemprego é de 60 por cento entre os co modelo de criatividade? Um modelo que
jovens, e a maioria dos visitantes vêm de exclui os residentes que não são nem produ-
outras áreas da Espanha e do estrangeiro. tores nem consumidores da nova arte. Isso
Além disso, os hotéis de luxo que foram diminui a singularidade dos museus, que se
construídos para os turistas culturais são tornam, como o Guggenheim, uma operação
caros. Os visitantes tendem a vir uma vez, à escala global? No século XIX, Bilbao indus-
ficar uma ou duas noites e sair sem ver o trial esteve certamente ligada ao poder eco-
resto da cidade. (Quando fiquei num hotel nómico exterior à região - para os banqueiros
ao lado do museu e pedi ao empregado da europeus e fábricas inglesas que investiram
recepção um mapa da cidade, ele desenhou nas indústrias siderúrgicas e estaleiros. Mas
um grande círculo em volta do centro antigo os museus de arte moderna de hoje são, em
da cidade e alertou-me para não ir lá: um muitos aspectos, as incubadoras de uma nova
sinal visível do desigual desenvolvimento globalização. Não são apenas fontes de pra-
recente da cidade.8 zer e aprendizagem, mas são também tecno-
logias de disciplina que forçam as culturas
São muitos os que felicitariam as autoridades urbanas a abrir-se para o exterior, a adaptar-
de Bilbau por terem reconhecido que tinha -se a mercados transnacionais e a se tornarem
terminado a era de uma economia baseada mais cosmopolitas.9
na indústria e aplaudiram a mudança e o de-
senvolvimento cultural para a cidade. Mas
esta mesma maneira de ver, mudou o modo 50 Lu Moganshan
de pensar dos dirigentes políticos e económi-
cos de muitas cidades na era pós-industrial. As áreas culturais sugerem que promover um
Um quarto de século passou e o «efeito Be- novo tipo de economia não consiste apenas
aubourg» passou a «efeito Bilbao» e desta em discos rígidos e chips de silicone: os
vez, as esperanças de um desenvolvimento «polos tecnológicos», como Sillicon Valley,
urbano baseado na cultura originou uma in- onde os engenheiros informáticos inovado-
findável série de centros culturais, festivais e res se encontram com os capitalistas interes-
concursos. Se a selecção anual de uma Capi- sados no investimento nas novas tecnologias
tal Europeia da Cultura é apenas o caso mais não atraem os pensadores criativos que são
promovido das cidades a tentarem refazer-se susceptíveis de desenvolver novos usos para
numa nova imagem cívica, estes projectos produtos de alta tecnologia que dão glamour
emblemáticos colocam sérias dúvidas sobre
9
O uso de novos museus de arte para promover o
desenvolvimento económico,ver Graeme Evans,
8
Decorre um debate sobre o valor social e económico «Publicitar duramente a cidade cultural - de Prado a
destas visitas de turistas, alguns dos quais tomam co- Prada», Jornal Internacional de Pesquisa Urbana e
nhecimento da sua existência nos meios de comunica- Regional 27 (2003): 417-40; Chris Hamnett e Shoval
ção globais. Ver em Beatriz Plaza, «Avaliar a influência Noam, «Museus como exemplos emblemáticos de
de um Artefacto Cultural na Atracção do Turismo», Re- Desenvolvimento Urbano, nas cidades e visitantes»,
vista de Assuntos Urbanos 36 (2000): 264-74 e «O Re- ed. Lily M. Susan Hoffman, S. Fainstein, e Dennis R.
torno do Investimento do Museu Guggenheim Bilbao», Judd (MA Malden e Oxford: Blackwell, 2003), p. 219-
Jornal Internacional de Pesquisa Urbana e Regional 30 36; George Yúdice, A oportunidade de Cultura (NC
(2006): 452-67; Denny Lee, «Bilbao dez anos depois», Durham e Londres: Duke University Press, 2003). Sobre
Secção de Viagens do New York Times, 23 de Setembro o efeito do franchising e da globalização económica
de 2007. O museu Guggenheim de Bilbao detém 80 em Bilbau, ver Donald McNeill, «McGuggenização?
por cento do orçamento do governo regional para os Identidade Nacional e Globalização no País Basco»,
museus: Zuleika, «Beleza Dura», p. 12. Geografia Política 19 (2000): 473-94.
106 Os novos desafios da vida urbana
buem para o desenvolvimento de uma nova rem em artistas emergentes, cujo trabalho
economia. Eles são uma maneira eficiente pode ser visto como uma crítica aos lemas
de criar redes de informação, fornecedores do partido e que tinha - pelo menos até há
e clientes que os produtores necessitam. alguns anos - valor de mercado imprevisí-
Estudos mostram que a produção cultural, vel. Em qualquer caso, um determinado nú-
desde os meios de comunicação em voga mero de centros criativos formaram-se em
até à moda alternativa, música e arte, for- Pequim e Xangai, durante a década de 90 e
necem de ano para ano mais empregos e início de 2000 por iniciativa de artistas in-
o valor financeiro da compra e venda des- dividuais.
ses bens e serviços cresce em importância
tal como o fabrico tradicional continua a Em Xangai, o artista Xue Song mudou o seu
diminuir. Os produtores culturais, além estúdio para um complexo fabril vazio, da
disso, pensam em maneiras de aumentar o década de 30 situado no 50 Moganshan Lu,
valor de máquinas de alta tecnologia (com perto do rio Suzhou, propriedade da Shang-
a criação do software para jogos de vídeo) tex, uma grande empresa de têxteis e decla-
e do padrão de itens produzidos em massa rou que se havia mudado para uma nova
(através da criação de campanhas publicitá- zona de desenvolvimento situada do outro
rias inovadoras para automóveis ou cerve- lado do rio, na zona de Pudong, próximo do
ja), bem como popularizar novos produtos aeroporto. Não só artistas, mas também líde-
distintivos para nichos de mercado (fazendo res de negócios e políticos viram o potencial
campanhas secretas e de passa a palavra do local como um centro cultural, especial-
para as bandas indie, ténis personalizados e mente à luz do sucesso da Fábrica 798, um
vodkas aromatizados).11 complexo de estúdios de artistas e galerias
que tinha aberto em Pequim em 2001 e ra-
Os negócios empresariais e os líderes polí- pidamente estimulou o desenvolvimento de
ticos das economias em rápido crescimento uma área de galerias, cafés e boutiques que
da Ásia aprenderam estas lições, especial- estavam na moda. Artistas de Xangai, atraí
mente em cidades como Xangai, onde as dos pelas rendas baratas e a localização no
velhas indústrias estão a mover-se para fora centro da cidade cosmopolita em franco
e a mudar-se para regiões de baixo custo da crescimento, rapidamente se mudaram para
China e os funcionários municipais e distri- o Shangtex, a eles se juntaram empresários
tais querem incentivar novos tipos de desen- culturais individuais da Europa e dos Estados
volvimento. Embora o governo chinês apoie Unidos, que abriram galerias de arte con-
oficialmente as indústrias criativas como temporânea chinesa, expondo o trabalho
uma pedra angular do desenvolvimento que até recentemente não havia sido mostra-
económico nacional e de prestígio, os fun- do, sendo até mesmo proibido pelos líderes
cionários locais tanto correm um risco polí- do governo e do partido. Estas obras passa-
tico como um risco financeiro ao se apoia- ram então a ser uma atracção positiva para
os turistas e investidores estrangeiros, que
estavam tão ansiosos para «descobrir» novos
11
Allen J. Scott, A Economia Cultural das Cidades (Lon- artistas chineses na área industrial fortaleci-
dres: Sage, 2000), Andy C. Pratt, «As Indústrias Cultu- da em Xangai, para encontrar o trabalho de
rais no Sudoeste de Inglaterra: Rumo a uma Estratégia
Sectorial», Dominic Power e Scott J. Allen, eds, As outros artistas, num ambiente semelhante ao
indústrias culturais e a produção de Cultura (London: do SoHo ou o East End. Shangtex tornou-se
Routledge, 2004), pp 19-36; Elizabeth Currid, A Eco- um mecenas ansioso - ou proprietário - de
nomia Warhol: Como a Moda, Arte e Música guiam a novos artistas, já que a empresa se orgulha
cidade de Nova York (NJ Princeton: Princeton Univer-
sity Press, 2007). da união inovadora da tecnologia e da moda
108 Os novos desafios da vida urbana
para a produção de novas fibras sintéticas de tijolos antigos e betão manchado fazem
para a indústria do vestuário. Além disso, com que as pessoas sintam a veracidade e
50 Moganshan Lu contou com o apoio do a perfeição do ser existente». A cultura ur-
partido local e funcionários do governo. Em bana não pode ser mais ambiciosa do que
2002, a Secretaria Económica Municipal de- isto.13
nominou o complexo de 21 edifícios como
parque industrial oficial, dois anos depois, Moganshan Lu converteu-se num local mui-
este título foi alterado para «parque indus- to frequentado por artistas e turistas estran-
trial de arte».12 geiros e chineses. Visitas são recomendadas
por guias estrangeiros e sites do mundo da
Construir um centro criativo no 50 Mo- arte e do turismo, dedicados a Xangai. Na
ganshan Lu satisfez a ambição de Xangai tarde em que visitei o local, alguns turistas
de se tornar uma cidade global que supera estrangeiros estavam a almoçar num peque-
os seus concorrentes mais próximos - Hong no café e a ver as galerias abertas, ainda que
Kong e Pequim - tanto como centro financei- quando há exposições especiais, várias cen-
ro e como centro cultural, a capital da eco- tenas de visitantes chegam a vir num único
nomia simbólica. Os espaços são ocupados dia. Alguns dos artistas que ali mostram o seu
por uma variedade de temas criativos: gale- trabalho vêm de Hong Kong e Taiwan; por-
rias de arte, artes gráficas, escritórios de ar- que o custo de vida é mais barato no conti-
quitectos e estúdios de design, e instalações nente e, em Xangai, têm acesso ao mercado
para televisão e produção de filmes. Não é internacional. Enquanto que uma parte da
de surpreender que, o centro da auto-reivin- arte que ali se produz é de estilo tradicional,
dicada estratégia de denominação capitaliza a maioria é quase chocantemente moderna
representações estéticas e espaciais que se e irónica, parodiando os artefactos da era
originaram nos Estados Unidos e migraram maoísta, propondo ou sugerindo que alguns
para a Europa e Ásia: O seu slogan é «Su- dos resultados mais evidentes do auge actu-
zhou/Soho/loft». Tal como o site do centro al da sociedade de consumo na China são
criativo divulga, estas relações são o exem- tão grotescos como os capitalistas burgueses
plo de que o M50 [50 Moganshan Lu] é uma caricaturados pelos expressionistas alemães
integração de história, cultura, arte, moda do início do século XX.
[sic], e originalidade. Um ponto de encontro
entre os edifícios de lofts antigos do SoHo O perigo é que o êxito de 50 Moganshan
de Manhattan e a nova maravilha de titâ- Lu não seja bem sucedido o suficiente, quer
nio do Guggenheim Bilbao, Moganshan Lu para contrabalançar ou para combater a de-
destina-se a revitalizar a margem do rio po- molição agressiva de edifícios e bairros anti-
luída, mostra uma boa forma de reutilização gos de Xangai. Ainda que um dos objectivos
de edifícios antigos em vez de os derrubar, e do governo municipal seja a limpeza do Rio
coloca a tecnologia em colaboração com a Suzhou e criar uma zona pedonal verde se-
arte. Para justificar o esforço, a gestão evoca gura, nas suas margens, as obras de demo-
não apenas a aparência, mas a experiência lição continuam dia e noite – derrubando
de autenticidade: «Os edifícios usados das fábricas como a 50 Moganshan Lu destruin-
fábricas contêm um certo valor, porque a do a antiga cidade que cresceu em seu re-
estrutura de aço nu, bem como as paredes
13
www.m50.com.cn. Sobre a ambição cultural e a con-
corrência interurbana: Lily Kong, «Ícones Culturais e
12
Wang Jie, «Shanghai SoHo-50 Moganshan Road», Desenvolvimento Urbano na Ásia: Imperativo Econó-
[http://www.chinadaily.com.cn/citylife], 29 de Agosto mico, a Identidade Nacional e Status da Cidade Glo-
de 2006; [http://www.shangtex.biz/en/]. bal», Geografia Política 26 (2007).
Cultura urbana: em busca da «autenticidade» 109
numa área na moda de Brooklyn. Ao redor bora poucos imigrantes continuem a viver
de cada fábrica velha encontramos um bair- no bairro). A autenticidade tornou-se, mais
ro de classe trabalhadora e um crescente do que terrenos, no recurso renovável de
complexo de galerias de arte, restaurantes, uma cidade - e na sua tábua de salvação
lojas e diversidade multicultural na rua (em- para o futuro.
A cidade e
a comunidade sob
o olhar feminino
Olivia Guaraldo
pareciam incapazes de lidar com o «novo» ginário cinematográfico Nova Iorque, após o
que estava a acontecer e insistiam portanto trauma, assume a aparência de uma «cidade
em colocá-lo em categorias existentes. ideal» ainda mais do que antes. O trauma
mudou-a exactamente como alterou o nosso
Em vez de prever um horizonte catastrófico modo de a ver e imaginar: agora Nova Ior-
e apocalíptico, os olhos femininos retiram que é um ícone que vive das suas feridas,
do acontecimento traumático uma ocasião que continua a fascinar-nos porque nela se
para repensar a comunidade, a partir da per- misturam a familiaridade do imaginário tele-
da, do trauma, do luto, mas sobretudo da visivo e cinematográfico com a igualmente
vulnerabilidade. familiar sensação da destruição, do medo,
da vulnerabilidade.
4.
Somos todos americanos, somos todos nova- 5.
-iorquinos. Que imagem da cidade nos dei- Familiar e no entanto desconhecida é a di-
xou o 9/11? Tratou-se sobretudo de assistir, mensão dessa vulnerabilidade que os nova-
naquela estranha situação de espectadores -iorquinos experimentaram no 9/11. Nesse
privilegiados e de «vítimas em diferido», à dia perderam, por assim dizer, a sua «invul-
fragmentação e destruição de um imaginá- nerabilidade primeiromundista», vivendo na
rio compacto, familiar e sólido, encarnado própria pele uma violência repentina e ines-
nas duas torres. O colosso arquitectónico do perada. Aquilo que por um lado é familiar e
World Trade Center foi muitas vezes associa- por outro desconhecido é o que Freud de-
do a um símbolo fálico, revelador da potên- finia como «perturbador», unheimlich. No
cia financeira americana, que como um novo perturbador esconde-se a face monstruosa
Leviatan, confia na geométrica perfeição das daquilo que é por outro lado familiar. Para
suas linhas para confirmar a indiscutível su- muitos americanos, e sobretudo para o go-
perioridade e incomparável força. As Torres verno dos E.U.A., o 9/11 representa um es-
Gémeas porém não encarnam somente a pectro perturbador, uma espécie de «lado
superpotência financeira dos Estados Uni- obscuro» da violência há muito infligida aos
dos e do ocidente, fazem também parte de outros. Talvez por esta razão a reacção qua-
um outro imaginário, talvez mais inocente, se imediata ao ataque foi em primeiro lugar
o imaginário cinematográfico. É por causa um convite a superar o trauma, a reagir e se-
dessa estranha familiaridade transterritorial guir em frente. A exortação também na esfe-
que nos foi oferecida pelo cinema que olha- ra privada, a continuar a vida de sempre, foi
mos com nostalgia para as imagens cinema- rapidamente seguida pelo desenvolvimento
tográficas de Manhattan que nos mostram da resposta estatal «normal», a do uso da
ainda as torres como pano de fundo. Graças violência e da guerra: a «vida de sempre»
a um estranho furacão que provoca um cur- do estado.
to-circuito no espaço e no tempo, é como se
também esse imaginário cinematográfico ti- Longe da retórica de estado e da justificação
vesse, após o 9/11, perdido a sua inocência: da guerra, o que apesar de tudo aconteceu
sempre que vemos um filme ou um telefilme no imediato do espaço urbano de Manhat-
que nos apresenta Nova Iorque com as tor- tan foi uma reacção comunitária espontânea
res ainda de pé imediatamente nos vem à e curiosa: as pessoas andavam pela cidade
memória a imagem da sua destruição. Uma com as fotografias dos seus entes queridos
imagem que, embora tivesse todas as carac- desaparecidos, em muitas das quais estava
terísticas da ficção espectacular, era cruel- escrito «missing». Quem se tinha perdido ou
mente real. Em consequência daquele ima- estava desaparecido, quem literalmente «fal-
A cidade e a comunidade sob o olhar feminino 117
tava» ao afecto e à presença dos próprios fa- Ida Dominijanni fez-lhe imediatamente
miliares e amigos tinha um nome e um ros- eco, num ensaio de 2002, em que analisava
to, era, para dizer como Hannah Arendt, um com olhos fantasticamente femininos, dois
«alguém», uma pessoa de carne e osso com grandes acontecimentos que no ano 2001
a própria irrepetível qualidade de existen- tiveram como protagonistas duas cidades as-
te único. A insistência dos nova-iorquinos sumidas como símbolo de uma época - Gé-
em chorar e recordar, na sua qualidade de nova e Nova Iorque. A «marca do presente»
«ausentes», os seus entes queridos, ficou im- vivida e lida com olhos femininos, revelava
pressa na nossa memória exactamente por- como a catástrofe nova-iorquina, longe de
que confirmava o lado familiar, quotidiano e atingir o coração do capitalismo global -
íntimo daquela tragédia. Foi extraordinário o como talvez os autores do atentado tencio-
impacto mediático que a procura daquelas nassem e como muitos também no ocidente,
pessoas perdidas, «missing», teve na opinião esperavam - tinha características completa-
pública ocidental. mente novas em relação ao passado. O que
aconteceu, antes do colapso definitivo das
Mas saber ler aquele luto é uma operação duas torres, e o que todos nós continuámos
difícil, sobretudo porque, imediatamente a ver pela televisão, numa espécie de reali-
após o acontecimento a retórica do estado ty show do massacre, foi um inconcebível
e da guerra levaram a melhor, fazendo das «holocausto multiétnico»: «corpos sem rou-
vítimas americanas uma espécie de sacrário pas e sem pele voavam dos andares altos,
inviolável que devia ser vingado com a má- milhares de mulheres e homens de sessenta
xima força. À vulnerabilidade compartilha- e três etnias diferentes morriam prisioneiros
da e lamentada sofrida pelos nova-iorquinos das chamas numa espécie de holocausto
seguiu-se imediatamente uma afirmação multiétnico, que enviava para a morte não a
orgulhosa de uma invulnerabilidade progra- globalização dos capitais gerida do alto do
mada, pronta a declarar uma «guerra infini- poder mas o cosmopolitismo vivido na base
ta» a quem tinha provocado aquelas vítimas. da vida em comum.»4
Não foi por acaso que dessa difícil leitura Os olhos femininos que observam aquele
se encarregaram mulheres pensadoras, a pri- acontecimento e dele retiram a deixa para
meira de todas Adriana Caravero, que, num confirmar a importância e a centralidade da
artigo publicado no Outono de 2001 escre- reflexão feminina sobre a política debruçam-
veu: «As paredes de Nova Iorque recorda- -se exactamente sobre esta perspectiva da
ram-nos antes de mais que os milhares de base da vida em comum. Trata-se, realmen-
mortos do 11 de Setembro morreram um a te, de uma reflexão que já há algum tempo
um, e cada um deles faz falta aos seus fami- critica a falsa neutralidade dos modelos e da
liares e àqueles que, olhando os seus rostos, ontologia política modernas ligadas ao Esta-
compartilham essa falta. Aparentemente tra- do, à nação, ao individualismo de formato
tou-se de uma resposta emotiva, e contudo, liberal. Todavia a emergência do presente, a
de um outro ponto de vista, não se tratou sua viragem inesperada - e o vazio que colo-
apenas de uma resposta política bastante cou diante de nós - parecem confirmar que
mais eficaz do que o apelo à bandeira na- é indispensável, agora mais do que nunca,
cional, mas talvez da mais política de todas pôr em movimento o pensamento feminino,
as respostas dadas até essa altura».3 crítico e imaginativo, como diria Virgínia
Woolf, reafirmando a sua centralidade e a
3
A. Caravero, Il locale assoluto, em Micromega. Alma-
nacco di filosofia», 5/2001, pp.64-73, p.71. 4
Dominijanni, cit., p. 203.
118 Os novos desafios da vida urbana
sua importância na identificação dos erros, mente feminina para o detalhe) da tragédia
das omissões, das violências simbólicas e de 9/11, a perspectiva feminista detém-se
materiais de uma civilização ainda demasia- sobre aquilo que os esquemas grandiosos,
damente masculina e patriarcal. dum e doutro lado, têm dificuldade em ver.
Quem morreu? Quem foi chorado? Se Adria-
6. na Cavarero chama a atenção para o modo
Para além da vertigem do vazio, porém, há como a cidade imediatamente recordou os
algo mais. Existe antes de mais um pensa- próprios mortos «um a um» e Dominijanni
mento, que é o pensamento da diferença se- como o holocausto multiétnico sufocou a
xual, que há anos se movimenta fora da tra- «globalização da base da vida em comum»,
dição (masculina) e re-enuncia a política a a pensadora americana Judith Butler - em
partir de novos termos: «diferença, relação, surpreendente continuidade com as pensa-
singularidade/comunidade», termos que to- doras italianas - propõe retirar da experiên-
mam o lugar de «identidade, amigo/inimigo, cia de vulnerabilidade e de ofensa sofrida
indivíduo/estado». O desafio é o de afirmar pelos nova-iorquinos a ocasião para repen-
a perspectiva sexual na política não só «em sar a condição humana a partir da centrali-
teoria» mas a partir da prática, da «confian- dade do luto e da perda.
ça em que verdadeiramente sobre esta base
nasça algo a que possamos chamar «políti- No texto que escreve no dia seguinte ao
ca», a identificação de uma figura antropo- 9/11, Vidas Precárias, Butler afirma que o
lógica nova capaz de a pôr no mundo e de erro fundamental que se seguiu ao trauma
a fazer caminhar»5, ou capaz de a educar, foi exactamente o de ler todo o aconteci-
de construir um percurso de crescimento mento como uma narrativa na primeira pes-
que escape com decisão de um horizonte soa, com o gigante americano - ferido na sua
que agora já tem dificuldade em conferir presumível invulnerabilidade - como único
sentido à realidade. Não se trata, contudo, protagonista. Invisibilidade e silêncio torna-
de inventar de novo uma fórmula boa para ram-se então as características de tudo o que
decifrar os tempos que correm, mas sim de não encontrava espaço naquela narrativa
conseguir ver «que esta antropologia e esta autocentrada e autocelebrativa de uma dor
política já nasceram: na prática da diferença incomensurável, injustificável, inexplicável,
sexual, da singularidade na relação, de um e que assim se devia manter.7 Butler torna-se
pacto social não mais edipiano e sacrificial.6 uma voz crítica da retórica do Estado que
quer restaurar a própria soberania e a pró-
A novidade consiste na elaboração de novas pria invulnerabilidade, percebendo como
categorias de leitura e interpretação da reali- também no interior da retórica comemora-
dade, porque a realidade está continuamen- tiva das vítimas se tenha privilegiado uma
te exposta ao novo e ao imprevisto, somos perspectiva de identidade, excluindo do
nós que temos dificuldade em reconhecê-lo. discurso público as outras vítimas, ou aque-
las que não tinham lugar na retórica estatal
Não é por acaso que a percepção de tal no- (imigrantes clandestinos, homossexuais, e
vidade, que ainda tem dificuldade em ser logo em seguida, as vítimas dos bombarde-
reconhecida, foi feita por mulheres, volto a amentos no Afeganistão, os rostos ou corpos
afirmá-lo. Ao sublinhar os aspectos concre- dos militares caídos no Iraque, as vítimas pa-
tos, materiais, os detalhes (a atenção tipica- lestinianas da violência israelita).
5
Idem, p. 207. 7
J. Butler, Precarious Life. The Powers of Mourning and
6
Ibidem. Violence, London and New York, Routledge 2003.
A cidade e a comunidade sob o olhar feminino 119
Butler propõe deslocar a narração daqueles capaz de acolher um novo tipo de comuni-
factos da perspectiva em «primeira pessoa» dade, uma comunidade que «acontece» em
retirando o acontecimento do sofrimento e virtude de um acontecimento traumático, e
da ofensa à lógica estatal. Existe, sugere Bu- que atravessa o acontecimento, o trauma da
tler, outra narração possível, que toma nota perda no coração da própria comunidade.
da perda e se dedica a uma elaboração com-
partilhada do luto, fazendo-o tornar-se parte O acontecimento crucial do 9/11 redese-
integrante da própria identidade individual, nha, em Nova Iorque, os limites da cidade
social e política. Não se trata, também aqui, que, se por um lado se contraem e intensi-
de uma reacção emotiva ou comemorativo ficam em torno dos escombros do Ground
do sofrimento: o trauma colectivo pode en- Zero, por outro amplificam-se e ultrapassam
contrar uma resposta diferente daquela da os limites nacionais. É verdade que somos
vingança. Ela consiste em tomar completa todos um pouco nova-iorquinos porque sa-
consciência da condição inevitável da vul- bemos, em linhas gerais, onde fica Central
nerabilidade como sendo inerente ao huma- Park e a 5ª Avenida, reconhecemos imedia-
no, uma condição que foi traumaticamente tamente o Empire State Building ou as Twin
revelada aos americanos exactamente em Towers. Contudo o acontecimento do 9/11
9/11. intensificou esta familiaridade. Somos re-
almente todos nova-iorquinos também no
Aquele caminho foi talvez percorrido pelas sentido em que a experiência do trauma, a
pessoas que atapetaram Nova Iorque com perda, o luto nos tocaram de perto, não só
os seus mortos, chorando-os e celebrando- porque participámos em directo no atenta-
-os «um a um», com nome e apelido, rostos do, mas também porque a partir daí se ini-
singulares que «faltavam» a vidas igualmen- ciou uma escalada de violência que ainda
te singulares. Naquele momento efémero, hoje não deixou de nos tornar espectadores
se comparado com a imediata reacção vio- permanentemente traumatizados por massa-
lenta do Estado, talvez se tenha produzido cres contínuos, horrores agora quotidianos
por breves instantes o que Butler desejava e e no entanto incompreensíveis. É como se o
define como «uma comunidade política da ter sido vítimas secundárias daquele acon-
perda». tecimento nos obrigasse não só a reflectir
politicamente sobre as suas consequências
Nova Iorque, se lida com olhos femininos, mas também sobre as suas possibilidades:
apresenta-se portanto como a «cidade ide- repensar de um modo diferente a cidadania,
al» não no sentido tradicional, arquitec- o espaço compartilhado, a relação entre as
tónico e renascimental do termo, mas no diferenças (étnicas, económicas, culturais,
actualíssimo de um lugar símbolo em que é de género) é o que o trauma quotidiano nos
possível repensar a comunidade não a partir impele a fazer.
do Estado-nação, mas daquilo que Adriana
Caravero chamou «o local absoluto»: «O Mesmo à luz das reflexões de Judith Butler é
horizonte do local absoluto não é o fruto di- possível pensar que o preço a pagar por este
recto do global, mas daquilo cuja abertura novo modo de conceber a cidadania seja
a globalização permite«.8 Um lugar – entre- a vulnerabilidade: apresenta-se como um
visto antes ainda de imaginado - como se novo universal que não permite assimilar os
estivesse separado, liberto da sua pertença a diversos ao modelo (eurocêntrico) do uno.
um estado, que se torna um espaço limitado Somos todos vulneráveis no sentido em que
somos todos humanos. A vulnerabilidade
8
Caravero, A più voci, Feltrinelli, Milano 2003, p.223. como traço característico do humano, mas,
120 Os novos desafios da vida urbana
como espaço de uma experiência comum e ma e da perda que se seguiu ao 9/11 se não
compartilhada. A qual, porém, no caso em- um «local absoluto», um espaço circunscri-
blemático do 9/11, não remete para a lumi- to, desligado e separado da retórica estatal
nosidade e harmonia da paideia grega, mas e nacional, onde a ocupar o palco mais que
sim para a vertigem e o vazio provocados as bandeiras eram os rostos e os nomes de
pelo trauma. Só na experiência do trauma pessoas em carne e osso, e onde a chorá-las
lida por um olhar feminino, atento ao singu- havia outras tantas pessoas de carne e osso.
lar, ao existente único e à sua vulnerabilida- Mas por causa da força simbólica da cidade
de é possível transformar a vertigem do vazio de Nova Iorque, agrada-nos imaginar que
e do insensato numa ocasião para voltar a aquele local absoluto não tenha as caracte-
fundar a comunidade a partir da perda. Uma rísticas do bairrismo, do particularismo, mas
a uma, um a um, na sua insubstituível uni- sim vá para além dos limites da própria cida-
cidade - e também na sua diversidade mul- de e possa voltar a criar-se aí onde existen-
tiétnica - os mortos do World Trade Center tes únicos possam recriar as condições de
recordam-nos que não há bandeira, não há comunidade e relação a partir da percepção
identidade nacional que possa e deva cele- de uma vulnerabilidade compartilhada. «O
brá-los transformando-os em símbolos e em local, exactamente pelo contágio que per-
justificação de mais violência. Todavia existe tence essencialmente ao simbólico, tem o
a experiência comum da perda, que vai para poder de se multiplicar. Um, cem, mil locais
além dos conceitos estatais, étnicos e religio- absolutos, poderia ser, um pouco ironica-
sos, que abre a cortina sobre a possibilidade mente, mas não nostalgicamente, o slogan.
de uma partilha local do luto que põe em Liberta também da lógica do território, que
comum a vulnerabilidade e a dependência. a disfarçava sob o conceito do indivíduo, a
Para além da lógica do Estado, do inimigo ontologia da unicidade tem uma extensão
e da guerra, o horizonte da vulnerabilidade global. A política do local pode abrir-se em
traz para a cena o que Caravero chama a todo o lado: imprevisível e intermitente, in-
política do «local absoluto», que «depois de controlável e surpreendente».9 Agrada-nos
finalmente se ter libertado da cartografia das finalmente imaginar, se bem que, até para o
nações, não caiu no erro de colocar diante nosso olhar feminino se torne difícil vislum-
da unicidade irrepetível de cada ser humano brar, que noutros lugares, noutros espaços
as características identitárias. Ela atreve-se dilacerados pela violência, pelo luto e pela
a pôr em jogo a unicidade sem particulari- perda, existentes únicos, procurem a partir
dades e confia-lhe o sentido da relação». O do sofrimento e da dor, voltar a fundar a sua
que veio a ser criado na experiência do trau- vulnerabilíssima cidade ideal.
9
Caravero, Il locale assoluto, cit., p.72.
Jovens para sempre:
a nova realidade
das pessoas idosas
Antón Costas
sem idades ou na qual convivem três gera- com menos de 5 anos. No futuro, é impro-
ções diferentes: avós, filhos e netos, ou me- vável que os «menores» sejam mais do que
lhor, jovens, adultos e idosos. os «cabelos grisalhos». As pessoas com mais
de 60 anos que, ao longo da história que co-
A linguagem predominante para a aborda- nhecemos, raramente significavam mais de
gem de pessoas com mais de 60 anos utiliza 2-3% da população na maioria dos países,
termos como «velhos» ou «anciãos», duas constituirão 15% da população dos países
palavras que contêm um sentido pejorativo ricos.
evidente e que não descrevem bem a nova
realidade social, que está a desaparecer: O aumento do número de idosos na popu-
a das pessoas não activas das sociedades lação mundial será a tendência demográfica
agrárias ou manufactureiras do século XIX e que definirá este século. Esse aumento é o
grande parte do século passado, com níveis resultado de três tendências que actuam si-
culturais baixos e que chegavam à reforma - multaneamente.
quando chegavam - em condições de saúde
e de vida, em muitos casos, precárias. A primeira é a subida do número de refor-
mados. Este fenómeno, como já referi ante-
É necessária uma linguagem adequada para riormente, será mais evidente nos próximos
nos referirmos a esta nova realidade social anos. Entre 2008 e 2015, estima-se que as
que começou a emergir no início deste novo grandes empresas vão mandar para a refor-
século. Os japoneses, que terão milhões de ma mais de metade dos seus actuais fun-
centenários nos meados deste século, falam cionários. Estes dados levam-nos a reflectir
de «Silver Century». Os anglo-saxónicos sobre a necessidade de prolongar, ainda que
referem-se a esta realidade como «elderly seja de forma parcial, a vida laboral.
society». Enquanto não tivermos palavras
novas, não podemos descrever esta realida- A segunda tendência provoca um aumento
de de forma adequada. À falta de um termo no número de idosos é a queda generalizada
mais adequado, utilizarei, neste ensaio, o das taxas de natalidade. Na América, o nú-
termo «idosos», para me referir à população mero de nascimentos dificilmente iguala o
com mais de 65 anos, por ser uma palavra número de óbitos. No caso de alguns países
mais neutra e descritiva do que «velhos» ou europeus, o número de nascimentos não é
«anciãos». suficiente para substituir os óbitos.
como o prolongamento da vida da maior uma ruptura radical, violenta e completa das
parte da população provoque tanto temor. trajectórias laborais e profissionais? Não se-
Provavelmente, uma das razões que contri- ria lógico e racional que a transição da vida
buem para a proliferação destas análises tão profissional activa a tempo inteiro para a re-
alarmistas sobre as consequências económi- forma ocorresse de forma gradual, mediante
cas, sociais e políticas do aumento do núme- fórmulas mistas de trabalho a tempo parcial?
ro de idosos nas nossas sociedades, é o facto Não seria melhor aproveitar, enquanto a
de continuarmos a encarar esta nova reali- geração do «baby boom» ainda está activa,
dade com o olhar, a linguagem e os padrões para preparar entre todos - governos, empre-
culturais dos velhos das sociedades agrárias sas e trabalhadores - um novo cenário?
e industriais dos dois séculos passados.
O que fazem os idosos com o seu tempo?
Construir um novo olhar e uma nova lin- Como o fenómeno da reforma ainda é re-
guagem sobre a nova sociedade sem idades, cente, não é possível encontrar investigações
exige elaborar uma nova cultura sobre a exaustivas que respondam a esta questão,
nova sociedade pós-industrial, uma socieda- como existem no caso do uso do tempo de
de em que as pessoas serão sempre jovens pessoas que estão profissionalmente activas.
ao longo da maior parte da sua vida. Falo Actualmente, imaginamos formas de mudar
de cultura, não no sentido artístico, mas no as coisas para tornar possível a conciliação
sentido antropológico. Uma nova cultura entre o trabalho e a família das pessoas pro-
que fomente e desenvolva um novo tipo de fissionalmente activas. O mesmo deve ser
capacidades pessoais e formas de vida, bem feito relativamente aos idosos.
como uma nova forma de organizar a eco-
nomia, o mundo do trabalho, a política e a A ausência de estudos deste tipo não é mais
sociedade, de tal forma que se consiga tirar do que uma manifestação concreta de falta
proveito de todas as possibilidades positivas de informação - e de dados e, o que é pior,
que o aumento da esperança média de vida de falta de interesse em obtê-los - sobre os
proporciona à população ou, por outras pa- idosos, revelando, de certa forma, discrimi-
lavras, é necessário elaborar um manual de nação quanto à idade.
instruções para a utilização do tempo na
nova sociedade da nova geração de idosos. A imagem que hoje temos dos nossos refor-
mados nos países ricos é a de um grupo de
pessoas de terceira idade que anda de um
4. Manual de instruções lado para o outro, principalmente nas épo-
para a utilização do tempo dos idosos cas baixas do turismo, à procura de um en-
tretém para ocupar o tempo livre. No entan-
O que fazer com esses 20, 25 ou 30 anos to, esta é uma visão simplista. É necessário
que o progresso científico e económico con- adquirir mais conhecimentos sobre os com-
cedem às novas gerações de reformados? portamentos e desejos dos idosos.
Como aproveitar o potencial de criação de
riqueza que os idosos representam? Que Um dos poucos estudos de que tenho notí-
tipo de mudanças são necessárias na organi- cia foi elaborado pela jornalista inglesa Vic-
zação empresarial, social, política e familiar toria Cohen, que colocou as seguintes ques-
para aproveitar esse potencial? É lógico que tões: os reformados ingleses têm o mesmo
a reforma continue a ser aos 60 ou 65 anos, espírito consumista que as outras pessoas? O
agora que a esperança de vida se está a pro- que compram as pessoas com idades entre
longar tanto? Será adequado que se produza os 75 e os 85 anos? Liquidificadores e objec-
Jovens para sempre: a nova realidade das pessoas idosas 129
tos de uso pessoal, como imaginamos? Ou, encontraram canais mais produtivos e satis-
pelo contrário, jogos de computador e os fatórios. Este é o desafio que temos perante
últimos modelos de leitores de DVD, como nós: criar uma nova cultura que permita aos
a população mais jovem? Podemos verificar, idosos deixarem de ser reformados ociosos
a partir do seu estudo, que os reformados para passarem a ser reformados ocupados.
anglo-saxónicos compram de tudo.
Mas o problema é que não sabem como
Mas isto não fica por aqui. Dois dias depois fazê-lo. As actuais gerações de reformados
de comprarem, voltam às lojas para devolver são as primeiras a viver colectivamente, ou
os produtos adquiridos e repetem o mesmo seja, como geração plena, entre os 20 e os
com outro tipo de produtos. Também gostam 30 anos, mais do que viviam as gerações
de fazer compras por catálogo, em casa. Fa- anteriores. Facto que nunca antes ocorre-
zem o pedido e logo depois de terem rece- ra. Trata-se de uma geração que chegou à
bido a mercadoria, voltam a embalar o pro- reforma em massa, mas não dispõe de um
duto e procedem à sua devolução. manual de instruções para a utilização desta
nova etapa das suas vidas.
Este comportamento parece, na opinião da
autora da investigação, explicar o facto de É necessário criar uma nova cultura que per-
só se verem octogenários aos balcões de de- mita desenvolver boas práticas relacionando
volução nas grandes superfícies comerciais o uso do tempo com o manual de instruções
britânicas da Mark&Spencer. para novos reformados. Penso que é um dos
desafios mais importantes das nossas socie-
Como interpretar este comportamento dos dades. Entre outros aspectos, é preciso or-
idosos? A autora explica que o acto de com- ganizar a sociedade e o mundo do trabalho
prar e vender é uma forma de entretenimen- para evitar que a saída brusca, repentina do
to e que o mais revelador é o facto de este mundo laboral e profissional signifique uma
procedimento os fazer entrar no circuito co- perda de capacidades cognitivas e compe-
mercial. O que lhes interessa não é a com- tências adquiridas ao longo da vida, com
pra em si, mas a simulação de participação prejuízo para as pessoas que sofrem essa
numa actividade social da qual se sentem perda, para a economia e para a sociedade
excluídos. O ciclo gasto-compra-devolução no seu todo.
não acrescenta nada à renda dos idosos, mas
ocupa-lhes o tempo. E é precisamente este Enquanto vamos elaborando esse manual, o
consumo de tempo que lhes dá a sensação primeiro aspecto que temos de mudar é a
de estarem a participar na vida económica e imagem que temos da velhice. Até agora, o
social, de serem úteis. discurso político e as políticas públicas re-
lacionam a velhice com a dependência, ou
O que nos dizem estas e outras investiga- seja, a imagem que se tem dos idosos é a de
ções é que os reformados desejam intervir que são pessoas com restrições a uma vida
activamente, de alguma maneira, na vida plena e autónoma. Sem que isso signifique
económica, laboral, social e política, ainda deixar de lado os idosos que necessitam de
que seja apenas para desfrutarem de expe- assistência, essas percepções e esse discurso
riências sociais que agora lhes estão inter- oficial não correspondem à nova realidade
ditas. São idosos dinâmicos que se negam dos idosos.
a serem excluídos e que, até agora, não
130 Os novos desafios da vida urbana
turais e educativas e quando existe um tipo Sem menosprezar de modo algum este tipo
de programa dirigido a idosos, os principais de práticas, o risco do voluntariado é, como
pontos em evidência costumam ser de tipo salienta Richard Sennett, reduzir a utilidade a
assistencial ou de entretenimento. um hobby. O serviço voluntário é uma práti-
ca valiosa que convém fomentar. No entanto,
O mesmo acontece com as actuais políticas é necessário conferir estatuto, profissionalis-
públicas: ou pretendem dar assistência ou mo aos idosos que realizam um trabalho útil.
pretendem entreter. Os idosos não são enca- O selo de garantia que distingue a sua utilida-
rados como pessoas capazes de desenvolver de é o seu reconhecimento público.
actividades socialmente úteis.
Os sectores público, estatal, regional e local
A nova cultura em relação aos idosos tem de têm uma grande capacidade de profissiona-
enfrentar dois grandes desafios. O primeiro lismo ou utilidade. É o que se ganha quando
está relacionado com o tempo: como dar se reconhece um salário às pessoas no am-
continuidade à história de vida dos reforma- biente familiar que cuidam de uma pessoa
dos, mantendo-os activos e úteis? O segundo dependente. O mesmo deve acontecer com
desafio está relacionado com a preservação os idosos que estão encarregues de cuidar
do talento: como desenvolver novas práticas dos netos, bem como outro tipo de activida-
que permitam manter e aproveitar as capaci- des úteis que possam desenvolver, mas que,
dades e conhecimentos? actualmente, não têm esse reconhecimento.
Se os governos recompensarem essas tare-
A reforma provoca uma quebra na história fas, os idosos que as desempenham não cai-
de vida dos idosos. Quebra a ligação com rão no esquecimento.
os seus conhecimentos, com a experiência
acumulada ao longo do tempo e, muitas ve-
zes, com as vivências quotidianas durante 6. Os idosos e as cidades
a etapa laboral. Por isso, é necessário criar educadoras
novas instituições e práticas que dêem con-
tinuidade ao fio narrativo da vida dos ido- As cidades desempenham um papel es-
sos e lhes permitam manter a capacidade de sencial nesta nova cultura, em relação aos
interpretar o que acontece ao seu redor, no idosos. A tendência da segunda metade do
mundo e sentirem-se úteis. século passado de fugir da cidade não de-
sapareceu, mas surgiram outras tendências
Sentir-se útil significa dar algo que interessa que fazem com que, a par desse movimento
aos outros. Quando observamos o que fazem centrífugo, exista outro centrípeto que tem
os reformados nas nossas sociedades e o que vindo a crescer nas últimas décadas: há mui-
as políticas culturais actuais lhes oferecem, ta gente que gosta da vida urbana e, em par-
chega-se à conclusão que essas políticas pre- ticular, de viver no centro.
tendem aumentar as relações informais e en-
treter, enquanto o tempo não passa. Entre os que preferem viver na cidade en-
contram-se os idosos, um número crescente,
A maior parte dos programas e iniciativas como já referi, dentro da população total.
que as instituições públicas e privadas ofe- Buscam maior e mais fácil acesso aos trans-
recem actualmente aos idosos procuram a portes públicos, à saúde, à vida cultural e à
vinculação dos idosos a uma determinada relação com a família e os amigos mas, so-
comunidade ou organização, seja eclesiás- bretudo, às oportunidades de se manterem
tica ou laica. activos e úteis.
132 Os novos desafios da vida urbana
As cidades são a personificação da moder- como das privadas, têm de ser conscientes
nidade. A Providência criou a natureza, mas desta nova realidade que representa a exis-
os homens criaram as cidades. As cidades tência de uma população de idosos com um
são construções humanas em constante elevado nível cultural e de potencialidade.
transformação.
É surpreendente que, ainda hoje, a maio-
Até agora, o factor de maior intensidade ria dos programas culturais e educativos
transformadora ao longo da história é as mi- das principais instituições públicas e priva-
grações. Contudo, a partir de agora, os ido- das desconheçam quase por completo esta
sos também serão um factor muito poderoso nova realidade. As instituições educativas
de mudança na vida urbana. concentram-se nas fases de escolarização e
reduzem as suas ofertas de acordo com as
As cidades são um espaço natural para as idades. Desconhecem totalmente essa nova
«classes criativas» e as gerações que estão a realidade que os idosos representam.
chegar à reforma são compostas por pessoas
com um elevado nível profissional e cultural As universidades e outros centros de ensino
e, portanto, de criatividade. superior não são mais activos e inovadores.
Só recentemente começaram a surgir pro-
Alguns analistas e académicos reconheci- gramas nas instituições de ensino superior
dos, como é o caso de Bruce Katz, da Ins- dirigidos a idosos.
tituição Brookings, afirmam que há muito
mais capacidade de inovação e de criação Contudo, este é o terreno mais percorrido. É
de novas culturas para responder a novos necessário um ensino universitário específi-
desafios sociais a nível municipal do que a co para idosos que permita a integração e a
nível estatal. É por essa razão que estamos a participação destas pessoas na sociedade e
observar a forma como as políticas públicas fomente as relações intra e inter gerações,
se vão, progressivamente, centrando nas ci- iniciativas que contribuam para a preserva-
dades. ção das suas competências e capacidades
adquiridas a longo prazo e que, dessa forma,
Esta característica é a responsável por pen- dêem continuidade à história das suas vidas.
sarmos que a nova cultura que requer uma
sociedade sem idades, onde os idosos são e Precisamos, por isso, de uma nova cultura
serão cada vez mais uma parte importante e de novas políticas em relação aos idosos.
da população, têm possivelmente na cida- Novos valores e práticas sociais, laborais,
de o melhor laboratório para experimentar económicas e culturais que possibilitem a
a criação de novos valores, novas práticas e sua autonomia pessoal e que os faça sentir-
novas políticas em relação aos idosos. Uma -se úteis e integrados na sociedade. Uma
nova cultura que abandona a superficialida- nova cultura que nos traga uma nova forma
de e o mero entretenimento que as políticas de entender a nova sociedade dos idosos e o
e programas culturais actuais visam, para chamado envelhecimento.
promover acções capazes de dar sensação
de utilidade à vida dos idosos. Talvez esta nova cultura relativa aos idosos
Os responsáveis pelas decisões políticas - seja uma nova página na história da humani-
educativas, culturais, sociais, de habitação dade. E as cidades educadoras têm um pro-
ou laborais - tanto das instituições públicas tagonismo indubitável na sua redacção.
Os novos desafios da vida
urbana: a redefinição
do conceito de «comunidade»
na era da Internet
Genís Roca
5
Presumer, http://pt.wikipedia.org/wiki/Prosumer
• Predominam os meios de produção digi- 6
Cluetrain Manifesto, http://www.cluetrain.com/book/
7
Marc Prensky, http://www.marcprensky.com/writing
tal. É surpreendente o facto de não ficarem 8
Marc Prensky (2001). Digital natives, digital
surpreendidos com as possibilidades que o immigrants, http://www.marcprensky.com/writing/
mundo digital oferece. Fazem copy/paste de Prensky%20-%20Digital%20Natives,%20Digital%20
vídeos para publicar na rede com a mesma Immigrants%20-%20Part1.pdf
9
Marc Prensky (2004). The Emerging Online Life of the
Digital Native: What they do differently because of te-
chnology, and how they do it. http://www.marcprensky.
3
John Palfrey, http://blogs.law.harvard.edu/palfrey com/writing/Prensky-The_Emerging_Online_Life_of_
4
Berkman Center of Internet and Society, http://cyber. the_Digital_Native-03.pdf
law.harvard.edu
Os novos desafios da vida urbana: a redefinição do conceito de «comunidade» na era da Internet 139
• Criam de maneira diferente. Uma das ca- digitais» uma espécie em vias de extinção.
racterísticas que melhor os define: gostam Mas o que é certo é que uns não querem
de criar, querem criar e o suporte digital per- parecer-se com os outros e que existem mui-
mite-lhes fazê-lo de múltiplas formas: criar tos espaços onde ambos os grupos devem
um blog ou um website, fazer animações em encontrar-se e trabalhar juntos. Um deles é
flash, retocar fotografias, editar vídeos, a escola. Já há quem se dedique à identi-
programar mashups10, criar os seus avatares ficação do que possa ser um problema de
e até modelar a sua identidade na rede. relação entre alguns estudantes «nativos di-
gitais» e alguns professores «imigrantes di-
• Reúnem-se e coordenam-se de maneira gitais», como Ian Jukes e Anita Dosaj, que
diferente. Estar com alguém já não implica já realizaram trabalhos sobre este tema em
um encontro presencial. Têm múltiplos re- 2004, na Universidade de Wrigh11 e elabo-
cursos para comunicar apesar de não ser raram esta tabela para mostrar as diferenças
preciso estar no mesmo local. São capazes entre os grupos:
de se coordenar online, envolvendo cente-
nas de pessoas.
• Buscam de maneira diferente. Quando Preferem processar ima- Preferem processar tex-
desconhecem o número de telefone de al- gens, sons e vídeo a texto tos a trabalhar com ima-
gens, sons e vídeos
guém, vão procurar ao Google e quando
pesquisam algum tipo de informação, utili- Preferem interagir em Preferem que os estu-
rede e de forma simul- dantes trabalhem indivi-
zam documentos e pessoas fiáveis. tânea com muitas outras dualmente
pessoas
• Socializam de maneira diferente. Também
Preferem aprender just Preferem aprender just in
socializam através da rede, algo que a maio-
in time case (através de exames)
ria dos «imigrantes» não faz.
Preferem satisfação e re- Preferem satisfação e re-
• Crescem de maneira diferente, tendo a compensas imediatas compensas diferidas
rede como referência e não os pais. Preferem aprender o que Preferem seguir o plano
é imediatamente relevan- de estudos e de exames
Assim sendo, existe uma grande quantidade te, aplicável e divertido padrão
de diferenças que provam que uns e outros
não são iguais, não sendo, contudo, melho-
res nem piores. Nem os «nativos digitais»
são um modelo a seguir nem os «imigrantes
11
Ian Jukes e Anita Dosaj (2004), Understanding Digital
10
Mashup, http://pt.wikipedia.org/wiki/Mashup Kids, http://www.wright.edu/%7Emarguerite.veres
140 Os novos desafios da vida urbana
na administração que não está conectado a momento, a partir de qualquer lugar e ao al-
nenhuma das novas redes digitais de conhe- cance de toda a gente. O que é importante
cimento e que, por isso, não são capazes de são as redes, as comunidades, os circuitos
utilizar a rede como um ambiente educador a partir de onde se gera a informação e os
e socializador. A estatística dos políticos que circuitos através dos quais se circula e se
abrem sítios da Internet e blogs em época enriquece. A inteligência colectiva constrói-
de eleições para abandoná-los na manhã -se a partir das contribuições feitas por cada
seguinte às eleições é preocupante. Muitos um. Que esta história sirva como exemplo:
vão à Internet só durante a campanha eleito- a associação de sindicatos do Reino Unido
ral para tirar fotografias e aparentar interesse (TUC) exigiu que os funcionários pudessem
pela cultura digital, mas não valorizam ou aceder em horas de trabalho às redes sociais
não entendem que a rede é um espaço onde da Internet14, caso contrário, haveria o risco
muitos cidadãos se educam e sociabilizam, de perda de competitividade.
um espaço de conversação e participação,
envolvimento e acção. Os espaços digitais Quando, todavia, existem amplos sectores
são o novo espaço público, que precisa de de população que se integram na Socieda-
pessoas e organismos que salvaguardem tan- de da Informação e Conhecimento, surge
to o interesse público como o privado, de um sector incipiente que já fez a sua tran-
serviços e representantes da comunidade sição para Sociedade em Rede. Enquanto
atentos às necessidades dos cidadãos que os primeiros dão valor à informação («a in-
ocupam este novo espaço urbano. A ausên- formação é poder»), os segundos dão valor
cia neste espaço público deveria servir para ao facto de fazerem parte de uma rede («a
desqualificar todos os que se dizem estar ao informação só é útil se a quiseres partilhar»),
serviço dos cidadãos, sejam políticos, fun- o que pressupõe mudanças relevantes no
cionários ou professores. Os desconectados que diz respeito a valores. Por uma questão
não são indicados para pensar em soluções de diferenças de idade, os dois grupos cho-
para o futuro e a nova e verdadeira exclusão caram pela primeira vez nas salas de aula,
digital que marcará a diferença é a dos res- mas cada vez se encontram mais espaços
ponsáveis – políticos, sociais e empresariais de relação e convivência (o trabalho, a po-
- que se deparam com decisões relativas ao lítica, o associativismo, o comércio) e pro-
nosso futuro sem estarem conectados. gressivamente se confirma a transformação
de conceitos como a autoridade, a proprie-
A chegada dos «nativos digitais» provoca a dade intelectual, a pertença, a reputação ou
transição da sociedade da informação e do a identidade; todos eles relevantes em qual-
conhecimento para a sociedade em rede. quer processo educativo. Não estamos a fa-
A informação já não tem valor porque está lar de acesso às novas tecnologias, estamos
muito mais acessível, em diversos formatos, a falar de compreensão em relação às mu-
através de vários dispositivos, em qualquer danças sociais.
14
BBC News (30/08/2007), Let staff use network sites -
TUC, http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk/6969791.stm
A voz dos governos
locais na
governação mundial
Elisabeth Gateau
A irrupção dos governos locais Este movimento geral não reduz no entanto
no palco internacional as grandes diferenças entre as regiões. En-
quanto que no seio da União europeia o
«Uma revolução democrática, silenciosa, peso dos governos locais nas despesas pú-
propaga-se actualmente no mundo. A de- blicas ultrapassa os 10% do PIB e se aproxi-
mocracia local progride em todas as r egiões, ma dos 9% na América do Norte, esse não
desde os povos da savana africana, ao alti- chega a 2,5% em África e é inferior a 4% na
plano Latino-americano, até aos barangayes América Latina.
das Filipinas, passando pelos povos da
Eurásia.»1 Em paralelo, a acção internacional dos gover-
nos locais também se alargou consideravel-
Por estas palavras começa o Primeiro Relató- mente, especialmente nos anos 1980-1990.
rio mundial sobre a Descentralização e a De- Num inquérito realizado em 1994-1995
mocracia local que pormenoriza a evolução numa amostra de cinquenta países, mais de
dos governos locais no mundo actual. Este dezasseis mil cidades desenvolvendo acções
relatório evidencia o facto de que a maioria internacionais foram identificadas.2Segundo
dos países, ao longo destes últimos 20 anos, um estudo mais recente da Organização
estabeleceu governos locais eleitos por su- para a Cooperação e o Desenvolvimento
frágio universal e que responde pelos seus Económico OCDE, 2003) a cooperação dos
actos perante os cidadãos. A emergência de governos locais mobilizava mais de 1,2 mil
novas lideranças políticos a nível local per- milhões de dólares cada ano.3
mitiu a criação de associações de governos
locais em mais de cento e trinta países e a Actualmente, num mundo no qual mais de
nível regional em todos os continentes. metade da humanidade vive num meio ur-
bano, os governos locais participam cada
Se é verdade que a noção de «autonomia vez mais na procura de soluções para maio-
local», de local self-govermnent, de Selbs- ria dos grandes desafios contemporâneos:
-tverwaltung, de livre administração é anti- dos desafios democráticos, porque é ao ní-
ga, a difusão mundial da descentralização é vel local que a noção de cidadania adquire
um fenómeno relativamente recente ligado todo o seu sentido e que se constroem as
às transformações políticas e socioeconó- identidades face ao avanço crescente da
micas das últimas duas décadas do século mundialização; dos desafios ecológicos,
passado. Em linhas gerais, é a transferência porque é ao nível local que são levadas a
do poder de decisão, de competências e de cabo as acções contra as mudanças clima-
recursos do governo central e das suas admi- téricas e para a preservação do nosso pla-
nistrações para os governos intermediários e
locais. 2
G. Jan Schep, F. Angenent, J. Wismans, M. Hlllenius,
Local Challenges to Global Change, A Global perspec-
tive on Municipal International Cooperation, SGBO-
1
United Cities and Local Governments, First Global -VNG-SDU Publishers, La Hague, 1995
Report on Decentralization and Local Democracy, Bar- 3
OCDE, Aide allouée par les collectivités locales, dos-
celona, UCLG, 2007, p. 9. siers du CAD 2005, vol 6, nº 4
146 Os novos desafios da vida urbana
neta; acções que requerem a transformação intervir em uníssono para facilitar o diálogo
dos modelos de produção e de consumo, com a comunidade internacional.
principalmente urbanos; dos desafios eco-
nómicos, porque é nas cidades e nas suas Um processo de colaboração mais directo
periferias que se concentra grande parte das entre as Nações Unidas e os governos locais
riquezas e das oportunidades, mas também arrancou. Desembocou, ao fim de vários
das maiores desigualdades; e, por fim, dos anos em:
desafios sociais e de solidariedade, porque
as políticas de integração social, de respeito a) a unificação das grandes organizações
pela diversidade cultural e da luta contra a mundiais de governos locais com a criação
insegurança encarnam-se em primeiro lugar da organização Cidades e Governos Locais
a nível local. Unidos (CGLU); e
intervenção é a cidade como agente educa- • o apoio à paz e ao diálogo entre as civili-
dor. A CGLU apoia-se em sete secções con- zações, através da diplomacia das cidades e
tinentais - África, América latina, Ásia, Eurá- colaboração com a Aliança das Civilizações
sia, Europa, Médio Oriente, Ásia Ocidental, das Nações Unidas;
América do Norte - bem como numa secção
metropolitana, Metropolis, que junta oitenta • a luta contra as mudanças climáticas e
das maiores cidades do planeta. O seu Se- para o desenvolvimento duradouro e respei-
cretariado mundial situa-se em Barcelona. tador do ambiente;
a) Desenvolver o papel bem como a influên- A CGLU também progrediu de maneira sig-
cia dos governos locais e das organizações nificativa no objectivo de vir a ser o prin-
que os representa na governação mundial; cipal recurso mundial de informação e de
reflexão sobre os governos locais. Publicou
b) Ser o recurso principal no apoio aos go- nomeadamente o Primeiro Relatório Mun-
vernos locais democráticos, eficazes e ino- dial sobre a Descentralização e a Democra-
vadores, próximos dos cidadãos; e cia Local bem como a primeira compilação
dos indicadores base dos governos locais em
c) Promover uma organização mundial de oitenta e dois países do mundo inteiro.
governos locais democrática e eficaz.
A consolidação da organização mundial
Desde a sua criação, a organização CGLU unificada não é um processo concluído mas
dedicou-se a reforçar a presença das autori- antes um processo em constante evolução.
dades locais nos principais temas da agenda Os esforços devem ser mantidos para re-
mundial que têm uma influência directa so- aproximar as redes regionais ou sectoriais,
bre o local: para desenvolver uma arquitectura demo-
crática complexa permitindo articular de
• a solidariedade activa entre os governos maneira equilibrada a diversidade das face-
locais e entre a sua população face aos tas do mundo local.
eventos mundiais como por exemplo, com
as vítimas das catástrofes naturais após o
tsunami que sucedeu no Sudeste asiático Um progresso para o reconhecimento
(Dezembro de 2004-janeiro de 2005), ou dos governos locais
a favor dos sinistrados da guerra do Líbano no direito internacional
(Julho-Agosto 2006);
Ao longo do processo que levou à consti-
• a acção dos governos locais a favor da tuição da organização Cidades e Governos
agenda mundial do desenvolvimento, em Locais Unidos, e sobretudo desde o ano de
particular os Objectivos do Milénio para o 2004, as autoridades locais reforçaram e
Desenvolvimento promovido pela comuni- consolidaram as ligações que existiam com
dade internacional para lutar contra a pobre- as principais instituições internacionais. Po-
za extrema, para o acesso dos mais neces- demos assinalar:
sitados à educação, à saúde e aos serviços
básicos (Campanha para as Cidades do Mi- • a criação do Comité Consultivo das Au-
lénio de Junho-Setembro 2005); toridades Locais junto das Nações Unidas
148 Os novos desafios da vida urbana
(UNACLA), no ano 2000, a primeira expe- - o Relatório de Kofi Annan, «Numa liber-
riência de institucionalização do diálogo dade maior: para o desenvolvimento, segu-
entre as autoridades locais e as Nações Uni- rança e direitos humanos para todos» (Nova
das. O seu mandato foi circunscrito, por en- York, Março de 2005);
quanto, à realização da agenda do programa
Habitat4; - a Declaração dos chefes de Estado e de go-
verno na Cimeira do Milénio + 5 (Nova York,
• o lançamento da Aliança das Cidades em Setembro de 2005);
1999, pelo Banco mundial e pela ONU Ha-
bitat. A Aliança reúne actualmente mais de • por fim, a assinatura de acordos de colabo-
quinze países doadores e cinco organismos ração entre a CGLU e diversas agências inter-
internacionais. Mobilizou desde a sua cria- nacionais tais como o Programa das Nações
ção mais de 88 milhões de dólares em inves- Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o
timentos para a redução da pobreza urba- Instituto do Banco Mundial e a UNESCO, a
na. As autoridades locais são representadas Organização Internacional do Trabalho (OIT)
no seio do Conselho Consultivo da Aliança e o Programa Comum das Nações Unidas so-
pelo intermediário da CGLU e da sua secção bre o VHS/Sida (ONUSIDA).
metropolitana, Metropolis;
• recentemente, em Janeiro de 2008, a
• a admissão de representantes das autorida- CGLU assinou um acordo quadro com a
des locais como observadores junto do Con- Aliança das Civilizações das Nações Unidas
selho de Administração da Agência Habitat e tornou-se membro do «Grupo de Amigos
da ONU (2003), representação assumida pela da Aliança». Uma organização das Nações
organização CGLU desde 20055. Desde então, Unidas reconhece assim pela primeira vez a
outras agências, como o Instituto das Nações diplomacia das cidades como uma alavanca
Unidas para a Formação Profissional e Pes- para o diálogo entre os povos do mundo e
quisa (UNITAR), cooptaram representantes da para trabalhar para a paz e o respeito da di-
CGLU e/ou autoridades locais nos seus órgãos versidade.
da administração, mas a título temporário;
Estes progressos/avanços inscrevem-se no
• o reconhecimento explícito do papel das âmbito do debate sobre a reforma das Na-
autoridades locais em diversos textos das ções Unidas e a renovação da governação
instituições internacionais: mundial. Iniciado pelo Secretário-Geral pre-
cedente, Kofi Annan, para reforçar a eficácia
- o Plano de Acção da Cimeira Mundial so- do sistema multilateral mundial, democrati-
bre o desenvolvimento duradouro e respei- zar e aumentar a sua legitimidade, o debate
tador do Ambiente (Joanesburgo, 2002); deu lugar a diferentes relatórios seguidos de
propostas, sendo que algumas delas faziam
referência explicita ao papel dos governos
4
UNACLA, criado por recomendação do Secretário locais.
geral das Nações Unidas, Kofi Annan, sobre a respon-
sabilidade do programa ONU-Hábitat para promover Deve-se sublinhar em particular o relatório
socialmente e ambientalmente cidades sustentáveis
(resolução 17/18, conselho de Administração da ONU sobre a relação entre as Nações Unidas e a
Hábitat) sociedade civil apresentado pelo grupo de
5
Resolução 19/1, sobre a regras de procedimentos do personalidades presidido pelo ex-presidente
Conselho de Aministração da ONU Hábitat, artigos do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, que
64, 65 e 66. [Maio 2003]. A sua aplicação data do ano
2005 propôs a Kofi Annan, em Junho de 2004,
A voz dos governos locais na governação mundial 149
ções Unidas tiveram uma influência directa tringir o reconhecimento dos governos lo-
na constituição das Cidades e dos Governos cais, a interacção cada vez mais estreita en-
Locais Unidos, como novo actor internacio- tre o nível local e o nível mundial permite o
nal. A adopção das Directrizes para a Des- maior optimismo quanto ao reconhecimen-
centralização permitiu um passo importante to futuro do papel dos governos locais nas
na criação de um quadro regulamentar uni- instituições internacionais e na governação
versal a favor de um reconhecimento da au- mundial. Como foi expresso pelo secretário-
tonomia local. Progressos decisivos também -geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon,
foram realizados para que a voz dos gover- nas mensagens endereçadas às autoridades
nos locais perante a comunidade internacio- locais reunidas aquando do congresso da
nal se faça ouvir. CGLU em Jeju, «o futuro da humanidade de-
pende de como as cidades irão agir perante
Apesar dos Estados continuarem a tentar res- os desafios levantados pela mundialização».
2
Educação:
o presente é o futuro
Comunicações,
conhecimento e cidade:
um debate intercultural
lhes imprime a acção imaginária dos meios. agrupamentos sociáveis para participar nes-
(García Canclini, 1998) sas funções de comunicação em grande es-
cala, e ainda para compreender a dinâmica
A rádio e a televisão, comprometidas na ta- e o valor sociocultural dessas redes comuni-
refa de narrar e dar coerência à cidade, re- cativas; c) as pressões do mercado, deriva-
desenham as suas tácticas comunicacionais das dos altos investimentos requeridos para
para se enraizarem em espaços delimitados. produzir duma forma industrial e difundir
As adaptações do discurso internacional da massivamente a rádio, a televisão, o cinema
CNN, com emissão em Atlanta, com infor- e os serviços digitais.
mação local em muitos países, exemplifi-
cam esta versatilidade. Ainda que se tratem Nem sempre estes três factores se articu-
de empresas transnacionais, sabem que as laram, como agora, em benefício dos em-
suas audiências esperam que lhes falem do presários e no sentido de dar prioridade à
que significa estar juntos num sitio particu- videocultura comercializada. No inicio da
lar. Apresentam-se então neste duplo pa- difusão radiofónica e televisiva, alguns Es-
pel: como informadores macro sociais, que tados nacionais eram proprietários de emis-
divulgam o que sucede em lugares distan- soras e orientaram a sua acção com sentido
tes, e como confidentes micro sociais, que público. A concepção do espaço público
contam os engarrafamentos e perturbações moderno esteve ligada, diz John Keane, ao
emocionais da cidade em que estamos a ver modelo de «radiodifusão de serviço públi-
o noticiário. Os rituais da diplomacia inter- co». Este autor demonstrou a importância
nacional e os espectáculos íntimos dos nos- que este modelo teve na Grã-Bretanha, Ho-
sos vizinhos, têm uma ligação na sucessão landa, República Federal da Alemanha e Ca-
informativa. nadá para minorar as pressões financeiras,
limitar a quantidade e tipo de publicidade,
Vejamos mais de perto como se reconfigura assim como dar acesso aos cidadãos para
o sentido da cidade mediante o papel «urba- que participem nos debates de cada socie-
nizador» da vídeo cultura. Considerarei a vi- dade. Encontrámos uma análise semelhante
deocultura em duas dimensões: Por um lado, às funções sociais e políticas dos meios, em
é constituída pelo conjunto de redes e men- estudos sobre a radiodifusão e a televisão na
sagens electrónicas (rádio, televisão,vídeos, América Latina (Martín Barbero, Ortiz, Wi-
Internet...); por outro, o conjunto de mensa- nocur, entre outros).
gens visuais que moldam a imagem da ci-
dade, ou seja, a sua arquitectura, a ordem Devido à crescente influência da rádio, da
e desordem urbanística, os cartéis publicitá- televisão e da Internet, referimos-nos nor-
rios e políticos, as sinalizações, os grafitis e malmente a estes recursos como as novas
os demais referentes visíveis da cidade. ágoras, os lugares de informação massiva
(Ferry, Wolton). Efectivamente, nos meios
A actual reorganização dos espaços urbanos de comunicação conhecemos a maioria das
e das redes comunicacionais efectua-se com notícias, ouvimos comentários e debates
uma lógica que combina três movimentos: sobre a esfera pública, e às vezes participa-
a) o enorme poder tecnológico e económico mos nesta conversação. Ao mesmo tempo
dos meios para se comunicar com a maioria que os partidos políticos reduziram a sua
da população, conjugar a quotidiano local credibilidade e capacidade de representa-
com redes de informação e entretenimento ção dos interesses públicos, os meios foram
nacionais e globais; b) o declínio dos orga- ocupando os velhos e os novos lugares de
nismos estatais e a baixa capacidade dos intermediação e deliberação social. A vídeo
Comunicações, conhecimento e cidade: um debate intercultural 159
política substitui as reuniões e a militância zam a partir das prisões, servindo-se de tele-
partidária. móveis, sequestros e ataques urbanos, como
aconteceu em São Paulo, Rio de Janeiro, Ci-
Diários e rádio, e muito mais a televisão, dão dade do México, Tijuana e em dezenas de
a conhecer, melhor que no passado e a mais cidades latino americanas.
cidadãos, actos de corrupção e violações
de direitos humanos, ou difundem explica-
ções sobre crises ecológicas ou políticas. O Sociedade da informação
acesso cada vez mais estendido à Internet, ou do conhecimento?
contribui para que múltiplos sectores se co-
nectem de forma imediata com informações As questões relativas à informação e à gestão
previamente restringidas, e para que fre- urbana foram elaboradas nos últimos anos
quentemente as discutam em blogues. sob o marco da redefinição das sociedades
contemporâneas como sociedades do co-
Tal como nos anos noventa os estudos sobre nhecimento. As cidades ocupam uma po-
sociologia política e da comunicação desco- sição central nesta linha de pensamento e
briram a importância da vídeo política, de- acção. Falamos de cidades do conhecimen-
vemos agora prestar mais atenção a outros to para nos referirmos a cidades desenhadas
modos de nos informarmos, comunicarmos com objectivo de propiciar um desenvolvi-
e participar socialmente, que se encontram mento económico baseado no conhecimen-
nos novos cenários digitais da leitura. Desta to científico, nas tecnologias avançadas de
forma, as políticas culturais já não podem informação e numa interconectividade glo-
ser apenas gutemberguianas, deslocadas em bal fluída ou a partes de cidades reestrutura-
relação aos lugares e meios onde a maioria das para fazer cumprir esses objectivos. Al-
se informa e entretém. Não é possível cen- gumas características destas cidades são usar
trar o debate sobre a democratização social a criação e inovação como recursos chave
apenas na comunicação escrita. Nem tão para adicionar valor à produção e propiciar
pouco na manipulação televisiva. Um olhar um desenvolvimento acelerado com maior
sobre os novos modos de ler e de se comu- competitividade internacional; fomentar a
nicar, revela que não se lê tão pouco nem articulação entre universidades, empresas e
menos que no passado. Vendem-se menos criadores; facilitar o acesso ás novas tecno-
jornais, mas centenas de milhar consultam- logias comunicacionais a todos os cidadãos;
-os diariamente na Internet. Diminuem as orientar a educação formal e informal para
livrarias mas aumentam os cibercafés e os elevar o nível educativo de toda a população
meios portáteis pelos quais circulam mensa- especialmente as aprendizagens de conhe-
gens escritas e audiovisuais. cimentos e inserções nas redes que favore-
çam a aquisição deste tipo de capital social.
Seria ingénuo pensar que a ciber cidadania Boston e Seatle nos Estados Unidos, Cam-
vai canalizar suficientemente as necessida- bridge e Manchester na Grã-Bretanha, são
des de informação, representação e parti- alguns exemplos desta re-articulação entre
cipação nas cidades. A contra informação informação, conhecimento, conectividade,
por telemóveis entre centenas de milhar de infraestrutura urbana, educação e participa-
cidadãos espanhóis, conseguiu desautorizar ção social no desenvolvimento.
a manipulação do governo e do PP, que atri-
buíam os atentados de Atocha à ETA (e pres- O Fórum Universal das Culturas realizado
sionaram a imprensa, a rádio e a televisão, a em 2004 em Barcelona, já auspiciou uma
transmiti-lo). Mas também as máfias organi- articulação entre o crescimento urbano e
160 Educação: o presente é o futuro
realiza hoje a construção multicultural dos À luz desta co-existência complexa entre
saberes, e elaborar nessa trama os dilemas saberes, modos de vida e comunicação,
interculturais. O formidável aumento de co- podemos re-examinar se é mais pertinen-
nhecimentos pode efectivamente comunicar te falar de sociedade da informação ou do
(que não é o mesmo que informar) se se usa conhecimento. A Sociedade da informação
para construir novas formas de «coabitação refere-se a um conjunto de processos tecno-
cultural» (Wolton, 2003: 12). lógicos e sociais que organizam o emprego
sistemático da informação e o seu processa-
A situação global do desenvolvimento ur- mento digital para reestruturar os processos
bano apresenta-se, nesta óptica, mais com- produtivos, reduzir os custos de produção e
plexa que a concebida pelas teologias «pro- incrementar exponencialmente a capacida-
gressistas» da história ou pelo relativismo de de acumulação económica. Então, con-
cultural. A crescente modernização dos paí seguir um desenvolvimento social e cultural
ses orientais com rápido desenvolvimento, mais equilibrado no mundo dependeria da
como a China, Índia e Japão, aproximou o integração de todos os países na revolução
desenho de algumas cidades ao urbanismo digital e informacional, que todos os sec-
ocidental sem prescindir da sua herança tores de cada sociedade tenham acesso a
histórica. Da mesma forma, nas sociedades «trabalhos inteligentes» através das novas
latino americanas com ampla população in- destrezas e da conexão com as redes onde
dígena, a medicina tradicional, as práticas se obtém informação estratégica. Supõe-se
artesanais e as formas nativas de organiza- que a introdução de tecnologia produtiva, a
ção do conhecimento, coexistem com as expansão dos mercados e a sua integração
ciências. Pese a enorme desigualdade entre transnacional, incrementarão os benefícios
os conhecimentos científicos e tradicionais, económicos. Na medida em que se consiga
e as tendências evolucionistas que tendem a o acesso directo e simultâneo à informação
desqualificar as culturas indígenas, os sabe- avançada, irá democratizar-se a educação e
res autóctones continuam a ser usados por melhorar o bem-estar da maioria. Na verten-
vastos sectores como recursos para a saúde, te política, crescerão as oportunidades de
a educação bilingue e as práticas campo- participação e descentralizar-se-à a tomada
nesas e urbanas (notoriamente na Bolívia, de decisões.
Guatemala e México).
Como explicar com este esquema a degra-
A estas mudanças cabe somar a vasta difu- dação da vida social e política das cidades
são de saberes tradicionais e não ocidentais mesmo naquelas com um alto desenvolvi-
na Europa e Estados Unidos, assim como mento tecnológico? A concepção duma so-
em zonas urbanas e rurais da Ásia e Amé- ciedade do conhecimento habilita, por sua
rica Latina desenvolvidas com orientação vez, perceber e explicar diferenças, desi-
moderna. Já não parece contraditório que gualdades e contradições que fazem paten-
recursos comunicacionais modernos como tes outras dinâmicas sociais. Desta forma, a
a televisão e Internet, contribuam para a ex- sociologia da educação pôde mostrar que
pansão das medicinas tradicionais, ou que não existe uma «simultaneidade sistémica»
grupos indígenas utilizem programas com- entre todas as dimensões do desenvolvimen-
putacionais para registar e dar continuidade to, porque os educandos não são iguais, não
aos seus mitos e cosmovisões. Existe uma in- têm possibilidades semelhantes de aprender
teracção, por vezes conflituosa, entre formas nem se interessam pelos mesmos conteúdos.
antigas e modernas, tradicionais e científicas Uma educação homogénea, numa informa-
de conhecimento. ção universal e estandardizada, não gera
162 Educação: o presente é o futuro
cibercafés nos quais se democratiza o aces- mera parte, México, Grijalbo, Universidad
so às redes digitais. Em sociedades mono- Autónoma Metropolitana, 1998.
lingues, os diferentes modos de se informar
através de livros, ou monitores, de conhecer DAVIS, MIKE, Ecology of fear. Los Angeles
músicas em concertos, vídeos e discos pi- and the Imagination of Disaster, New York,
ratas, downloads gratuitos ou intercâmbios Metropolitan Books, 1998.
electrónicos, vão configurando diferenças e
distâncias entre grupos e gerações. A noção HOPENHAYN, MARTÍN. «Educación y
de espaço público urbano, que continua a cultura en Iberoamérica: situación, cruces
apresentar fractura entre bairros mais ou me- y perspectivas», en Néstor García Canclini
nos qualificados, entre zonas melhor ou pior (comp) Culturas de Iberoamérica. Diagnósti-
equipadas, complexifica-se pelas prolonga- co y propuestas para su desarrollo. Madrid,
ções virtuais de outros modos de comunica- Santillana, 2005.
ção, convivência ou segregação.
KEANE, JOHN. «Structural transformations
Assombrou-me há poucos anos, e apenas of the public sphere» en The Communica-
a iniciar-se este século, ver como um GPS tion Review, 1 (1), San Diego, California,
orientava com segurança o automóvel que 1995.
me levou de San Gemignano até Siena, tan-
to no troço de auto-estrada como pelas ruas KOOLHAAS, REM, «Junk-space», October,
de traçado medieval. As novidades elec- Nº100, primavera 2002 MARTÍN-BARBERO,
trónicas, digitais e informacionais que nos JESÚS. De los medios a las mediaciones,
trazem os avanços da chamada sociedade México, Gustavo Gili, 1987.
do conhecimento, estão a expandir notavel-
mente as vias de acesso ao saber e facilitam ORTIZ, RENATO. A moderna tradição brasi-
releituras e usos da sociedade e da sua his- leira. Cultura brasileira e indústria cultural,
tória. Combinam o tradicional, o moderno e São Paulo, Editora Brasilense, 1988.
o hiper-moderno. Mas são insuficientes para
construir modos adequados de gestão dos WINOCUR, ROSALÍA. Ciudadanos medi-
muitos modos de conhecer e representar o áticos. La construcción de lo público en la
social. Construir cidade, educar na e com a radio, Buenos Aires – Barcelona –México,
cidade, requer hoje uma articulação de es- Gedisa, 2002.
paços e circuitos que não se limita à escola
e instituições tradicionalmente encarregadas WOLTON, DOMINIQUE. L´autre mondiali-
destas tarefas. Apenas começámos a vislum- sation. París, Flammarion, 2003.
brar o que significa fazer uma cidade do co-
nhecimento.
Bibliografia
Richard Sennet
1
Sennett, Richard: «Drift», em The Corrosion of Character, the Personal Conse-
quences of Work in New Capitalism. (Nova Iorque, W. W. Norton, 1998), pp 15-31.
À deriva
ra hora de um longo voo entre Nova Iorque No parque de negócios no Missouri, a ins-
e Viena, tentei saber tudo o que lhe tinha tabilidade da nova economia apanhou-os
acontecido desde o nosso último encontro. desprevenidos. Enquanto Jeannette era pro-
Rico cumpriu o desejo de mobilidade as- movida, Rico era despedido. A sua empresa
cendente do pai, mas não o caminho que foi absorvida por uma empresa maior, que ti-
este lhe havia traçado. Não tem particular nha os seus próprios analistas. Assim, o casal
admiração pelos “servidores do tempo” ou fez uma quarta mudança, para o leste, para
outros, igualmente presos na armadura da um subúrbio de Nova Iorque. Actualmente,
burocracia. Em vez disso, acredita na ca- Jeannette administra uma grande equipa de
pacidade de mudar e de correr riscos. E a contabilistas e Rico fundou uma pequena
verdade é que prosperou. Enquanto Enrico empresa de consultoria. Embora prósperos,
recebe uma remuneração situada no último em lugares de topo, por serem capazes de
quartel da cadeia salarial, Rico está entre os se apoiar e adaptar mutuamente, tanto um
5% mais bem pagos. Contudo, esta não é como outro temem frequentemente estar na
exactamente uma história feliz. iminência de perder o controlo sobre as suas
vidas. Este medo faz parte das suas carreiras
Depois de se ter formado numa universida- profissionais.
de local em engenharia electrónica, Rico
ingressou numa escola de gestão em Nova No caso de Rico, o medo da falta de con-
Iorque. Por lá casou com uma colega, uma trolo é simples: provém da dificuldade de
jovem protestante oriunda de uma família administrar o tempo. Quando informou os
mais abastada. A escola tinha-os preparado seus colegas que ia abrir a sua própria em-
para a necessidade de mudar de terra e de presa de consultoria, a maioria incentivou-
emprego com frequência e foi o que eles fi- -o. A consultoria parecia ser o caminho da
zeram. Depois da licenciatura, em catorze independência. Mas ao começar a trabalhar
anos de trabalho, Rico mudou-se quatro ve- viu-se mergulhado num sem número de ta-
zes. Começou como consultor de tecnologia refas menos qualificadas, como ter de tirar
numa empresa de capital de risco na Costa as suas próprias fotocópias, que antes eram
Oeste, nos anos de glória da indústria de feitas por outra pessoa. Estava submerso no
computadores, em Sillicon Valley; mudou- fluxo complexo do trabalho em rede. Cada
-se então para Chicago, onde também teve chamada tinha de ser atendida e o mais pe-
sucesso. A mudança seguinte foi motivada queno conhecimento aproveitado. Para con-
pela carreira da sua mulher. Se Rico fosse seguir trabalho, submeteu-se aos horários de
apenas um ambicioso personagem retirado pessoas que não eram obrigadas a respon-
de um dos livros de Balzac, nunca o teria der-lhe. Tal como outros consultores, deseja-
feito, porque nem sequer foi ganhar um salá- va apenas cumprir a sua parte dos contratos.
rio melhor e trocou o “berço” da tecnologia Mas esses, segundo diz, são em grande parte
por um parque de negócios mais discreto e uma ficção. Um consultor está sempre a ter
modesto, no Missouri. de tomar novas direcções, em resposta às
mudanças de humor e de opinião de quem
Enrico sentiu-se um pouco envergonhado lhe paga. Rico não tem tarefas fixas que lhe
quando Flávia começou a trabalhar. Rico, permitam dizer: «É isto que eu faço, são es-
pelo contrário, vê Jeannette como uma com- tas as minhas responsabilidades».
panheira e uma colega de trabalho, e adap-
tou-se às suas necessidades. Foi nessa altura, No caso de Jeannette a questão não se colo-
quando a carreira de Jeannette melhorou, ca de forma tão evidente. O pequeno grupo
que nasceram os filhos de ambos. de contabilistas que agora dirige encontra-se
170 Educação: o presente é o futuro
dividido em pessoas que trabalham a partir Em cada uma das suas quatro mudanças,
de casa, pessoas que estão normalmente no os novos vizinhos de Rico têm interpreta-
escritório, e um grupo de funcionários inter- do a sua chegada como uma nova fase que
nos de nível inferior que se encontram a mil encerra os capítulos anteriores. Fazem-lhe
quilómetros de distância e que estão ligados perguntas acerca de Sillicon Valley ou do
a ela através de um computador. Na em- parque de escritórios do Missouri, mas, diz
presa onde actualmente trabalha, as regras Rico, «não vêem outros lugares», as suas
rígidas de vigilância de telefones e e-mail imaginações não estão preparadas para isso.
controlam os contabilistas que trabalham a Este é um medo tipicamente americano. O
partir de casa. Para organizar o trabalho dos clássico subúrbio americano era uma cida-
funcionários do escritório, que se encontram de-dormitório; na última geração surgiu um
a mil quilómetros de distância, não pode tipo diferente de subúrbio, economicamente
delegar tarefas, nem tão pouco os conhece independente do núcleo urbano; nem é uma
pessoalmente, orientando-os apenas através cidade ou vila nem uma aldeia; é um local
de indicações formais escritas. Esta forma de que nasce a partir da intervenção de um in-
trabalho flexível não é menos burocrática. vestidor imobiliário, desenvolve-se e decai
De facto, agora as suas decisões têm menos no tempo de uma só geração.
peso do que no tempo em que supervisiona-
va um conjunto de pessoas a trabalhar todas As amizades fugazes e a comunidade local
juntas no mesmo espaço. formam o pano de fundo da maior preocu-
pação de Rico: a sua família. Tal como Enri-
Como já disse, eu não estava, inicialmente, co, Rico encara o trabalho como um serviço
predisposto a sentir pena deste típico casal à família. Mas ao contrário do seu pai, Rico
do “sonho americano”. Mas como o jantar descobre que as exigências do trabalho difi-
foi servido no avião e acabámos por falar cultam o alcance dos objectivos. Inicialmen-
de assuntos mais pessoais, a minha simpatia te, achava que Rico se referia à dificuldade
por Rico foi aumentando. O medo de deixar de gerir o tempo entre o trabalho e a família:
de ter o controlo era muito mais profundo «Chegamos a casa às sete, fazemos o jantar,
do que o de eventualmente perder poder tentamos encontrar uma hora para dedicar
no seu trabalho. Temia que a necessidade aos trabalhos de casa das crianças e depois
de sobrevivência no contexto da economia tratamos dos nossos assuntos». Quando as
moderna o conduzisse a ter atitudes e fazer coisas se tornam complicadas durante me-
opções que o deixassem, emocionalmente, ses a fio na firma é quase «como se não
perdido. conhecesse os meus filhos». Preocupa-se
com a anarquia frequente em que a famí-
Contou-me que tanto ele como Jeannette lia mergulha, e com o facto de negligenciar
faziam amizade sobretudo com as pessoas os filhos, cujas necessidades não podem ser
que conheciam no trabalho, tendo perdido programadas para se adaptarem às exigên-
muitas dessas amizades durante as mudan- cias do seu trabalho.
ças dos últimos 12 anos, embora mantendo
o contacto. Para Rico as comunicações elec- Ouvindo isto, tentei acalmá-lo; a minha mu-
trónicas têm o mesmo significado de comu- lher, o meu enteado e eu tínhamos sofrido e
nidade que as reuniões do sindicato tinham sobrevivido a uma vida igualmente stressan-
para Enrico, mas acha-as demasiado curtas te: «não está a ser justo consigo próprio»,
e apressadas: «É o que nos acontece com os disse eu. «O facto de se incomodar significa
filhos: ou estamos lá quando é preciso ou já que está a fazer o melhor que pode pela sua
é tarde de mais.» família». Apesar de ter ficado sensibilizado
À deriva 171
com o que eu lhe disse, na verdade eu não passo numa ou duas organizações está a de-
tinha compreendido. saparecer. O mesmo se passa com a aquisi-
ção de um único conjunto de competências
Quando era criança, e isso eu já sabia, Rico ao longo de uma vida de trabalho. Hoje, um
tinha contestado a autoridade de Enrico; já jovem americano com pelo menos dois anos
nessa altura me tinha dito que se sentia sufo- de faculdade sabe que poderá ter de mudar
cado com as regras mesquinhas que regiam de emprego cerca de onze vezes durante a
a vida do pai. Agora que ele próprio é pai, o sua carreira e reformular a sua base de com-
medo da falta de disciplina ética persegue-o. petências pelo menos umas três vezes em
Receia, sobretudo, que os seus filhos se tor- quarenta anos de trabalho.
nem «ratos de centros comerciais», andando
sem rumo nos parques de estacionamento, à Um executivo de uma grande empresa ame-
tarde, enquanto os pais permanecem incon- ricana recorda que o lema «o longo prazo já
tactáveis nos seus escritórios. não existe» está a alterar o próprio conceito
de trabalho:
Deseja ser para o seu filho e filhas um mo-
delo de determinação e resolução, mas não «Temos de promover o conceito da força de
pode simplesmente dizer-lhes o que devem trabalho como sendo temporária, embora
ou não fazer. Tem de lhes dar o exemplo. O a maioria dos empregados temporários es-
exemplo objectivo que lhes podia dar, o da teja dentro das paredes da nossa empresa.
sua mobilidade social, é algo que eles consi- Os “empregos” estão a ser substituídos por
deram como um direito adquirido, uma his- “projectos” e “áreas de trabalho”.»2
tória que pertence a um passado que não é
o seu e que já acabou. Mas a maior preocu- As empresas começaram a adjudicar grande
pação de Rico é que a sua vida profissional parte das tarefas que antes se faziam por tra-
não possa servir de exemplo aos seus filhos balhadores do quadro a pequenas empresas
e à forma como eles devem conduzir as suas que trabalham com empregados contratados
vidas. As qualidades necessárias para se ter a prazo. O sector de mais rápido crescimen-
um bom emprego não são necessariamente to da força de trabalho norte-americana, por
as qualidades de um bom carácter. exemplo, é aquele que é constituído pelas
pessoas que trabalham em agências de em-
Tal como viria a compreender mais tarde, a prego temporário.3
intensidade desse medo tem origem no fosso
que separa as gerações de Enrico e de Rico. «As pessoas estão famintas de [mudança]»,
Os lideres empresariais e os jornalistas en- argumenta o guru da gestão de empresas Ja-
fatizam o mercado global e o uso de novas mes Champy, porque «o mercado pode ser
tecnologias como as principais característi- orientado para o consumidor como nunca
cas do capitalismo do nosso tempo. Isso é antes foi»4. O mercado, sob esse ponto de
verdade, mas falta aqui uma outra dimensão
da mudança: a das novas formas de orga- 2
Citado no New York Times, 13 de Fevereiro de 1996,
nizar o tempo, especialmente o tempo de p. DI, D6
trabalho.
3
Corporações como a empresa Manpower cresceram
240 por cento entre 1985 e 1995. Neste momento, a
empresa Manpower, com 600 000 pessoas na sua fo-
O sinal mais tangível dessa mudança pode- lha de pagamentos, comparativamente às 400 000 da
ria ser o lema «o longo prazo já não existe». General Motors e às 350 000 da IBM, é agora o maior
No mundo do trabalho, a carreira profissio- empregador do país.
4
James Champy, Re-engineering management , (Nova
nal tradicional, em que se progredia passo a Iorque, Harper-Business), 1995, p. 119, pp. 39-40
172 Educação: o presente é o futuro
vista, é demasiado dinâmico para permitir hierarquias».5 Isso significa que as promo-
fazer as mesmas coisas da mesma forma, ções e as demissões tendem a não ser basea
ano após ano, ou para permitir fazer sempre das em regras fixas e claras e as tarefas são
o mesmo. O economista Bennett Harrison pouco rígidas. A rede está constantemente a
acredita que a origem dessa fome de mu- redefinir a sua estrutura.
dança é o «capital impaciente», o desejo de
lucro rápido. Por exemplo, a duração média Um executivo da IBM disse uma vez a Po-
de tempo das transacções que têm sido rea well que uma empresa flexível «deve tornar-
lizadas em bolsas britânicas e americanas -se num arquipélago de actividades relacio-
caiu 60 por cento nos últimos quinze anos. nadas umas com as outras».6 Arquipélago é
O mercado “acredita” que o lucro mais rá- uma boa imagem da comunicação em rede,
pido é melhor quando gerado pela rápida uma vez que a comunicação se faz como
mudança institucional. nas viagens entre ilhas, só que à velocidade
da luz, graças às modernas tecnologias. O
Há que referir que o sistema do «longo pra- computador tem sido a chave para a substi-
zo» que o novo regime quer destruir foi, em tuição das comunicações lentas e condicio-
si mesmo, efémero – as décadas de meados nadas que ocorriam nas cadeias tradicionais
do século XX. O capitalismo do século XIX de comando. O sector de mais rápido cres-
caracterizou-se pelos sucessivos desastres cimento no mercado de trabalho é a infor-
nos mercados de acções e por um investi- mática e os serviços de processamento de
mento empresarial irracional; as fortes osci- dados, a área em que trabalham Jeannette
lações do ciclo de negócios deram às pes- e Rico; o computador é hoje utilizado em
soas muito pouca segurança. Na geração de praticamente todos os trabalhos, de muitas
Enrico, após a Segunda Guerra Mundial, foi formas, por pessoas de todas as categorias.
possível, na maioria das economias avan- (ver quadros 1 e 7 do apêndice para um en-
çadas, controlar a instabilidade com a aju- quadramento estatístico).
da dos sindicatos e das garantias do estado
providência e das grandes empresas. Todos Por todas estas razões, a experiência de En-
estes factores contribuíram para gerar uma rico da narrativa de longo prazo e direccio-
era de relativa estabilidade. Este período de nada tornou-se disfuncional. Rico tentou
mais ou menos trinta anos define o passado explicar-me – e talvez também a si próprio
estável que está agora a ser substituído por – que as mudanças materiais incorporadas
um novo regime. no lema «o longo prazo já não existe» se tor-
naram disfuncionais também para ele, mas
Uma mudança na estrutura institucional mais como orientações de carácter pessoal,
moderna tem sido o suporte do trabalho a particularmente no que respeita à sua vida
curto prazo, por contrato ou esporádico. As familiar.
empresas têm procurado diminuir a quanti-
dade de burocracia, para se tornarem orga- Tomemos a questão do compromisso e da
nizações mais horizontais e flexíveis. Em vez lealdade. «O longo prazo já não existe» é
das organizações em pirâmide, a administra- um princípio que corrói a confiança, a leal-
ção prefere agora pensar nas organizações dade e o compromisso mútuos. A confian-
como redes. «Os compromissos em rede são
mais leves nas suas bases» do que as hierar- 5
Walter Powell e Laurel Smith-Doerr, «Networks and
quias piramidais, afirma o sociólogo Walter Economic Life», in Smelser Neil e Richard Swedberg,
Powell, «são mais facilmente decompostas eds., The Handbook of Economic Sociology (Princeton:
Princeton University Press, 1994), p. 381
ou redefiníveis do que os activos fixos das 6
Ibidem
À deriva 173
ça pode, claro, ser uma questão puramente pessoal, dependem da vontade de assumir
formal, como num acordo de negócios ou compromissos. Tendo em conta os laços
no respeito pelas regras de um jogo. Mas as curtos, débeis, nas instituições de hoje, John
experiências mais intensas de confiança são Kotter, da Escola de Negócios de Harvard,
em geral mais informais, como aquelas que aconselha os jovens a trabalhar «mais do
provêm de se aprender em quem confiar lado de fora do que do lado de dentro das
quando é necessário fazer uma tarefa difí- organizações». Sugere-lhes que optem pela
cil ou impossível. Esses laços sociais levam consultoria em vez de ficarem “amarrados”
tempo para se desenvolver e vão-se enrai- a um emprego de longa duração; a lealdade
zando nos alicerces das instituições. institucional é uma armadilha numa eco-
nomia em que «os conceitos de negócio, a
A precariedade do trabalho nas instituições concepção dos produtos, o conhecimento
modernas dificulta o desenvolvimento da estratégico, o investimento em tecnologias
confiança informal. O compromisso mútuo de ponta e todos os tipos de conhecimen-
quebra-se de forma mais evidente quando as to têm uma vida curta».8 Um consultor res-
novas empresas são vendidas pela primeira ponsável por uma reestruturação da IBM
vez. Nas empresas em início de actividade, que conduziu à redução do número de pos-
exige-se muito tempo e esforço por parte de tos de trabalho afirma que uma vez que os
todos. Quando as empresas promovem pela funcionários percebam que não podem de-
primeira vez uma venda pública de acções, pender da empresa estão “no mercado”9. O
isto é, quando os fundadores estão dispostos desprendimento e a colaboração superficial
a vender fora para investir dentro, os funcio- são melhores protecções para lidar com a
nários da base da hierarquia são excluídos realidade actual do que o comportamento
do processo. Se uma organização, seja ela baseado em valores de lealdade e serviço.
nova ou antiga, funciona mais como uma es-
trutura de rede flexível e autónoma do que A dimensão do tempo do novo capitalismo
com ordens rígidas emanadas do topo, a rede afecta de forma mais directa a vida emocio-
pode também enfraquecer os laços sociais. nal das pessoas fora do local de trabalho
O sociólogo Mark Granovetter afirma que do que a alta tecnologia de transmissão de
as redes institucionais modernas são marca- dados, os mercados globais de acções ou o
das pela «força dos laços débeis», o que, em livre comércio. Transposto para o domínio
parte, significa que as formas passageiras de da família, «o longo prazo já não existe» sig-
associação são mais úteis para as pessoas do nifica manter-se em movimento permanen-
que as relações de longo prazo, e, em parte, te, sem se comprometer e sem se sacrificar.
que o estabelecimento de laços fortes, como Rico teve uma súbita explosão: «Não pode
a lealdade, tem deixado de ser incentivado.7 imaginar como me sinto estúpido quando
Estes laços débeis são uma característica do falo com os meus filhos sobre a importância
trabalho em equipa, em que se passa de uma dos compromissos. Para eles não passa de
tarefa para outra, e a equipa vai alterando a uma virtude abstracta que não encontram
sua composição em conformidade. em lado nenhum». Durante o jantar não
consegui perceber esta explosão que, na al-
Os laços fortes dependem, pelo contrário, tura, me pareceu tão despropositada. Agora
de relacionamentos longos. E, de forma mais
8
John Kotter, The New Rules, (Nova Iorque: Dutton,
7
Mark Granovetter, «The Strenth of the Weak Ties», 1995), pp. 81, 159.
American Journal of Sociology, 78 (1973), pp. 1360- 9
Anthony Sampson, Company Man, (Nova Iorque:
1380. Random House, 1995), pp. 226-227
174 Educação: o presente é o futuro
percebo que Rico estava apenas a reflectir experiência profissional. Inicialmente evitou
sobre si próprio, que os filhos não vislum- responder directamente à pergunta, dizendo
bram quaisquer compromissos nem na vida apenas que «esses temas não são muito fala-
dos seus pais nem em outros da mesma ge- dos na televisão», mas depois disse: «Bom,
ração. não, na verdade eu não falo assim com os
meus filhos».
Rico não suporta a ênfase naqueles valores
que definem um local de trabalho inovador Uma conduta que conduza ao sucesso, ou
e flexível como o trabalho em equipa e o simplesmente à sobrevivência no mundo
debate, quando transpostos para a esfera do trabalho, não serve de modelo às rela-
íntima. Quando posto em prática dentro ções entre pais e filhos. O problema deste
de uma casa, o trabalho em equipa é des- jovem casal é exactamente o inverso: como
trutivo, sintoma de falta de autoridade e de evitar que as relações familiares sucumbam
orientação na educação dos filhos. Como ao comportamento típico do “curto prazo”,
refere, tanto ele como Jeannette conhecem ao formato das reuniões de trabalho e, aci-
casos de pais que só para não terem de di- ma de tudo, à muito débil lealdade e pouco
zer «não!» são capazes de debater todos os comprometimento que hoje caracterizam os
temas até à exaustão. São pais que ouvem ambientes de trabalho? Em vez dos valores
demasiado bem, que são condescendentes, instáveis da nova economia, a família deve-
em vez de serem autoritários. Só que este ria, na opinião de Rico, realçar a importân-
tipo de educação gera demasiados miúdos cia da obrigação formal, da confiança, do
desorientados. compromisso e dos objectivos. Todas estas
virtudes são próprias do “longo prazo”.
«Tudo tem de bater certo», explicou-me
Rico. Mais uma vez não fui capaz de com- Este conflito entre a família e o trabalho co-
preender de imediato o que me queria di- loca algumas questões sobre a própria ex-
zer e então deu-me o exemplo da televisão. periência da vida adulta. Como é que os
Rico e Jeannette são talvez dos poucos ca- objectivos de vida a longo prazo podem
sais que têm por hábito falar aos seus dois ser atingidos numa sociedade dominada
rapazes da relação entre os filmes ou séries pelo curto prazo? Como é possível manter
de humor que vêem no ecrã e os aconteci- relações sociais duradouras? De que forma
mentos que vêm relatados nos jornais. «De pode um ser humano construir uma narra-
outra maneira, não passaria de uma amál- tiva de identidade e história de vida numa
gama de imagens». A maior parte das com- sociedade feita de episódios e fragmentos?
parações que são feitas recaem sobre cenas As condições da nova economia vivem da
de violência e sexualidade. Enrico recorria experiência com desvios no tempo, de lugar
com frequência a pequenas parábolas para para lugar, de emprego para emprego. Se eu
falar em casa da importância dos princípios. pudesse continuar a acompanhar o percur-
Eram ensinamentos que retirava do seu tra- so de Rico, verificaria que o capitalismo do
balho como porteiro – como por exemplo curto prazo ameaça corromper o seu carác-
«Podemos fingir que não vemos uma nódoa, ter, especialmente aquelas qualidades que
mas ela está lá». Quando eu o conheci, Rico fazem com que os seres humanos se liguem
era apenas um adolescente e demonstrava uns aos outros e que lhes permitem manter
ter alguma vergonha desses excertos de sa- um sentimento de self sustentável.
bedoria doméstica. Por isso, perguntei-lhe se
ele também gostava de utilizar este tipo de POR VOLTA DA HORA DO JANTAR, está-
parábolas ou regras éticas com base na sua vamos ambos mergulhados nos nossos pró-
À deriva 175
prios pensamentos. Eu tinha imaginado, 25 tempo (e, concluí mais tarde, consultando as
anos antes, que o capitalismo tardio tinha minhas notas, Rico tivera algum prazer em
atingido uma espécie de consumação final. provocar-me). Rico sabe perfeitamente que
Mesmo que o mercado fosse mais livre e o o seu conservadorismo cultural é apenas
controlo governamental mais débil, o “sis- isso – uma comunidade simbólica idealiza-
tema” continuava a entrar na experiência da. Na verdade não espera que as crianças
quotidiana das pessoas como sempre tinha sejam mesmo postas em orfanatos. Teve se-
entrado, com sucessos e insucessos, domi- guramente muito pouco contacto com o tipo
nação e submissão, alienação e consumo. de conservadorismo que preserva o passado;
Questões de carácter e cultura enquadra- por exemplo, os seus compatriotas têm-no
vam-se perfeitamente nestas categorias tra- tratado, de cada vez que muda o seu local
dicionais. Mas as experiências dos jovens na de residência, como se a sua vida começas-
actualidade não podem ser explicadas atra- se nessa altura, remetendo o passado ao es-
vés destes conceitos. quecimento. O conservadorismo cultural de
que se diz adepto é um sinal da coerência
A forma como Rico se refere à sua família que falta na sua própria vida.
também o conduziu, evidentemente, a re-
flectir sobre os seus valores éticos. Quando E, no que respeita à família, os seus valores
fomos os dois para a parte de trás da cabine não são apenas uma questão de nostalgia.
para fumar, recordou-me que já havia sido Na verdade Rico detesta a experiência real
um liberal (no sentido americano do termo), da autoridade parental rígida como aque-
preocupando-se com os pobres e tendo um la que ele próprio sofreu com Enrico. Não
comportamento correcto perante as mino- regressaria ao modelo do tempo linear que
rias, como os negros ou os homossexuais. governava a vida de Enrico e Flávia, mesmo
A intolerância de Enrico relativamente aos que pudesse. Olhou para mim com um cer-
negros ou aos estrangeiros envergonhava- to desprezo quando lhe contei que, como
-o. Contudo, depois de começar a sua vida professor universitário, tenho emprego para
profissional, Rico tornou-se um “conserva- o resto da vida. Vê a incerteza e o risco
dor social”. Tal como a maior parte dos seus como desafios profissionais; como consultor
pares, não tolera parasitas sociais, que vê aprendeu a ser um jogador numa equipa es-
encarnados na figura paternalista do estado pecializada.
providência que gasta o erário público em
alcoólicos e drogados. Com o tempo, aca- Mas estas formas de trabalho flexível não ti-
bou por se tornar um crente nos padrões veram qualquer utilidade para Rico no seu
fixos, draconianos, do comportamento em papel de pai ou de membro da comunidade,
comunidade, como opostos aos valores da quando o que pretende é manter relacio-
«educação democrática» que encontra a sua namentos sociais e ser um educador capaz
análoga na reunião de trabalho de tipo hori- de dar orientações duradouras. É contra os
zontal. Como exemplo deste ideal comuni- laços desfeitos no trabalho, a amnésia de-
tário, Rico disse-me que aprova as propostas liberada dos seus vizinhos e o espectro dos
vindas de alguns círculos mais conservado- filhos como “ratos de centros comerciais”,
res que defendem que se devem retirar os que Rico defende a importância dos valores
filhos aos maus pais e institucionalizá-los. estáveis. E foi assim que se viu preso numa
armadilha.
Fiquei bastante irritado e debatemos caloro-
samente sob uma enorme nuvem do fumo Todos os valores que considera importan-
dos cigarros. Falávamos os dois ao mesmo tes exigem regras rígidas: um pai diz «não»,
176 Educação: o presente é o futuro
uma comunidade constrói-se com trabalho, bilidade de todas aquelas mudanças» é para
a dependência é um mal a evitar. As regras Rico uma forma de desafio. Nesta fase da
éticas não têm lugar para caprichos de oca- nossa viagem percebi que a última coisa que
sião e é precisamente destes caprichos que eu poderia dizer perante este dilema era:
Rico pretende defender-se. Mas é difícil pôr «mas como é que se pode achar responsá-
estas regras intemporais em prática. vel?». Teria sido efectivamente uma pergunta
razoável, mas sem dúvida também um insul-
Essa dificuldade está patente na linguagem to. Seria como se dissesse «você não conta
que usa para descrever as suas mudanças nada».
de casa durante os últimos 14 anos, por
todo o país. Embora muitas dessas mudan- Enrico tinha uma visão fatalista e conserva-
ças tivessem ocorrido contra a sua vontade, dora do mundo. Achava que quem nascia
raramente usa a voz passiva para relatar os numa determinada classe, com uma deter-
acontecimentos. Por exemplo, não gosta de minada condição social, fazia o melhor que
dizer: «Fui dispensado». Prefere referir-se podia dentro do que lhe era possível, dentro
ao fim da carreira no parque de negócios das limitações impostas por essa condição.
do Missouri como «Enfrentei uma crise e fui Os despedimentos eram acontecimentos
obrigado a tomar uma decisão». Acerca des- que estavam fora do seu controlo, pelo que
se assunto diz: «Sou responsável pelas mi- teve de aprender a lidar com eles. A ex-
nhas próprias escolhas e pelas consequentes pressão de Rico, que acabei de citar, reve-
mudanças». Parecia o seu pai a falar. «As- la que o seu sentido de responsabilidade é
sumir as responsabilidades» era a frase mais mais profundo. O que Rico quer enfatizar é
importante do léxico de Enrico. Só que Rico a sua vontade férrea de ser considerado ne-
não sabe como agir face a essa responsabili- cessário, mais como uma qualidade do seu
dade. Perguntei-lhe: «Porque é que quando carácter do que como o resultado das suas
foi dispensado no Missouri não contestou, acções. A flexibilidade conduziu-o a consi-
porque é que não lutou?». Respondeu: «Cla- derar a força de vontade como a essência do
ro, senti raiva. Mas de que é que isso me va- seu carácter ético.
lia? Não há nada de errado em uma empresa
decidir redimensionar-se. Acontecesse o que Assumir a responsabilidade por aconteci-
acontecesse eu teria de lidar com as conse- mentos que estão fora do nosso controlo
quências. Ia pedir a Jeannette que mudasse, pode parecer mero sentimento de culpa,
uma vez mais, por mim? Seria mau para ela mas no caso de Rico essa interpretação não
e mau para as crianças. Deveria ter-lhe per- seria justa, uma vez que não está apenas a
guntado? A quem é que eu ia escrever uma tentar desculpar-se e também não desistiu,
carta sobre este assunto?» perante uma sociedade que se apresenta
completamente fragmentada. As regras que
Não havia nada que Rico pudesse fazer. No formula sobre o que deve ser uma pessoa de
entanto, sente-se responsável por este acon- bom carácter podem parecer-nos simplistas
tecimento que está fora do seu controlo. ou infantis, mas estaríamos, mais uma vez,
Literalmente, carrega-o como uma espécie a julgá-lo de forma injusta. Rico é, de cer-
de fardo. Mas o que significa «assumir a ta forma, um realista. Na verdade teria sido
responsabilidade?». Os seus filhos aceitam perfeitamente inútil escrever uma carta aos
a mobilidade como sendo a forma como o seus empregadores a falar do prejuízo que
mundo funciona. A sua mulher está-lhe gra- tinham causado à sua família. Assim, prefe-
ta por ter assentido em mudar-se por causa riu concentrar-se na sua determinação firme
dela. Contudo a frase «assumo a responsa- em resistir: não andará à deriva. Resistirá,
À deriva 177
particularmente, à terrível ameaça de per- que lhes quer ensinar é tão intemporal como
der aqueles valores que são, por natureza, a sua vontade, o que significa que os seus
estáveis, como a lealdade, o compromisso, princípios se aplicam a todas e a quaisquer
a capacidade de trabalhar por objectivos e circunstâncias. As confusões instauradas
de tomar decisões. Valoriza as qualidades pela mudança conduziram-no a este extre-
intemporais que o definem para sempre, mo oposto. Provavelmente, será por isso que
permanentemente e essencialmente. A sua não consegue encontrar na sua própria vida
vontade tornou-se estática. Está preso na ar- histórias exemplares para mostrar aos seus
madilha da assumpção clara dos valores. filhos e que, ao ouvi-lo, temos a sensação
de estar perante um indivíduo cujo carácter
Nesta contradição entre a experiência da e ideais estão em evolução.
mudança e o desejo de estabilidade, falta-
-lhe uma narrativa que possa organizar a Descrevi este encontro, porque nem estas
sua conduta. As narrativas não são simples vivências do tempo, dos lugares e do traba-
descrições de eventos. Dão forma à passa- lho, nem a sua resposta emocional são ex-
gem do tempo, propondo explicações para clusivas de Rico. As condições do tempo no
a razão pela qual as coisas acontecem e capitalismo tardio criaram um conflito entre
mostrando as suas consequências. Enrico a personalidade e a experiência, com a ex-
tinha uma narrativa para a sua vida, linear periência do tempo descontínuo a ameaçar
e cumulativa, uma narrativa que fazia todo a capacidade das pessoas para formarem as
o sentido num mundo altamente burocrati- suas personalidades de forma sustentável.
zado. Rico vive num mundo dominado pela No final do século XV, o poeta Thomas Hoc-
flexibilidade e por vagas de curta duração; cleve afirmava em The Regiment of Princes,
este mundo não lhe permite construir uma «mas afinal onde é que neste mundo há es-
narrativa sólida, nem económica nem so- tabilidade?», lamento este que também po-
cialmente. As empresas desagregam-se ou demos encontrar nos textos de Homero, ou
anexam-se, os empregos aparecem e desa- na Bíblia, no livro de Jeremias10. Ao longo
parecem, constituindo acontecimentos sem da história da humanidade, as pessoas foram
ligação uns com os outros. A «destruição aprendendo a aceitar que as suas vidas te-
criativa», como Schumpeter lhe chama, pre- riam de mudar algumas vezes, na sequência
cisa, na óptica dos investidores, de pessoas de guerras, fomes ou outros desastres, e que
predispostas à imprevisibilidade, a não po- para sobreviver teriam de ser capazes de se
der prever o futuro. A maior parte das pesso- adaptar. Os nossos pais e avós viviam numa
as, contudo, não reage de forma despreocu- ansiedade profunda em 1940, quando, de-
pada e negligente à mudança. pois de sofrerem a ruína durante a Grande
Depressão, encaravam a perspectiva imi-
Rico não está certamente interessado em vi- nente de uma guerra mundial.
ver como um homem Schumpeteriano, em-
bora tenha conseguido travar com sucesso O que é específico da incerteza nos nossos
esta luta brutal pela sobrevivência. “Mudar” dias é o facto de ela existir sem que se pers-
significa simplesmente “andar à deriva”. pective nenhum desastre iminente. Faz par-
Preocupa-se com o facto de os seus filhos te do quotidiano de uma era de capitalismo
andarem ética e emocionalmente “à deri- vigorosa. É suposto que a instabilidade seja
va”, mas não pode simplesmente escrever-
-lhes uma carta que lhes dê orientação para
as suas vidas, tal como não a pôde escrever
10
Citado em Ray Pahl, After Success: Fin de Siècle Anx-
iety and Identity, (Cambridge, R.U.: Polity Press, 1995),
aos seus patrões quando foi despedido. O pp. 163-164
178 Educação: o presente é o futuro
encarada com normalidade e nessa medida Penso que Rico está consciente do facto de
o homem empreendedor de Schumpeter é o ser um homem bem sucedido, mas também
«faz tudo» ideal. Talvez a corrosão do ca- confuso. O comportamento flexível que o
rácter seja apenas uma consequência inevi- conduziu ao sucesso tem vindo a enfraque-
tável. Saber que «o longo prazo não existe» cer irremediavelmente o seu carácter. Sendo
faz com que a acção não se oriente para o um faz tudo no mundo actual, o dilema que
tempo longo, destrói as relações de confian- trava é, provavelmente, o que o aproxima da
ça e compromisso e impõe o divórcio entre generalidade dos seus contemporâneos.
a vontade e a conduta.
APÊNDICES
TABELAS ESTATÍSTICAS
TAXA DE CRESCIMENTO
INDÚSTRIA EMPREGO (1000) ANUAL
2005 1992-2005
1979 1992 1979-92
(Pro.)* (Pro.)*
Dados extraídos do U.S. Bureau of the Census, Statistic Abstract of the United States: 1995
(Washington, DC, 1995), p 417.
À deriva 179
TIPO DE APLICAÇÃO1
Processamento de
folhas de cálculo
Contabilidade /
Bases de dados
Comunicações
computadores
telemarketing
electrónicas
CATEGORIA
inventário
Vendas e
Análise /
Não usa
Edição
texto
Sexo
Raça / Etnia
Grau de Qualificações
Sem Secundário 1.190 19,1 54,4 20,4 22,2 9,9 20,6 16,0
Concluiu Secundário 13.307 23,7 52,5 29,4 25,8 13,3 17,6 30,8
Freq. Universidade 11.548 33,5 49,5 38,5 33,9 20,6 18,0 40,9
Grau Associado 5.274 37,5 47,0 39,7 34,7 21,7 14,9 41,6
11
Uma pessoa pode ser contabilizada em mais do que uma aplicação.
Dados extraídos do U.S. Bureau of the Census, Statistic Abstract of the United States: 1995
(Washington, DC, 1995), p 417
A biblioteca como
cidade-estado
Alberto Manguel
O meu ponto de partida é uma pergunta. das histórias homéricas antigas. «A lenda
agarrou-se a cada pedra», explicou Lucan,
Fora a Teologia e a Literatura fantástica, al- descrevendo a narrativa repleta de viagens
guns podem duvidar que as principais carac- de César. As Bibliotecas tomam parte desta
terísticas do nosso universo sejam a sua falta qualidade fantasmagórica. Os livros numa
de sentido e a ausência de propósito dis- biblioteca seguram entre as suas capas todas
cernível. E ainda assim, com um optimismo as histórias conhecidas, eles enchem o espa-
desconcertante, continuamos a juntar peda- ço à nossa volta com vozes antigas e novas.
ços de informações que podemos reunir em O César de Lucan caminha com cuidado
pergaminhos e livros e chips de computador, na paisagem de Tróia temendo pisar fan-
em sucessões de prateleiras de biblioteca, tasmas. Na biblioteca, os fantasmas podem
quer seja material, virtual ou não, tem a in- falar. «Uma grande biblioteca, «ponderou
tenção de, pateticamente, atribuir ao mundo Northrop Frye num de seus muitos livros de
uma aparência de sentido e ordem, sabendo anotações», realmente tem o dom das lín-
perfeitamente que, por muito que se queira guas e uma vasta potência de comunicação
acreditar, pelo contrário, as nossas buscas, telepática».
infelizmente, estão destinadas ao fracasso.
Mas o amor às bibliotecas, como a maioria
Porquê, então, fazemos isso? tem, deve-se aprender. Ninguém que pisa
pela primeira vez um espaço feito de pa-
As bibliotecas, privadas ou compartilhadas lavras pode saber instintivamente como se
com um público maior de leitores, sempre comportar, o que é esperado, o que é prome-
me pareceram lugares, apesar da sua apa- tido, o que é permitido. Isto é verdade tanto
rência de ordem, agradavelmente loucos, e em bibliotecas virtuais como em bibliotecas
por tanto tempo quanto me posso lembrar de pedra e argamassa. Pode-se ser derrotado
fui seduzido pela sua lógica labiríntica, o pelo horror - à desordem ou à vastidão, ao
que sugere que a razão (se não a arte) reina silêncio, à lembrança que ridiculariza com
sobre um arranjo cacofónico de livros. Eu sei tudo o que se não sabe, à vigilância - e al-
que as bibliotecas sempre abrigaram outros guns desses sentimentos avassaladores que
objectos também, mas é a presença de pala- se podem instalar, mesmo após os rituais e
vras que me afecta, acima de tudo. Eu sinto convenções terem sido assimilados, a geo-
um prazer aventureiro em perder-me entre grafia mapeada, os indígenas terem-se tor-
as estantes lotadas, supersticiosamente con- nado amigáveis, as leis do acaso entendidas.
fiante de que toda a hierarquia estabelecida
de letras ou números me levará um dia a um A biblioteca não é só um lugar de ordem e
destino prometido. No início do século I A. caos, é também o reino da oportunidade.
D., no seu livro sobre a guerra civil romana Cada biblioteca tem uma certa qualidade
que tinha ocorrido cem anos antes, Lucan dependente do acaso, de mercado de rua.
descreveu Júlio César vagueando pelas ruí- Os livros numa biblioteca estão juntos devi-
nas de Tróia e observou como cada caverna do aos caprichos de um coleccionador, aos
e cada floresta estéril lembrava o seu herói avatares de uma comunidade, à passagem
184 Educação: o presente é o futuro
da guerra e do tempo, por causa da negli- céus inacessíveis, proveio do nosso desejo
gência e cuidados da imponderabilidade de conquistar o espaço, um desejo punido
da sobrevivência, da selecção do mercado pela pluralidade de línguas que ainda hoje
ambulante e pode levar séculos até que a coloca obstáculos diários contra as nossas
sua congregação adquira a forma de identi- tentativas de nos dar a conhecer aos outros.
ficação de uma biblioteca. Porque os livros, A segunda, construída para juntar, de todo o
mesmo depois de lhes ter sido atribuída uma mundo, o que essas línguas tinham tentado
prateleira e um número, mantêm uma mobi- gravar, nascida a partir da nossa esperança
lidade própria. Entregues a si próprios, eles em vencer o tempo e terminada num lendá-
reúnem-se em formações inesperadas, pois rio incêndio que consumiu até o presente.
seguem as regras secretas da similaridade, A Torre de Babel no espaço e a Biblioteca
genealogias não registadas, interesses co- de Alexandria no tempo são os símbolos in-
muns e temas. Armazenados em cantos ao dividuais dessas ambições. Na sua sombra,
acaso ou em pilhas na nossa mesa-de-cabe- a minha pequena biblioteca é um lembrete
ceira, em caixas ou em prateleiras, à espera de ambas as ambições, desejo impossível de
de serem classificados e catalogados um dia conter todas as línguas de Babel, o desejo
no futuro, muitas vezes adiado, espalhados de possuir todos os volumes de Alexandria.
pelo infinito da Internet que nos é próximo, A história de Babel é contada no décimo pri-
os textos preservados nas nossas bibliotecas, meiro capítulo do Génesis. Após o dilúvio,
aglomerados em torno do que Henry James o povo da terra partiu para o Oriente para
chamou de «intenção geral» que muitas ve- a terra de Shi’nar e lá decidiu construir uma
zes escapa aos leitores: «o fio onde as péro- cidade e uma torre que alcançasse os céus.
las foram colocadas, o tesouro enterrado, o «E o Senhor desceu para ver a cidade e a
desenho do tapete» Cada biblioteca, como torre que os filhos dos homens edificavam. E
Dewey descobriu, deve ter uma ordem e o Senhor disse: «Eis que o povo é um e todos
nem toda a ordem é querida ou logicamente têm uma mesma língua, e foi isto que eles
estruturada. Existem bibliotecas que devem começaram a construir: e agora não haverá
a sua criação a demonstrações de gosto, a restrição para o que eles pretenderem fazer.
ofertas casuais e encontros, a sonhos e de- Vamos, irei descer e confundirei depois a
sejos. E, ainda assim, todas as bibliotecas, sua língua, para que não entendam a língua
apesar de dependentes do acaso ou rígidas, do outro».» A lenda diz-nos que Deus inven-
têm em comum a explícita vontade de dar tou a multiplicidade das línguas a fim de nos
concórdia ao nosso conhecimento e ima- impedir de trabalharmos juntos, então nós
ginação, para reunir num só lugar a nossa não deveríamos exceder os nosso poderes.
experiência indirecta do mundo, e excluir De acordo com o Sinédrio, o lugar onde a
muitas experiências dos outros leitores atra- torre no passado foi erguida nunca perdeu a
vés de parcimónia, da ignorância, da inca- sua qualidade peculiar e, ainda hoje, quem
pacidade ou medo. passa esquece tudo o que sabe. Anos atrás,
foi-me mostrado um pequeno monte de en-
E aqui gostaria de fazer uma pausa e consi- tulho fora dos muros da Babilónia e disse
derar estas qualidades aparentemente con- que aquilo era tudo o que restava do que
traditórias de uma biblioteca. Tão constante tinha sido Babel.
e de tão longo alcance são essas tentativas
de inclusão e exclusão que têm os seus em- A Biblioteca de Alexandria foi um centro de
blemas literários distintos, dois monumentos aprendizagem criada pelos Reis Ptolomai-
que, pode-se dizer, representam tudo o que cos, no final do século III A. C. para melhor
somos. O primeiro, erguido para alcançar os seguirem os ensinamentos de Aristóteles. Se-
A biblioteca como cidade-estado 185
medida adicional para realizar a sua ambi- Os heróis de Virgílio, de Herman Melville,
ção, o rei Ptolomeu decretou que todos os de Joseph Conrad, da literatura mais épi-
livros que chegassem ao porto de Alexandria ca, abraçam essa crença de Alexandrino.
deveriam ser apreendidos e copiados, com Para eles, o mundo (tal como a Biblioteca)
a promessa solene de que o original seria é composto de histórias infinitas que, atra-
devolvido (como tantas promessas reais so- vés de labirintos emaranhados, levam a um
lenes, esta não foi sempre mantida, e muitas momento revelador criado apenas para eles
vezes era a cópia que era entregue de volta). - mesmo que, naquele derradeiro momento,
Devido a esta medida despótica, os livros a própria revelação seja negada, tal como
reunidos na Biblioteca ficaram conhecidos o peregrino de Kafka se apercebe, ficar fora
como «a colecção dos navios». dos portões da Lei (tão estranhamente seme-
lhante às portas da biblioteca) e descobrir no
É enfurecedor não conseguir dizer qual era momento da morte que «estão a ser fecha-
o aspecto da Biblioteca de Alexandria. Com dos para sempre, porque eles foram feitos
orgulho compreensível, cada um de seus propositadamente apenas para si». Leitores,
cronistas (todos aqueles cujo testemunho como heróis épicos, não têm a garantia de
chegou até nós) parece ter pensado que a uma epifania.
sua descrição era supérflua. O geógrafo gre-
go Estrabão, um contemporâneo de Diodo- No nosso tempo, desprovido de sonhos
ro, descreveu a cidade de Alexandria, em épicos - que substituímos por sonhos de pi-
detalhes, mas, misteriosamente, não men- lhagem - a ilusão de imortalidade é criada
ciona a Biblioteca. «Que necessidade teria pela tecnologia. A Internet e sua promessa
eu de falar sobre ela, já que está impereci- de uma voz e um site para todos, é o nos-
velmente gravada na memória de todos os so equivalente ao incognitum mar, o mar
homens?», escreveu Ateneu de Naucratis, desconhecido que atraiu viajantes antigos
apenas um século e meio depois da sua des- com a tentação da descoberta. Imaterial
truição. A Biblioteca, que ambicionava ser como a água, vasto demais para qualquer
o armazém para a memória do mundo não mortal apreensão, as qualidades excelentes
foi capaz de garantir para nós a lembrança da Internet permitem-nos confundir o in-
de si mesma. Tudo o que sabemos dela, tudo compreensível com o eterno. Como o mar,
o que resta da sua vastidão, dos seus már- a Internet é volátil: 70 por cento das suas
mores e dos seus pergaminhos, são as suas comunicações duram menos de quatro me-
várias razões de existir. Uma razão forte era ses. A sua virtude (a sua virtualidade), im-
a busca da imortalidade egípcia. Se uma plica uma presença constante, que para os
imagem do cosmos pudesse ser organizada estudiosos medievais era uma das definições
e preservada sob um único tecto (como o do inferno. Alexandria e os seus estudiosos,
rei Ptolomeu pode ter pensado), então cada pelo contrário, nunca confundiram a verda-
detalhe da imagem - um grão de areia, uma deira natureza do passado, pois eles sabiam
gota de água, o próprio rei - tem um lugar que seria a fonte de um presente sempre em
lá, gravado nas palavras de um poeta, con- mudança em que novos leitores envolvidos
tista, historiador, para sempre, ou pelo me- com livros antigos que se tornaram novos no
nos enquanto houver leitores que possam processo de leitura. Cada leitor existe para
um dia abrir a página indicada. Há um verso garantir a um determinado livro uma imor-
da poesia, uma frase numa fábula, uma pa- talidade modesta. Ler é, nesse sentido, um
lavra num ensaio, pela qual a minha exis- ritual de renascimento.
tência é justificada; só temos de encontrar
esse verso e a imortalidade está garantida. Mas a Biblioteca de Alexandria foi criada
A biblioteca como cidade-estado 187
para fazer mais do que simplesmente imor- prendem os destinos da Casa de Atreu, e as
talizar. Foi para gravar tudo o que tinha sido peregrinações de Bouvier homenageam as
e poderia ser registado, e esses registos eram viagens de Ibn Khaldun. Mas mais do que
para ser compilados em registos de mais um qualquer outra coisa, a Biblioteca de Ale-
caminho infinito de leituras e conjuntos de xandria foi um lugar da memória, da me-
palavras que iriam gerar por sua vez, con- mória necessariamente imperfeita. «O que a
juntos de palavras novas e novas leituras. Era memória tem em comum com a arte», escre-
para ser uma oficina de leitores, não apenas veu Joseph Brodsky, em 1985, «é a habilida-
um lugar onde os livros eram infinitamen- de para a selecção, o gosto pelo detalhe».
te preservados. Para assegurar a sua utiliza- Esta observação pode ser um elogio para a
ção, os Ptolomeus convidaram os estudio- arte (ou para a prosa, em particular), para a
sos mais célebres de vários países, como memória deve parecer um insulto. O insul-
Euclides e Arquimedes para fixar residência to, no entanto, é bem merecido. A memó-
em Alexandria, pagando-lhes uma renda ria contém precisamente os detalhes e não
considerável e não exigir nada em troca, toda a imagem; destaques, se quiser, não o
excepto que eles fizessem uso dos tesouros programa inteiro. A convicção de que esta-
da Biblioteca. Dessa forma, esses leitores es- mos de alguma forma a lembrar tudo de uma
pecializados poder-se-iam familiarizar com forma incompleta, a convicção que permite
um grande número de textos, ler e resumir que as espécies sigam a sua vida, é infunda-
o que tinham lido, produzindo resumos crí- da. Mais do que tudo, a memória assemelha-
ticos para as gerações futuras, que iriam re- -se a uma biblioteca em desordem alfabética
sumir então leituras para mais resumos críti- e sem obras reunidas por ninguém.
cos. Uma sátira do século III A. C. de Timão
de Phlius descreve esses estudiosos como Honrando a finalidade remota de Alexan-
charakitai «escrevinhadores», e diz que “na dria, todas as bibliotecas posteriores, apesar
terra populosa do Egipto, muitos charakitai de ambiciosas, reconheceram essa função
bem alimentados rabiscam em papiro en- mnemónica parcelar. A existência de qual-
quanto brigam incessantemente na gaiola quer biblioteca que permite aos leitores ter
das Musas. uma noção do que o seu ofício realmente
é, uma arte que luta contra as restrições do
No segundo século, e, como resultado dos tempo, trazendo fragmentos do passado no
resumos e especificações literárias alexan- seu presente. Concede-lhes um vislumbre,
drinas, uma regra epistemológica para a lei- secreto ou distante, nas mentes de outros
tura foi firmemente estabelecida, decretando seres humanos, e permite-lhes um certo co-
que “o texto mais recente substitui todos os nhecimento da sua própria condição atra-
anteriores, uma vez que é suposto contê-los. vés das histórias guardadas aqui para sua
«Seguindo essa interpretação e mais perto leitura. Acima de tudo, diz aos leitores que
do nosso tempo, Stéphane Mallarmé sugeriu a sua arte consiste no poder de lembrar, de
que “o mundo foi feito para ser concluído forma activa, através da sugestão da página,
num bonito livro», ou seja, num único li- a momentos seleccionados da experiência
vro, qualquer livro, a essência ou a soma do humana. Esta foi a grande prática estabele-
mundo, que deve englobar todos os outros cida pela Biblioteca de Alexandria. Assim,
livros. Esse método prossegue pela anteci- séculos mais tarde, quando foi sugerido um
pação de certos livros, como Odyssey prevê monumento para homenagear as vítimas do
as aventuras de Jack Kerouac e a história de Holocausto, na Alemanha, a proposta mais
Dido que antecipa a de Madame Bovary, ou inteligente (infelizmente não foi escolhido)
faz eco dela, como as sagas de Faulkner que era construir uma biblioteca.
188 Educação: o presente é o futuro
foram usados para alimentar os fornos dos trução de sua casa na Califórnia continuas-
banhos públicos, apenas as obras de Aristó- se, os fantasmas dos índios mortos pela arma
teles foram poupadas. do seu marido seriam mantidos à distância.
A casa cresceu e cresceu, como num sonho,
Historicamente, à luz do dia, o fim da Bi- até as suas cento e sessenta salas cobrirem
blioteca continua tão nebuloso quanto o seu seis hectares da terra; este monstro é ainda
verdadeiro aspecto; historicamente, a torre, visível no coração de Silicon Valley. Cada
se algum dia existiu, não era nada mais do biblioteca sofre com esta vontade de crescer
que um empreendimento imobiliário sem de maneira a pacificar os nossos fantasmas
sucesso apesar de ambicioso. Tal como os literários, que se ramificam e aumentam, até
mitos, por outro lado, na imaginação à noi- que, numa data impensável, irá incluir todos
te, a solidez das duas construções está aci- os volumes já escritos sobre cada assunto
ma de qualquer suspeita. Podemos admirar imaginável.
a Torre mítica visivelmente a erguer-se para
provar que o impossível vale a pena ser ten- Este aspecto monstruoso do mito de Alexan-
tado, não importa o quão devastador seja o dria deu origem a muitos contos de mora-
resultado; podemos vê-la subindo o seu ca- lidade. Numa tarde quente, no final do sé-
minho ascendente, fruto de uma sociedade culo XIX, dois empregados de escritório de
unânime, ocupando tudo, como formigas; meia-idade reuniram-se num banco na Rua
podemos testemunhar o seu fim na dispersão Bourdon em Paris e imediatamente se torna-
dos seus indivíduos, cada um no isolamento ram os melhores amigos. Bouvard e Pécu-
do seu próprio círculo linguístico. Podemos chet descobriram através da sua amizade um
percorrer as pilhas a abarrotar da Biblioteca objectivo comum: a busca do conhecimento
de Alexandria, onde toda a imaginação e co- universal. Para alcançar esta meta ambicio-
nhecimento estavam organizados, podemos sa, junto à qual a conquista dos Ptolomeus
reconhecer na sua destruição o aviso de que parece deliciosamente modesta, eles tenta-
tudo o que nós recolhemos será destruído, ram ler tudo o que conseguissem encontrar
mas também que muito pode ser novamen- sobre cada campo da actividade humana,
te recolhido; podemos aprender com a sua e retirar das suas leituras os factos e ideias
esplêndida ambição o que foi a experiência mais marcantes, um projecto difícil que não
de um homem que pode tornar-se, através tinha, claro, fim. Apropriadamente, Bouvard
da alquimia das palavras, a experiência de e Pécuchet foi publicado inacabado um ano
todos, e como essa experiência, reduzida após a morte de Flaubert, em 1880, mas não
uma vez mais a palavras, pode servir cada antes dos dois bravos exploradores terem
leitor individual para algum propósito secre- lido através de muitas bibliotecas eruditas
to e excepcional. em agricultura, em literatura, zootecnia, me-
dicina, arqueologia e política, sempre com
O mito sólido de Alexandria também nos en- resultados decepcionantes. O que os dois
sina que uma biblioteca deve impôr os seus palhaços de Flaubert descobriram é o que
próprios limites ou decretar a sua própria nós sempre soubemos, mas raramente acre-
morte. Uma biblioteca com crescimento in- ditamos: que a acumulação do conhecimen-
finito exige uma casa, sempre em expansão, to não é conhecimento.
que pode assumir dimensões monstruosas.
Diz a lenda que Sarah Winchester, a viúva Graças à Internet, é claro, a ambição de
do famoso criador de armas cuja espingarda Bouvard e Pécuchet agora é quase uma re-
«conquistou o Oeste», consultou um mé- alidade, quando todo o conhecimento do
dium que lhe contou que, enquanto a cons- mundo parece estar ali, piscando por trás do
190 Educação: o presente é o futuro
ecrã que emite sons. Borges, que já imagi- para nos servir melhor. A imaginação huma-
nou a biblioteca infinita de todos os livros na não é monogâmica e nem é necessário
possíveis, também inventou um personagem ser, os novos instrumentos serão colocados
do mesmo tipo de Bouvard e Pécuchetd que imediatamente ao lado dos PowerBooks que
tenta compilar uma enciclopédia universal, agora se colocam ao lado dos nossos livros
tão completa que nada no mundo seria ex- na biblioteca multimédia. Há, no entanto,
cluído. No final, tal como os seus antecesso- uma diferença. Se a Biblioteca de Alexan-
res franceses, ele falha na sua tentativa, mas dria era o símbolo da nossa ambição de om-
não inteiramente. Na noite em que ele de- nisciência, a Internet é o símbolo da nossa
siste do seu grande projecto, ele contrata um ambição de omnipresença, a biblioteca que
cavalo e charrete e faz um passeio pela ci- continha tudo tornou-se a biblioteca que
dade. Ele vê as paredes de tijolo, as p essoas nada contém. Alexandria modestamente se
comuns, as casas, um rio, um mercado e viu como o centro de um círculo ligado pelo
sente que de alguma forma todas estas coi- mundo cognoscível; a Internet, tal como a
sas são o seu próprio trabalho. Ele percebe definição de Deus primeiramente imaginada
que o seu projecto não é impossível, mas no século XII, vê-se como um círculo cujo
meramente redundante. A enciclopédia do centro está em toda parte e cuja circunfe-
mundo, a biblioteca universal, existe e é o rência não está em lugar nenhum. A nossa
próprio mundo. sociedade hoje aceita o livro como um dado
adquirido, mas o acto da leitura - outrora
Tal como o mito de Alexandria nos diz, esta considerado útil e importante, bem como
ambição não é nova. Sempre quisemos lem- potencialmente perigoso e subversivo - é
brar mais e vamos continuar, eu acredito, a agora condescendentemente considerado
tecer teias para capturar palavras na espe- como um passatempo, um passatempo lento
rança de que de alguma forma, na grande que carece de eficácia e não contribui para
quantidade de declarações acumuladas, o bem comum. Hoje, a leitura não é senão
num livro ou numa tela, haverá um som, um acto acessório e o grande repositório da
uma frase, um pensamento enunciado que nossa memória e experiência, a biblioteca,
vai carregar o peso de uma resposta. Toda é menos considerada uma entidade viva do
a nova tecnologia tem vantagens sobre a que uma sala de armazenamento inconve-
anterior, mas, necessariamente, carece de niente.
alguns dos atributos da sua antecessora. Fa-
miliaridade, sem dúvida gera o desprezo, E, no entanto, embora o livro não fique no
cria também conforto; o que não é familiar núcleo simbólico da nossa sociedade, a nova
traz desconfiança. A minha avó, nascida no sensação do infinito criado pela Internet não
interior da Rússia no final do século XIX, ti- diminuiu o antigo sentido do infinito inspi-
nha medo de usar a nova invenção chamada rado pelas bibliotecas antigas, apenas lhes
telefone quando foi instalado pela primeira emprestou uma espécie de intangibilidade
vez no seu bairro em Buenos Aires, porque, tangível. Pode aparecer uma nova técnica
segundo ela, não lhe permitia ver o rosto da de recolha de informação ao lado da qual a
pessoa com quem ela estava a falar. «Isso Internet nos vá parecer habitual e familiar na
faz-me pensar em fantasmas», explicou ela. sua vastidão, como os prédios envelhecidos
que alojaram as bibliotecas nacionais em
O texto electrónico que não necessita de Paris e Buenos Aires, Beirute, Salamanca,
papel pode amigavelmente acompanhar Londres e Seul.
o papel que não requer electricidade; eles
não necessitam de se excluir num esforço Contudo, as bibliotecas sólidas de madeira
A biblioteca como cidade-estado 191
e papel, bem como as bibliotecas de écrans -nos para não amarmos o mundo nem as
fantasmagóricos a piscar, permanecem coisas que se encontram nele, porque «tudo
como prova da nossa crença numa ordem o que há no mundo, a concupiscência da
resistente e intemporal de longo alcance que carne, a concupiscência dos olhos e a so-
nós vagamente intuímos ou percebemos. berba da vida, não do Pai, mas do mundo».
Durante a insurreição Checa contra os nazis Essa ordem é na melhor das hipóteses um
em Maio 1945, quando as tropas russas en- paradoxo. A nossa herança humilde e sur-
travam em Praga, a bibliotecária Elena Sikor- preendente é o mundo e só o mundo, cuja
skaja, irmã de Vladimir Nabokov, percebeu existência nós testamos constantemente (e
que os oficiais alemães que agora tentavam provamos), contando histórias sobre ele. A
retirar-se não haviam devolvido vários livros suspeita de que nós e o mundo somos feitos
que tinham requisitado na biblioteca onde à imagem de algo maravilhoso e caotica-
ela trabalhava. Ela e um colega decidiram re- mente coerente muito além do nosso alcan-
clamar os volumes faltosos e partiram numa ce, do qual também fazemos parte; a espe-
missão de resgate pelas ruas abaixo em que rança de que o nosso explodido cosmos e
os camiões russos estavam vitoriosamente nós, o seu pó das estrelas, tem um signifi-
agrupados. «Chegamos a casa de um piloto cado inefável e um método; o prazer em
alemão que devolveu os livros com toda a recontar a velha metáfora do mundo como
calma», escreveu ela ao seu irmão, alguns um livro que lemos e no qual nós também
meses depois. «Mas agora eles não deixam somos lidos, a presunção do que nós po-
ninguém atravessar a estrada principal e em demos saber da realidade é um imaginário
toda parte há alemães com metralhadoras», feito da Língua - tudo isso tem a sua ma-
reclamou ela. No meio da confusão e caos, nifestação material nesse auto-retrato a que
parecia importante para ela que a tentativa chamamos biblioteca. E o nosso amor, por
patética de ter a biblioteca em ordem deve, isso, e o nosso desejo de ver mais, e o nosso
na medida do possível, ser preservada. orgulho nas suas realizações à medida que
passeamos por prateleiras cheias de livros
Mas isto é umas ordens que devemos ver que prometem mais e mais delícias, estão
com precaução, apesar do seu apelo. No en- entre as nossas mais felizes, mais emocio-
tanto por mais atraentes que o sonho de um nantes provas de possuir, apesar de todas as
universo cognoscível de papel e um cosmos misérias e tristezas desta vida, uma forma
com significado feito de palavras possam mais íntima de fé consoladora, talvez reden-
parecer, uma biblioteca, ainda que colossal tora num método por trás da loucura do que
nas suas proporções ou ambiciosa e infinita qualquer divindade ciumenta nos poderia
no seu âmbito, não pode nunca oferecer- desejar a nós.
-nos um mundo «real», no sentido em que o
mundo quotidiano de sofrimento e de felici- Será que tudo isto responde à minha pergun-
dade é real. Oferece-nos em vez disso uma ta, «Porquê que o fazemos então?» Em parte.
imagem negociável desse mundo real que Apenas em parte.
(nas palavras de Jean Roudaut) «gentilmente
nos permite concebê-lo», bem como a pos- A Biblioteca de Alexandria, implícita nas
sibilidade de conhecimento, experiência e memórias de viajantes e crónicas de histo-
memória de algo intuído através de um con- riadores, reinventou a obra de ficção e de fá-
to ou adivinhado por uma reflexão poética bula, veio para ficar no enigma da identida-
ou filosófica. de humana, colocando a pergunta prateleira
após prateleira «Quem sou eu?» No roman-
São João, num momento de confusão, diz- ce de Elias Canetti de 1935 Die Blendung
192 Educação: o presente é o futuro
(Auto da Fé), Peter Kien, o estudioso que nas a história deve terminar com uma busca, a
últimas páginas ateia fogo a si próprio e aos segunda questão tem de ser: buscar o quê?
seus livros, quando sente que o mundo ex-
terior se tornou insuportavelmente intrusivo Northrop Frye, observou certa vez que, se
demais, encarna cada herdeiro da Biblioteca estivesse estado presente no nascimento de
como um leitor que está, ele próprio, envol- Cristo, não achava que ouviria os anjos a
vido nos livros que possui e que, como um cantar.«A razão pela qual eu penso assim é
dos antigos estudiosos de Alexandria, torna- que não os ouço agora e não há razão para
-se pó no meio da noite quando a biblioteca supor que eles pararam». Portanto, na cria-
já não existe. Em parte, construímos biblio- ção de uma biblioteca não estamos em busca
tecas para saber quem somos. de uma revelação de qualquer espécie, uma
vez que nada do que se revelou para nós é
Mas isso certamente não é tudo. Há uma necessariamente limitado por aquilo que so-
segunda questão. No seu romance A Flor mos capazes de ouvir e entender. Não é pelo
Azul, Penelope Fitzgerald diz: «Se uma his- conhecimento a mais do que, de alguma for-
tória começa com uma descoberta, é neces- ma secreta, nós já temos. Não é pela clarifi-
sário terminar com uma busca». A história cação, à qual não podemos razoavelmente
de qualquer biblioteca certamente come- aspirar. Não é pela experiência porque, em
çou com uma descoberta: descobrir livros última análise, só nos podemos dar conta do
de qualquer forma ou formato, rolo, codex que já está em nós. Para quê, então, busca-
ou disco, descobrir o local no qual os alo- mos, nas nossas persistentes bibliotecas?
jar, descobrir uma maneira de trabalhar com
eles dentro do espaço emprestado. Mas se Conforto, talvez. Talvez conforto.
A cidade como arquivo:
transformações urbanas
contemporâneas e
as possibilidades políticas
Vyjayanthi Rao
«Agora vamos... supor que Roma não é uma mentalmente um conjunto de estranhos que
habitação humana, mas uma entidade psí- ultrapassam os limites de qualquer forma
quica com um igualmente longo e copioso singular de identidade e pertença. Assim, a
passado, entidade essa, na qual nada do que questão a que tipo de arquivo corresponde
uma vez existiu terá já deixado de existir e a cidade como espaço demográfico, está
todas as anteriores fases de desenvolvimento fundamentalmente ligada ao problema da
continuam a coexistir com a mais recente ... pertença dentro da cidade e ao estabeleci-
Se queremos representar a sequência históri- mento de direitos para a cidade. Mas porque
ca em termos espaciais, só podemos fazê-lo a cidade reúne diferentes grupos de p essoas,
pela justaposição no espaço: o mesmo espa- é também necessário considerar que a ci-
ço não pode ter dois conteúdos diferentes... dade - como várias formas de meios de co-
Ele mostra-nos o quão longe estamos de do- municação - pode servir como um arquivo,
minar as características da vida mental ao re- produzindo activamente relações entre os
presentá-las em termos pictóricos». Sigmund seus moradores, ao invés de meramente os
Freud, Civilização e os seus Descontentes. reflectir. Neste artigo, vou considerar estes
dois aspectos através dos quais a ideia de ci-
dade - como - arquivo pode ser elaborada.
Cidades e arquivos Estes estão, de facto intimamente ligados e
têm uma influência, como sugiro acima, na
Compreender a relação entre a cidade e o nossa compreensão das cidades contempo-
arquivo levanta muitos paradoxos interes- râneas, bem como na nossa compreensão
santes, já sinalizados por reflexões de Freud dos arquivos.
sobre Roma. A questão levantada mais di-
rectamente é a da justaposição de diferen-
tes temporalidades e as possibilidades do A metrópole como meio de comunicação
que representam essas temporalidades e
as experiências históricas que assinalam É inegável que a experiência urbana con-
em termos espaciais. Ao nível mais funda- temporânea seja profundamente mediada,
mental, os arquivos têm profundas ligações condicionada, em particular, através da di-
históricas com a memória e em particular, vulgação de imagens cinematográficas e ou-
com as formas instituídas da memória. As tros tipos de imagens e estímulos sensoriais.
características formais dos arquivos signifi- O artigo de investigação de Georg Simmel,
cam línguas através das quais a memória é «As Metrópoles e a Vida Mental», escrito no
constituída por diferentes grupos de pessoas. início do século XX, já explora o impacto
Neste contexto, o posicionamento da cida- sensorial da cidade, na perceção que os re-
de como uma forma de arquivar levanta inú- sidentes urbanos têm do espaço, do tempo
meros desafios éticos e filosóficos que têm e do sentido de si próprios. «O fundamen-
uma influência quer sobre como podemos to psicológico, sob a qual a individualidade
compreender a natureza dos arquivos, quer metropolitana é erguida», escreve Simmel,
sobre a forma como entendemos a cidade «é a intensificação da vida emocional, devi-
contemporânea. A cidade moderna é funda- do à mudança rápida e contínua de estímu-
196 Educação: o presente é o futuro
los externos e internos». A metrópole é tanto forma de meio de comunicação, o que satu-
a causa como o efeito das formas que as re- ra a vida dos seus moradores. Este espaço de
lações sociais têm tomado nos tempos mo- saturação é um espaço de rápida mudança e
dernos, mais notoriamente a transformação um espaço de transformação de estímulos e,
das relações sociais em relações de cálculo. portanto, tem influência sobre as formas de
Simmel escreve, «as relações e as preocu- interacção social e na reprodução de formas
pações dos típicos residentes metropolitanos sócio - espaciais dentro da cidade, melhor
são tão variadas e complexas, principalmen- entendida como «lugar».
te como resultado da aglomeração de tan-
tas pessoas com interesses tão diferenciados Para a maioria das compreensões através
que as suas relações e actividades se entre- do senso comum, os arquivos estão direc-
laçam umas com as outras num organismo tamente relacionados com a preservação de
de muitos membros». Para Simmel, essa algumas peças do passado, colectivamente
compreensão da metrópole como meio de consideradas com importância. No caso da
comunicação é fundamental para sua teoria metrópole, fundada sobre o problema da
do desenvolvimento do tipo de personalida- novidade constante e experiências tempo-
de metropolitana. rárias, bem como sobre a temporaneidade
do vínculo entre os residentes urbanos, essa
A própria forma metropolitana correspon- noção do arquivo em si é problemática. No
de à economia monetária e assim se torna entanto, há sempre uma luta contra esse
num tipo muito particular de meio envol- sentimento de provisoriedade e de transição
vente dentro do qual as relações sociais são criados pela «metrópole como meio de co-
transaccionadas. «Uma pessoa», escreve municação».
Simmel, «não termina com os limites do seu
corpo físico ou com a área para a qual a sua Esta luta torna-se mais visível em debates
actividade física está imediatamente confi- sobre o espaço e a produção de lugar ou for-
nada, mas abarca, sim, a totalidade dos efei- ma sócio - espacial significativa, envolven-
tos significativos que emanam dela tempo- do uma noção diferente da cidade-como-
ralmente e espacialmente. Da mesma forma, -arquivo. Aqui, diferentes actores implantam
a cidade só existe na totalidade dos efeitos a criação de um arquivo através de actos de
que transcendem a sua esfera imediata». deliberada preservação e homenagem a fim
Esses efeitos, relacionados com a avançada de garantir o seu lugar no pulsar da cida-
divisão económica do trabalho, podem ser de. Actos de destruição deliberada também
pensados como uma forma de arquivo atra- são cada vez mais utilizados como estraté-
vés dos quais a metrópole moderna e seus gias para a criação de arquivos. De facto, a
moradores são constituídos. Os «estímulos preservação histórica também pode ser vista
internos e externos» que são lançados pela tanto como um acto de destruição como de
metrópole não tem significado predestinado preservação, como explicarei mais adiante.
como tal, mas em vez disso trabalham para Ao compreender a «metrópole como meio
produzir relações entre os residentes, por de comunicação», que origina o intercâm-
mais temporárias e ténues que possam ser. bio social, o arquivo torna-se um conceito
Estes também afectam profundamente a per- emergente, um princípio de ordenação de
sonalidade urbana. Mais fundamentalmente, estímulos sobre a qual operações futuras são
põem em causa o papel da memória no con- imaginadas e se tornam presentes, em vez
texto da identidade urbana. O que Simmel de uma determinada noção do passado, que
compreende acerca do primeiro plano da foi considerada significativa e marcante para
metrópole é a ideia de que a cidade é uma a preservação. Esta noção de cidade-como-
A cidade como arquivo: transformações urbanas contemporâneas e as possibilidades políticas 197
-arquivo está sempre em conflito, por vezes dança natural. A «cidade-imagem» criada
produtivo e por vezes corrosivo, com a no- por esses actos de preservação é, em seguida,
ção da cidade-como-arquivo que emerge distribuída aos cidadãos e turistas por polí-
em actos de preservação e estratégias para ticos, planeadores e construtores como uma
inscrever espaço com agendas sociais e po- fonte de receitas provenientes do turismo em
líticas específicas. Referir-me-ei agora à for- massa, festivais, rendas e assim por diante.
ma construída de um outro local no qual a Em lugares como Bombaim, onde grandes
cidade surge como arquivo. transformações estão em desenvolvimento
na tentativa de a transformar numa cidade à
«classe mundial», o emergente movimento
Preservação e destruição de preservação do património continua a ser
dominado pelos cidadãos da elite. Devido a
Os ambientes urbanos estão sempre em uma legislação muito particular de controlo
transição, através de adições incrementais de rendas promulgada quase há seis déca-
aos tecidos construídos, através de novas das atrás, uma grande parte dos mais antigos
iniciativas de infra-estrutura e, em crescen- bairros da cidade tornaram-se decrépitos. A
do, através da reurbanização. No momen- mesma legislação no entanto, impede o des-
to contemporâneo, tal transição significa pejo de inquilinos a longo prazo que pagam
vitalidade e falta de mudança, por vezes rendas com taxas determinadas nos anos 40
até mesmo mudanças radicais, significam e tem, portanto, efectivamente impedido a
estagnação. Assim, as cidades mais «vitais» requalificação desses bairros.
de hoje como Dubai, Xangai e Pequim pare-
cem estar em movimento perpétuo, cobertas
com locais de construção e, no caso de Pe- Embora os construtores e os políticos te-
quim e Xangai, também com a abundância nham encontrado recentemente maneiras
de locais de demolição. Noutras cidades, de subverter todas essas regulamentações
tal como Beirute, repetidamente destruídas e derrubar uma série de edíficios do século
por guerras, o processo de reconstrução de- XIX e do início do século XX, a condição
sencadeia debates em torno das questões do destes bairros também tem dado origem a
património e da preservação. No entanto, um vigoroso debate sobre a questão da pre-
mesmo se a cidade não está a ser submetida servação. Como primeiros exemplos de ten-
a transformações dramáticas devido à guer- tativas arquitectónicas nativas, populistas e
ra ou a investimentos financeiros, a preser- autênticas, numa cidade colonial, estes bair-
vação do tecido histórico, invariavelmente, ros têm sido o lar de gerações de naturais
altera o ambiente construído da cidade, alte- de Bombaim, com profundas ligações histó-
rando a sua própria atmosfera e significado. ricas e raízes na cidade. No entanto, esses
A preservação é responsabilizada como um cidadãos hoje são apanhados numa situação
meio de criar memória colectiva, marcando paradoxal de ocupar algumas das proprie-
certos lugares como sendo de significado. dades mais caras do mundo, mais próximo
ao distrito empresarial central da cidade, ao
No entanto, a importância da preservação mesmo tempo, encontrando-se rapidamente
histórica no mundo contemporâneo, está marginalizados no processo ambicioso de
aberta ao debate. Como o teórico cultural requalificação do antigo porto e de trans-
Ackbar Abbas tem defendido em vários ar- formação da cidade num centro de serviços
tigos sobre Xangai, a preservação histórica global.
funciona não tanto para forjar a memória co-
lectiva como para acomodar e tornar a mu- Neste contexto, a quantidade de práticas
198 Educação: o presente é o futuro
de conservação a que o arquitecto de Bom- cidades cada vez mais iguais em aparência,
baim, Mustansir Dalvi se referiu sugestiva- a especificidade cultural, marcada pelo am-
mente como «eugenesia arquitectónica», ou biente construído, tem sido posta em causa.
o congelamento da envolvente do edifício
para obedecer a alguma imagem considera- Se os arquivos estão associados à produção
da «objectivamente autêntica». No entanto, e à difusão de formas específicas como sig-
esta forma de eugenesia equivale em grande nificantes de um passado ausente, a falta de
parte à imposição de uma visão particular e especificidade cultural fisionomicamente si-
estética, baseada em alegações de autentici- nalizada dificulta o projecto de imaginar a
dade que são altamente contestáveis e não cidade como arquivo, pelo menos ao nível
levam em conta a história real desses bair- da forma construída. Novos tipos de sinais
ros. Tratando a envolvente do edifício como sobre a declaração de emergência e de re-
um guia, os conservacionistas associam es- sistência à integração cultural global estão
ses bairros a determinadas comunidades, a ser transmitidos por estas paisagens novas.
mesmo quando a evidência empírica mos- Na verdade, seria possível até mesmo afir-
tra a coabitação destas áreas por diversas mar que os projectos de construção monu-
comunidades. Assim, as estratégias de con- mental, como os que estão em andamento
servação, por vezes, tornam-se projectos de em Pequim, em preparação para as Olim-
limpeza étnica e acabam por apagar a con- píadas, assinalam a intenção de colher um
tribuição de certos grupos para a produção novo tipo de hermetismo cultural, usando
da cidade. Desta forma, as narrativas oficiais uma linguagem internacional de design e
são difundidas, com base nos denominados estilo. Como é que a cidade emerge como
conhecimentos históricos de especialistas um arquivo - transmitindo sinais culturais
específicos. Este processo representa uma em particular - em contextos tão diversos
das formas nas quais o passado está consa- como cidades asiáticas de que são exemplo
grado no processo de apagamento através Bombaim, Beirute, Xangai, Pequim e Dubai,
do recurso à narrativa oficial. O ambiente descritas nesta secção? Para responder a essa
construído torna-se um arquivo em que o pergunta, seria necessário fazer uma rápida
silenciamento dos vários passados e diversi- menção a uma elaboração teórica da noção
dade é efectivamente alcançado. do arquivo em si.
nais, tais como arquivos. O problema do qual a cidade se constitui como um espaço
arquivo, como diversos teóricos têm aponta- demográfico.
do, é o pressuposto da importância a priori
das informações recolhidas no âmbito do Em particular, se concebermos os arquivos
arquivamento formal, geralmente considera- não apenas como formas institucionais, mas
do a reflectir algo mais, algo que é menos também como processos, esta relação analó-
tangível, como o génio cultural ou a verdade gica entre as cidades e os arquivos começa a
superior. A autoridade do arquivo de facto adquirir uma forma que corresponde às con-
repousa sobre essa suposição. dições específicas das cidades contempo-
râneas. A ideia das metrópoles como meio
Nas secções anteriores, expliquei a natureza de comunicação ligada aos fluxos perpétuos
fundamentalmente efémera dos fluxos que e efémeros de informações e estímulos, ex-
constituem o espaço urbano, por um lado e plorados acima, é uma poderosa lembrança
os problemas de localização de qualquer ar- de que nós necessitamos de uma compre-
quivo em torno do que parece ser o aspecto ensão processual do arquivo, a fim de com-
menos efémero do espaço urbano, nomea- preender a natureza destes fluxos. Como
damente o ambiente construído, por outro. um princípio de ordem, o arquivo fornece
Neste último caso, também, somos obriga- uma base sobre a qual a história, memória
dos a enfrentar o facto de que os ambientes e recordação ocorrem. Tais memórias estru-
urbanos são constituídos através de um pro- turam relações entre estranhos, produzindo
cesso contínuo e cumulativo de subtracção uma sensação de localidade urbana e lugar.
e destruição, que forma uma camada crucial Daí a relação entre cidades e arquivos e o
da história de quase todas as cidades con- conceito de cidade-como-arquivo ter uma
temporâneas. Mesmo a preservação histó- ressonância significativa, especialmente no
rica, na minha opinião, acaba por ser uma contexto da globalização, da transformação
forma de destruição. profunda e do período socioeconómico que
o mundo enfrenta hoje. Em suma, sugiro que
Ao considerar a relação entre as cidades e a forma urbana contemporânea pode forne-
os arquivos, seria positivo explorar o próprio cer um mecanismo teórico para explorar a
ambiente construído como um arquivo da constituição de arquivos e vice-versa.
cidade. Mas dada a complexidade tanto das
cidades como dos arquivos enquanto formas
históricas, sugiro o conceito alternativo da As cidades para além dos mapas.
cidade-como-arquivo como uma ferramenta
com a qual se exploram as complexidades Mapas e cartografia, historicamente, têm
das cidades contemporâneas, bem como os dado importantes ferramentas funcionais na
processos pelos quais os arquivos são cons- navegação da relação entre a “realidade” e
tituídos. Para levar isso um pouco mais além, as suas abstracções. Especificamente salien-
o conceito de cidade-como-arquivo sugere to os aspectos funcionais dos mapas, porque
uma relação analógica entre as cidades e o conceito de «realidade» é, em si altamente
os arquivos em termos de forma e levanta contestado e os debates filosóficos sobre a
a questão dos limites de cada forma. Na natureza da «realidade» são lendários. Em
formulação da relação entre as cidades e certo sentido, os mapas fornecem uma base
os arquivos, sugiro que sejamos capazes de para a produção de arquivos dado que es-
interrogar tanto os limites dos princípios pe- pelham as transformações da realidade ur-
los quais os arquivos são constituídos, bem bana. Como numerosas análises recentes
como o problema de pertença, através da têm sugerido, a transformação «epocal» da
200 Educação: o presente é o futuro
sociedade numa área urbana está a ocorrer urbanos, que lutam para reconstituir o seu
a uma escala planetária nos dias de hoje. lugar dentro da cidade. Para a pesquisa ur-
No entanto, o papel dos projectos arquitec- bana, torna-se necessário encontrar formas
tónicos na construção do urbanismo con- de mapeamento dessas estruturas invisíveis
temporâneo está a retroceder ao invés de e emergentes de informação urbana, a fim
aumentar. Como o arquitecto Kazys Varnelis de compreender os processos pelos quais
sugere, o funcionamento da economia con- os moradores estão a ser reincorporados ao
temporânea baseada na informação, evita longo de diversos espaços geográficos e es-
«a necessidade do plano arquitectónico» calas em novas redes de intercâmbio e inter-
(Varnelis 2005). Desta forma, sugere que dependência. Esses tipos de transformações
«uma cidade para além dos mapas» já exis- fornecem uma maneira de explorar a ideia
te, aquela que não pode ser mapeada em de cidade-como-arquivo com alguma pro-
termos da sua arquitectura visível e infra- fundidade.
-estrutura. Este ponto de vista, sobre o que
poderíamos chamar «urbanismo invisível» Como exemplo, voltar-me-ei aqui para al-
também é um fenómeno que tem sido estu- gumas das transformações em curso em
dado por antropólogos, que afirmam que é Bombaim como uma forma de examinar a
necessário estudar a cidade, não só nos seus utilidade da cidade-como-arquivo. Como é
aspectos físicos, mas também pelo posicio- sabido, estima-se que cerca de metade da
namento do seu povo e da sua rede de acti- população de Bombaim viva em comuni-
vidades de produção, como a infra-estrutura dades informais, que são mal servidas e em
que permite à cidade funcionar (ver Simone, grande parte desligadas da rede de infra-
2004). -estruturas. Popularmente conhecidas como
favelas pelos residentes, bem como pelos
A transformação física das cidades no con- planificadores, políticos e construtores, estas
texto da globalização é às vezes acompa- comunidades ocupam apenas 8% do espaço
nhada pelo deslocamento massivo de pes- total da cidade dentro dos seus limites mu-
soas, tanto fisicamente como no caso de nicipais. No entanto, estão geograficamente
Bombaim e Beirute, ou intangível, como no espalhadas por toda a cidade e muitas vezes
caso dos subúrbios parisienses, cujos habi- estão muito próximas dos bairros abastados,
tantes se vêem cada vez mais alienados e formando a antítese do distrito isolado do
presos no local, deslocados por se terem tor- apartheid, dos subúrbios parisienses con-
nado imóveis. A «cidade além dos mapas», temporâneos ou do gueto. Esta proximidade
portanto, inclui não só o movimento das dos bairros desenvolvidos tem resultado na
forças económicas globais, mas também das inflação dos valores de propriedade nacio-
camadas de informação transportadas por nal dos terrenos em que as favelas são cons-
pessoas, dado que estão a ser deslocadas truídas, mesmo que muitas destas parcelas
de habitats familiares que podem ser peri- de terra só existam como resultado de uma
gosos ou temporários, uma vez que se estão dolorosa recuperação, ou estejam situadas
a tornar móveis. A cidade em si adquire uma na parte superior de instalações de infra-
nova relação com a densidade, a relação ca- -estrutura e, portanto, ambientalmente pre-
racterística entre as pessoas e o meio, que cárias ou sejam terras cuja propriedade é
define a produção da localidade urbana. objecto de litígio. Como o fluxo de capital
A densidade baseada no local é transfor- imobiliário foi liberalizado e o desenvolvi-
mada num valor fisicamente absurdo, mas mento em si foi privatizado, essas comuni-
é recodificado nas histórias que as pesso- dades informais tornaram-se alvos altamente
as carregam com elas nos vários domínios valorizados, uma vez que constituem obstá-
A cidade como arquivo: transformações urbanas contemporâneas e as possibilidades políticas 201
que ao invés de destacar a capacidade do invés de informação que apenas tem de ser
arquivo para representar um passado com reorganizada e seleccionada, ou, por outras
exactidão, usamos a noção de arquivo como palavras, informações pertencentes a um ar-
uma forma de navegar os vazios do presen- quivo que apenas concebem transições his-
te, como uma prática de intervenção e lei- tóricas através do conter informações como
tura dos tecidos urbanos criados por esses prova.
vazios, não para a leitura do tecido urbano
como uma manta de retalhos ou um palimp- Assim, a começar pelo simples facto da
sesto de formas históricas, conservados no centralidade das transformações espaciais,
arquivo. Estes vazios do presente são cria- afastamo-nos de considerar essas transfor-
dos não só pela destruição ambiental, ca- mações espaciais como prova de arquiva-
tástrofes ou actos de terror direccionados a mento, ao compreender o tecido urbano
um alvo, mas também pelas transformações contemporâneo e a política. Em vez disso,
do quotidiano, do espaço urbano por políti- defendemos uma acção metodológica, para
cos, por construtores e planeadores. Numa postular a própria cidade em transformação
época marcada tanto pela destruição e pela como um arquivo durante o processo, uma
estimulação da memória e das identidades, forma que terá uma relevância profunda na
assim como pela proliferação maciça de nossa compreensão do passado como uma
dados, informações, a sua recolha e a sua história do presente.
organização, necessitamos de repensar a
noção de arquivo para abarcar um sentido Tal abordagem tem implicações práticas pe-
dinâmico de ordenação e de interpretação, dagógicas, especialmente para as profissões
desprendido de políticas de preservação e relacionadas com o design, empenhadas em
criação de provas para compreensão histó- capturar a criatividade para a produção de
rica. futuros urbanos. A um nível mais amplo,
permite-nos repensar o tipo de ferramentas
Em contextos como o de Bombaim, mas necessárias para projectos de regeneração
também em muitos outros contextos urbanos urbana, por si só uma característica constan-
contemporâneos, esta abordagem é inesti- te das cidades contemporâneas. Ao fornecer
mável pois aponta para as possibilidades de um mecanismo teórico para o mapeamento
uma política baseada na antecipação, ao in- de relações emergentes, em vez de isolar e
vés de uma política baseada nas conhecidas classificar certas formas como pertencentes
formas do local e enquadramento demográ- ao passado, e outros ao presente, a cidade-
fico. A noção de cidade-como-arquivo per- -como-arquivo também é utilizada como
mite a produção de ferramentas de desenho intervenção metodológica para a recriação
urbano que dêm uma visão muito diferente das relações quotidianas. Nesse sentido, a
da densidade demográfica e da sua relação cidade-como-arquivo é fundamentalmente
com a infra-estrutura urbana. Deste ponto um instrumento pedagógico, que estimula a
de vista, a densidade seria vista como parte criatividade conceptual como a base para a
de uma paisagem de infra-estrutura móvel transformação política.
e em transformação e não como um indi-
cador estático para ser reorganizado através Sem criatividade conceptual, a base analí-
da informação actual de infra-estrutura. Por tica para a acção política permanece fun-
outras palavras, o perfil demográfico da ci- damentalmente conservadora. Se o design
dade, visto através da lente da cidade-como- como actividade profissional está funda-
-arquivo, coloca em primeiro plano informa- mentalmente relacionado com o imaginar e
ção que tem uma relevância para o futuro ao produzir o futuro, então o conceito particu-
A cidade como arquivo: transformações urbanas contemporâneas e as possibilidades políticas 203
Maxine Greene
atravessar o rio. Uma confusão de mensa- rem um papel na resultante confusão, para
gens, de ordens. Ambulâncias vazias; vidro ajudar as pessoas a lidar com o sofrimento,
partido. Ataques de pânico: a incerteza so- com o abandono. Sugestões de autocon-
bre onde os familiares trabalhavam. fiança vinham de cima, dizendo aos ouvin-
tes para retornarem às suas vidas normais.
Hoje, os professores lembram-se de estar to- Então, abruptamente, uma explicação: Sa-
talmente concentrados a proteger as crian- ddam Hussein, ditador, assassino de milhões
ças, salvando-as, inspirando-lhes confiança. de pessoas, foi responsabilizado. Osama bin
Muitos refugiaram-se numa linguagem de Laden provocou, vangloriou-se do que fez,
rotina, como se levar as crianças para as seria capturado e a Al-Qaeda seria esmaga-
caves ou reunindo-as nos cantos longe das da no chão. Então, por toda a falta de provas
janelas fosse perfeitamente normal. Mas de que o Iraque estava a ameaçar-nos, foi
continuaram as fugas e marchas longas e lançada uma «guerra preventiva».
sem rumo devido à ausência de transportes
públicos. Mais inquietante foi a falta dos Cobertos pelo silêncio, vimos o ataque cha-
suportes e estruturas habituais. A sensação mado de «Choque e Pavor», as chamas e o
de invulnerabilidade foi subitamente corroí fumo negro sobre as cúpulas e torres con-
da, em parte porque não havia nenhuma tra o céu. Bagdad foi-nos apresentada como
explicação sobre o que estava a acontecer. uma cidade vazia, uma espécie de cenário
Durante algum tempo, houve a expansão de filme. Não nos foram mostradas fotos de
gradual do termo, «terrorista». Entretanto, pessoas mortas ou feridas, de pais levan-
as fotografias dos homens e mulheres desa- do os seus filhos feridos, desesperados por
parecidos apareceram nas paredes, as pes- ajuda. Quanta foi a nossa própria negação?
soas levavam fotos dos familiares perdidos. Com que facilidades comprámos a ideia
Havia um vazio. Alguns dos maiores medos de que estávamos a lutar contra o «eixo do
das crianças pareciam ser reais. Aumentou mal», que os eventos devem ser lidos em
a fosso entre o que fazia sentido comum e a termos de «sim ou não?» E como - o que - é
suspeita de que nada seria certo a partir de que ensinamos às crianças, aos adolescen-
então. Crianças agarradas à televisão, pensa- tes entre nós? As promessas de «resolução
vam que as torres estavam a cair vezes sem de conflitos» desapareceram quando vimos
conta. Algumas das perguntas das crianças as imagens de cortar o coração da mulher
pareciam não ter respostas. Houve muitos sequestrada e os homens implorando pelas
professores que proibiram todos os alunos suas vidas e ouvimos sobre as decapitações
de falar do 11 de Setembro pois era muito que aconteceram tantas vezes. Compreen-
preocupante para os jovens. demo-lo em termos de diferença cultural
apenas? Eram os homens vestidos de negro
Sim, houve momentos em que estranhos se posando atrás de suas vítimas, em qualquer
abraçaram uns aos outros nas ruas, quando forma representativos do povo iraquiano,
as pessoas de todos os tipos tentavam pensar ou eram uma minoria radical islâmica? Mas
de que forma poderiam ajudar. As crianças havia as imagens chocantes de soldados
trouxeram poemas e comida para os bom- americanos torturando e degradando os pri-
beiros. As bandeiras apareceram, por falta sioneiros iraquianos, fotos de «detidos» em
duma melhor maneira de mostrar união. Guantanamo. Não houve ideia do valor de
Sentimentos de solidariedade foram ex- cada pessoa individual? Sabemos o suficien-
pressos. Desejando acção, alguns tentaram te para encorajar questões críticas? Será que
reunir-se em comunidade para incentivar os uma demonstração de brutalidade justifica
membros a se tornarem curandeiros, para te- outra?
210 Educação: o presente é o futuro
Jaqueline Moll
Será possível compreender a rua como uma a rua - via-de-regra - representa inseguran-
«grande escola ignorada» ou como possibi- ça, violência e guetização. Entende-se que
lidade de «escola para os sem-escola?» Pode a rua pode ser educativa quando trilha de
a rua fazer parte das trilhas educadores pelas ações coletivas, intencionais e identitárias
quais transitam homens e mulheres, sobre- de grupos que habitam e exploram peda-
tudo as novas gerações, na contemporanei- gógica, política e culturalmente a cidade e
dade? seus múltiplos territórios.
Este texto nasce de reflexões em torno des- Estas reflexões não caminham na direção da
tas questões, desde a compreensão de que desescolarização social ou da minimização
a cidade é potencialmente educadora tanto dos efeitos e possibilidades do trabalho es-
pelo conjunto de relações sociais, políticas e colar. Ao contrário, propõe uma abordagem
culturais que perpassam a vida cotidiana de que (re)situe a instituição escolar nas redes
seus cidadãos e cidadãs, quanto pela densi- educadoras que se configuram no espaço
dade de seus territórios físicos - arquitetôni- da cidade e na própria cidade como espaço
cos, históricos, naturais. educativo, portanto numa abordagem que
situe rua e escola como territórios educa-
Considerando o contexto de um país como tivos complementares. Como pano de fun-
o Brasil que somente no final dos anos 90 do a idéia da reconceitualização da esfera
«universalizou» o acesso à educação funda- público-governamental como instância edu-
mental1, para meninos e meninas de 7 a 14 cadora.
anos, este debate enseja problematizações
de duas ordens: de um lado o próprio debate Propõe-se pensar as trilhas educativas que
acerca da instituição escolar, como locus so- os jovens estabelecem e desejam no contex-
cial irrenunciável para os processos educa- to urbano. Os pressupostos da democracia,
tivos das novas gerações e, de outro, acerca da convivência e da diversidade estarão no
das possibilidades educativas das trilhas da horizonte da análise como elementos, pos-
cidade, nas quais estão suas ruas. sivelmente, estruturadores de aprendizagens
significativas para a vida em sociedade e
Desde a perspectiva da rua, toma-se como que desejaríamos penetrassem as ações edu-
pressuposto a necessidade de «desroman- cativas na escola e na rua.
ticizar» o que se pode supor como espaço
de absoluta liberdade e aprendizagens con-
tínuas: a rua não é espaço educativo para os Cidade, contemporaneidade
«sem-casa», «sem-família», «sem-escola». e reinvenção do espaço escolar
Para estes, grupos ou indivíduos, perdidos e
isolados no fluxo das cidades, ao contrário, O contexto contemporâneo de massificação
urbana crescente e de complexificação dos
problemas da vida cotidiana, pouco a pou-
1
A educação básica no Brasil organiza-se em educa-
ção infantil (0 a 6 anos), educação fundamental (7 a 14
co, torna-se irredutível a linearidade e as po-
anos) e educação média (15 a 17 anos). larizações das categorias de análise, lugares
216 Educação: o presente é o futuro
alcançamos compreender. São os que não se sador francês Edgar Morin5: nos pequenos
adequam aos padrões societários estabele- espaços reconfiguram-se os grandes espa-
cidos. ços, nas tiranias e intolerâncias cotidianas
como em um jogo de espelhos estão image-
Nesta perspectiva, a discussão da democra- ticamente refletidas, em escala menor, as ti-
cia e de uma nova esfera pública coloca-se ranias e intolerâncias dos fundamentalismos
como possibilidade para a reinvenção da ci- geradores dos genocídios que nos apavoram.
dade como espaço não de mesmidades e de Portanto, a comunidade reflete a cidade.
homogeneidades, mas como palco e cená-
rio para a expressão e o reconhecimento das Pensar a cidade na perspectiva aqui proposta
diversidades humanas. Vários autores vão implica rever esquemas de leitura de mun-
além deste argumento quando apontam a do, lançar mão de utopias presentes na his-
democracia não só como possibilidade mas, tória da pedagogia6 e projetar a cidade como
como condição para que a própria huma- espaço distinto daquele que se apresenta ao
nidade siga existindo. É o caso de Alberto senso comum, distinto da percepção gene-
Melucci3 quando diz que «o fator crucial ralizada de que a cidade é um lugar cada
que muda hoje o significado da democracia vez mais inseguro, de medo, de perigos, um
é que sem o reconhecimento das diferenças lugar no qual a única alternativa é isolar-se
e sem acordo sobre os limites que hão de no âmbito doméstico, como que responden-
impor-se não haverá já espaço nem para as do a tirania imaginária de um modo de ver
diferenças e nem para as decisões, senão só e viver o mundo7. Na cidade cabem muitas
para a catástrofe». (2001, p.56) cidades, com as feições que somos capazes
de lhe atribuir.
As comunidades, no macro cenário das ci-
dades, constituem pequenos centros nos
quais redes de relações pessoais e sociais Jovens e trilhas educadoras
traçam a vida cotidiana com todas as suas na cidade
demandas e tensões. Nas comunidades,
reproduzem-se os movimentos dos grandes Duas pesquisas, recentemente realizadas,
cenários. A comunidade pode ser, portanto, podem trazer elementos para pensar acerca
na perspectiva de um contexto policêntrico das trilhas urbanas de jovens que vivem em
um pequeno palco em que os ensaios para regiões periféricas: uma buscou ouvir jovens
a vida alargada na cidade acontece. É desde da cidade de Porto Alegre sobre sua inserção
a rua, desde o bairro, que nos podemos tor- na cidade8 e outra trouxe elementos acerca
nar cidadãos do mundo, desde que o espaço do papel do poder público municipal junto
local possibilite o acesso ao mundo adulto,
não como imposição, mas como possibilida-
de de ampliação deste diálogo vital que nos 5
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo.
faz humanos, como diria Bernard Charlot4. Lisboa: Instituto Piaget, 1991.
6
Referência a partir de TRILLA BERNET, Jaume. Ciuda-
À maneira do holograma proposto pelo pen- des Educadoras: bases conceptuales Cidades Educado-
ras. Curitiba: Ed. da UFPr, 1997.
7
Vale a pena a leitura da obra de Francesco Tonucci, La
citá dei bambini (Laterza, Roma-Bari, 1996).
3
MELUCCI, Alberto. Vivência e convivência: teoria so- 8
BRUNEL, Carmen. A casa, a escola e a rua: espaços
cial para uma era da transformação. Madrid: Editorial de múltiplas práticas no cotidiano de meninos e meni-
Trotta, 2001. nas que freqüentam três escolas públicas da periferia da
4
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber. Elemen- cidade de Porto Alegre. Tese de Doutoramento. PPGE-
tos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2001. DU. UFRGS, 2005.
218 Educação: o presente é o futuro
não permite nem acesso ao transporte co- so à esfera pública, onde ele poderia se
letivo. A cidade para estes jovens se apre- mostrar, ver e ser visto, ouvir e ser ou-
senta como projeção de um espaço ao qual vido, que ele proibia o espaço da pólis,
não pertencem. A vida está restrita a casa, confinava os cidadãos à privacidade da
as suas cercanías e a escola, espaços de vida de seus lares... De acordo com os
circulação cotidianos, razoavelmente segu- gregos, ser banido para a privacidade dos
ros, nos quais constróem identidade e sua lares era equivalente a estar destituído das
relação com o mundo. Nesta perspectiva é potencialidades da vida especificamente
possível afirmar que a presença do poder humanas».15
público, através de políticas que visibilizem
estes jovens e facultem seu trânsito pelas tri- Partindo deste pensamento impõe-se refle-
lhas da cidade é elemento definidor de sua tir sobre o conceito de esfera pública e de
inserção urbana. cidadania e sobre a presença humana nos
espaços que transcendem o mundo privado
Na etapa seguinte desta pesquisa os percur- e que podem converter estes jovens em ci-
sos cotidianos de dez destes jovens foram dadãos. Entendendo-se por cidadão, numa
investigados e explicitou-se a riqueza de das acepções correntes, como habitante
«mundos criados» no contexto comunitá- da cidade16 é preciso perguntar-se: como
rio. Nas «pedagogias praticadas»14 por estes nos convertemos em habitantes da cidade?
jovens, estão expressas trilhas educativas Como os jovens podem tornar-se parte da
construídas através da experiência de parti- cidade, sobretudo estes, representados em
cipação na rádio comunitária, da criação de milhões, que não tem acesso nem a possibi-
uma banda de rock, das histórias, poesias e lidade de circulação?
letras de música escritas, dos grupos de mú-
sica e dança criados e do esforço para aces- No campo de debates proposto por este tex-
so ao mundo do futebol. A escola está entre to os elementos de «realidade» trazidos à
os principais espaços para articulação destas tona apontam para a ausência de uma esfe-
possibilidades. ra pública estruturada que acolha e abrigue
jovens que vivem em regiões periféricas de
O sentimento de interdição explicitado em uma cidade latino-americana. Os desejos
relação à cidade não impossibilita que mes- apontam para a necessidade da quadra de
mo neste espaço restrito de circulação e esportes, do campo de futebol e do espaço
com parcos recursos materiais, estes jovens para realização de festas. Numa perspectiva
criem verdadeiros universos de significado. de cidade policêntrica tais lugares deveriam
estar também nestas regiões periféricas, nas
A vedação ao espaço público será de al- quais a casa, ao abrigo da «rua», parece ser
guma forma compensada pelo esforço em o espaço prioritário de convivência e apren-
configurar uma esfera privada na qual a vida dizagem, sobretudo para as meninas. Ainda
possa fazer sentido. Este quadro remete-me prevalece o medo da «rua» e a insegurança
a Hanna Arendt quando evoca a histórica em relação aos lugares públicos. A esco-
Grécia: la segue sendo para estes jovens, principal
espaço de socialização e aprendizagens, es-
«A principal característica do tirano era
que ele privava o cidadão de ter aces-
15
ARENDT, Hannah. A condição humana.
16
Conforme FERREIRA, Aurelio Buarque Holanda.
14
PAIS, José Machado. Vida cotidiana: enigmas e reve- Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fron-
lações. São Paulo. Cortez, 2003. teira, 1986.
220 Educação: o presente é o futuro
Tais processos desafiam a mudanças que, Neste aspecto certamente reside uma difi-
embora também metodológicas, são mu- culdade fundamental: não estamos habitua-
danças paradigmáticas que implicam pro- dos ao diálogo e a aproximação com outros
duzir novos esquemas para ler o mundo e sujeitos da cena social, muito menos com
para criar, o que Paulo Freire chamou de os jovens que, aglutinados por traços iden-
«inéditos viáveis». Portanto, não se colocam titários em inúmeras «tribos urbanas», desa-
como nova panacéia, nem como um novo fiam nossa capacidade de compreendê-los
modelo, mas como mudanças possíveis, a e de aceitá-los. Aproximar sujeitos sociais,
médio e longo prazo, e que, só podem ser entre estes, os grupos juvenis, para realizar
construídas, a partir de novos pactos sociais novos pactos educativos, pensando a cidade
e educativos. Nesta direção, o poder público em seu conjunto, com ações que envolvam
local pode desempenhar importante papel a aproximação de diferentes instituições, o
pedagógico como: uso dos espaços urbanos, a disponibilização
de tempo para as novas gerações e a afir-
mação de novos horizontes e compromissos
• articulador de forças e sujeitos sociais, comuns, são condições para converter a ci-
dade em cenário educativo. Nesta perspecti-
• financiador de ações que nasçam das ne- va, todos que vivem na cidade convertem-se
cessidades e exigências deste novo pacto, em educadores.
Tais processos implicam que cada cidadã/ ser reanimada, porque mais uma vez nos re-
cidadão, criança, jovem ou adulto, entenda- mete aos sonhos coletivos de uma vida feliz,
-se como parte da cidade, comprometendo- sustentável e solidária neste planeta. Nos
-se com seu destino em um movimento remete à cidade para além do que nela é
pedagógico e cultural que permita a todos, produzido materialmente e, como diz o his-
na qualidade potencial de educadores, a toriador Jacques Le Goff20, reanima a idéia
construção de olhares acerca deste grande da cidade como palco de igualdade e festa
espelho-território com seus temas e problemas da troca, como espaço do bem comum, da
para reaprendendo-o, ousar reinventá-lo. segurança e do urbanismo como invenção
A cidade democrática e educadora, espaço de beleza - elementos engendradores do
de muitas trilhas é, portanto, uma utopia a imaginário das cidades do renascimento.
20
LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo:
Editora da UNESP, 1998.
Educação e sociedade justa
zo» acaba com a possibilidade de construir Estados nacionais. Apesar deste não ser o
laços de confiança, compromisso mútuo e sitio para uma longa referência à história
de coesão. Por exemplo, nas empresas, os da educação, é preciso lembrar que, pelo
empregados sabem que existe a possibili- menos na nossa cultura, os princípios de
dade de haver fusões, deslocalizações ou educação universal e obrigatória estiveram
transformações que os pode deixar fora, sem directamente ligados à criação do Estado e
haver qualquer compromisso por parte dos de vínculos de adesão a uma determinada
empresários. Hoje, é aconselhável trabalhar ordem, acima de interesses particulares ét-
fora das empresas e, como refere Sennet, nicos, religiosos, linguísticos ou de qualquer
o desapego e a cooperação superficial são outra índole. Este processo teve diferentes
muito mais funcionais do que a lealdade e manifestações conforme os contextos, mas
o serviço. Dá-se mais valor à capacidade de a escola e os professores estiveram entre as
mudar do que à experiencia, e a prática do instituições e os actores sociais principais
consumo expande-se a todas as dimensões do processo de construção da modernidade,
da vida social e pessoal, e não apenas às quer no aspecto político quer no cultural.
mercadorias.
A literatura sobre o processo de moderni-
Quando este comportamento abrange ou- zação é muito vasta e conhecida. Bauman,
tras áreas da vida social, como a família ou para citar uma das referências actuais mais
o âmbito de desempenho político-cidadão, reconhecida, caracterizou a visão tipica-
as tensões e contradições são muito signi- mente moderna do mundo como aquela que
ficativas. A família requer compromissos e o considera uma totalidade essencialmente
lealdades de médio e longo prazo que ma- organizada. O controlo é pouco menos que
nifestem a solidariedade intergeracional. O sinónimo da acção ordenadora e a efectivi-
desempenho da cidadania também exige, dade do mesmo depende da adaptação do
cada vez mais, um grande sentido de res- conhecimento à ordem «natural». Esse co-
ponsabilidade e solidariedade colectiva, que nhecimento é, em princípio atingível, e su-
obriga a tomar decisões que requerem uma bir na hierarquia das práticas medidas pelo
visão de futuro. Também, representa graves síndrome do controlo/conhecimento signifi-
problemas para a educação institucionali- ca igualmente avançar para a universalidade
zada, cuja razão de ser tem sido sempre a e distanciar-se das práticas «provincianas»,
transmissão do património cultural da socie- «particularistas» e «localizadas»4.
dade e a preparação para um determinado
projecto de futuro. Visto assim, um dos pro- Quer seja pela necessidade do controlo ou
blemas centrais da educação actual é orien- pelo puro desejo de divulgar conhecimen-
tar a tensão gerada por esta carência de sen- tos, a educação e os educadores foram um
tido, quer nos processos pedagógicos e nos produto da modernidade directamente asso-
vínculos de ensino-aprendizagem, quer nos ciado à necessidade de contar com pessoal
processos políticos e institucionais com que especializado para transmitir e reproduzir a
é manifestada a actividade educativa. nova cultura dominante5.
Neste sentido, os sistemas educativos moder-
nos enfatizaram na transmissão de conheci-
3. O sentido da educação
na sociedade moderna
4
Z. Bauman. Legisladores e intérpretes; Sobre la mo-
Lembremos que os sistemas educativos mo- dernidad, posmodernidad y los intelectuales. Buenos
Aires, Universidad Nacional de Quilmas, 1997.
dernos surgiram associados à criação dos 5
Z. Bauman, op. cit.
Educação e sociedade justa 229
tanto individual como colectiva. De certo torno das possibilidades de criar um sentido
modo, este pensamento crítico foi criado a partilhado, capaz de superar à coesão fun-
partir da contradição que surgia entre formar damentalista autoritária e o individualismo
para o trabalho e formar para o exercício da anti-social.
cidadania e o pleno desenvolvimento da
personalidade. Este cenário muda radical- A questão da possibilidade de criar um sen-
mente com a expansão do novo capitalismo. tido partilhado é, em suma, a questão da co-
esão social. Qual seria o modelo de coesão
possível e necessário no âmbito deste novo
4. O sentido no novo capitalismo: capitalismo pós-moderno?. Por um lado, sa-
criação duma sociedade justa bemos que é impossível a coesão dos mo-
dernos, baseada na imposição duma ordem
A literatura sobre a pós-modernidade, a so- única, embora seja de natureza racional e se-
ciedade do conhecimento e o novo capi- cular. Também, é impossível a coesão iden-
talismo, é vasta e bem conhecida. Embora, tificativa, étnica ou religiosa, que exclui o
cada uma delas faça referência a fenómenos diferente. Por outra parte, sabemos também
diferentes, a sua análise refere um processo que a coesão social obriga a níveis básicos
de transformação que afecta todos os aspec- de equidade social, baseados no direito ao
tos da sociedade: a organização do trabalho, trabalho e numa remuneração que garanta
a organização política, os paradigmas cultu- o acesso aos bens e serviços próprios duma
rais e os processos de criação de identida- vida digna. Em suma, encontramo-nos pe-
des pessoais. As tendências à fragmentação rante o desafio de criar uma sociedade que
são significativas e bem conhecidas, e estão enfrente a desigualdade e respeite a diversi-
vinculadas a um fenómeno duplo: por um dade. A grande questão é saber se o propósi-
lado, a desigualdade e a exclusão social e to de criar uma sociedade justa poderá ter a
por outro, a explosão de identidades e de potencialidade suficiente como para criar os
demandas de reconhecimento à diversida- níveis de adesão necessários para contrariar
de. Do ponto de vista cultural, a pós-mo- as tendências à injustiça, derivadas do mer-
dernidade está caracterizada pela ruptura da cado e das tentações do domínio e controlo
concepção segundo a qual existe uma única cultural9.
ordem cultural válida e legítima, à qual se
subordinam todas as outras. Agora, os parti- A adesão à criação duma sociedade justa é
cularismos não são sinónimo de atraso e tra- um tema que deve ser analisado de forma
dicionalismo são antes reivindicados como contextualizada. No entanto, com as con-
um direito, e a sua negação atenta contra tribuições de A. Giddens, é possível admitir
a convivência democrática e a justiça. Do que a adesão requerida pela criação duma
ponto de vista sócio-económico, as tendên- sociedade justa é uma adesão reflexiva. O
cias à concentração do lucro e à exclusão novo capitalismo tem níveis muito baixos
social de vastos sectores de população8, são de solidariedade orgânica e exige, por parte
bem conhecidas. Economia e sociedade dos cidadãos, um comportamento baseado
tendem a dissociar-se e geram um cenário muito mais em informação e em adesão vo-
em que a grande questão (e desafio) gira em luntária do que os exigidos pelo capitalismo
9
Poderá encontrar uma análise completa sobre a co-
8
Para uma análise dos fenómenos de fragmentação so- esão social nos países da América Latina y as Caraí-
cial nas cidades, consulte Loïc Wacquant. Los conde- bas em CEPAL. Cohesión social. Inclusión y sentido de
nados de la ciudad. Gueto, perfiferias y Estado. Buenos pertenencia en América Latina y el Caribe. Santiago de
Aires, Siglo Veintiuno Editores Argentina, 2007. Chile, 2007.
Educação e sociedade justa 231
cedoras para fomentar o debate e avançar a forma como responde o sistema educati-
em estratégias de acção. Em primeiro lugar, vo à sorte dos mais frágeis. Neste sentido,
Dubet esclarece que as suas reflexões não a educação obrigatória deveria guiar-se por
estão dirigidas a definir uma escola justa princípios de avaliação onde não haveria lu-
mas «à menos injusta possível», o que mos- gar para testes de selecção por mérito, mas
tra a dificuldade e complexidade do pro- sim um princípio de assegurar o acesso a um
blema. Normalmente, a justiça escolar está bem comum. Na educação obrigatória não
associada à igualdade de oportunidades. pode haver ganhadores ou perdedores, mas
Dubet cria polémica com esta visão da justi- sim um espaço comum de aprendizagens
ça, de validade duvidosa, em particular, nos ao que todos possam aceder. Finalmente,
níveis obrigatórios e universais da educação. Dubet defende a necessidade de garantir a
Segundo a sua abordagem, a igualdade de igualdade individual das oportunidades. Isto
oportunidades pode ser uma grande cruel- obriga à reflexão sobre a formação dos indi-
dade com os perdedores duma competição víduos, sobre o próprio modelo educativo e
escolar responsável por diferenciar os indi- o lugar que dá este modelo aos indivíduos,
víduos conforme o seu mérito. Uma esco- aos seus projectos, à sua vida social e sua
la justa não se pode limitar a seleccionar singularidade, além dos seus desempenhos
os que têm mais mérito, deve igualmente cognitivos.
preocupar-se com o destino dos perdedores.
A igualdade de oportunidades em estado Esta última reflexão de Dubet, destaca que
quimicamente puro não preserva necessa- uma escola justa não se esgota nos proces-
riamente os perdedores da humilhação do sos institucionais de selecção, avaliação,
fracasso e do sentimento de mediocridade. financiamento e trajectórias de formação.
A meritocracia pode ser perfeitamente in- Uma escola justa não pode ser neutral com
tolerável quando se associa o orgulho dos os conteúdos culturais que deve transmitir.
ganhadores ao desprezo dos perdedores. A Em suma, uma escola justa deve ser capaz
exclusão e a violência duma grande parte de oferecer a todos uma educação de boa
dos alunos demonstram actualmente que qualidade em que a adesão à justiça seja
este cenário não é ficção. um valor central. Esta abordagem tem con-
sequências directas sobre o desempenho
O modelo de igualdade de oportunidades dos educadores. Neste sentido, é possível
e de meritocracia nunca esteve totalmen- presumir que a adesão à justiça deveria ser
te em vigor. No caso francês, as diferenças um requisito para o exercício da profissão
de resultados escolares entre classes sociais docente. Da mesma forma que os médicos
continuam tão fortes como em períodos em estão forçados em muitos sítios ao juramen-
que o acesso não era universal ou era so- to de Hipócrates de respeito à vida, seria
cialmente desigual. Este fenómeno cria um preciso tal vez introduzir na cultura profis-
estado de desilusão, que pode provocar ten- sional dos docentes um compromisso muito
tações reaccionárias de voltar atrás em es- maior com os resultados de aprendizagem
tratégias democráticas. Dubet propõe, con- dos seus alunos e com os valores de justiça
tra estas tentações, três linhas principais de social, solidariedade e coesão14.
acção. A primeira enumera as políticas de
distribuição mais equitativa da oferta esco- 14
A ideia de expandir o juramento de Hipócrates a ou-
lar, ao dar mais aos mais desfavorecidos, e tros actores sociais, como por exemplo, os empresários,
aumentar a informação sobre a oferta peda- poderá ser vista em Otfried Höffe. Ciudadano econó-
gógica, e flexibilizar a circulação dentro do mico, ciudadano del Estado, ciudadano del mundo. Éti-
ca política en la era de la globalización. Buenos Aires,
sistema educativo. A segunda linha expõe Katz, 2007.
Educação e sociedade justa 233
Joan Subirats
Esta complexidade é motivada pela diver- nizativo do sector público que coloca em
sidade implícita na existência de vários inter-relação diversas áreas temáticas, de-
agentes, que juntam ao processo político partamentos e organizações públicas no
uma multiplicidade de valores, objectivos contexto de projectos partilhados.
e preferências. E em segundo lugar, pela in-
certeza que suscita a mudança contínua, a c) a participação social perante a concep-
erosão das certezas cognitivas e a instabili- ção tradicional que colocava à sociedade
dade do conhecimento. Governar, não pode como o objecto da acção de governo e
continuar a ser a função duns poucos peritos aos poderes públicos como o sujeito, a
que implementam conhecimentos contrasta- Governança destaca o carácter confuso e
dos, mas deve ser concebida como um pro- ambíguo da separação entre a esfera pú-
cesso de aprendizagem social em que vários blica e a privada e, ao mesmo tempo, re-
agentes transmitam os seus conhecimentos, posiciona as responsabilidades colectivas
as suas próprias percepções da realidade e num espaço partilhado entre estas duas
tentem chegar a definições partilhadas dos esferas.
problemas. Isto é verdadeiro tanto numa
perspectiva geral, como em políticas espe- Igualmente neste ponto, a educação forne-
cíficas como a educativa, sujeita a pressões ce um bom cenário para exemplificar o que
muito significativas nos últimos tempos. temos argumentado. Uma política educativa
sujeita a intervenções desde vários sectores
ii. A governança envolve um sistema de de governo, uma política educativa que re-
governo mediante a participação de dife- quer abordagens transversais para enfrentar
rentes agentes no âmbito de redes plurais. os novos desafios. Uma política educativa
cujo desenvolvimento universalista e expan-
Neste cenário, o conhecimento está disper- são para os 0 anos e para além dos 25, le-
so entre a multiplicidade de agentes com as vou-a a combinar protagonismos de diferen-
suas próprias definições dos problemas. A te ordem, com agentes públicos, privados,
autoridade é um conceito difuso que ape- entidades e colectivos.
nas se pode desenvolver num âmbito de
negociação contínua. Os recursos para o iii. A governança implica uma nova posi-
desenvolvimento eficaz das políticas estão ção dos poderes públicos nos processos
distribuídos entre uma multiplicidade de in- de governo, a adopção de novas funções
divíduos. E, finalmente, as intervenções pú- e a utilização de novos instrumentos de
blicas causam uma serie de efeitos difíceis governo.
de prever. Mais especificamente, a diversi-
dade de agentes capazes de participar no O resultado da governança ou do governo
âmbito destas redes respondem a uma tripla em rede, não pode ser atribuído ao «exe-
dinâmica de fragmentação de responsabili- cutivo», sendo que é mais produto espon-
dades e capacidades de governo: tâneo e em certa medida imprevisto duma
interacção complexa entre vários agentes de
a) o governo multi-nível, definido como natureza muito diversa. Enquanto o paradig-
«um sistema em que os diferentes níveis ma tradicional determinava uma separação
institucionais partilham, em lugar de mo- clara entre a esfera pública e a privada, en-
nopolizar, decisões sobre grandes áreas tendia que os sujeitos únicos da acção do
de competência». governo eram os poderes públicos e conce-
bia a esfera privada como o objecto passivo
b) a transversalidade, como sistema orga- da acção de governo, a governança indica
240 Educação: o presente é o futuro
um cenário em que a fronteira entre as duas e quem deverá prestar contas perante os
esferas se desvanece, as responsabilidades cidadãos?
em matéria do colectivo são distribuídas en-
tre diversos agentes e o poder político está c) a presença e o poder que é conferido
absolutamente disperso entre uma grande neste cenário a agentes como organiza-
diversidade de sujeitos. ções lucrativas leva-nos a questionar que
tipo de interesses são defendidos no con-
Se trabalharmos com uma perspectiva edu- texto das redes, sob que critérios são to-
cativa que não se limite ao âmbito escolar, madas as decisões públicas, quem está re-
e entendermos que a educação e a vida presentado e como podemos garantir que
estão relacionadas, é evidente que a nossa o interesse geral é o critério que conduz à
concepção sobre a política educativa vai tomada de decisões públicas?
ampliar-se de forma radical e vai exigir uma
abordagem mais aberta, mais plural e com d) até que ponto as redes são inevitavel-
mais agentes institucionais ou presentes no mente espaços horizontais de intercâm-
seu desenvolvimento. É difícil imaginar a bio e negociação entre agentes iguais ou,
abordagem dos problemas escolares des- pelo contrário, são espaços reprodutores
de uma perspectiva tradicional de governo das desigualdades e das hierarquias que
baseada na hierarquia e na especialização, existem na realidade?
e muito mais se partimos dessa concepção
aberta e transversal da educação durante Todas estas questões têm uma dimensão
toda a vida. teórica básica mas também empírica. Em
suma, a governança ou governo em rede
não é um modelo simples e inequívoco que
2. Questões se reflicta de forma mimética em qualquer
situação. As novas dinâmicas de governo
Apesar de todo o referido e precisamente em rede adoptam formas muito diferentes,
pela ambiguidade do termo governança, segundo o contexto em que se desenvolvem,
poderíamos indicar várias questões rela- os agentes envolvidos, os valores, os interesses
cionadas com a capacidade de produzir e objectivos que guiem a conformação dos
políticas democráticas através deste novo novos padrões organizativos. O que não se
paradigma: pode negar é que o cenário deixa espaços
suficientes para avançar para uma governança
a) o governo em rede envolve uma rela- de proximidade, que abre novos cenários de
tivização da legitimidade das instituições radicalidade e consolidação democrática.
representativas como sujeitos responsá- E isto é especialmente significativo quando
veis da acção de governo. corroboramos que as novas lógicas de
governo relacional e de transversalidade nas
b) se os processos de governo são desen- políticas conduzem quase inevitavelmente
volvidos agora no âmbito de redes com- ao reforço dos governos locais e as dinâmicas
postas por variados e diferentes actores, territoriais como as únicas capazes de
onde estão os princípios da transparência, articular proximidade, integralidade de
a responsabilidade e a accountability de- resposta e envolvimento colectivo baseado
mocrática? Como se têm vindo a tomar em elementos de identidade com a
as decisões, agora quem é o responsável comunidade local.
Governança e educação 241
Desta forma, volta a ter sentido questionar- O impacto não é menor nas estruturas so-
-se, qual educação para qual concepção de ciais. A antiga sociedade industrial tinha-nos
sociedade? Como podemos relacionar edu- habituado a compreender a divisão de clas-
cação e cidadania? Como «governamos» ses como notavelmente estável e previsível.
as políticas educativas? Tradicionalmente, Agora, temos uma conversão rápida da or-
considerava-se que os três grandes âmbitos dem classista e estratificada, a uma realidade
de socialização eram a família, a escola e social (desorganizada) na qual encontramos
o trabalho. Neste momento, os impactos da uma multiplicidade significativa dos eixos
nova situação são muito visíveis nas esferas de desigualdade. Tínhamos grandes agre-
produtiva, social e familiar, e não nos deve- gados e importantes continuidades, e hoje
ria surpreender que isto afecte em maior ou temos um mosaico cada vez mais fragmen-
menor medida a educação no seu conjunto tado de situações de pobreza, riqueza, fra-
242 Educação: o presente é o futuro
exclusão e das erosões duma concepção da tências previas). E, por outro lado, a ideia
cidadania que está a ficar obsoleta por for- de que toda carência pessoal ou social que
mal e desfasada. chega a ter uma ligação ou outra com uma
Poderíamos dizer que, do ponto de vista actividade de formação real ou potencial é
social, na ausência dum sentido comum de «culpa» da educação, que acaba por tornar-
projecto partilhado e na insistência desde -se num grande contentor para meter tudo
posições neoconservadoras que o importan- o que não está a funcionar, principalmente
te é aproveitar as oportunidades que exis- quando os agentes de socialização que a
tem, e que a desigualdade não possui bases acompanhavam nessa labor, estão «missing»
sociais, senão que depende do esforço que ou mostram muitas vulnerabilidades.
cada um aplique, isto se transmita às famí-
lias como um «salve-se quem puder». Se falamos de educação e governança, te-
mos de defender um conceito de educação
Neste cenário, a educação surge como uma mais vinculado ao de serviço público. Ou
garantia de melhores oportunidades indivi- seja, tentar vincular uma melhor educação
duais que reforçam o potencial de segmen- (e não apenas escola) com o conjunto de
tação e parcial que a educação costuma a serviços e políticas que procuram a melho-
ter. Portanto, a política educativa aumenta a ria das condições de vida dos cidadãos e o
sua visibilidade e a pressão social a que es- reforço do seu papel activo na renovação
tão sujeitos os diferentes agentes educativos, democrática e participativa das políticas
quando se torna, como já temos referido, um tradicionais de bem-estar. E portanto, com
elemento central da capacidade individual e uma visão do trabalho educativo mais vin-
colectiva para enfrentar as rápidas dinâmi- culada ao trabalho em rede, à colaboração
cas das mudanças nas áreas de produção, entre profissionais de diferentes serviços, ao
social e familiar. Contudo, será que a escola envolvimento dos cidadãos numa educação
e os diferentes grupos profissionais vincula- «do berço à cova», um esforço colectivo
dos directamente com os itinerários de for- perante problemas de carácter integral que
mação poderão assumir a grande avalanche precisam igualmente de respostas integrais.
de procuras que lhes são dirigidas desde a
sociedade? Poderão fazê-lo sozinhos? Há al- Todos educamos, e fazêmo-lo mais com o
gum tempo que estas questões andam no ar nosso «ruído» (com a nossa atitude, com os
e se têm vindo a abordar de forma directa e nossos actos), do que com as nossas pala-
indirecta em muitas das reflexões e inquie- vras. Num volume dedicado à experiência
tações relacionadas com o nosso ambiente das «cidades educadoras», temos de de-
educativo. fender perspectivas que procurem o envol-
vimento de todos os cidadãos na «questão
A influência da educação estendeu-se mui- educativa», indo para além do que é a co-
to para além do normal, mas isso envolve, munidade educativa no sentido estrito, e
por um lado, caminhar em direcção àqui- portanto abordar os debates nucleares que
lo que se tem chamado a «sociedade do vinculam educação e sociedade, educação
conhecimento», na que todos os aspectos e cidadania. Neste contexto, deveríamos
fundamentais e as actividades sociais têm ser capazes de reflectir sobre o conceito de
componentes formativas e acabam por gerar participação dos cidadãos e, em particular,
conhecimento (com as consequências que sobre os elementos que devemos tomar em
tem de produzir a sensação de que qualquer consideração para uma reconstrução prática
aspecto vital pode ser objecto de aprendi- do ideal democrático, baseado no impulso
zagem formal e de superação de incompe- da participação e a educação.
244 Educação: o presente é o futuro
Se aprofundamos mais nas relações de edu- Em princípio parece haver consenso na con-
cação e participação neste âmbito de indi- textualização da reivindicação actual a favor
vidualização e comunidade, notamos que, da participação dos cidadãos no âmbito da
desde há tempo se considera que as estru- crise de alguns elementos daquela governa-
turas de governo nas democracias repre- bilidade que tem orientado a acção do go-
sentativas, para além dos respectivos actos verno tradicional (democracia representati-
eleitorais, carecem de mecanismos que lhes va), assim como no âmbito da urgência dum
permitam conhecer e ter presentes os inte- novo contexto em que se torna necessário
resses ou preferências dos cidadãos. Os sen- avançar para novas formas de gestão do con-
timentos de insatisfação, impotência ou frus- flito, mais horizontais e complexas. Dentro
tração dos cidadãos perante a passividade das dinâmicas de governança que temos
ou ineficácia dos seus governantes acabam, apresentado, manifesta-se a necessidade de
por um lado, no distanciamento dos cida- contar com o envolvimento dos cidadãos na
dãos com respeito às vias convencionais de hora de tomar decisões, gerir e dar resposta
participação política (eleições, partidos po- aos desafios colectivos propostos. Assim, fa-
líticos, grupos de pressão…) e, por outro, na lar de participação implica fazer referência
procura de novas formas de expressão que a qualquer tipo de actividade destinada a in-
se agrupam normalmente sob a denomina- fluenciar de forma mais ou menos directa a
ção genérica de «movimentos sociais». tomada de decisões políticas.
Perante esta situação é evidente a necessi- Contudo, além deste valor, a participação é
Governança e educação 245
Modelo Modelo
a visualização, discussão e harmonização
Participação Participações de um conjunto (muitas vezes em conflito)
de interesses particulares. É por isso que os
Participação: opção Participação: necessi-
dade valores de proximidade e transparência de-
vem ser constituídos com princípios básicos
Participação: curto prazo Participação: médio e de cada processo participado.
(ad-hoc) longo prazo
A partir da nova Carta e das diferentes con- A ênfase recai no cidadão e seu processo
tribuições realizadas no âmbito académico de gestão e recepção educativa. Criamos a
e político ao longo dos últimos anos, torna- nossa educação ao exercer como cidadãos,
-se evidente em diversas direcções o en- participar nos compromissos colectivos e
volvimento da educação para o século XXI responsabilizar-nos com o que acontece fora
no contexto da cidade e o espaço público. do nosso âmbito privado. Esta é a mensagem
Poderíamos resumir a profundidade destes final dum texto em que tratamos de articular
abordagens ao gerir os critérios seguintes: e relacionar as reflexões sobre a mudança
espaço, tempo, contexto social e quotidiani- de época que atravessamos, com as novas
dade. Mostramos este exercício no seguinte dimensões da participação e da governança,
quadro explicativo: que tenta ver a função que a educação de-
sempenha em todo isto a partir de uma con-
Em suma, a cidade, o espaço público, não cepção fundamental e transversal dos seus
são apenas agentes e territórios educativos. conteúdos e impactos.
«Ninguém educa ninguém. Os homens continuar a aprender mas que já não o po-
educam-se entre si mediatizados pelo demos educar. Porque para ela, a educação
mundo». (Paulo Freire) consiste a definir o que outra pessoa deve
aprender, que é o caso específico da infân-
cia. A Hannan Arendt vai ainda mais longe,
Observação preliminar pois enfatiza que, se um Estado reivindica
ser Educador, é totalitário ou carrega um ris-
A educação contínua para a cidadania tem co de totalitarismo. Para Hannah Arendt, a
sido e ainda é, uma das questões fundamen- transição para a vida adulta ocorre quando,
tais para a Associação Internacional das Ci- precisamente, o sujeito decide o que apren-
dades Educadoras. Hoje, todos os tipos de der. É por essa razão que, quando ela diz
trabalho parecem exigir uma actualização que há uma incompatibilidade entre a edu-
contínua dos conhecimentos adquiridos. cação dos adultos e a democracia, aponta
Mas também é certo que o acesso, aparente- para um problema político que está longe
mente fácil e generalizado à fontes de infor- de ser insignificante. É a razão pela qual, na
mação, esconde, e por vezes impede o aces- Comissão da UNESCO em que trabalhei,
so ao conhecimento. Na realidade, devemos propus utilizar o conceito de aprendizagem
rever as questões de educação contínua no continuado ou o de aprendizagem ao longo
contexto de hoje e, em especial, para me- da vida. Isto permite-nos enfatizar que em
lhor identificar o papel que poderiam ter as nenhuma circunstância temos a perspectiva
Cidades Educadoras nesta área. de decidir o que os adultos devem aprender.
Somos, em vez disso, impulsionados pela
Para reflectir sobre esta questão, pedimos a crença de que eles como adultos se envol-
colaboração de Philippe Meirieu e de Joan vem na escolha das suas aprendizagens e da
Manuel Del Pozo. sua formação… e este envolvimento é, ao
mesmo tempo, o reconhecimento e promo-
(Pilar Figueras, Secretário-Geral da AICE) ção do seu estatuto de cidadão.
tremamente instrumentista e, por isso, está Lefort, é um regime em que o locus do poder
directamente associada a formação profis- está vazio. É um espaço que ninguém está
sional. habilitado a ocupar: o colectivo em debate
exerce o poder e ninguém pode pretender
P.M. encarná-lo Mas não é certo que a democra-
Na análise da Hannah Arendt, que é hoje cia esteja definitivamente instalada. Um dos
retomada pela maioria dos teóricos da problemas do século XXI é que as teocra-
democracia, define-se um regime totalitário cias, no sentido geopolítico do termo, são
como um regime que confunde os papéis. terrivelmente poderosas no planeta. E, nos
A saber um regime que toma as crianças Estados que se consideram democráticos, a
por adultos e adultos por crianças. Para a nostalgia teocrática é ainda muito poderosa.
Hannah Arendt, deve-se respeitar a fronteira É a tentação natural das pessoas que devem
necessária entre o momento em que a decidir o seu futuro mas que acabam por
criança, não sendo capaz de escolher por achar mais confortável que alguém decida
si só, deve ser educada pelos que devem por elas. O locus do poder, que deve per-
decidir pelo «seu bem» e o momento em manecer vazio, continua muito cobiçado e
que o adulto deve poder, como cidadão, ser somos chamados a exercer, neste contexto,
reconhecido tanto como actor na sua vida uma vigilância constante… incluindo com
e na cidade… Mesmo que a distinção que nós próprios. É por isso que se deve constan-
ela propõe seja pedagogicamente discutível temente reafirmar que a formação contínua é
- da minha parte, penso justamente que a fundamentalmente inscrita, para nós, numa
pedagogia é o ordenamento das transições perspectiva democrática. São os «usuários»
necessárias - , parece-me que mais vale - este termo é aqui, aliás, particularmente
evitar que se pense que concebemos a inadequado - que devem decidir e não um
formação contínua como uma empresa de qualquer clerical ou técnoestrutura.
catequização de uma população menor.
No debate que temos hoje em França - J.M.P
com um aumento extremamente forte do Neste contexto, o que se entende hoje por
pensamento autoritarismo - conta-se muito «conhecimento pertinente» em matéria de
sobre a Hannah Arendt para desacreditar formação contínua?
todas as formas de formação à autonomia
na educação da criança. Não deveríamos P.M.
também apoiar-nos nela para desacreditar a Já ninguém dúvida actualmente, que a edu-
formação dos adultos. cação contínua é uma necessidade inevitá-
vel. Qualquer trabalho exige, diz-se, uma
J.M.P. actualização contínua dos conhecimentos
Falamos da educação contínua, no sentido adquiridos. Mas é mesmo verdade? É possí-
liberal do termo, e não sobre uma educação vel que a nossa sociedade possa continuar a
programada pelo Estado para o controlo dos viver, e mesmo a desenvolver-se, mantendo
cidadãos. Trata-se de uma educação como uma parte da população em lugares subal-
impulso da autonomia. Parece-me que po- ternos de trabalho sem nenhuma exigência
demos, portanto, falar indistintamente de de compreensão dos mecanismos e dos de-
educação ou formação. safios. E, precisamente por isso, a necessi-
dade da formação contínua não advém em
P.M. primeiro lugar, para mim, de uma necessida-
Convém no entanto relembrarmos que a de- de económica, mas de um projecto demo-
mocracia, como muito bem explica Claude crático… Se examinarmos os prognósticos
A educação permanente: uma opção política 253
contraditórios dos economistas, não é de ex- acha normal que não lhes seja ensinado a
cluir que a economia dos países ocidentais filosofia. Ou melhor, acham normal que um
possa desenvolver-se sem grande problema, terço de bacharelatos franceses, já que vão
mantendo 15 a 20% da população a um ter uma profissão manual, não tenham o di-
baixo nível de qualificação e em tarefas de reito a reflectir sobre o amor, a morte, o de-
pura execução. Nas nossas economias oci- sejo, a justiça, a verdade e todas as questões
dentais, ao contrário do que alguns afirmam, existenciais e políticas da vida. Existe assim
ainda há um grande número de tarefas que gente que considera que os que virão a ser
podem ser executadas sem uma verdadeira ferreiros ou garagistas não têm necessida-
cultura, sem qualificação nem formação… de de estudar filosofia! É por isso que estou
ou para as quais a formação seria mais cara convencido de que o desenvolvimento da
do que o rendimento. Nestas condições, formação contínua, na aceitação mais exi-
afirmar que todos os tipos de trabalhos ne- gente do termo, não é realmente inevitável:
cessitam de uma actualização contínua do uma verdadeira formação contínua para to-
conhecimento adquirido, é evidentemente dos é uma escolha política, uma escolha de
fazer a escolha de uma sociedade na qual sociedade… Não temos de cruzar os braços
cada um, no seu trabalho, beneficia da evo- e esperar que isso aconteça. É um combate
lução colectiva e adquire os meios para per- a travar.
ceber e controlar o mundo. É uma aposta,
uma vontade política, e não é de espantar J.M.P.
que encontre resistência. A meu ver, a educação contínua é um di-
reito.
Na realidade, se as nossas sociedades tives-
sem uma real necessidade de um aumento P.M.
geral do nível cultural, intelectual e concei- Bem, efectivamente, é uma formulação na
tual dos cidadãos, se as nossas economias qual me reconheço plenamente. Falar de
não pudessem sobreviver sem este aumen- direito, é deixar o paradigma da oferta, é
to, não teríamos a televisão que temos no considerar que não chega oferecer formação
ocidente de hoje. Além disso, os nossos sis- para que funcione. Pode-se mesmo afirmar
temas escolares deixariam de funcionar ao que a multiplicidade das ofertas não é me-
enviar os alunos com maiores dificuldades canicamente democratizante. É o que de-
para o ensino profissional, não reduziríamos monstra Bourdieu, nos anos 60, a propósito
sistematicamente os estudos que levam a de desenvolvimento das ofertas culturais.
profissões ditas «manuais», etc. Não estou Enfatiza que a multiplicação das propostas
seguro de que as nossas sociedades não não leva mais gente a comprar mais luga-
tenham a necessidade de, na actual confi- res de teatro ou a ir mais vezes ao museu.
guração liberal, manter a distinção entre os Na realidade, são as mesmas pessoas que
que trabalham sem compreender e os que compram mais lugares. Quando as ofertas
compreendem sem «trabalhar»… entenda- de bens culturais aumentam, as desigualda-
-se, sem «trabalhar» na produção, nem sujar des também. A comparação pode ser feita
as mãos em tarefas de execução, incluindo com a formação. Hoje em todos os países,
na sua vida particular. Portanto, nada nos o consumo de formação contínua é propor-
garante que as nossas economias irão exigir cional ao nível de formação inicial. Quanto
a formação de alto nível, da totalidade da mais se beneficiou da formação inicial, mais
população. Em França, por exemplo, criá- se consegue aceder à formação contínua. E,
mos um bacharelato profissional que envol- inversamente, quanto menos as pessoas têm
ve um terço dos jovens do país. E toda gente formação inicial, menos beneficiam da for-
254 Educação: o presente é o futuro
res, faço perguntas do género: quanto custa tem tantos meios refinados ao serviço de fi-
ao liceu e ao Estado os chumbos dos alunos nalidades tão confusas. Temos muitos como
nos vossos estabelecimentos? E se decidísse- mas não sabemos muito bem para quê.
mos utilizar este dinheiro de forma diferente
ao dos chumbos dos alunos? É importante, P.M.
na sociedade actual, que a formação ajude Para além disso, a confusão é tal que se con-
as pessoas a perceberem que têm outras es- fundem as modalidades com as finalidades.
colhas possíveis na utilização do dinheiro A partir de certo momento, como já não exis-
público assim como na organização social tem finalidades claras, já só nos agarramos
que lhes é proposta, e que as decisões não às modalidades. Na escola, por exemplo, a
se impõem contrariamente ao que se passa organização sob a forma de aula não é uma
nas teocracias ou nas tecnocracias... finalidade da escola, é uma modalidade que
foi eficaz e útil, que fez progredir conside-
Não é por acaso que hoje o Harry Potter está ravelmente, a certa altura da sua história, o
no auge das manchetes, é porque estamos sistema educativo. Mas isto é apenas uma
obcecados pela magia. Estamos num mundo modalidade. Ora, a partir de dada altura, as
que gostaria de resolver todos os problemas pessoas imaginam que isto é a finalidade: já
por meio de soluções técnicas elaboradas, não reflectem sobre as finalidades de escola
certamente, graças à inteligência de alguns, - aprender e aprender juntos - contentam-se
mas que entravam, na realidade, o exercício em perguntar como fazer funcionar as aulas
da inteligência dos outros. A técnica toda com os seus constrangimentos e os seus ho-
poderosa torna-se assim o instrumento da rários… Esquecem-se as finalidades porque
nossa regressão infantil individual e colecti- as modalidades são totémicas. Para mim, a
va, da tentativa de ditar tudo pelo poder da formação contínua tem a obrigação de in-
nossa palavra ou do nosso olhar. Sonhamos terrogar as modalidades em nome das fina-
com um mundo onde o debate colectivo te- lidades. Pode assim abrir-nos perspectivas,
ria desaparecido, onde as contradições te- libertar-nos da influência da organização e
riam sido apagadas, onde as tensões seriam da pura gestão, permitir-nos desbloquear o
suspensas, um mundo onde seriamos, cada futuro, em vez de ficarmos fechados na re-
um, na postura de Deus. Mas este mundo produção crispada do passado.
seria uma terrível regressão bárbara: os deu-
ses matam-se uns aos outros. Os cidadãos, J.M.P.
eles, sabem que não são deuses, e é por isso Isto para mim quer dizer que não se deve
que podem e devem debater. É por isso que apenas ensinar o conhecimento mas sobre-
devem desnaturalizar e tirar o carácter técni- tudo o gosto pelo conhecimento, o gosto do
co dos problemas: para mostrar os desafios saber e da verdade, o gosto da exigência...
e fazer as escolhas. A formação contínua
é essencial para reintroduzir o homem no P.M.
mundo da modernidade, para reintroduzir a É verdade, a todos os níveis. As crianças têm
liberdade, a responsabilidade, a temporali- o direito à perfeição nas coisas mais simples.
dade. Porque o nível de exigência deve ser máxi-
mo qualquer que seja o nível da taxonomia.
J.M.P. A criança tem o direito que lhe seja exigi-
O problema da nossa civilização é que é da a perfeição em cada uma das suas obras,
uma civilização de meios que não conhe- tem o direito a ser ajudado para atingir esta
ce as suas finalidades. A nossa civilização é perfeição. Não é porque se faz alguma coisa
a primeira na história da humanidade, que aparentemente banal que isto vai ser medío-
A educação permanente: uma opção política 257
cre, até pode ser perfeito, de uma pureza ab- Ivan Illich e, por outro, nas dinâmicas locais
soluta. A caligrafia chinesa que consegue ter - o movimento nasceu em Orly, perto de Pa-
uma letra de uma simplicidade total alcança ris. Permite às cidades tecer redes de forma-
a perfeição, como o marceneiro ou o enge- ção entre as pessoas. Isto não é difícil de rea-
nheiro, como o camponês ou o cirurgião… lizar, especialmente porque dispomos agora
Todos os gestos humanos podem aceder à de logiciais tais como As árvores do conhe-
perfeição, todos devem ser realizados com cimento, logicial que foi criado pelo filósofo
este fim. Na nossa sociedade, confundiu-se, francês Michel Serres e seus colaboradores.
infelizmente, a perfeição e o nível social da Trata-se de uma ferramenta informática que
tarefa, a exigência com o elitismo. permite identificar os conhecimentos e as
competências e de as trocar entre diversas
A formação contínua tem, neste ponto, um pessoas, sem passar obrigatoriamente por
papel essencial: fazer apreender, do interior, estruturas institucionais, nem incorrer em
a exigência que existe em qualquer activi- custos proibitivos. As cidades poderiam
dade – da cozinha à criação artística, do ser, mais ainda, instâncias que estimulam
fabrico artesanal à acção política…- a fim as trocas de saberes, de conhecimentos, de
de permitir a cada um de se elevar e de se competências e que as estimulam de manei-
comprometer num trabalho que o leva a pôr ra a que as pessoas de culturas diferentes,
em jogo conhecimentos cada vez mais ela- de sensibilidades diferentes, com profissões
borados, de se desafiar e de se ultrapassar, diferentes, de idades também diferentes,
de se desenvolver pessoalmente e de levar possam conhecer-se e enriquecer-se reci-
cada vez mais ao colectivo. Se não instaura- procamente de uma forma séria, profunda,
mos, desde a infância e ao longo da forma- para criarem novas solidariedades através da
ção, esta diligência, estaremos sempre numa formação. Temos de ser capazes de pôr em
relação de saberes do tipo utilitário e «eco- contacto pessoas com competências e dis-
nómico», no sentido estrito do Adam Smith: poníveis para aqueles que teriam necessida-
o menor esforço possível para mais efeitos des delas. Temos de ser capazes de suscitar
úteis. O verdadeiro humano só se oferece encontros, mesmo improváveis, em matéria
nesta relação particular com a acção que faz de inter-formação. É sem dúvida uma das
que, para além da eficácia material e téc- missões mais importantes das cidades edu-
nica, algo se desenvolve noutro cenário, no cadoras: contribuir para desenvolver a for-
simbólico... mação através da troca entre os cidadãos.
P.F. J.M.P.
Quando a consciência educadora das cida- Gostaria de introduzir outras noções, as
des é mais visível, quais são as mudanças do espírito cooperativo e da solidariedade,
que se podem esperar da vida colectiva? noções que têm um valor altamente sig-
nificativo do ponto de vista democrático.
P.M. Elas conduzem à exclusão do paternalismo
A política das cidades, em matéria de forma- e consistem na procura da igualdade na
ção, consistiu frequentemente a abrir espaço aprendizagem e na troca… Neste espíri-
de encontros, de mobilização e de trocas. to, os trabalhadores que são convidados a
Eu sou muito sensível a um movimento de- seguir uma formação não deveriam nunca
senvolvido em França, um pouco à margem, conhecer o risco de perda de emprego. A
que se chama as redes de trocas recíprocas formação deveria garantir-lhes encontrar ou-
de conhecimentos. É um movimento que se tro lugar em função das novas competências
inspira por um lado em Paolo Freire ou em adquiridas.
258 Educação: o presente é o futuro
J.M.P. J.M.P.
É precisamente um programa de formação Existe algum lugar para uma educação hu-
contínua que permite aos homens e às manista e progressista? Sabemos que a fi-
mulheres políticos explicar o seu trabalho losofia grega associa o humanismo ao eli-
diário. Em certos casos, isto faz-se, mas tismo: os homens verdadeiramente cultos
ainda é insuficiente, É necessário, para não podem ser muitos… Muita gente pensa
que as pessoas compreendam os processos ainda que porque se fala bem, porque se é
colectivos, para que estejam motivadas a culto, é-se elitista. Quando se diz, por exem-
participar, fazer muito mais… Mas, para plo, que os nossos alunos devem falar bem,
isto, os políticos também devem ter uma alguns dizem que fazemos um programa
maior aproximação aos cidadãos a fim de humanista elitista. Pela minha parte, penso
explicarem as escolhas que irão fazer. que uma das grandes finalidades da vida é
conhecer, reconhecer e desfrutar a beleza,
P.M. à qual, infelizmente, muita gente não teve
Temos de apostar na inteligência dos indiví- acesso. Penso que este aspecto deveria ser
duos. Há alguns anos trabalhei em progra- incorporado na formação ao longo da vida,
mas de televisão sobre o uso dos impostos. que deveríamos todos conhecer melhor as
Tinha comparado o que custava a construção diferentes formas de expressão artística e
de um estabelecimento escolar a, por exem- utilizá-las na nossa vida.
plo, um kilómetro da auto-estrada. Da mes-
ma forma, tinha explicado quanto custava P.M.
um educador e quanto custava um preso: um Não estou absolutamente de acordo com
preso custa uma vez e meio o salário do edu- a ideia sobre a qual a exigência da cultura
cador! Teríamos de conseguir tratar de assun- seria intrinsecamente elitista. É uma antiga
260 Educação: o presente é o futuro
crença que postula que, se a cultura é difun- Digo muitas vezes que a cultura é o que
dida, democratizada, ela dissolve-se e torna- liga o íntimo ao universal, ou ao universa-
-se medíocre. Como se o pequeno número lizável se queremos ser mais modestos…
de eleitos garantisse a beatitude no paraíso! A mitologia greco-latina fala de assuntos
Como se, partilhando-se, os saberes perdes- que são para mim extremamente pessoais
sem as suas qualidades! Ora, o conheci- e íntimos – a minha relação com a vida e
mento tem esta característica extraordinária: com a morte, a minha relação com os ou-
quanto mais se partilha, melhor se possui e o tros, com o medo de ser devorado por eles
que se dá, ainda se controla melhor. Quanto e com o desejo de eu próprio os devorar - e
mais os saberes forem partilhados, mais eles Hesíodo ou Ovídio conseguem dar forma
serão exigentes... a isto, uma beleza linguística e simbólica
que nos pode interpelar a todos. Todas as
E, em particular, a exigência ligada à língua, culturas - ocidental e africana, oriental e
à exactidão, à precisão e à beleza da expres- ameríndia… assim como a cultura científi-
são, é uma exigência constitutiva e construti- ca e a cultura literária académica - podem
va do humano. O meu trabalho pedagógico ajudar-nos a construir-nos e a descobrir a
sempre se centrou na exigência: perguntei humanidade que nos torna profundamente
sempre a mim mesmo: como ser exigente e solidários.
assegurar que o outro se aproprie, ele mes-
mo, desta exigência para progredir… Sou J.M.P.
muito sensível à forma como o humanismo Somos animais simbólicos. É através do sím-
nos ofereceu este ideal de perfectibilidade bolo que se constrói a pessoa.
que nos permite superarmo-nos. Se batalho
nas escolas, é em nome deste ideal de per- P.F.
fectibilidade das nossas obras e de nós pró- É também nesta perspectiva que temos de
prios. Contribuímos para a perfectibilidade analisar o que pode ser o futuro papel da
de nós próprios e da humanidade através do Associação de Cidades Educadores. Desejo
trabalho que fazemos. que possamos continuar a caminhar juntos.
3
Cidades Educadoras:
20 anos
Cidades Educadoras
Congressos Internacionais
A cidade educa-se educando. Grande parte sofrimento de milhões de pessoas que mor-
da sua tarefa como educadora depende da rem à fome, que são rejeitadas, a quem se
nossa posição política e, como é óbvio, de impede que aprendam e saibam ler as pala-
como exercemos o poder sobre ela e do so- vras e que apenas sabem ler o seu mundo, a
nho e da utopia que a impregnam, a que é razões de ordem climática ou de incompe-
que servimos e a quem servimos: as despesas tência genética?
públicas, a educação e a cultura, a saúde, o
transporte e o ócio. Depende, inclusivamen- Outro sonho fundamental que devemos
te, das medidas políticas relacionadas com a acrescentar ao ensino da cidade educadora
parte da memória da cidade que decidimos é o direito de ser diferente - um direito que
valorizar, pois é através dessa memória que deve existir em qualquer verdadeira demo-
a cidade desempenha o papel de educado- cracia - e a sua extensão: que essa diferença
ra. Aqui também podem interferir as nossas seja respeitada». (Farrington, Freire, Revans,
decisões políticas. […] Sapp, Four of the main speakers at the 2nd
International Congress of Educating Cities,
Já que não há uma educação possível se não Gotemburgo, Suécia, Novembro de 1992,
existir uma política educativa que estabele- págs. 18-19).
ça as prioridades, os objectivos, os conteú-
dos e os meios, uma política imbuída dos Para muitos dos participantes ficava claro
nossos sonhos e utopias, não creio que faça que o conceito de «cidade educadora» se
mal a ninguém sonhar um pouco. Sejamos transformava num instrumento ao serviço
um pouco atrevidos e arrisquemo-nos a pen- de uma melhor compreensão do fenómeno
sar nos valores concretos que poderíamos urbano, sem qualquer exclusão, e dos seus
acrescentar aos nossos desejos, os desejos mecanismos de gestão e reprodução.
das cidades educadoras, neste fim de século
em que estamos viver, que é também o fim Neste sentido, foi fundamental a interven-
do milénio. ção da Vereadora da Educação da Câmara
Municipal de Barcelona, Marta Mata (1987-
Um dos sonhos pelo qual vale a pena lu- -1995), que descreveremos de seguida.
tar - e para torná-lo realidade, neste caso,
é preciso coerência, valor, tenacidade, sen- «Os amigos organizadores do II Congresso
tido de justiça e força por parte de quem das Cidades Educadoras em Gotemburgo,
se entregar a ele - é o sonho de um mundo solicitaram à delegação de Barcelona uma
melhor, onde haja menos desigualdades contribuição relativa aos objectivos comuns
e onde a discriminação devido à raça, ao a todas elas, talvez para ajudar a esclarecer
sexo e às classes sociais deixe de ser um o carácter desta criatura que nasceu, que
motivo de orgulho e ou de constantes e va- fizemos nascer entre todos, há apenas dois
zias lamentações, para não ser senão moti- anos no I Congresso de Barcelona: «Cidade
vo de vergonha. Educadora», concepção esta que começa a
dar os primeiros passos com firmeza e rapi-
Este é um sonho essencial. Se não conse- dez.
guirmos realizá-lo, essa democracia de que
tanto falamos, especialmente no tempo em Para onde vai? O que pretende? Qual o seu
que vivemos, não será mais do que uma objectivo? Os amigos de Gotemburgo fize-
farsa. ram a pergunta no plural: quais são os ob-
jectivos comuns e não o «objectivo», bem
Que tipo de democracia é essa que atribui o como as «Cidades Educadoras» concretas e
268 Cidades educadoras: 20 anos
no plural e não a ideia abstracta de «Cidade Cerdanyola del Vallès, a pequena, activa e
Educadora»; os objectivos comuns a todas agitada cidade vizinha de Barcelona, é um
as Cidades Educadoras, as que se reuniram exercício que permite ver a cidade no seu
pela primeira vez em Barcelona e as que se todo, com os seus elementos característicos
reúnem em Gotemburgo, as que assumiram e que transmite carácter aos seus cidadãos.
o firme e público compromisso de ser uma
Cidade Educadora, as que dentro de dois São muitos os elementos de diversidade en-
anos encontraremos no III Congresso, as que tre as cidades: a sua história mais ou me-
ano após ano se irão definindo como Cida- nos remota ou recente, os monumentos e
des Educadoras. documentos vivos dessa história, o ritmo de
evolução, as mudanças, por vezes surpreen-
É importante perguntarmo-nos desde o pri- dentes, sem ritmo ou com ritmo sincopado,
meiro momento quais os objectivos comuns o urbanismo, as celebrações, os serviços, a
das Cidades Educadoras, porque são precisa- situação geográfica neste ou naquele conti-
mente os objectivos, o único aspecto que as nente, na costa, na planície, no alto de uma
Cidades Educadoras devem ter em comum. montanha, o clima. E como ficamos a co-
As cidades reunidas com o desejo de parti- nhecer e a apreciar melhor os cidadãos de
lharem experiências no longo caminho da Gotemburgo se conhecermos as especifici-
educação são talvez muito diferentes, pre- dades do seu clima, os seus dias e as suas
cisamente porque têm o amplo e complexo noites!
objectivo comum de serem «educadoras».
As diferenças entre as línguas são as mais
Porque da mesma maneira que o carácter importantes, já que estas codificam todas
próprio, a personalidade própria de cada as outras diferenças para marcar o carácter
professor e dos diferentes professores pos- das pessoas, como nos dizia Paulo Freire.
tos ao serviço da educação dos alunos é um Existem grandes diferenças de cidade para
factor de grande força, imprescindível na cidade, inclusivamente, na educação, como
educação – que é sempre uma relação entre por exemplo: a sede do I Congresso, em
pessoas – também assim o é o carácter pró- Barcelona, que não tem competências no
prio de cada cidade, que quanto mais carac- próprio sistema escolar e que construiu pou-
terístico, mais notável, e tem influência na cas escolas e Gotemburgo, que é totalmente
formação e no carácter dos seus cidadãos, responsável pelo seu sistema escolar e que
adultos, jovens e crianças. tem vindo, desde há um século, a construir
e a geri-lo.
São diferenças que se notam, inclusivamen-
te, entre pessoas do mesmo país e nível Muitas diferenças possíveis, muitas línguas,
social. Por exemplo, os cidadãos de Go- muitas cidades diferentes, mas que conver-
temburgo consideram-se diferentes dos de girão com um só amor, como dizia o poeta
Estocolmo. Estas diferenças que podemos catalão Salvador Espriu. Um só amor. Ou
comprovar em geral, lendo, simplesmente, dois amores? A cidade, sim, mas também a
a lista de comunicações das cidades ordena- educação, a formação das pessoas, a huma-
das alfabeticamente que se apresentam no nidade, ou será o mesmo? A humanidade, a
Congresso de Gotemburgo. comunidade humana, a cidade, como for-
madora de humanidades.
Pensar sobre o que significa nascer, viver,
educar-se, trabalhar em Adelaida, Barce- As Cidades Educadoras partem desta dupla
lona, Berlim, Bolonha, Budapeste ou em realidade, convergindo numa só concepção.
Cidades Educadoras Congressos Internacionais 269
Que concepção? Tentemos responder à per- 7. Uma cidade é uma oferta de diálogo
gunta em primeiro lugar com as 10 premis- organizado entre pessoas com os mesmos
sas que definem esta criação do homem e interesses ou em situações semelhantes e
para o homem, esta formação social a que que se unem para cultivar esses interesses,
damos o nome de «cidade». falar de si e ter uma voz colectiva para
favorecer o diálogo com outras vozes da
1. A cidade agrupa as pessoas no espaço, é cidade, o diálogo civil.
uma oferta mais ou menos rica e nivelada
que vive perto de outras, tem a sua intimida- 8. Uma cidade é também uma oferta de
de preservada, tem serviços comuns e vizi- organização mais ou menos demográfica,
nhos para receber, ajudar e, sobretudo, com mais ou menos participativa. A partir do diá-
quem dialogar. logo entre colectivos e entre pessoas, define
os seus objectivos, escolhe os seus gover-
2. A cidade é uma oferta mais ou menos ge- nantes e constrói o seu futuro.
nerosa ou mesquinha na sua planificação de
espaços comuns, públicos, de ruas, praças e 9. Uma cidade está situada num território
parques, de comunicação, de comunicação que deve favorecer o equilíbrio ecológico e
física e de comunicação pessoal. a relação com os núcleos vizinhos de po-
pulação, com os seus fluxos diários de co-
3. Uma cidade é uma oferta ascendente ou municação e de contribuição em todos os
descendente de trabalho, uma oferta plural campos e sentidos, trazendo novos cidadãos
e variada, complementar do trabalho que para o seu território. As cidades são «centros
cada um quer e pode escolher segundo os de radiodifusão» dos países, dão forma, ca-
seus interesses e necessidades e que produ- rácter às nações.
zirá serviços e bens de utilidade mútua.
10. Por fim, uma cidade é uma voz concreta,
4. Uma cidade é uma oferta de recursos de elaborada com as vozes de todos os cida-
saúde, de atenção cuidadosa e esmerada re- dãos, tanto os que nasceram lá como os que
lativamente à doença e deve oferecer saúde, a ela recorreram, uma voz concreta no con-
com a recuperação do seu equilíbrio eco- certo colectivo mundial. A cidade não pode
lógico. viver sozinha, nem estar só, necessita deste
diálogo em harmonia com as outras cidades,
5. Uma cidade é uma oferta de cultura mais para conseguir ser ela própria, diferente das
rica e ou mais escassa, mais popular ou mais demais; oferecendo a sua própria tapeçaria,
elitista, mais plural ou mais unitária; uma tecido com fibras comuns, mas com dese-
oferta de música nos seus concertos, de ar- nho e desígnios próprios.
tes plásticas nos seus museus, de desporto e
também de hábitos de vida, de cultura pro- Uma parte desses desenhos, a que corres-
funda e, naturalmente de educação. Dedica- ponde à educação, é o que podemos obser-
remos uma lista especial à educação. var entre as cidades que querem ser educa-
doras.
6. Uma cidade é uma oferta mais ou me-
nos rica, mais ou menos pessoal e delicada Não obstante, para se ser «cidade educa-
de serviços sociais de compensação do que dora» não basta ser cidade e ter como base
possa faltar a uma pessoa ou a determinadas as dez ofertas que acabámos de enumerar
pessoas, uma oferta de solidariedade e de que quanto mais positivas, melhor. Para ser
segurança. cidade educadora, é necessário cumprir
270 Cidades educadoras: 20 anos
No primeiro dia, Jarl Bengtson, da OCDE, Na verdade, não podemos ler livremente,
descrevia o seu estudo intitulado Lifelong criticamente, criativamente, se não conhe-
Learning em diversas cidades, explicando o cermos a arte, o quanto custa e o que custa
seu funcionamento nos adultos, o triângulo escrever cada uma as diferentes linguagens.
escola-trabalho-ambiente cidadão e a forma
como esse ambiente cria o apetite, ou seja, 7. De uma maneira especial, uma cidade
a vontade de participar na própria formação educadora deve ser respeitadora, deve res-
para fechar o triângulo. peitar, acima de tudo, os portadores de no-
vas linguagens, de novas formas de humani-
5. Estimular a reunião humana, o associati- dade, como são as pessoas que vão para a
vismo de que já falámos, promovendo-o nos cidade e por lá ficam. É necessário favorecer
sectores e nas áreas onde seja mais escasso, a sua linguagem, romper com os seus medos
embora seja sempre necessário, para que to- e silêncio para que, com a sua rica contribui-
das as formas de vida, todos os temas vitais ção, construam a cidade, obriguem a cidade
e todos os cidadãos façam parte do «concer- a permanecer viva, a integrar, a completar-
to» da cidade, participem nele. -se, a ser única e cada vez mais aberta.
São esses os aspectos que a cidade educa- 8. Uma cidade educadora deve ter, não só
dora deve promover, facilitar, estimular entre a sua própria identidade histórica, plastica-
os cidadãos adultos, capazes de participar mente guardada nos seus museus, nas suas
em plano de igualdade e deve, igualmen- bibliotecas e no seu urbanismo, mas tam-
te, ajudar a formar as crianças, forçando, bém, estar aberta à sua própria mudança, à
no sentido literal da palavra, dando força, sua própria criação e recriação como cida-
alimentando a capacidade de participação de, enlaçando as linguagens antigas com as
humana. novas, recreando-se com a participação dos
seus cidadãos no conhecimento do antigo,
6. Para que as correntes de participação, de do que já foi feito, do desconhecido de que
diálogo se estabeleçam e sejam constantes, a nos falava Paulo Freire.
cidade educadora deve procurar a formação
dos seus cidadãos em cada linguagem que Uma cidade educadora é consciente da sua
atravesse o seu universo, o seu espaço social. localização geográfica, da sua história, que
faz parte do seu presente, mas que caminha
Historicamente, a escola nasceu para ensi- em direcção ao futuro, construindo-o, cons-
272 Cidades educadoras: 20 anos
Os dois objectivos desta associação são vossa cidade e que essa tocha se transforme
extraordinariamente importantes: todas as em decisões tomadas com toda a responsa-
cidades de todos os países do mundo com bilidade.
objectivos comuns à Cidade Educadora,
queremos associar-nos, juntar-nos porque «Pelas cidades unidas por estes objectivos,
temos a convicção de que estamos a fazer esperamos». (Formación Permanente en
história, história do mundo, da humanida- Ciudades Educadoras, II Congresso de Cida-
de com a nossa doutrina e o nosso traba- des Educadoras, Gotemburgo, Suécia, No-
lho. Queremos também assegurar que a to- vembro de 1992, pág. 93-97).
cha portadora desse fogo, dessa luz alcance
sucessivamente todos os cantos do mundo, *
toda a geografia física, todas as vertentes e
todos os problemas da humanidade, toda a A proposta da criação da Associação Inter-
geografia humana. nacional das Cidades Educadoras, apresen-
tada pelo Comité Permanente Intercongres-
Em Barcelona, ou melhor, numa Barcelona sos, foi recebida com entusiasmo por parte
que se preparava para viver a festa mundial dos representantes oficiais das cidades reu-
e histórica dos Jogos Olímpicos em paz e nidas em Gotemburgo.
liberdade, nasceu a ideia de definirmos «ci-
dade educadora», que começou a gatinhar Entre 1992 e 1994, o Comité Permanen-
em Gotemburgo, neste clima laborioso de te passou a chamar-se Comité Executivo e
cidade profundamente afectada pelo traba- registaram-se algumas modificações na sua
lho interminável de lifelong learning a favor composição, acabando por ficar compos-
da formação do homem em sintonia com o to por Barcelona, Birmingham, Bolonha,
seu trabalho, o seu lazer, a sua personalida- Chicago, Genebra, Gotemburgo, Lilongwe,
de. Rennes e Turim.
Seguem-se as dez teses: Além do mais, exige dos pais a tarefa de sen-
sibilizar os filhos para que possam aceitar as
1ª Tese: a cidade multicultural é convidada a suas próprias diferenças, como primeiro al-
combater as patologias sociais (isolamento, fabeto inevitável, para mais tarde saberem
separação, solidão), as patologias culturais escrever as diferenças dos outros.
(a dupla homologação tanto nos códigos dos
meios de comunicação de massas - como o 6ª Tese: A cidade multicultural exige das au-
caso da monopolização do éter - como nos toridades locais dos municípios, províncias,
mecanismos antropológicos) e as patologias regiões, uma tripla função político-institu-
existenciais (hierarquização e a conflitua- cional:
lidade entre as gerações e as diferenças de
género, de classe e de etnia), as patologias a) a de governar a cidade através da função
geradas pela cidade monocultural, pela «ci- de coordenação de macro-projectos de fi-
276 Cidades educadoras: 20 anos
mesmo assim e que disse o que Shakespeare ternacional das Cidades Educadoras, Chica-
disse que ele disse. go, EUA, Setembro de 1996, pág. 7).
É aí que entra a arte, porque a arte é Em Chicago, o Congresso das Cidades Edu-
representação. A primeira pessoa que cadoras, uma estrutura já consolidada, alar-
tocou trombeta fê-lo, provavelmente, com gou mais uma vez o seu espectro, acrescen-
uma presa de elefante. Observou-a e viu tando exposições de arte, apresentações de
que tinha uma extremidade pontiaguda. experiências e conferências. Assim, os perí-
Ou talvez tivesse ouvido o som que o ar odos entre os congressos tinham um registo
produzia ao sair e fez... [Marsalis toca uma muito amplo no qual as cidades dispunham
na sua própria trombeta]. Então alguém de exemplos suficientes para planear projec-
o ouviu e apanhou essa presa de elefante tos específicos que mais tarde poderiam ser
e disse: «Quero tocar com esta presa da compartilhados internacionalmente através
mesma maneira que o velho Ulu tocava, do Banco de Documentos e, de forma pre-
por isso vou tocar assim...» [Marsalis toca a sencial, nos congressos organizados a cada
trombeta]. A realidade é que esse som não dois anos.
soava da mesma maneira que o de Ulu, mas
isso não é mais do que um exemplo do acto *
poético em contraste com o simples acto,
puro e duro. O século XX terminou para a Associação
Internacional de Cidades Educadoras, na
Louis Armstrong ouve Buddy Bolden tocar. cidade de Jerusalém, sede do V Congresso,
Pois bem, não temos aqui uma gravação, que teve lugar no mês de Março de 1999. O
mas sabemos que gostava de tocar em Si be- tema foi: «Transportar o legado e a história
mol, de modo que, provavelmente tocasse para o futuro».
qualquer coisa que se parecesse com isto.
[Marsalis toca a trombeta]. Armstrong diria: Tal como em Chicago, a eleição dos luga-
«Bem, vou tentar tocar como o Buddy Bol- res específicos nos quais se apresentariam
den». Temos de perceber que o acto poético as diversas conferências teve particular im-
perdura porque pega num fenómeno e en- portância: museus, centros culturais e audi-
grandece-o, converte-o num acto majestoso, tórios, estes responderam com entusiasmo
espiritual, como o simples acto de fazer um ao convite para abrirem as suas portas às
bolo para alguém. cidades participantes. Em 1999 foi especial-
mente relevante o facto de o Congresso se
Temos de distinguir sempre o acto poético da reunir na cidade de Jerusalém, para trocar
mentira, pois podem confundir-se. A menti- experiências e propostas para o futuro sobre
ra requer muita energia para ressoar. Não é o legado patrimonial e a história.
harmoniosa com o ambiente, enquanto o
acto poético o é e está em harmonia com Entre os novos assuntos encontravam-se: a
as verdades da natureza humana e, por isso, importância dos legados materiais e imate-
ressoa. E como ressoa! Tem um eco que dura riais e a presença urbana das religiões.
para sempre. E essa é a importância da arte,
ou seja, a importância da representação, Um dos aspectos importantes, no âmbito
que constitui o coração da arte. A lembran- no Congresso, que redireccionou a trajec-
ça do acto poético é o que faz de nós o que tória da AICE foi o decálogo aprovado pela
somos». (Las Artes y las Humanidades como Assembleia Geral da AICE, no qual se afir-
agentes de cambio social, IV Congresso In- mava:
278 Cidades educadoras: 20 anos
∙ A Associação confia na vigência da sua doras como uma fonte de actualização, sem
mensagem e na utilidade do conceito de nunca esquecer que cada cidade tem uma
«cidade educadora» como um serviço para responsabilidade primordial no desenvolvi-
os cidadãos e cidadãs. mento dos habitantes no âmbito da convi-
vência e progresso pessoal e colectivo.
∙ A Associação fará todos os esforços neces-
sários para se estabelecer no seio de todas as *
culturas universais.
O VI Congresso das Cidades Educadoras
∙ A Associação defende um conceito global celebrou-se em Novembro do ano 2000,
de educação que impregne o conjunto da na cidade de Lisboa. Circunstâncias diver-
vida da cidade e que afecte a todos os cida- sas provocaram um atraso na realização do
dãos e cidadãs. Congresso de Jerusalém e, por esse motivo,
o Congresso de Lisboa celebrou-se poucos
∙ É preciso que sejam os presidentes das câ- meses depois do de Jerusalém.
maras a liderarem as acções educativas, na
medida em que são eles que têm uma visão O encontro de Lisboa debruçou-se sobre a
global. temática «A cidade, espaço educativo no
novo milénio», abordando grande parte dos
∙ As cidades educadoras não podem nem temas que os anteriores congressos já tinham
devem renunciar a nenhuma das oportu- destacado como fundamentais. O programa
nidades para melhorar o diálogo educador ficou dividido em cinco grandes pontos:
e melhorar as condições de convivência e
qualidade de vida. 1. A apropriação do espaço da cidade pe-
las pessoas: planificação e práticas.
∙ O cumprimento dos princípios da Carta
das Cidades Educadoras merece uma apli- 2. Memória e identidade da cidade.
cação de políticas globais através das quais
as acções surjam das melhores estratégias. 3. Desenvolvimento local, solidariedade
e interdependências.
∙ A troca de avaliação de experiências cons-
tituem um valioso activo do movimento das 4. A diversidade como recurso educativo
cidades educadoras. para a cidade e para a escola: novos mo-
delos de participação e cidadania.
∙ Os princípios da Carta e os Estatutos da
Associação serão analisados e revistos, se 5. Educação, formação, emprego e lazer:
necessário, à luz das mudanças sociais do o papel estratégico da cidade.
novo milénio.
Neste Congresso, a intervenção de Raul
∙ As reflexões das cidades hão-de ser a prin- Pont, presidente da câmara de Porto Alegre
cipal fonte de actualização dos princípios entre 1997 e 2001, salientou a importância
que fundamentam o movimento das Cida- da participação da cidadania em questões
des Educadoras. públicas na Cidade Educadora:
∙ Os valores educativos que nascem das di- «Como diminuir ao máximo a delegação do
ferentes formas de cooperação entre cidades poder? Para nós esta é a questão principal,
hão-de ser escolhidos pelas Cidades Educa- central que deve preocupar os educadores,
Cidades Educadoras Congressos Internacionais 279
possam fazer valer as suas reivindicações Mecanismos como estes criam fortes orga-
específicas relativas ao planeamento do nizações de base social, independentes dos
bairro, da região onde vivem e também da partidos, que exercem uma pressão muito
cidade. Este é o processo que a prática já forte sobre os governos, uma capacidade de
provou ser viável, possível e perfeitamente decisão e de pressão permanente sobre os
exequível num contexto democrático. governos que acabam redireccionando os
recursos e reorientando o orçamento públi-
A terceira característica, o terceiro elemen- co em benefício da população». (La ciudad,
to que marca a nossa experiência é, exac- espacio educativo en el nuevo milénio, VI
tamente, o respeito pela capacidade que as Congresso Internacional das Cidades Educa-
pessoas têm de se «auto-organizarem». Estes doras, Lisboa, Portugal, Novembro de 2000,
mecanismos, no nosso ponto de vista, de- págs. 34-36).
vem fortalecer «a auto-organização».
*
Respeitar a auto-organização, estimular a
auto-organização das comunidades para A cidade finlandesa, Tampere, organizou o
que possam ter poder de decisão, a pos- VII Congresso no ano de 2002. O seu tema
sibilidade de acção. Os nossos programas de estudo intitulou-se «O futuro da educa-
de alfabetização para adultos, para pessoas ção: o papel da cidade num mundo globa-
que não tiveram a oportunidade de ir à es- lizado».
cola, ou os nossos programas de acompa-
nhamento que garantem a todos o direito Ao longo da história da Associação Interna-
ao ensino básico, independentemente da cional das Cidades Educadoras, mudanças
idade, têm em conta, essencialmente, a rei- muito significativas transformavam a vida
vindicação e a decisão dos próprios interes- das pessoas e, por conseguinte, a vida das
sados e não apenas o pensamento, a ideia, cidades onde habitavam. Neste período,
o conhecimento do chefe do governo. A 1990-2002, dois termos surgiram no mundo
partir do momento em que permitimos às inteiro: Globalização e Internet.
pessoas expressarem-se e lhes delegamos o
poder de decisão, as nossas escolas passa- Não parece por acaso que tenha sido uma
ram a incorporar cada vez mais, nas horas cidade finlandesa, um país destacado no uso
livres do dia, depois das aulas normais, os da tecnologia de ponta tanto na produção
cursos de educação para jovens e adultos, de bens de consumo como nos métodos de
precisamente porque estas pessoas verifica- aprendizagem, a assumir a organização des-
ram, no debate ou na discussão realizada te Congresso. Também não é estranho que
na sua região, a oportunidade de reivindi- um autocarro com computadores e ligação
car e exigir do poder público este tipo de permanente à Internet estivesse disponível à
serviço ao qual nunca tinham tido acesso entrada do edifício, onde se celebrou o Con-
anteriormente. gresso, para o uso privado e profissional dos
assistentes. Este autocarro conhecido como
Esta forma de auto-organização significa Netti-Nysse, que circula por toda a cidade,
atribuir poderes às pessoas, poderes de fac- faz parte de um projecto mais amplo deno-
to, que lhes permitam discutir o orçamen- minado eTampere, desenvolvido conjun-
to, decidir políticas públicas, estabelecer tamente pela Câmara Municipal, diversas
conselhos municipais sectoriais por temas empresas e as universidades da cidade com
como a educação, a saúde, o trânsito, os o objectivo de promover o conhecimento,
direitos das crianças e dos adolescentes. os negócios, os serviços digitais públicos e
Cidades Educadoras Congressos Internacionais 281
a aquisição, por parte da cidadania, de ca- a ideia de uma rede informática que supor-
pacidades necessárias na sociedade do co- tava o mercado mundial único.
nhecimento.
Esta abordagem não foi desde logo exclusi-
Neste Congresso, apresentou-se o projecto va do Congresso. Respirava-se, já há muitos
«A Cidade Educadora Virtual» (www.edci- anos, uma nova concepção do mundo que
ties.org), um novo portal desenhado com estava a obrigar todos os sectores a reconsi-
o objectivo de favorecer o intercâmbio e a derar as suas abordagens e formas de desen-
aprendizagem entre cidades. Este portal, em volvimento. Contudo, é muito significativo
funcionamento na actualidade, é composto o facto de o Congresso abordar, simultane-
por uma página principal onde o Secretaria- amente, e com a mesma intensidade, os as-
do publica periodicamente notícias de inte- pectos filosóficos que convinha redefinir em
resse geral, mas onde também cada cidade função destas mudanças: os valores éticos e
associada, por rede temática ou territorial, étnicos do ensino, a igualdade, a desigual-
pode dispor de uma página na Internet onde dade e a marginalização.
dá a conhecer as suas actividades. Assim, o
portal oferece informação sobre a vida ge- Ao combinar a transformação que se estava
ral da Associação, mas também sobre o que a produzir a nível mundial com as repercus-
acontece nas cidades associadas e nas re- sões sociais geradas por essa mesma transfor-
des, além de permitir a consulta online de mação, a Associação Internacional das Cida-
documentos. des Educadoras apresentava uma perspectiva
necessária para pilotar com responsabilidade
As comunicações agruparam-se em cinco a vida urbana, nesta nova etapa de mudan-
âmbitos muito distintos dos que foram exa- ças já claramente perceptíveis. O professor
minados em Lisboa: Manuel Castells resumiu a situação:
nhecer e partilhar a realidade assim como senvolvimento interno das cidades conside-
os objectivos grandes e pequenos, propostos radas individualmente e as capacidades de
a cada ocasião pela maioria dos cidadãos». desenvolvimento partilhado que eram possí-
veis entre as cidades associadas.
O carácter militante da formulação do tema
central do Congresso «É possível outra cida- A educação formal estabelecendo laços com
de» concordava plenamente com os objecti- a educação permanente no âmbito urbano,
vos a que se propôs atingir. as redes locais sustentando um nível aceitá-
vel de cuidados de saúde, a sustentabilida-
No âmbito deste Congresso, apresentou-se de do quotidiano e as suas implicações nos
a actualização da Carta das Cidades Educa- programas escolares, a abertura dos centros
doras, fruto de um processo participativo, educativos e artísticos a toda a população
no qual se convidou as cidades associadas sem exclusões de nenhum tipo, a utiliza-
a realizarem as suas contribuições. Esta ac- ção dos espaços públicos como lugares de
tualização correspondia à necessidade de encontro e de convivência eram os temas
adaptar a Carta às mudanças urbanas, edu- propostos numa tentativa de aprofundar o
cativas e sociais que as cidades sofrem, mas conceito de democracia participativa, des-
mantendo o espírito inicial da Declaração tacado no Congresso de Génova.
de Barcelona.
A este elenco de aspectos específicos com
A nova Carta está organizada num preâmbu- os quais cada cidade se podia identificar, o
lo e três secções: «O Direito a uma Cidade Congresso de Lyon acrescentou uma nova
Educadora», «O Compromisso da Cidade» secção consistente com a análise das formas
e «Ao Serviço Integral das Pessoas». Novos disponíveis para partilhar objectivos e para a
temas foram incorporados como a formação cooperação entre as cidades.
ao longo da vida, o acesso de todas as pes-
soas e em especial às portadoras de deficiên- As intervenções, neste Congresso, giraram
cia, a todos os serviços, edifícios e equipa- em torno de quatro temas:
mentos urbanos, o acesso e a formação em
tecnologias de informação e comunicação, • A educação ao longo de toda a vida: edu-
o desenvolvimento sustentável, etc. cação formal e não formal;
sociais passa pela formação nas novas ferra- as Cidades Educadoras propuseram aos
mentas e uma diversidade cultural e linguís- governos locais pensar na educação como
tica dos conteúdos». um componente das suas acções mais do
que mantê-la simplesmente como um sector
A tentativa de reunir todos os aspectos re- em si mesmo, integrando-a nos diferentes
vistos no Congresso numa nova concep- departamentos que configuram a pasta
ção do humanismo, evidenciou um con- municipal. Por sua vez, a Carta das Cidades
ceito deveras maltratado no nosso mundo Educadoras constitui em si mesma uma
contemporâneo: a paz. Neste Congresso, aposta na paz.
salientou-se que numerosas entidades ad-
ministrativas sentem a responsabilidade e O tema central do próximo Congresso que
compreendem as vantagens de contribuir terá lugar na cidade de São Paulo, no mês
para o desenvolvimento democrático nou- de Abril de 2008, «Construção da cidadania
tros lugares do mundo, pelo que participam nas cidades multiculturais», recupera este
em projectos de cooperação internacional desejo e compromisso de paz.
e descentralização com entidades adminis-
trativas de outros países. De igual modo, foi Far-se-á referência às cidades da Associação
salientado que as cidades decidem traba- que investem na formação integral de cada
lhar no âmbito das relações internacionais cidadão e na da cidadania com a finalida-
para poderem ter influência nos processos de de combater a exclusão, cidades essas
de regionalização e nas políticas interna- conscientes de que a educação reduz as
cionais a partir do destaque dado às cida- desigualdades e é um elemento fundamen-
des e aos cidadãos. tal para a coesão social. As conferências e a
troca de experiências no âmbito deste Con-
A diplomacia entre as cidades é a ferramen- gresso proporcionarão reflexões e ideias de
ta de que dispõem as entidades administra- como avançar e fazer face aos reptos impos-
tivas locais para contribuir para a criação de tos pela convivência entre culturas.
situações de estabilidade através da qual a
cidadania possa conviver num ambiente O novo protagonismo e reavaliação de que
de paz, democracia e prosperidade. Neste gozam as cidades tanto a nível político como
sentido, são muitas as iniciativas levadas a social e económico, faz com que os seus go-
cabo no âmbito municipal: a fraternização vernos locais estejam convencidos de que
e a criação de vínculos entre cidades de tarefas como a renovação e a reconversão
diferentes países, a assistência técnica, o da base produtiva, a geração e manutenção
aconselhamento no desenvolvimento da po- da infra-estrutura urbana, a manutenção de
lítica municipal, a cooperação com a cida- níveis aceitáveis de qualidade de vida e a
dania e as organizações da sociedade civil, articulação de mecanismos de integração
as actividades de sensibilização, o fomento social, se considerem metas que as cidades
da compreensão mútua no âmbito local, os não podem resolver de forma isolada. Por
programas de formação, a solidariedade in- isso, as cidades de todo o mundo recorrem
ternacional, a criação de coalizões ou ac- à cooperação internacional na busca de
ções coordenadas, etc. soluções para as exigências do desenvolvi-
mento local e também em busca de solu-
A ideia de educar em e para a paz assumia ções partilhadas e coordenadas para se en-
a forma de um eixo a partir do qual era frentar problemas comuns. Assim sendo, os
possível rever acções e projectos para Congressos da AICE gozam de uma óptima
o futuro. Da mesma forma que, talvez, aceitação tanto entre as cidades associadas
286 Cidades educadoras: 20 anos
como entre as novas que se vão associando tório do qual faz parte. É igualmente uma
gradualmente. cidade que se relaciona com o seu meio
envolvente, outros centros urbanos do seu
* território e cidades de outros países. O seu
objectivo permanente será o de aprender,
Carta das Cidades Educadoras trocar, partilhar e, por consequência, enri-
quecer a vida dos seus habitantes.
As cidades representadas no 1º Congresso
Internacional das Cidades Educadoras, que A cidade educadora deve exercer e desen-
teve lugar em Barcelona em Novembro de volver esta função paralelamente às suas
1990, reuniram na Carta inicial, os princí- funções tradicionais (económica, social,
pios essenciais ao impulso educador da ci- política de prestação de serviços), tendo em
dade. Elas partiam do princípio que o desen- vista a formação, promoção e o desenvol-
volvimento dos seus habitantes não podia vimento de todos os seus habitantes. Deve
ser deixado ao acaso. Esta Carta foi revista ocupar-se prioritariamente com as crianças
no III Congresso Internacional (Bolonha, e jovens, mas com a vontade decidida de in-
1994) e no de Génova (2004), a fim de adap- corporar pessoas de todas as idades, numa
tar as suas abordagens aos novos desafios e formação ao longo da vida.
necessidades sociais.
As razões que justificam esta função são de
A presente Carta baseia-se na Declaração ordem social, económica e política, sobre-
Universal dos Direitos do Homem (1948), tudo orientadas por um projecto cultural e
no Pacto Internacional dos Direitos Econó- formativo eficaz e coexistencial. Estes são
micos, Sociais e Culturais (1966), na De- os grandes desafios do século XXI: Primeiro
claração Mundial da Educação para Todos «investir» na educação de cada pessoa, de
(1990), na Convenção nascida da Cimeira maneira a que esta seja cada vez mais ca-
Mundial para a Infância (1990) e na Decla- paz de exprimir, afirmar e desenvolver o seu
ração Universal sobre Diversidade potencial humano, assim como a sua singu-
Cultural (2001). laridade, a sua criatividade e a sua respon-
sabilidade. Segundo, promover as condições
de plena igualdade para que todos possam
Preâmbulo sentir-se respeitados e serem respeitadores,
capazes de diálogo. Terceiro, conjugar todos
Hoje mais do que nunca as cidades, gran- os factores possíveis para que se possa cons-
des ou pequenas, dispõem de inúmeras truir, cidade a cidade, uma verdadeira socie-
possibilidades educadoras, mas podem ser dade do conhecimento sem exclusões, para
igualmente sujeitas a forças e inércias dese- a qual é preciso providenciar, entre outros, o
ducadoras. De uma maneira ou de outra, a acesso fácil de toda a população às tecnolo-
cidade oferece importantes elementos para gias da informação e das comunicações que
uma formação integral: é um sistema com- permitam o seu desenvolvimento.
plexo e ao mesmo tempo um agente educa-
tivo permanente, plural e poliédrico, capaz As cidades educadoras, com suas insti-
de contrariar os factores deseducativos. tuições educativas formais, suas interven-
ções não formais (de uma intencionalidade
A cidade educadora tem personalidade pró- educadora para além da educação formal)
pria, integrada no país onde se situa é, por e informais (não intencionais ou planifica-
consequência, interdependente da do terri- das), deverão colaborar, bilateral ou multi-
Cidades Educadoras Congressos Internacionais 287
-1- -3-
Todos os habitantes de uma cidade terão o A cidade educadora deverá encorajar o diá-
direito de desfrutar, em condições de liber- logo entre gerações, não somente enquanto
dade e igualdade, os meios e oportunidades fórmula de coexistência pacífica, mas como
de formação, entretenimento e desenvolvi- procura de projectos comuns e partilhados
mento pessoal que ela lhes oferece. O di- entre grupos de pessoas de idades diferen-
reito a uma cidade educadora é proposto tes. Estes projectos, deverão ser orientados
como uma extensão do direito fundamental para a realização de iniciativas e acções cí-
de todos os indivíduos à educação. A cidade vicas, cujo valor consistirá precisamente no
educadora renova permanentemente o seu carácter intergeracional e na exploração das
compromisso em formar nos aspectos, os respectivas capacidades e valores próprios
mais diversos, os seus habitantes ao longo de cada idade.
da vida. E para que isto seja possível, deverá
ter em conta todos os grupos, com suas ne- -4-
cessidades particulares.
As políticas municipais de carácter educa-
Para o planeamento e governo da cidade, tivo devem ser sempre entendidas no seu
tomar-se-ão as medidas necessárias tendo contexto mais amplo inspirado nos princí-
por objectivo o suprimir os obstáculos de pios de justiça social, de civismo democráti-
todos os tipos incluindo as barreiras físicas co, da qualidade de vida e da promoção dos
que impedem o exercício do direito à igual- seus habitantes.
dade. Serão responsável tanto a administra-
ção municipal, como outras administrações -5-
que têm uma influência na cidade, e os seus
habitantes deverão igualmente comprome- Os municípios deverão exercer com eficácia
terem-se neste empreendimento, não só ao as competências que lhes cabem em matéria
nível pessoal como através de diferentes as- de educação. Qualquer que seja o alcance
sociações a que pertençam. destas competências, elas deverão prever
uma política educativa ampla, com carác-
-2- ter transversal e inovador, compreendendo
todas as modalidades de educação formal,
A cidade deverá promover a educação na não formal e informal, assim como as dife-
diversidade para a compreensão, a coo- rentes manifestações culturais, fontes de in-
Cidades Educadoras Congressos Internacionais 289
do em conta as iniciativas privadas e outros quer intermediário. Neste caso, deverá em-
modos de participação espontânea. preender, sem dirigismos acções com uma
explicação ou uma interpretação razoáveis.
- 10 - Vigiará a que se estabeleça um equilíbrio
entre a necessidade de protecção e a auto-
O governo municipal deverá dotar a cidade nomia necessária à descoberta. Oferecerá,
de espaços, equipamentos e serviços públi- igualmente espaços de formação e de deba-
cos adequados ao desenvolvimento pessoal, te, incluindo os intercâmbios entre cidades,
social, moral e cultural de todos os seu ha- para que todos os seus habitantes possam
bitantes, prestando uma atenção especial à assumir plenamente as inovações que aque-
infância e à juventude. las geram.
- 11 - - 14 -
A cidade deverá garantir a qualidade de A cidade deverá procurar que todas as fa-
vida de todos os seus habitantes. Significa mílias recebam uma formação que lhes
isto, um equilíbrio com o ambiente natural, permitirá ajudar os seus filhos a crescer e a
o direito a um ambiente sadio, além do di- apreender a cidade, num espírito de respeito
reito ao alojamento, ao trabalho, aos lazeres mútuo. Neste mesmo sentido, deverá pro-
e aos transportes públicos, entre outros. De- mover projectos de formação destinados aos
verá promover activamente a educação para educadores em geral e aos indivíduos (parti-
a saúde e a participação de todos os seus culares ou pessoal pertencente aos serviços
habitantes nas boas práticas de desenvolvi- públicos) que intervêm na cidade, sem es-
mento sustentável. tarem conscientes das funções educadoras.
Atenderá igualmente para que os corpos de
- 12 - segurança e protecção civil que dependem
directamente do município, ajam em con-
O projecto educador explícito e implícito na formidade com estes projectos.
estrutura e no governo da cidade, os valores
que esta encoraja, a qualidade de vida que - 15 -
oferece, as manifestações que organiza, as
campanhas e os projectos de todos os tipos A cidade deverá oferecer aos seus habitan-
que prepara, deverão ser objecto de refle- tes a possibilidade de ocuparem um lugar na
xão e de participação, graças à utilização sociedade, dar-lhes-á os conselhos necessá-
dos instrumentos necessários que permitam rios à sua orientação pessoal e profissional
ajudar os indivíduos a crescer pessoal e co- e tornará possível a sua participação em
lectivamente. actividades sociais. No domínio específico
das relações escola - trabalho, é preciso as-
sinalar a relação estreita que se deverá esta-
3.- Ao Serviço Integral das Pessoas belecer entre o planeamento educativo e as
necessidades do mercado de trabalho.
- 13 -
Para este efeito, as cidades deverão definir
O município deverá avaliar o impacto das estratégias de formação que tenham em
ofertas culturais, recreativas, informativas, conta a procura social e colaborar com as
publicitárias ou de outro tipo e as realidades organizações sindicais e empresas na cria-
que as crianças e jovens recebem sem qual- ção de postos de trabalho e de actividades
Cidades Educadoras Congressos Internacionais 291
formativas de carácter formal e não formal, formação para a participação nos processos
sempre ao longo da vida. de tomada de decisões, de planeamento e
gestão que exige a vida associativa.
- 16 -
- 19 -
As cidades deverão estar conscientes dos
mecanismos de exclusão e marginalização O município deverá garantir uma informa-
que as afectam e as modalidades que eles ção suficiente e compreensível e encorajar
apresentam assim como desenvolver as polí- os seus habitantes a informarem-se. Atenta
ticas de acção afirmativa necessárias. Deve- ao valor que significa seleccionar, compre-
rão, em particular, ocupar-se dos recém-che- ender e tratar a grande quantidade de in-
gados, imigrantes ou refugiados, que têm o formação actualmente disponível, a cidade
direito de sentir com toda a liberdade, que educadora deverá oferecer os recursos que
a cidade lhes pertence. Deverão consagrar estarão ao alcance de todos. O município
todos os seus esforços no encorajar a coesão deverá identificar os grupos que necessitam
social entre os bairros e os seus habitantes, de uma ajuda personalizada e colocar à sua
de todas as condições. disposição pontos de informação, orienta-
ção e acompanhamento especializados.
- 17 - Ao mesmo tempo, deverá prever programas
formativos nas tecnologias de informação e
As intervenções destinadas a resolver desi- comunicações dirigidos a todas as idades e
gualdades podem adquirir formas múltiplas, grupos sociais a fim de combater as novas
mas deverão partir duma visão global da formas de exclusão.
pessoa, dum parâmetro configurado pelos
interesses de cada uma destas e pelo con- - 20 -
junto de direitos que a todos assistem. Toda
a intervenção significativa deve garantir a A cidade educadora deverá oferecer a todos
coordenação entre as administrações envol- os seus habitantes, enquanto objectivo cada
vidas e seus serviços. É preciso, igualmente, vez mais necessário à comunidade, uma for-
encorajar a colaboração das administrações mação sobre os valores e as práticas da cida-
com a sociedade civil livre e democratica- dania democrática: o respeito, a tolerância,
mente organizada em instituições do cha- a participação, a responsabilidade e o in-
mado sector terciário, organizações não go- teresse pela coisa pública, seus programas,
vernamentais e associações análogas. seus bens e serviços.
- 18 -
***********
A cidade deverá estimular o associativis-
mo enquanto modo de participação e co-
-responsabilidade cívica com o objectivo de Esta Carta exprime o compromisso assumido
analisar as intervenções para o serviço da pelas cidades que a subscrevem com todos os
comunidade e de obter e difundir a informa- valores e princípios que nela se manifestam.
ção, os materiais e as ideias, permitindo o Define-se como aberta à sua própria reforma
desenvolvimento social, moral e cultural das e deverá ser adequada aos aspectos que a rá-
pessoas. Por seu lado, deverá contribuir na pida evolução social exigirá no futuro.
Testemunhos
A educação em uma cidade não é uma ta- ção Infantil (UMEIs), onde mais de 13 mil
refa simples. Representa, na verdade, um crianças passam o dia. A maioria são filhas
desafio de transformar a metrópole em um de mães que não têm com quem deixar as
objeto de educação em si e fazer com que crianças. Além das unidades próprias, mais
todos os seus espaços públicos possam pro- de 20 mil crianças de até seis anos são aten-
porcionar experiências educadoras aos seus didas nas 191 creches conveniadas com a
habitantes. Este é um desafio que não se es- Prefeitura. O Programa Primeira Escola da
gota. É permanente, e requer uma intencio- Prefeitura é referência nacional em infra-es-
nalidade política por parte dos governantes, trutura de qualidade para o atendimento de
que, ao final, fará a diferença na concepção crianças de até cinco anos e meio.
e execução de políticas públicas em diversas
instâncias. Na saúde temos diversas iniciativas, com
destaque para o Programa BH Vida, cujo
Em Belo Horizonte, cidade coordenadora da eixo principal é a organização da atenção
Rede Territorial Brasileira da AICE - Associa- básica através do Programa de Saúde da
ção Internacional de Cidades Educadoras, Família e a organização das linhas de cui-
poderíamos citar várias políticas que ilus- dado com o usuário em todos os níveis da
tram o nosso esforço: assistência prestada à saúde pública, a partir
das seguintes diretrizes fundamentais: ga-
Na Educação, o programa Escola Integrada rantia de acesso, visando garantir a todos
já beneficia cerca de 14 mil alunos entre 6 e aqueles que recorrerem à unidade de saú-
14 anos de 50 escolas da rede municipal. Es- de um atendimento adequado e o melhor
tes alunos têm atividades em tempo integral, encaminhamento ao seu caso; vínculo e
o que possibilita um aprendizado amplo, de responsabilização, por meio da construção
qualidade. Crianças e adolescente ocupam de um vínculo entre as equipes de saúde e
o horário que estariam fora da escola com as famílias atendidas através de relações de
opções culturais e educativas, participando confiança e de responsabilização entre eles;
de projetos artístico-culturais, práticas es- Integralidade e resolutividade da assistência,
portivas, ecológico-ambientais e com aulas já que as equipes de saúde da família devem
de idiomas. As atividades envolvem não so- procurar sempre resolver os problemas de
mente as escolas, mas também ONGs, uni- saúde de seus usuários, dando a eles o enca-
versidades e a própria comunidade. Com minhamento correto e mais adequado para
a Escola Integrada, os diferentes espaços cada caso; trabalho em equipe e interseto-
da cidade, como museus, cinemas, teatros, rialidade, já que o alcance das metas dos
parques, bibliotecas e centros culturais, são programas BH VIDA e Saúde Integral nas
transformados em centros educativos. ações em defesa da vida depende da acção
conjunta e articulada de todos os membros
Já o Programa Primeira Escola construiu e da equipe; autonomização do usuário, que
mantém 44 Unidades Municipais de Educa- significa fazer com que ele ganhe autono-
296 Cidades educadoras: 20 anos
Após quase vinte anos consecutivos de uma de 1990, nos serviram como referentes para
acção política baseada na igualdade, justi- construir o nosso próprio modelo de identi-
ça social e liberdade, podemos afirmar que dade.
Córboba, fiel às suas raízes históricas, se
consolidou cidade educadora. Manter-se firme e coerente com os referidos
princípios numa sociedade competitiva,
Para o conseguir, foi necessário partir das se- consumista e utilitarista como a nossa, não
guintes premissas: significa que não se encontrem dificuldades.
O trabalho do quotidiano juntamente com
O direito à educação. a tarefa de uma planificação integrada,
A educação como ferramenta de transforma- baseada na coerência, na coordenação de
ção social. diferentes áreas municipais, na participação
A cidade educa. dos cidadãos, na transparência e na
informação, foram as nossas ferramentas
A acção do governo repercute-se na vida para governar.
presente e futura da cidadania, na sua quali-
dade de vida e na identidade da cidade. Assim sendo, queremos dar conta do referi-
do acima no seguinte quadro onde os prin-
Os princípios contidos na Carta das Cida- cípios e os objectivos se materializaram em
des Educadoras foram os mesmo que, des- acções concretas:
Artigo 9º: «A cidade educadora deverá fomentar a participação Processo de Orçamentos Participativos.
cidadã com uma perspectiva crítica e co-responsável». Regulamento da Participação Cidadã.
Programa de Subvenções para colectivos cidadãos.
Artigo 10º: «O governo municipal deverá dotar a cidade de Rede de Centros Cívicos (10 em cada cidade).
espaços, equipamentos e serviços públicos adequados ao Rede de instalações desportivas.
desenvolvimento pessoal, social, moral e cultural de todos os Rede de bibliotecas.
seus habitantes, prestando uma atenção especial à infância e Rede de centros de serviços sociais.
à juventude». Centro de Educação Rodoviária.
Parque «La Ciudad de los Niños».
Jardim Zoológico de Córdoba.
Instalações infantis em todos os parques e praças da cidade.
Museus Julio Romero de Torres, Alcázar de los Reyes Cristianos
e Museu Arqueológico.
304 Cidades educadoras: 20 anos
O COMPROMISSO DA CIDADE
ACÇÕES MUNICIPAIS
(Cap. 2 da Carta das Cidades Educadoras)
Artigo 11º: «(…) um equilíbrio com o ambiente natural, o Fundação do Jardim Botânico.
direito a um ambiente sadio, (…)». Programa de Cumprimento da Agenda 21.
Programa de Recuperação do Rio.
Artigo 12: «O projecto educador explícito e implícito na es- Celebração dos seguintes dias internacionais: Dia Internacio-
trutura e no governo da cidade, os valores que esta encoraja, a nal dos Direitos da Infância, Dia Internacional das Pessoas
qualidade de vida que oferece, as manifestações que organiza, com Deficiência, Dias Internacionais da Paz e da Não-Vio-
as campanhas e os projectos de todos os tipos que prepara, lência, Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação
deverão ser objecto de reflexão e de participação, (…)». Racial, (entre outros).
Festa para a Escola Pública.
Festival de Guitarra.
Concurso Nacional de Arte Flamenco.
Bienal de Artes Plásticas e Fotografia.
Artigo 14º: A cidade deverá procurar que todas as famílias Escuela de Padres y Madres.
recebam uma formação que lhes permitirá ajudar os seus Serviço de Orientação às Famílias.
filhos a crescer (…)». Programa de Apoio às AMPAS.
Colaboração com a Universidade, os Sindicatos e os Colecti-
vos de Renovação Pedagógica e com o Centro de Formação
de Professores em conferências, seminários, encontros, de
formação da educação.
Artigo 15º: A cidade deverá oferecer aos seus habitantes a Instituto Municipal de Desenvolvimento Económico e do
possibilidade de ocuparem um lugar na sociedade, (…).» Emprego.
Programas de Garantia Social.
Artigo 16º: «As cidades deverão estar conscientes dos meca- Conselho Local da Imigração.
nismos de exclusão e marginalização que as afectam (…)». 1 Plano de Imigração.
Unidade de intervenção social de rua para a prevenção da
mendicidade infantil.
Artigo 17º: «É preciso, igualmente, encorajar a colaboração Conselho Local da Imigração.
das administrações com a sociedade civil livre e democratica- 1 Plano de Cooperação Social.
mente organizada em instituições do chamado sector terciário,
(…)».
Artigo 18: «A cidade deverá estimular o associativismo Processo de Orçamentos Participativos.
enquanto modo de participação e co-responsabilidade cívica II Regulamento de Participação Cidadã.
com o objectivo de analisar as intervenções para o serviço da Criação dos Conselhos de Distrito e Juntas Locais e Distrito.
comunidade (…)». Membro da Comissão de Autoridades Locais para a Inclusão
Social e a Democracia Participativa.
Membro do Foro Social Mundial.
Participante no Programa URB-AL.
Artigo 20º: «A cidade educadora deverá oferecer a todos os Programa educativo «Educar para la Paz, la Convivencia y la
seus habitantes, enquanto objectivo cada vez mais necessário Solidaridad» (infantil e primária).
à comunidade, uma formação sobre os valores e as práticas da Programa educativo «La Solidaridad tarea de todos».
cidadania democrática: o respeito, a tolerância, a participa- Programa «Escuela de Padres y Madres».
ção, a responsabilidade e o interesse pela coisa pública, (…).»
Por último, não posso deixar de expressar empreendem para conseguir transformar as
que o projecto de Córdoba é fruto de ideias, primeiro em projecto e depois em
reflexo de um trabalho colectivo da força realidade.
que os cidadãos, os técnicos e os políticos
As coisas são assim em Dakar
Pape Diop
Senador - Presidente da Câmara de Dakar
O projecto de «Génova Cidade Educadora» A evolução desta ideia levou pois através de
completou oito anos. Um período talvez um processo participativo, desenvolvido em
demasiado curto para pretender conseguir três anos, ao apuramento de uma ideia ori-
êxitos e resultados tangíveis, mas suficiente- ginal para uma reflexão de natureza político-
mente longo para, olhando para trás, imagi- -institucional em ordem a centralizar o novo
nar o futuro. papel dos governos locais no desenvolvimen-
to local dos territórios, em sintonia com os
A análise e a verificação da sua história con- estímulos provenientes do debate internacio-
duzidas em particular no decurso de 2005, nal, passando pelas ligações com modelos
favoreceram a adaptação deste projecto às e experiências de transformações urbanas e
mudanças políticas e sociais, globais e lo- sociais que as outras cidades conseguem e/
cais, que tiveram lugar nestes anos, reflectin- ou sofrem como verdadeiros e autênticos la-
do os seus novos intentos, outras ferramen- boratórios. A realização do X Congresso da
tas, diversos compromissos. Associação Internacional das Cidades Educa-
doras, em Génova, em Novembro de 2004,
A necessidade de uma reactualização para teve também este objectivo. Talvez não se te-
Génova da Carta das Cidades Educadoras nham encontrado ou usado todas as respos-
é uma questão aberta exigida por um lado tas e soluções, mas evitou-se seguramente o
pelo aumento da participação democrática risco da repetição sobre a única área local.
efectiva, por outro, da procura de espaços
por parte das políticas públicas em contex- A proposta inicial versava sobre conceitos
tos educativos alargados. como governo, governabilidade, represen-
tação juntamente com os da esfera pública,
A proposta inicial de Dezembro de 1999 decisões colectivas, descentralização. Ini-
caracterizou-se deliberadamente pelo forte ciativas, seminários, debates constituíram
envolvimento e conteúdo filosófico e ofere- ocasião para alargar a área do confronto e
ceu um suporte ao tema da construção co- das posições no interior de uma audiência
lectiva de um projecto educativo da cidade. que ia de movimentos, grupos e pessoas
Pode afirmar -se que se trata de um projecto singulares, que nos anos 70 tinham atraves-
cultural destinado a partilhar uma ideia: a sado a primeira grande fase de participação
de uma cidade atenta às pessoas e sobre- do nosso país, àqueles que interligavam os
tudo às suas relações. A Municipalidade próprios interesses profissionais com os do
aposta na possibilidade que as competên- empenhamento cívico, aos que enfrentavam
cias próprias e as dos cidadãos envolvidos, a vida pública pela primeira vez.
singulares ou organizados, de interagir no
interior de espaços oportunos de reciproci- Aquele debate foi-se progressivamente des-
308 Cidades educadoras: 20 anos
gastando pelo confronto entre as formas do de uma profunda reorientação dos recursos
poder e a procura de participação nas de- públicos.
cisões sobre os bens comuns. Coexistiam
e debatiam-se pontos de vista, assuntos e A proposta «eugénica» (do nome do percur-
linguagens diversos: dos poderes fortes aos so genovês, o pacto de eugenia), de facto,
líderes políticos iluminados, da experiên- teve o mérito de criar, enfrentar e relançar as
cia de convivência civil nascida na base de perguntas sobre o futuro da cidade através
projecções promovidas pela municipalida- duma lente interpretativa que ensinou a su-
de, da lógica do governo central às relações perar as abordagens de gestão, de adminis-
com o território. tração e burocráticas evidenciando a rique-
za e a inevitabilidade de outras abordagens.
A questão da dialéctica inserida entre poder
e participação inscreveu-se no seio da com- Representou simbolicamente um lugar onde
plexa discussão ligada ao significado pós- fazer emergir, poder pôr à prova, confrontar
-moderno de democracia e à tentativa, ain- posições, saberes, expectativas com o único
da em curso, de conjugar as transformações objectivo de criar relações, exercitar a diver-
dos sistemas democráticos ocidentais com a sidade, cuidar das confianças estabelecidas.
presença de uma noção de poder plural e Colocou no centro os singulares acreditando
mutante. na superação de pertenças e individualismos
através de um conceito de participações a
Os argumentos desta discussão encontram desenvolver no seguimento de uma busca
hoje em algumas «boas práticas locais» re- baseada em valores, ideais, paixões, e para
sultados delimitados e respostas isoladas, de promover como um motor de agregação
qualidade para a nossa cidade, mas que no social para grupos e organizações. Em an-
entanto se colocam ao lado das vozes das tecipação a modelos que se lhe seguiram,
denúncias contra as ausências e as incapaci- escolheu fazer cedências como forma sus-
dades das formas da política tradicional para tentável de recomposição colectiva porque
fornecerem ideias e ferramentas. Trata-se na impregnadas de capital fiduciário e distantes
verdade de experiências talvez ainda longe das componentes unicamente economicis-
de poderem ser lidas, interpretadas, profun- tas das dinâmicas sociais. A identidade «eu-
damente compreendidas. génica» compõe-se de todos estes traços.
É por isso que hoje, à distância de quase ção Municipal e a cidadania». Está com efei-
um decénio sobre a esperança do pacto de to radicada a convicção de que regeneração
eugenia, depois de atravessada a época da urbana e coesão social não só premeiam a
reflexão sobre os serviços e a da afirmação qualidade de vida das nossas cidades, mas
de outros actores na sociedade e de ter posto ajudam-nos a enfrentar a exclusão e a mar-
em marcha em 2004 um processo de pla- ginalidade. À semelhança de outras cidades
nificação social da cidade, sustentando in- que instituíram estes centros, também Gé-
tervenções e recursos coligados à activação nova pretende iniciar e manter aberto um
de cidadania, a Administração Cívica inclui diálogo e um confronto com a cidade sobre
ainda no primeiro ponto da própria agenda os grandes processos de desenvolvimento
política a participação como método e subs- urbano, divulgando-os e discutindo-os num
tância de governo. percurso de escuta que terá no centro a pa-
lavra responsabilidade, ou melhor «co-res-
Porque a participação continua a ser uma ponsabilidade» das escolhas.
questão política que tem que ver com a
procura crescente de democracia e com a Visões diferentes da realidade devem pro-
exigência dos cidadãos de concorrer às es- por, ditar premissas do raciocínio, construir
colhas caracterizadas por forte impacto na condições do discurso através do qual, a
vida quotidiana dos bairros e territórios. ampliação do estado público se qualifique
Trata-se frequentemente de decisões defini- para aberturas e não violações, para inter-
das como «públicas» do ponto de vista do câmbios e não ataques, para conflitos e não
procedimento e administrativo, mas que são destruições.
vividas como «privadas» do ponto de vista
processual e político num sentido lato, cer- No que respeita às relações com o exterior
tamente distantes do reconhecimento e con- situa-se o projecto de redacção do balan-
fiança de uma esfera pública compartilhada. ço social de Génova, no seguimento da já
delineada regulamentação e planificação
O trabalho que a Administração Pública social da cidade. A medida do impacto das
tenciona fazer, dando sentido ao que está políticas do governo local no welfare cita-
expresso na Carta das Cidades Educadoras dino pode considerar-se quer uma meta im-
quando afirma que «A cidade educadora es- portante para uma administração, quer um
timulará a participação citadina numa pers- ponto de partida para a difusão de práticas
pectiva crítica e co-responsável», centra-se e instrumentos da auscultação e do agir co-
hoje na análise das ferramentas de partici- lectivos.
pação existentes e futuras. É necessário pro-
mover com maior empenho e convicção a Para além disso, todos estes objectivos se in-
participação «técnica, regulamentar, admi- serem numa finalidade que é representada
nistrativa», sem retirar significado e força. por um saldo de qualidade, a construção de
Os cidadãos devem saber utilizar os meios um verdadeiro e adequado projecto para Gé-
que as normas põem à sua disposição. De nova, do qual a administração cívica se faz
entre os instrumentos a valorizar encontra- promotora, mas que não pode efectivamen-
-se também urban center que ao pôr em te realizar sozinha. A alma desta tensão no
prática a «Resolução sobre a qualidade ar- projecto deve exprimir-se através de ideias
quitectónica do ambiente urbano e rural», de futuro que os jovens quererão e saberão
aprovada pelo Conselho da EU em 2001, enunciar e graças à capacidade de atracção
contribui para a afirmação da democracia que a cidade souber e quiser oferecer-lhes.
urbana como «charneira entre a Administra- A nossa ideia de Génova Cidade Educadora
310 Cidades educadoras: 20 anos
mantém a noção de que as cidades exigem Esperamos optimistas que todos os esforços
uma formulação nova do papel da política que um governo local ponha em prática
como prática que não pode prescindir da para interceptar fenómenos de recomposi-
aproximação do conhecimento e apropria- ção das comunidades para com a sociedade
ção do real em pura chave fenomenológi- tornem possível colocar sob uma outra luz a
ca, mas que não deve nunca interromper zona cinzenta, sempre mais consistente, das
a continuidade do exercício da atenção, da relações entre instituições e sociedade.
proximidade, do respeito.
Em que medida Lomé, capital da República do Togo,
na África Ocidental, é uma Cidade Educadora?
Lodé Aouissi
Presidente da Câmara de Lomé
Cidade capital, costeira com mais de um mi- mento, procurando a sua pertença a uma
lhão de habitantes, Lomé assegura, no Togo comunidade ligada à religião, a actividades,
e na sub-região ocidental africana, um papel ao bairro, a um desporto, a lazeres...
motor importante na abertura social, econó-
mica e cultural das outras cidades do Togo e Pelo seu cosmopolitismo, Lomé é uma cida-
dos países do sul do Saara que não apresen- de largamente aberta para o mundo. Educa
tam fachada marítima. cada cidadão na luta contra as discrimi-
nações raciais, no espírito de tolerância e
Lomé é uma cidade que oferece todas as aceitação do outro. Os bairros da cidade
oportunidades de formação aos jovens, às facilitam sem nenhuma marginalidade a co-
crianças e até aos adultos através de inúme- -habitação das diferentes camadas sociais -
ros estabelecimentos escolares de qualquer ricos e pobres. A cultura do respeito ainda
nível, de centros de aperfeiçoamento e de vive e testemunha da riqueza dos valores
alfabetização, de centros de formação pro- tradicionais que consideram as pessoas de
fissional, etc. idade, as crianças e os jovens. A vida fami-
liar educa as pessoas a encarregarem-se das
Essas estruturas do sector privado ou público camadas com idades vulneráveis.
estão abertas a todos os habitantes da cidade
que desfrutam de um ambiente cultural mui- A cidade educa para um ambiente saudável
to favorável com a existência de vários cen- e acções colectivas são organizadas para a
tros culturais e de inúmeras infra-estruturas salubridade urbana: é a «Operação Lomé,
desportivas, sócio-sanitárias, económicas e Cidade Limpa». O Município convida efecti-
de comunicação. Os médias de informação vamente, cada cidadão de Lomé a participar
desenvolvem-se (imprensa escrita, rádio, te- na limpeza da cidade.
levisão, etc.). O acesso à internet está garan-
tido pela forte densificação dos ciberespa- A cidade educa para o civismo e a preven-
ços no espaço urbano. ção - na segurança, na estrada, na saúde,
etc. - através de movimentos associativos
A cidade está marcada por praças e monu- que servem de vectores à educação das mas-
mentos que relembram aos habitantes e aos sas. A existência de pontos de encontro é um
visitantes símbolos fortes, como por exem- trunfo para Lomé, que antes de mais é um
plo, a rotunda da Pomba da Paz. É uma «Ci- centro de passagem importante, um cruza-
dade Mensageira da Paz», uma Cidade Edu- mento de eventos e trocas interculturais.
cadora para a Paz, Lomé é, efectivamente,
considerada como um refúgio de paz. Lomé cria para o conjunto dos seus habitan-
tes espaços propícios a acções de cidadania
Viver em Lomé implica uma vida citadina para o desenvolvimento de debates e de ac-
diferente que permite romper com o isola- tividades para uma democracia local.
Montevideu: um espaço de aprendizagens
Ricardo Ehrlich
Intendente Municipal de Montevideu
O imediato território de exploração, que níveis que em qualquer cidade pode adqui-
se abre para além do ambiente familiar, rir tortuosidades e responsabilidades pró-
está chamado a constituir-se numa referên- prias, o espaço urbano é um espaço educati-
cia emancipada para toda a vida, acima de vo por si mesmo. A cidade lê-se como se lê a
tempos e distâncias, quando se alcançam os natureza: lê-se um edifício, lê-se um espaço
elementos que geram pertença, que geram público, lê-se o desenho dos serviços públi-
identidades e se associam aos afectos. Refe- cos. Por vezes as mensagens são limitadas,
rências que aprendemos a amar, contextos por vezes transbordam de calor e poesia.
em que sentimos ser queridos e que origi-
nam esse vínculo primário de pertença com Uma cidade, um espaço local deve abrir
os tons de uma língua, de perfis e de cores portas e caminhos a percorrer, a explorar.
de uma paisagem, com os cheiros, sabores Percursos que conduzem a descobertas pes-
e sons que se descobrem nos espaços pú- soais e únicas, percursos que se repetem
blicos. uma e outra vez, como contos infantis, por-
que isso gera segurança e confiança. Mas
Os espaços urbanos que se abrem genero- tais portas e caminhos também devem levar
samente à sua gente continuam a criar re- a aprendizagens e à descoberta de capaci-
ferências por toda a vida e para toda a vida: dades que não são só para serem desenvol-
para aqueles que nasceram no seu seio, para vidas dentro do ensino formal e que também
aqueles que o adoptaram numa ou noutra não estão só destinadas a apoiar estes mes-
etapa, para os que o visitam e o descobrem. mos sectores.
Não são suficientes a sua beleza, a sua cul-
tura, a sua história ou a sua riqueza material A cidade deve ser para todos, desde os pri-
se não conseguirmos esse vínculo subtil da meiros passos de uma criança e durante toda
pertença. a sua vida, um lugar para aprender. Assim
se constrói qualidade e dignidade de vida.
O cuidado com os espaços de dimensão Assim se constrói uma cidade e uma socie-
humana na cidade conferem-lhe qualida- dade. A prioridade das urgências e do com-
de sendo elemento chave para a criação da bate contra a exclusão não devem preterir
convivência e coesão social. Porém, isso a construção de âmbitos de aprendizagem,
implica, sobretudo, que assumamos plena- capacitação e descoberta de capacidades -
mente o papel da cidade como espaço de antes pelo contrário, pois que elas são ne-
aprendizagem. Para além do vínculo com o cessárias para edificar uma sociedade coesa
sistema educativo formal e seus diferentes e afirmada nos princípios da equidade.
A educação não formal, um projecto
para os habitantes de Rennes
Edmond Hervé
Presidente da Câmara de Rennes
I - A constatação A) Princípios
Temos de construir «uma nova igualdade»: Alguns trabalham nas nossas sociedades
a igualdade nos conhecimentos. A civiliza- promovendo «a educação não formal» uma
ção, a sociedade do conhecimento esperam educação resultando do mundo do trabalho,
por nós. Cabe-nos identificar as desigual- da cidade, das associações, dos sindicatos,
dades sociais, económicas, financeiras mas dos partidos políticos, das organizações que
também culturais, educativas, científicas, trabalham com estabelecimentos escolares.
que existem. Cabe-nos identificar a frac- Cada saber exige partilha e utilidade. A edu-
tura territorial na qual as desigualdades se cação não formal não se opõe à educação
inscrevem. Procedendo a estes diagnósticos formal, a saber académica e contínua, quali-
de maneira precisa, facilitaremos a escolha ficativa. É conveniente encontrar a articula-
e a mobilização de meios susceptíveis de as ção que as junta, facilita a sua complemen-
reduzir. taridade.
Falar de «Cidade Educadora» sugere modés- sensibilidade aos medias e à opinião alimen-
tia - tem de se reconhecer os limites da ins- tam as mudanças de orientação, confundem
tituição escolar - e exigência - uma vez que a administração.
temos de pôr a funcionar um sistema com-
plexo, produzir uma co-educação, deixar a Uma boa organização necessita de boas re-
unilateralidade de ontem. lações entre o escalão desconcentrado do
Estado e as entidades descentralizadas - para
B) Um exemplo de métodos a França: Região, Departamento, Cidade.
Penso que cada colectividade, cada estabe- Evocando a cidade assinalemos a importân-
lecimento público deve, em função das suas cia das inter-comunidades, o que legitima
competências e em coordenação, recorrer uma certa apreensão no momento em que
a um projecto educativo. A título de exem- se desenvolve a adesão multi-territorial.
plo, na qualidade de presidente do conselho
de administração do Centro hospitalar uni- Mais concretamente, na construção da edu-
versitário de Rennes, desejei que houvesse, cação não formal, vejamos a contribuição
no âmbito do projecto de estabelecimento, de três entidades essenciais: a cidade, o mo-
uma componente «educação à saúde» com vimento associativo e a empresa.
uma parte interna e uma parte externa.
- A cidade. É um centro de recursos próxi-
Exprimindo-me como presidente da câmara, mo e rico. Imaginemos os conhecimentos
quais são as características de um projecto que se podem adquirir pelo saneamento, o
educador comunal? Deve ser de parceria, agenciamento, o transporte, as geminações,
global, prospectivo, concreto, seguro, aber- o consumo energético, a história, a demo-
to e público. Um projecto destes serve para grafia, a democracia local, etc.
mobilizar, informar, regular, contratualizar.
- O movimento associativo. Independente-
C) Uma ética mente dos desafios que deve constantemen-
te enfrentar - renovação dos actores, profis-
Um projecto destes deve ser interdisciplinar sionalização, alargamento dos territórios,
e pluralista, respeitante à educação, à instru- pedido de proximidade, limitação dos re-
ção, à formação e à cidadania. cursos, etc. - o movimento associativo com-
pleta a representação da sociedade, reúne
D) Uma organização competências, dispõe de uma capacidade
de adaptação, implementa a democracia, dá
A confiança deve presidir, não a suspeita - o vida ao duradouro e ao efémero, ao institu-
princípio de precaução não advêm da mes- cional e ao social. Dá lugar à diferença.
ma?
- A empresa. Tem um papel relevante na fun-
Para uma boa economia, seria convenien- ção que nos interessa. Vive do conhecimen-
te que no cume remediássemos à crise da to, actualiza-o e antecipa-o. Tomemos por
lei - ela assenta no seu conteúdo, sentido e exemplo uma empresa de construção: deve
eficácia. ter conhecimento dos materiais, proteger o
ambiente, ter em atenção a vizinhança, a se-
A primazia da comunicação, a excessiva gurança, a saúde dos ses empregados, deve
A educação não formal, um projecto para os habitantes de Rennes 317
calcular, avaliar, etc. Assim como a cidade e futuro na consciência colectiva cívica. Reto-
a associação, a empresa necessita de forma- mar o sentido, com o futuro, passa por uma
ção formal e informal. filosofia que se chama, simplesmente, laici-
dade. A laicidade não se limita à sua relação
com a religião ou a escola. Diz respeito ao
III - Conclusão conjunto da sociedade já que consiste em se
libertar dos clericalismos, que seja de cle-
As diligências da educação não formal ser- ricalismo religioso, financeiro, tecnocrático,
vem a democracia em benefício dos valores partidário mediático ou do instante e do efé-
de igualdade, liberdade e fraternidade. Te- mero. Essa laicidade inspira um comporta-
mos de ganhar a batalha da sua necessidade mento ao serviço da pessoa e da sociedade
e do seu sentido. Para tanto, a cidade edu- que exclui qualquer instrumentalização.
cadora deve reinstalar a ideia de futuro, o
São Paulo, Cidade Educadora
Gilberto Kassab
Presidente da Câmara da Cidade de São Paulo
Integrante da rede mundial das Cidades ducativa dita do adversário político, enquan-
Educadoras desde 2004, São Paulo nasceu to se introduziram mudanças destinadas a
para educar, em 1554, e assim continua até dar mais funcionalidade ao equipamento.
hoje. Há mais de quatro séculos que os je- Assim sendo, as crianças mais pequenas
suítas portugueses subiram à Serra do Mar permaneceram no rés-do-chão em vez de
e quando chegaram a Meseta de Piratinin- ficarem nos pisos superiores, como aconte-
ga aperceberam-se de que era o local ideal cia no projecto original, o que dificultava a
para fundar um colégio. A partir desse mo- circulação de empregados e mães, especial-
mento - da fundação da cidade de São Paulo mente com bebés.
- aquele local ficou conhecido como o Pátio
do Colégio. Cuidar da educação é parte da história e da
tradição de São Paulo. Desde os primeiros
Actualmente, um dos principais programas anos da fundação da cidade «misturou-se o
da administração da cidade, «São Paulo é colonizador português com o índio, o que
uma Escola», prolonga-se a permanência deu origem a um tipo original de sociedade
dos alunos nas escolas, onde lhes são ofere- que fez com que São Paulo fosse conside-
cidas actividades extra-curriculares de natu- rada a mais brasileira das cidades, criando
reza cultural, desportiva, de recreação e ar- um novo padrão, integrado pelo português,
tesanato, entre outras. Os espaços de muitas o negro e o índio».1
escolas são utilizados totalmente - e a tempo
integral - para as diversas actividades. A interculturalidade é um aspecto constitu-
tivo da natureza desta cidade. Para termos
Não se trata apenas de tirar os jovens das uma ideia da antiguidade desta caracterís-
ruas, objectivo louvável e comum a tantos tica, dados do censo efectuado em 1893
projectos destinadas à juventude. O Pro- mostram que «dos 130.775 habitantes da
grama «São Paulo é uma Escola» pretende cidade, apenas 59.307 eram brasileiros, os
consolidar o reconhecimento do direito de restantes 71.468 eram estrangeiros: italianos
participar em actividades que enriquecem o (35%), portugueses (11%), espanhóis (4%) e
capital social dos alunos e professores, além alemães (2%)».2
de dar continuidade ao espírito educador da
capital. Por outro lado, a preocupação pela Desde sempre, em São Paulo, que convivem
continuidade constitui uma característica da diversas raças, culturas, idiomas, valores,
actual administração, que tratou de aperfei- crenças. Brasileiros de todos os Estados en-
çoar - em vez de abandonar - iniciativas de contram lá a sua segunda terra natal. Imi-
administradores anteriores. grantes de todos os continentes constituem
lá as suas famílias, em perfeita paz, sem o riu à Carta da Terra ao conjunto de medidas
menor vestígio de rixas ancestrais que tu- propostas pela ONU para preservar o meio
multuavam a vida nas suas regiões de ori- ambiente do planeta. Várias acções como a
gem. construção de escolas dentro de determina-
dos padrões ecológicos, o uso de materiais
Como presidente da câmara e, dentro do não poluentes, o incentivo à redução do
espírito do direito à cidade, à fruição esté- consumo de água e luz, entre outras, serão
tica e aos novos espaços que criam possi- implementadas pelos diversos órgãos da Câ-
bilidades de novas sociabilidades, travamos, mara.
neste momento, uma batalha para resgatar a
paisagem urbana. O projecto «Cidade Lim- O recém-lançado projecto «Comunidade
pa» tenta recuperar a identidade arquitectó- Protegida» dá prioridade às pessoas e ao
nica, a harmonia e a história dos edifícios ambiente, e não aos veículos. Através desta
e monumentos que integram o património medida, os bairros tipicamente residenciais
da cidade. O projecto consiste em regula- devem permanecer isentos de fumos de
mentar a colocação de outdoors e de pla- veículos que escapam do trânsito. A medida
cas de identificação e de propaganda, cujo está, todavia, em fase de experiência piloto,
descontrolo e abuso ocultaram a cidade real mas sem dúvida que o aumento da largura
aos seus habitantes e criaram um ambiente dos passeios, da arborização e dos pontos de
caótico que era imperativo extirpar. encontro estimulará uma nova relação dos
habitantes com o seu bairro e a sua cidade.
O projecto «Cidade Limpa» está em execu-
ção com o amplo apoio da população e está Pretende-se estimular em São Paulo, a for-
a ter um impacto surpreendente. Como se mação de novas gerações sem prejuízos,
fosse um trabalho arqueológico, esta inicia- habituadas a conviver e dialogar com os
tiva está a revelar uma cidade nunca antes contrastes e com o diferente. Neste sentido,
vista por cerca de três gerações. Muitos jo- destaca-se o apoio da Câmara à Parada do
vens manifestaram-se surpreendidos por fi- Orgulho Gay que, na sua edição de 2007,
nalmente descobrirem, nas ruas e avenidas, reuniu mais de três milhões de pessoas na
por onde caminham, a cidade mencionada Avenida Paulista. Esta, por outro lado, é mais
nos documentários e mostrada nas fotogra- uma iniciativa que advém de administrações
fias dos avós e bisavós. anteriores.
tência às pessoas que vivem nas ruas e te- sua mais recente edição de 5 e 6 de Maio
mos funcionários capazes de oferecer a estas de 2007, três milhões e meio de habitantes
pessoas um abrigo digno, a cidade também da capital puderam assistir gratuitamente
está a educar. Este é um tema controverso a 350 eventos em 80 pontos diferentes da
e polémico. No entanto, se percebermos cidade ao longo de 24 horas consecutivas.
que o direito à cidade pressupõe regras de Teatro, dança, música, concertos, cinema,
convivência e limites respeitantes do espaço coros, saraus e conferências, entre outros,
público, será mais fácil reunir esforços para são uma oferta da Câmara aos habitantes
encontrar saídas também elas respeitantes de São Paulo, que já contam com a Virada
das necessidades e dos desejos, e que dêem Cultural como um evento obrigatório no seu
dignidade à pessoas que se encontram em calendário.
situação precária.
Assim, numa tentativa de formar os cidadãos
Entre outros exemplos de como São Paulo melhores, mais sensíveis e capazes, a admi-
articula a suas políticas públicas e acções nistração actual da capital paulista preserva
sectoriais a partir do conceito «a cidade o legado dos educadores que fundaram São
educa», temos ainda a Virada Cultural. Na Paulo.
Vallenar Cidade Educadora, um desafio permanente
A 8 de Junho de 1998, por iniciativa de Pre- O projecto ainda está em fase de desenvol-
sidente da Câmara Juan Horacio Santana Ál- vimento e construção permanente já que,
varez e através de um acordo unânime do devido à sua extensão e custo, foi neces-
conselho municipal, a nossa cidade fica for- sário realizá-lo em várias etapas. A visão
malmente integrada na Associação Interna- futura deste projecto, que pretende que a
cional das Cidades Educadoras (AICE). Com cidade não vire as costas ao seu rio inclui a
esta acção inicia-se um importante proces- incorporação nos seus extremos de centros
so cuja finalidade é orientar o desenvolvi- educativos de alto nível: a sede da Univer-
mento da nossa comunidade, tendo como sidade de Atacama e um centro tecnologia
eixo principal, a educação. Assim começa ambiental. Com deste projecto pretende-se
a busca por um caminho que nos permita a integrar o referido espaço urbano na cida-
construção deste sonho em conjunto com a de e permitir também que o investimento
comunidade. nos privados proporcione novos pólos de
actividade cultural, recreativa, comercial,
Forma-se assim uma mesa de trabalho para etc.
encontrar a melhor maneira de desenvolver
esta iniciativa. Gradualmente, o município Por seu lado, os departamentos da muni-
cria um departamento encarregue de coor- cipalidade têm tomado várias medidas. O
denar acções com a comunidade e com as Departamento de Trânsito criou uma cam-
escolas. A partir de governo local, promove- panha educativa, com uma personagem de-
-se através dos diferentes departamentos, a nominada «Transitín», cujo objectivo é criar
realização de acções que nos aproximam, a consciência para a educação rodoviária:
par e passo, deste caminho, com o objectivo realizam-se actividades com os colégios e
de integrar toda a comunidade. Por isso, é formam-se grupos de crianças como inspec-
necessário abrir espaços transversais de par- tores do trânsito que transmitem às famílias
ticipação e inovação. e amigos a consciência da responsabilidade
no trânsito.
Pouco a pouco, surgem novos objectivos. A
partir do ponto de vista urbano, era neces- Do ponto de vista da saúde, promovem-se
sário recuperar um sector muito degrada- campanhas através da «Comisión Comunal
do da cidade, a zona por onde passa o rio Vallenar Ciudad Educadora», que começou
Huasco. Projectou-se a sua urbanização e a com o objectivo de melhorar certos indica-
instalação de diversas áreas verdes e infra- dores de saúde e de incentivar uma mudan-
-estrutura desportiva e comunitária, que ge- ça nos comportamentos para uma melhor
raram espaços multifuncionais, oferecendo qualidade de vida. A característica mais im-
a possibilidade de realizar actividades ao ar portante é ser participativa, associativa, for-
livre e ter espaços de encontro e participa- mativa, intersectorial e de formar uma rede
ção que favorecem a qualidade de vida dos heterogénea.
habitantes.
324 Cidades educadoras: 20 anos
Por outro lado, a partir do ponto de vista da Estes são exemplos do esforço deste governo
participação das organizações, criou-se um local em construir uma cidade educadora
fundo competitivo para financiar iniciativas em conjunto com a comunidade. Cada uma
baseadas nos princípios das «Cidades Edu- das decisões em torno da nossa cidade e das
cadoras». Dentro dos projectos financiados, acções concretas que se empreenderam em
destacam-se os de tipo patrimonial, despor- virtude desta visão vem da educação como
tivo, artístico e ambiental, relacionados com algo mais humano e complexo que o desen-
outros princípios como a participação, o volvimento de capacidades e competências
trabalho associativo, a liberdade de expres- em função de certos objectivos; pretendem
são, o diálogo entre gerações, a qualidade avançar no progresso da cidade, mantendo
de vida, a transversalidade na educação a nossa identidade, fortalecendo a nossa co-
e inovação, a valorização de identidade e munidade, melhorando a nossa convivência
origens, etc. Esta iniciativa tem uma grande com a participação e opinião de todos os
importância para todos nós, porque permite sectores.
que as organizações planifiquem, desenvol-
vam e executem acções pensadas desde a Contudo, reconhecemos as nossas debili-
construção da cidade educadora, com a au- dades e a necessidade de superá-las. Des-
tonomia suficiente, de modo a que garanta de o começo da Cidades Educadoras em
novos espaços de inovação desenvolvidos Vallenar, quando se formou a mesa de tra-
pela comunidade. balho para desenvolver e implementar esta
ideia, estabeleceu-se que a actuação deste
Também se desenvolvem iniciativas de cariz departamento devia ser supra-municipal.
solidário em conjunto com a comunidade. No entanto, ao operacionalizar as suas
Assim, no contexto de uma época de difi- funções, a mesa enfrentou transformações
culdades económicas, criou-se uma campa- permanentes, sem que ter encontrado ain-
nha denominada «Vallenar Puro Corazón», da o melhor caminho para a experiência,
que pretende assegurar a entrega afectuosa desde o ponto de vista da sua implemen-
dos elementos necessários para uma ceia de tação formal.
Natal digna, para que todos os habitantes
possam desfrutar do encontro familiar nestas Durante estes dez anos, implementaram-
datas. -se acções bem-sucedidas. Na comunida-
de existe um número crescente de pessoas
Através da campanha, foi possível envol- que conhecem e se identificam com este
ver a comunidade organizada, para pôr em projecto, num sentido amplo de construção
prática o princípio de solidariedade enqua- entre todos (governo local e comunidade)
drando-o nos conceitos das «Cidades Edu- de uma Cidade Educadora. Não obstante,
cadoras». A campanha mantém-se há nove ainda há caminho para percorrer: conse-
anos e evidencia um êxito crescente. Parti- guir uma maior integração das acções de-
cipam nas decisões da campanha as asso- senvolvidas, perfilar todo o trabalho muni-
ciações de vizinhos que, em conjunto com cipal, a sua planificação e gestão de um
os centros de saúde e as escolas de cada modo geral e a sua imagem corporativa, de
sector, integram os conselhos sectoriais que modo a que se projecte de forma coeren-
definem no seu seio a forma de operar, os te com os valores e princípios das cidades
beneficiários e como realizar a entrega do educadoras. Os esforços para juntar novas
benefício. cidades a este projecto e gerar novos laços
Vallenar Cidade Educadora, um desafio permanente 325
Com a população mundial a crescer anu- O que é necessário ser feito de forma a ma-
almente cerca de 70 milhões de pessoas, a ximizar as oportunidades e minimizar os
urbanização está a ocorrer a uma escala e riscos de desenvolvimento urbano acelera-
ritmo sem precedentes. Isto significa que a do? O que a UNESCO, em particular, pode
batalha para alcançar as Metas do Milênio fazer?
será ganha ou perdida nas cidades. A menos
que os grandes investimentos sejam feitos no
desenvolvimento urbano ao longo das próxi- UNESCO e as Cidades:
mas duas décadas, a maioria da população Educação para o desenvolvimento
urbana no Sul terá de enfrentar os riscos de urbano sustentável
pobreza, condições de habitação deplorá-
veis, más condições de saúde e saneamen- A Década das Nações Unidas da Educação
to, má nutrição e baixa produtividade. No para o Desenvolvimento Sustentável (2005-
entanto, apesar da ameaça do aumento da -2014), do qual a UNESCO é a agência líder
pobreza urbana, as cidades são também e coordenadora internacional, proporciona
motores de desenvolvimento e mudança so- um enquadramento para os interessados em
cial, assim como centros de comunicação e todos os níveis para avançar na construção
expressão cultural, inovação e intercâmbio sustentável e inclusiva de ambientes ur-
inter-cultural. banos. A Década chama a atenção para o
facto da educação poder desempenhar um
Eventos internacionais, como o III Fórum papel fundamental quando se enfrentam de-
Urbano Mundial, realizado em Vancouver, safios como pobreza, consumo predatório,
no Canadá, em Junho de 2006, atestam os degradação ambiental, decadência urbana,
papéis importantes e complexos que as ci- crescimento populacional, a desigualdade
dades têm, como: de género, a saúde, o conflito e as violações
dos direitos humanos. A década é também
• áreas que geram riqueza - mas também um quadro de colaboração em rede, apelan-
exclusão social e segregação; do a todos aqueles envolvidos na resposta a
estes desafios de desenvolvimento para tra-
• lugares valiosos do património; balhar em parceria.
permitir a mudança e facilitar a aquisição de das autoridades locais, que muitas vezes
dos conhecimentos e habilidades necessá- necessitam de auto-capacitação. Gerar
rias para funcionar como um cidadão acti- preocupação com o meio ambiente é uma
vo e responsável. As autoridades locais têm parte fundamental da educação para o de-
um papel estratégico de desempenhar para senvolvimento sustentável. Todos os grupos
tornar esses meios de formação e expressão etários devem aprender sobre a necessidade
disponíveis. Nesta área, o papel da Asso- de um consumo económico de energia e de
ciação Internacional de Cidades Educado- matérias-primas e sobre a importância da
ras (AICE) é de uma importância catalítica. reutilização e reciclagem - e aceitação das
Parceiros como Cidades e Governos Locais, mudanças resultantes nos estilos de vida.
Metropolis, Comissões Nacionais e Centros Se todos possuírem os conhecimentos ne-
da UNESCO também contribuem para essas cessários, as habilidades e vontade de viver
acções. de forma sustentável, a gestão de conflitos,
a tomada de decisão, o desenvolvimento de
A UNESCO vê as cidades como os principais projectos e a escolha das tecnologias apro-
centros de pensamento e de acção quando priadas serão muito facilitadas.
se trata de Educação e aprendizagem sobre
o desenvolvimento sustentável. Para maxi-
mizar este potencial, a cátedra da UNESCO Equilibrar o crescimento
«Crescer nas Cidades» da Universidade de urbano e o meio ambiente
Cornell (EUA), criou uma plataforma para as
crianças e profissionais da cidade que visa Enquanto as cidades crescem em população
capacitar as crianças para moldar a sua exis- e se expandem em tamanho, colocam uma
tência urbana e incentivar os presidentes das enorme pressão sobre as fontes de recursos
Câmaras para envolver as crianças na gestão naturais e sobre o ambiente. A água, em
urbana (por exemplo, em Bangalore, Índia, particular, está a tornar-se um recurso cada
Joanesburgo, África do Sul e Trondheim, No- vez mais frágil. O Plano Hidrológico Inter-
ruega). nacional da UNESCO (PHI), visa melhorar
o conhecimento dos processos hidrológicos
Ao abordar as condições de vida diária e as e desenvolver abordagens para a avaliação
questões socioculturais, as actividades das e gestão racional dos recursos hídricos. Um
cátedras da UNESCO «Paisagem e Ambien- projecto particularmente novo trata dos
te» (Montreal, Canadá) e «Políticas Urbanas “Conflitos Urbanos de Água”, que visa de-
e Cidadania» (Lyon, França), mostram clara- finir os diversos tipos de conflitos relaciona-
mente que as pessoas estão no centro dos dos com a água nas cidades. Outra iniciati-
desafios do desenvolvimento urbano. Os va, inovadora é o «SWITCH» Projecto para
seus conhecimentos específicos, saber-fazer, a gestão da água urbana, coordenado pela
identidade, relações sociais e padrões de UNESCO-IHE, que visa o desenvolvimento
povoamento são vitais para a formação de eficiente e sistemas urbanos interactivos de
decisões políticas eficazes. água e serviços para as megacidades emer-
gentes do mundo.
A Educação ao Longo da Vida, um concei-
to no centro das prioridades da UNESCO, A expansão urbana e a poluição afectam ne-
abrange a escolaridade, básica de adultos e gativamente o ambiente natural e a biodiver-
a educação comunitária, a educação técni- sidade ambas dentro e fora das cidades. Para
ca e profissional e o ensino superior - ele- minimizar os seus efeitos, a UNESCO, no
mentos vitais envolvendo a responsabilida- âmbito do Programa O Homem e a Biosfera
Epílogo de Koïchiro Matsuura, director-geral da UNESCO (1999-2009) 333