Muito tem escrito sobre o corpo nos últimos anos. A partir do início da década de 1970,
e com o aumento da visibilidade no final da década de 1980, o corpo assumiu uma
presença viva na cena antropológica e no estágio de estudos culturais interdisciplinares.
A teoria feminista, a crítica literária, a história, a religião comparada, a filosofia, a
sociologia e a psicologia estão todas implicadas no movimento em direção ao corpo.
Antropólogos com interesses que variam entre a antropologia médica e psicológica, a
antropologia do espaço, cultura material, teoria da prática, teoria do desempenho, teoria
crítica e até mesmo antropologia cognitiva têm problematizado o corpo em escritos
recentes.
Em seu discurso de abertura para a reunião anual de 1990 da Associação
Etnológica Americana dedicada ao tema "O Corpo na Sociedade e Cultura", Emily Martin
sugeriu que, embora o interesse generalizado no corpo possa ser explicado pela
centralidade contemporânea do corpo nas formas sociais ocidentais, também pode ser
devido ao momento histórico contemporâneo em que "estamos passando por mudanças
fundamentais na forma como nossos corpos são organizados e experimentados" (1992:
121). Citando a observação de Lévi-Strauss de que a atenção acadêmica parece se
concentrar em fenômenos precisamente quando eles estão terminando, ela sugere que
estamos vendo "o fim de um tipo de corpo e o início de outro tipo de corpo" (ibid .: 121).
Estudos recentes nas ciências sociais e humanas pareceriam apoiar a reivindicação
de Martin. O tipo de corpo ao qual fomos acostumados tanto no pensamento erudito
quanto popular é tipicamente considerado como uma entidade fixa e material sujeita às
regras empíricas da ciência biológica, existente antes da mutabilidade e fluxo de mudança
e diversidade cultural e caracterizada por necessidades internas imutáveis. O novo corpo
que começou a ser identificado não pode mais ser considerado um fato bruto da natureza.
Na sequência de Foucault (por exemplo, 1979, 1980), um coro de declarações críticas
surgiu no sentido de que o corpo é "uma noção inteiramente problemática" (Vernant 1989:
20), que "o corpo tem uma história" na medida em que comporta-se de maneiras novas
em momentos históricos particulares (Bynum 1989: 171), e que o corpo deve ser
entendido não como uma constante em meio ao fluxo, mas como um epítome desse fluxo
(A. Frank 1991: 40).
Outros argumentaram que, devido ao impacto desestabilizador dos processos
sociais de mercantilização, fragmentação e divulgação semiótica de imagens de partes do
corpo (Kroker e Kroker 1987: 20), o corpo humano não pode mais ser considerado uma
"entidade delimitada". No meio do "capitalismo tardio" e da "cultura do consumidor",
com sua multiplicidade de imagens que estimulam necessidades e desejos e as
correspondentes mudanças nos arranjos materiais do espaço social, o corpo/eu se tornou
principalmente uma auto-performante de aparência, exibição e gerenciamento de
impressões (Featherstone 1991: 187, 192). As categorias de "ciclo de vida" corrigidas
tornaram-se turvas em um "curso de vida" mais fluido no qual a aparência e a sensação
de alguém podem entrar em conflito com sua era biológica e cronológica (Featherstone e
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deidade (1989: 11). Examinar o que ocorre nos limites culturais é crítico, dadas as
circunstâncias do fluxo corpóreo e transformação corporal esboçada acima. No que diz
respeito à religião, a questão ultrapassa a distinção entre corpos naturais e sobrenaturais,
ou entre a corporeidade natural e a incorporeidade divina, com a questão colocada por
Feher do tipo de corpo, que os membros de uma cultura se dotam para entrar em relação
com o tipo de deidade que eles postulam a si mesmos (1989: 13). Se pretendemos afirmar
que o corpo é um fenômeno cultural, a religião é um domínio da cultura que oferece
evidência rica para nos ajudar a entender o significado dessa afirmação e, portanto, não é
coincidência que vários dos capítulos do presente volume tomem a relação entre
experiência religiosa e embodiment (incorporação).
Outra transformação inescapável do corpo no mundo contemporâneo está sendo
forçada pela incrível proliferação de violência política de todos os tipos: violência étnica,
violência sexual, violência autodestrutiva, violência doméstica e violência de gangues.
Tanto quanto as transformações esboçadas acima, essa tem que ver com o próprio
significado de ser humano como sendo um corpo capaz de sentir dor e auto-alienação. Do
exame de Scarry (1985) sobre a dissolução de si mesmo em tortura ao retrato de Feldman
(1991) do corpo desnaturalizado, que existe no clima de violência permanente na Irlanda
do Norte; a partir da análise de Scheper-Hughes (1992) da resistência corporal não
articulada à opressão hegemônica entre moradores pobres das favelas brasileiras e
novamente à loucura de "limpeza étnica" e violação como arma política, que caracteriza
a ex-Iugoslávia no momento da redação desta introdução, o corpo aparece como o veículo
ameaçado do ser humano e da dignidade. A urgência moral e política deste fenômeno é
evidente no trabalho de vários contribuintes para o presente volume.
Juntamente com suas implicações críticas e pragmáticas para a civilização
mundial, as implicações teóricas da descoberta acadêmica de que o corpo tem uma
história e é tanto um fenômeno cultural quanto uma entidade biológica são
potencialmente enormes. Além disso, se o corpo está passando por um momento histórico
crítico, esse momento também oferece uma oportunidade metodológica crítica para
reformular teorias de cultura, self e experiência, com o corpo no centro da análise. Os
objetivos deste volume são extrair algumas dessas implicações teóricas e aproveitar essa
oportunidade metodológica. Nenhum desses objetivos deve ser dado como certo, uma vez
que, entre os antropólogos que enfrentam a "obsolescência do corpo" e uma "morte do
assunto" relacionada, os estudos ainda não sabem se o corpo persistirá como um tema
analítico central, o "terreno existencial da cultura e do eu" (Csordas 1990), ou se o
interesse no corpo é meramente uma moda intelectual. Na reunião de 1990 da American
Ethonological Society, dedicada ao tema do "corpo na sociedade e na cultura", era
evidente que muitos participantes usavam o termo "corpo" sem muito senso de
"corporalidade" em suas análises, como se o corpo fosse pouco mais do que um sinônimo
de self ou pessoa. Essa tendência acarreta os duplos perigos de dissipar a força de usar o
corpo como ponto de partida metodológico e de corpos objetivadores como coisas
desprovidas de intencionalidade e intersubjetividade. Assim, perde a oportunidade de
adicionar consciência e sensibilidade as nossas noções de eu e pessoa, e de inserir e
adicionar a dimensão de materialidade as nossas noções de cultura e história.
O que estamos pedindo aqui é um papel mais radical para o corpo do que o típico
na "antropologia do corpo", que tem estado conosco desde a década de 1970. Em estudos
que se enquadram nessa rubrica, o corpo é um objeto ou tema de análise, muitas vezes a
fonte de símbolos ocupados no discurso de domínios culturais, como religião e estrutura
social. Sem tentar um ensaio bibliográfico, resumirei as abordagens características da
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[O corpo] não tinha existência própria, nem específico para distingui-lo. Foi
apenas um suporte. Mas a partir de então, completa-se a circunscrição do ser
físico, possibilitando sua objetivação. A ideia de um corpo humano se torna
explícita. Essa descoberta leva a uma discriminação entre o corpo e o mundo
mítico. (1979 [1947]: 164).