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DANÇAS DE ORIXÁS E EDUCAÇÃO FÍSICA:

DELINEANDO PERSPECTIVAS A PARTIR


DOS RITUAIS DE CANDOMBLÉ

ORIXÁS DANCES AND PHYSICAL EDUCATION: DELINEATING PERSPECTIVES STARTING


FROM THE RITUALS OF CANDOMBLÉ

*
Larissa Michelle Lara

RESUMO
O objetivo deste estudo é configurar o cenário da dança em terreiros de candomblé, buscando transposições do
ritual para o educacional. Por meio de pesquisa bibliográfica, aliada à pesquisa de campo e ao relato de
experiência, foi possível compreender a dança e seu sentido mítico, bem como a gestualidade sagrada do ser
dançante. As observações realizadas em terreiros de candomblé na cidade de Campinas, os referenciais teóricos,
bem como a experiência concretizada com alunos do curso de graduação em Educação Física da Unicamp,
possibilitaram-nos delinear perspectivas de trabalho com danças de orixás no setor educacional. Pudemos
constatar que a riqueza gestual, mitológica e cultural dessas danças podem ser concretizadas nas aulas de
Educação Física a partir de temas geradores, sendo os terreiros de candomblé um importante laboratório de
pesquisa. O trabalho com danças de orixás representaria uma forma de concretização de novas visualizações
acerca de manisfestações culturais ainda inferiorizadas, contribuindo para a diminuição dos preconceitos no meio
acadêmico e para o estreitamento da relação universidade-sociedade.
Palavras-chave: danças de orixás, educação física, manifestações culturais.

INTRODUÇÃO sua sabedoria e atitude heróica, constituem


exemplos de vida a serem seguidos. Seus feitos
O candomblé, enquanto religião afro- são rememorados pelo ritual através da dança,
brasileira, surge como uma forma de restituir do canto, da comida, da vestimenta e do ritmo
parte das perdas ocasionadas com a escravidão dos atabaques. Representam os arquétipos a
no Brasil. A abolição legal da escravatura e a serem revividos por cada membro,
Proclamação da República possibilitaram, principalmente no momento do transe, da
gradativamente, condições para os negros manifestação máxima da relação única homem-
organizarem-se em grupos religiosos. As deus. É a evidência das necessidades humanas e
comunidades formam verdadeiras famílias e sobre-humanas expressas numa mesma
buscam, por meio do ritual, do canto, da dança e corporeidade.
do transe, reviver o modelo mítico dos Enquanto processo dinâmico da sociedade e
antepassados e adentrar tempos e espaços referência para a história e cultura de grupos
sagrados. africanos no Brasil, o candomblé é transmitido
As entidades não são consideradas espíritos por diferentes ensinamentos formais, dentre os
de mortos, mas forças da natureza que assumem, quais se consagra o ensinamento da dança, onde
por meio das lendas, a forma de reis, rainhas e é evidenciada uma certa peculiaridade de acordo
heróis divinizados. Os modelos exemplares são com os estilos pessoais ou regionais que
os próprios orixás que, através de seus mitos, de identificam uma nação. Cada dança tem um

*
Doutoranda em História, Filosofia e Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp; Professora Mestre do Centro de
Ensino Superior de Maringá (Cesumar) e da Universidade Paranaense (Unipar).

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sentido especial no ritual e representa uma Bastos (1979, p. 44-45) coloca que ao
forma de reviver o modelo mítico dos mesmo tempo em que a dança era um sinal de
antepassados, possibilitando a relação homem- manifestação alegre dos deuses ela não deixava
deus pelo transe e fora dele. de revelar um mito peculiar exótico e
Tendo por base o trabalho com danças que comprometido com uma interpretação cautelosa.
se voltem para o humano, para as necessidades Para ele, a dança é o próprio mito ou espírito,
de relação eu-tu, para o reviver mitológico, foi recortado, plasmado ou esculturado na
que vislumbramos as danças de orixás como impregnação dos volteios, dos pequenos saltos,
uma das possibilidades temáticas a serem das gesticulações e posições, deslizamentos e
trabalhadas na Educação Física, já que a dança curvaturas que fazem o conjunto das
constitui parte da cultura de movimento humano. mobilizações próprias a tais representações.
Dessa forma, o objetivo deste estudo é Ações como dançar, falar, cantar e
configurar o cenário da dança em terreiros de gestualizar, como acredita Lody (1995, p.104-
candomblé, buscando transposições do ritual 105), são formas de integração do homem no seu
para o educacional. Para tanto, foi necessário grupo e no sistema mágico-ritual. É uma forma
observar a dança em festas de candomblé, na de comunicação consigo mesmo diante do seu
cidade de Campinas-SP e experienciar a papel social no mundo do sagrado1. Para ele, o
transposição das danças observadas nos terreiros ato de dançar é muitas vezes indissociável dos
para o setor educacional, com alunos do curso atos cotidianos. A música vocal, a instrumental e
de Educação Física da Unicamp, pertencentes ao a dança constituem modelos a serem repetidos
quinto e sexto período letivo. rigorosamente de acordo com as nações e
Num primeiro momento, trataremos da deuses. Essa preocupação com o rigor e a
sacralidade gestual por meio da dança a partir do repetição de um momento ancestral podem ser
ritual. Num segundo momento, enfocaremos a observados pelas palavras do autor: O aleatório,
dança em festas de candomblé, buscando o improviso não compõem a dança, a música e
delinear o tempo-espaço observado a partir da outras formas expressivas dos terreiros. Os
pesquisa de campo. Por fim, daremos ênfase ao saberes têm na repetição e na realização
trabalho de pesquisadores que visualizaram na ritualizada princípios imemoriais, que revelam
dança afro e afro-brasileira uma possibilidade de identidades e transmissões iniciáticas.
trabalho em meio universitário, bem como Na compreensão de Santos (1996, p.36), o
delinearemos perspectivas de trabalho nas aulas papel da dança no rito é "absorver o fazer
de Educação Física a partir da experiência implícito no próprio contexto religioso",
concretizada com alunos de Educação Física. As indicando que os movimentos evidenciados nas
discussões, a seguir, buscarão melhor danças não são realizados aleatoriamente como
concretizar nossas intenções. mera resposta aos estímulos rítmicos ou
musicais, mas representados de forma simbólica
e específica. O movimento corporal seria uma
A SACRALIDADE GESTUAL forma de comunicação com o sobre-humano,
tornando-se um instrumento ativo das
A presença da dança em ritos, sua relação necessidades de intercâmbio espiritual.
com o tempo primordial e sua manifestação Sobre a dança enquanto veículo de
pelo comportamento mítico dos indivíduos comunicação com os orixás, apropriamo-nos da
assegura-lhe uma vivacidade na cerimônia de inquietação de Bastos (1979, p.47) quando
candomblé presenciada ainda na atualidade, pergunta "Por que a dança?". O pesquisador
dada a capacidade de repetição de gestos parece questionar-se sobre os motivos pelos
arquetípicos. É o momento em que a terra se quais essa manifestação teria sido escolhida para
comunica com o além, com os espíritos de a expressão dos deuses. Sua resposta é a
reis, rainhas e heróis divinizadores. seguinte: "Porque ela traz em si o poder do
Dançando, os homens entram no mundo do movimento necessário ao equilíbrio da
sagrado e através das danças próprias,
específicas de cada orixá, consagra-se a
religiosidade e a renovação. 1
Sobre o sagrado, ver Roger CAILLOIS (1988).

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natureza". Tal idéia pode ser melhor candomblé, poderia ser sintetizado do seguinte
compreendida quando o pesquisador afirma que modo: formação da roda com dança e toque;
através da dança os dançarinos podem expelir louvor aos orixás com canto, dança e transe; uso
suas fraquezas, seus humores, tornando-se mais de indumentária específica do orixá a ser
puros e descarregados, com capacidade de somar homenageado na festa; êxtase e transe
forças dessa purificação para benefício comum. simultâneos por vários filhos e seus orixás;
Essa purificação advém do ingresso no mundo encerramento litúrgico; comes e bebes.
mítico, do transcendente e da vivência de uma O ritmo dos atabaques dá início à
gestualidade sagrada que transporta os celebração. O pai-de-santo entra dançando em
indivíduos para tempos e espaços diferenciados sentido anti-horário e movimentando um adjá.
dos que vivem em seu cotidiano. A seguir, Junto com ele estão as auxiliares de culto e seus
adentraremos mais especificamente na dança filhos e filhas-de-santo por ordem de feitura no
pela festa ritual, mediante as observações candomblé. As mulheres, engrandecidas pelos
realizadas num terreiro de candomblé. vestidos brancos rodados, pelas calças de
madrasto por baixo das saias enfeitadas de renda
na boca, pelos Panos-da-Costa e oujás de
DANÇA NA FESTA E FESTA NA DANÇA cabeça, configuram um cenário belíssimo.
Chamam a atenção as unhas pintadas, a
Os momentos privados e públicos do maquiagem nos rostos, os sapatos altos, os
candomblé constituem os espaços de ênfase das anéis, as pulseiras, a senzala2 e os colares de
danças, as quais não são vistas de forma isolada santo3. Os homens, todos de branco,
das manifestações expressivas e comunicativas complementam o cenário. É hora de ingressar
dos rituais religiosos, mas como relacionais e no mundo mítico.
socializadoras, capazes de encarnar, por meio do A formação da roda continua numa espécie
ser dançante, o deus, o antepassado e o herói. As de caracol até que todos estejam dentro do
danças concretizam-se coreograficamente entre barracão. Tem-se início ao adobale - saudação
os dançarinos e entre os que dançam com as de agradecimento, súplica ou submissão - que
pessoas, não sendo exigidas aptidões para fazê- consideramos um dos momentos mais belos do
lo. Busca-se bem dançar, que é diferente da ritual. É quando os filhos e filhas-de-santo
espetacularização, pois requer o cumprimento prostram-se ao chão para mostrar subserviência
das normas do ritual. Como afirma Lody (1995, e humildade nos gestos.
p. 104-107), “O valor qualitativo do bem dançar A manifestação do transe, da vinda do orixá,
é um conceito circunstancial ou de formação é uma parte relevante do culto. Alguns gritam,
sistemática na iniciação”, ou seja, dançar bem ficam com os lábios protuberantes, olhos
comprova uma iniciação adequada, além de fechados, expressão rude e amarga. Outros
evidenciar o prazer dos deuses em integrar os denotam mais tranqüilidade, gemendo baixinho,
rituais. Quando ocorrem exageros na dança que quase inaudível. Cada qual tem sua maneira
extrapolam a questão do dançar bem, costuma-se singular de vivência do comportamento mítico.
ouvir a expressão “fulano dança espalhando Os orixás são homenageados, mas nem
brasas” ou fulano é um “espalha-brasas” - todos podem concretizar mais eficazmente a
indicando que a vocação acrobática foi incorporação pelo transe, haja vista a ausência
privilegiada. na casa de pessoas iniciadas em determinado
A situação de espetáculo não é pejorativa à orixá. O momento de transe transmite algo
ocorrência ritual-religiosa, conforme explica grandioso, uma revelação misteriosa. Leva as
Lody (1995, p.107), mas deve evidenciar que a pessoas a assumirem posições corporais
festa é o momento social que traz a vida diversas, a vivenciar ritmos frenéticos que talvez
ritualizada ao terreiro. Assim, a discrição na
dança e o cumprimento dos pedidos dos 2
A senzala é um adereço de braço com vários búzios,
instrumentos e dos dirigentes são atitudes utilizado nas cerimônias rituais durante o período que
esperadas e valorizadas pela ética dos terreiros. antecede os sete anos de feitura.
O sistema básico de organização das festas, 3
O mocã é um colar recebido no momento da iniciação,
conforme observamos em terreiros de utilizado nos rituais até a obrigação de sete anos.

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não vivessem em sua atividade diária. É um O sagrado pela dança evidencia o clima
dispêndio grande de energia, mas não deixa de relacional do homem com o outro (Deus, deuses,
ser renovação. natureza, ancestralidade). É plenitude, totalidade
A gestualidade pela dança é diversificada, do ser e estabelece o diálogo na dualidade. É eu-
embora em determinados momentos essa tu, como discutido por Buber (1979), ao
diversidade se restrinja a pequenos detalhes. contrário do profano eu-isso, onde o outro é
Ora dançam como se estivessem remando, ora objeto, coisa utilizável. Significa a plenitude do
parecem estar segurando uma espada com humano: corpo espiritual, espírito corpóreo. A
ambas as mãos e movimentando-a perda do eu para a conquista do si mesmo.
firmemente. O corpo inclina-se para frente e
Manifesta a exuberância do ser pleno em suas
os pés brincam de vai-e-vém para a direita e
relações com a natureza, com a ancestralidade,
para a esquerda, num movimento mais rápido.
com os modelos exemplares. Proporciona o ser
Saltam num pé só, abaixam-se requebrando,
realizam um movimento de bater como se indivíduo indiviso, manifestado pela hierofania,
estivessem amassando ou perfurando algo e ou seja, pela revelação do sagrado e ingresso no
encantam. período criador.
Um dos momentos belíssimos do ritual4 é
quando ocorre a incorporação de Oxumaré (o ADENTRANDO TEMPOS-ESPAÇOS RITO-
arco-íris, a serpente). Em momento de êxtase, o EDUCACIONAIS
filho-de-santo em transe joga-se ao chão e se
arrasta como uma serpente. Dá um salto como se Antes de configurarmos o cenário das
desse o bote. A imitação da serpente é o danças de orixás no setor educacional,
momento de celebração dos totens que retomaremos, embora sucintamente, trabalhos de
representam a própria tribo nas suas pesquisadores que se tornaram interessantes de
necessidades sociais, como observado por serem discutidos.
Bastos (1979). Outra gestualidade interessante é Em sua Tese de Doutoramento, Santos
constatado na dança de Oxum (orixá feminino e (1996, p.14) deixa claro suas intenções enquanto
vaidoso das águas). As filhas-de-santo em transe pesquisadora. Compreende os terreiros como
sentam-se e começam a se contemplar nos comunidades religiosas onde estariam presentes
espelhos imaginários que seguram e penteam os aspectos que considera vitais dos escravos
africanos, como a música e a dança, que no
cabelos. Suas saias são arrumadas pelas filhas-
conjunto oferecem uma visão particular do
de-santo, ampliando sua roda e dando à mesma
mundo. A partir dessa compreensão, busca
um balanceio suave.
analisar as relações sociais do terreiro como, por
Os atabaques, acompanhados dos cantos,
exemplo, a estrutura hierárquica, as funções
levam-nos à vivência de tempos e espaços rituais e os papéis masculinos e femininos.
diferenciados. Somos irradiados por uma energia Entrando na questão artística, evidencia como
de tal forma que a vontade é adentrar à roda e esses elementos representam um recurso para o
dançar junto, observando, imitando, repetindo e coreógrafo em seu processo criativo a partir da
vivendo a consagração. A dança é capaz de levar composição de danças relacionadas com a
o ser dançante à vivência de sua corporeidade cultura africana.
através da misteriosa consagração da totalidade O objeto de investigação centra-se no que
existencial - nem só corpo, nem só espírito. denomina "dança brasileira", compreendida
Possibilita a concretização de um ser uno, como expressão da diversidade corporal dos
significante, e representa a suprema plasticidade povos que vivem no Brasil e de suas
da dimensão corpórea enaltecida pela harmonia contribuições para o que chama de "tecido social
dos contrários. complexo, colorido, belo e tão mal
compreendido" (Santos, 1996, p.17). Entende
que uma expressão homogênea seria destruidora
4
Maiores informações sobre o ritual de candomblé e aponta a necessidade da compreensão das
podem ser encontradas em Juana Elbein dos Santos,
(1996).
etnias, culturas, regiões e tradições religiosas.

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O movimento corporal de filhas e filhos-de- constroem sua identidade e consciência social ao


santo no ritual é compreendido como um praticarem essa dança. O autor buscou ainda
elemento integrador na comunicação com o subsidiar uma proposta de inclusão da dança
sobre-humano e apresenta-se dotado de afro nos currículos de Licenciatura em Educação
conhecimento mítico dada a aquisição de uma Física. Tal proposta surgiu a partir da
gestualidade simbólica por meio da iniciação. A compreensão de que no curso de Educação
influência dos mitos no ritual poderia ser Física da Universidade Federal de Uberlândia,
visualizado da seguinte forma: Pressupõe-se que as disciplinas da licenciatura não se adequavam
o mito presentificado nos eventos ritualísticos sobremaneira à expressão do povo brasileiro.
pode exercer influência na criação artística. Os Resolveu, portanto, criar um programa de
gestos, os movimentos corporais fazem parte do veiculação do conhecimento para sistematizar
vocabulário da linguagem de comunicação nas um conteúdo que revelasse aspectos expressivos
danças, independente de uma função específica. da cultura negra. Entende que há uma
O corpo, como instrumento de expressão, é o necessidade de produção sobre o assunto, no
elemento a serviço do simbólico que revive as sentido de resgate da cultura negra brasileira
experiências míticas e criativas (Santos, 1996, para finalidade acadêmica, já que foram poucos
p.18). os pesquisadores que se debruçaram sobre o
A pesquisadora evidencia a forma pela qual tema. Aponta a necessidade de pesquisas sobre
poderia ser estabelecida a sua proposta dança- as representações de atores universitários em
arte-educação. Os conteúdos surgiriam a partir relação à cultura negra e à dança afro, em
do universo mítico-simbólico da tradição especial, no contexto acadêmico e frisa a
africana-brasileira por meio de uma perspectiva necessidade de inserção dessa cultura corporal
histórico-religiosa. Lembra que a elaboração e enquanto conteúdo de um curso superior em
divulgação do trabalho pressupõe conhecimento, Educação Física.
investigação, aventura criativa e reflexão sobre a Independente do trabalho com dança da
função do dançar nos rituais dos terreiros e nas cultura negra ser de expressão artística (como a
composições coreográficas teatrais, entendendo dança afro), ter um caráter folclórico ou ainda
a tradição africana como "celeiro portador de uma representação mais rústica com enfoque
idéias". religioso, a passagem pelos terreiros de
A configuração da prática pedagógica deu- candomblé é imprescindível a qualquer
se através do estímulo à capacidade criadora das pesquisador, docente ou dançarino que queira
alunas do curso superior em dança da uma aproximação mais efetiva com a realidade,
Universidade Estadual de Campinas a partir do retratando-a da forma mais coerente possível. Os
entendimento de que a repetição tem também terreiros não representam apenas um espaço de
certo grau de flexibilidade. O corpo é manifestação religiosa, mítica, mas constituem
visualizado como portador de conhecimento e de ainda um laboratório de pesquisas primordial às
expressão e tem a sua relevância fundamental na nossas construções; um irradiador de idéias e
dança. A familiarização com o estilo de possibilitador de conhecimentos.
linguagem corporal própria foi possibilitada, A visualização do universo cultural afro-
evidenciando-se parte da diversidade gestual brasileiro do candomblé, em maior ou menor
brasileira. amplitude, permitiu-nos focalizar possibilidades
Tratando mais especificamente da dança de uma transposição religiosa para outros
afro, ou seja, da dança africana de expressão setores como, por exemplo, o educacional.
artística e, em especial, na área da Educação Contudo, não buscaremos efetivar uma proposta
Física, temos o trabalho desenvolvido por Souza como alguns dos pesquisadores efetivaram, mas
(1996). Dançarino, docente e pesquisador, o apontar intenções, denominadas por nós de rito-
autor procurou contribuir com a educação no educacionais. Isto porque vislumbramos a
Brasil e com o estudo das representações da relevância de um contato direto com as danças
cultura negra na sociedade brasileira. Para tanto, de orixás em terreiros de candomblé, bem como
trabalhou com as representações sociais dos a utilização dessas observações, aprendizados e
atores da dança afro de modo a verificar como experiências no setor educacional.

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Cabe lembrar que não buscamos influenciar essência e os modelos exemplares continuam
os indivíduos à prática religiosa do candomblé, sendo os mesmos.
nem tampouco a experienciar determinados Mas, o que queremos dizer com danças de
rituais. Nossas intenções partem do princípio de orixás enquanto temas geradores?
que os terreiros de candomblé e, em especial, as Na década de 60, Paulo Freire (1987),
festas realizadas pelos mesmos, constituem um educador brasileiro, desenvolveu um método
laboratório de pesquisa indispensável ao para a alfabetização de adultos, onde os temas
trabalho com danças de orixás, independente de das aulas eram gerados a partir da visão de
sua concretização no contexto educacional ou mundo das pessoas, das ações voltadas para a
artístico. reflexão, para o encontro, para a comunicação e
O estudo das danças de orixás permite-nos diálogo, sendo discutidos temas principais da
uma reflexão acerca da transposição dessas vida de quem está sendo alfabetizado. O método
danças a outras manifestações dançantes que tem por objetivo, além de ensinar a ler,
não sejam as específicas dos rituais de desenvolver uma visão crítica da sociedade a
candomblé. Tal reflexão pode ser concretizada a partir do uso de palavras ligadas à realidade dos
partir de danças realizadas nas aulas de indivíduos. Os temas descobertos são
Educação Física, nos grupos, nas academias, nos problematizados e utilizados nas aulas, imagens
espaços informais, permitindo-nos o ingresso no são associadas a esses temas, palavras são
mundo mítico, na mitologia de reis e heróis dissecadas em sílabas, fichas, slides e cartazes
divinizadores, no mistério. No entanto, o são confeccionados pelos próprios alunos e a
interessante é que tal estudo leva-nos também a relação educador-educando é mediatizada pelo
diálogo.
uma reflexão acerca de nossa condição de
Durante a experiência com danças de orixás
educador enquanto possibilitador de
no curso de Educação Física, a convite do Prof.
conhecimentos sobre culturas diversificadas,
Dr. Adilson Nascimento de Jesus, a proposta de
contribuindo para a diminuição de certos
trabalho com danças a partir de temas geradores
preconceitos e discriminações no tocante às
foi discutida e vídeos sobre danças de orixás
práticas rituais integrantes de nossa sociedade.
foram exibidos, com ênfase em imagens que
Atenta ainda para a grandiosidade de
retratassem os movimentos a serem
manifestações corpóreas que não impõem idade,
experienciados em aula. Várias observações
sexo, raça, credo ou cor e que podem contribuir
foram feitas quanto às roupas, acessórios rituais,
para que os indivíduos se voltem para a vivência
transe e acesso do público às festas. As
de sua corporeidade, de suas crenças, de seus
características mais evidentes dos orixás a serem
mitos, tão camuflados na modernidade.
trabalhados foram explanadas, de modo a
A discussão acerca de manifestações
facilitar a compreensão desse universo mítico,
religiosas e culturais que busquem a
desse laboratório de pesquisa.
transcendência, a unidade na dualidade, poderia
Durante a vivência, pensamos
ser um caminho interessante de se repensar as
primeiramente na alfabetização dos corpos,
necessidades humanas. Abriria espaço para
posto que a maior parte dos alunos ainda não
reflexões além das estabelecidas pelos
tinha vivenciado tais experiências. As músicas
programas institucionais e permitiria o ingresso
foram diversificadas e não fizeram alusão aos
no mundo do sagrado, do ritual, do mito e das
rituais religiosos, mas tiveram o vigor da música
suas possibilidades de manifestação na
andina, da música popular brasileira e dos
sociedade moderna, elementos tão camuflados
tambores afro. Os alunos participantes da
nessa sociedade profana.
Muito da movimentação em dança do vivência (cerca de quinze e, em sua maioria,
candomblé não é nada diferente de certas danças mulheres), foram observados a partir dos
que visualizamos na sociedade, dentre as quais seguintes indicadores: dificuldades de
estariam as folclóricas e que são aceitas assimilação e aceitação dos conhecimentos,
socialmente. Muda o sentido, o significado, a alfabetização gestual, diálogo corporal e
configuração do tempo-espaço mítico, mas a libertação de movimentos (criação).

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O tempo permitiu-nos trabalhar as danças de A libertação começa a vir à tona. As


Ogum, Oxóssi, Oxum, Iemanjá e Oxumaré. gestualidades dos orixás aparecem agora
Dada a diversidade de representações gestuais misturadas, entrelaçadas, à medida que os
dos orixás, primamos por aquelas que melhor os alunos vão se recordando de suas
caracterizassem. Ao mesmo tempo em que representações. Encenam, revivem um momento
buscávamos alfabetizar, alfabetizávamos o nosso mítico e adentram tempos e espaços
próprio corpo, já que as observações dos rituais diferenciados por meio da dança.
nos terreiros e nas fitas de vídeo não nos Os corpos dançaram, em sua maioria,
possibilitaram a corporeidade para efetivá-la. graciosamente. Pareciam já ter vivido essa
Embora já tivéssemos experienciado a dança de experiência. Foram interpelados pelo sagrado,
Oxóssi a partir dos ensinamentos de uma filha- pela vivência ritual. O tema-gerador danças de
de-santo no terreiro pesquisado, a mesma não foi orixás levou a despertar outros temas a partir do
suficiente para a satisfação de nossas diálogo estabelecido, dentre os quais estariam as
necessidades. Tivemos que aprender a dançar a lendas dos orixás, o acesso das pessoas aos
partir das observações realizadas, de modo que rituais públicos e privados, a freqüência das
pudéssemos compartilhar nossas experiências festas, a localização geográfica dos terreiros,
com os alunos, o que foi extremamente dentre outros, os quais configuraram-se como
gratificante. elementos a serem problematizados a partir da
A gestualidade escolhida para a realidade dos educandos, das observações
representação da dança de Ogum foi aquela em constatadas na literatura, nas fitas de vídeo e nos
que o orixá abre os caminhos com sua espada e próprios terreiros, já que a inserção numa
realiza giros e movimentos frenéticos com o realidade pode configurar mais facilmente as
tronco. Oxóssi foi representado pela necessidades de vivência gestual e mítica do ser
movimentação das mãos como sendo o próprio dançante, bem como as intenções do
arco e flecha. Oxum pela movimentação sensual pesquisador.
e cadenciada de ombros e braços, segurando Pensar nas danças de orixás e nos inúmeros
suavemente uma espécie de lenço que envolve o preconceitos ainda existentes é buscar, em meio
pescoço e cai à frente do corpo. Os movimentos educacional, um rompimento com ações
de banhar-se em rio e pentear os cabelos antidialógicas que tentam invadir a vida das
também foram realizados. Iemanjá foi pessoas, impondo uma cultura, privilegiando o
representada por uma rápida movimentação individual, manipulando e conquistando. As
onde o corpo fica bastante inclinado, pernas danças de orixás, como um dos temas geradores
afastadas e mãos seguras na saia, enquanto o a serem trabalhados, possibilitariam a
quadril realiza uma bela movimentação. Seus visualização de uma cultura diferenciada, rica
movimentos retratam a profundidade dos mares em gestualidade, em mitologia, e representariam
e a abertura dos caminhos. Por fim, Oxumaré é uma forma de viabilizar o ingresso na síntese
vivenciado pela movimentação dos braços que cultural de que fala Freire (1987), ou seja,
lembram a serpente, com a queda em que o permitir-se conhecer a diversidade das culturas
corpo todo se transforma nesse animal e dá o pela fusão das mesmas, inviabilizando a
bote. sobrepujança de umas sobre as outras.
Os alunos participantes do seminário não Assim, por que não abrirmos espaço para
tiveram muitas dificuldades gestuais para essa um aspecto interessante de nossa cultura que
primeira alfabetização. Alguns se sentiram um busca, mesmo sufocada, tangenciar o sagrado?
pouco receosos e intimidados (como nos foi Por que não oportunizarmos o contato com o
revelado), percebido também nos olhares que nos conhecimento construído por diferentes culturas
acompanhavam, o que pôde ser dissipado ao longo e que fazem parte do cenário brasileiro? Por que
do trabalho. Os movimentos já eram em si bem não nos permitirmos visualizar diferentes
representativos e primorosos. A partir de sua corporeidades (adolescentes/jovens,
exploração e alfabetização, passamos ao diálogo adultos/idosos e brancos/negros) numa mesma
dos corpos a partir do contato com o outro. simbiose?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Física. Uma das possibilidades seria a


construção gestual dessas danças com os
Os rituais afro-brasileiros (aqui em especial próprios alunos, através de imagens visuais
o candomblé) representam uma relevante (fitas de vídeo, festas nos terreiros,
possibilidade de visualização de nossas apresentações de grupos folclóricos ou
manifestações culturais e religiosas. Tal idéia parafolclóricos que trabalhem com
procurou estar implícita em toda a discussão do manifestações afro-brasileiras). A visualização
texto aqui delineado, cujo objetivo foi da imagem e a tentativa de reconstruí-la,
configurar o cenário da dança em terreiros de corporalmente, pela imitação, num primeiro
candomblé, buscando transposições do ritual momento, levaria a uma alfabetização do
para o educacional. Várias observações foram movimento específico a ser trabalhado que, em
feitas e, dentre elas, está a dança enquanto uma diálogo com outros corpos, tornar-se-ia
forma de reviver as histórias míticas dos orixás, enriquecido. A problematização dos temas
consagrando a unidade por meio do geradores complementaria esse processo,
transhumano, da transcendência e do retorno ao pautado num fazer consciente e reflexivo. Num
sacralizado. segundo momento, após a (re) construção
A nossa escolha pelo estudo do candomblé gestual, teríamos as construções coreográficas
não foi pela religião em si, mas pela presença da geradas pelos alunos, podendo ser realizadas com
dança em seus rituais e mitos, pela sua base na movimentação específica de cada orixá ou
grandiosidade gestual, a qual torna-se sagrada generalizada, atribuindo-se ainda o elemento
enquanto manifestação e enquanto forma de artístico (estética de apresentação, seleção de
expressão do ser que dança, sendo capaz de músicas, vestimenta, ocupação do espaço e outros).
levar as pessoas à vivência mítica, à repetição A partir do processo de criação, novas discussões
dos gestos exemplares e à transposição de poderiam ser encaminhadas, tais como
tempos e espaços profanos para o êxtase do movimentação escolhida, mitos revividos, forma de
sagrado. construção coreográfica e possibilidades de
Várias observações foram feitas e, dentre apresentação para a comunidade. A partir de então,
elas, está a dança enquanto uma forma de muitos outros temas poderiam ser gerados e
reviver as histórias míticas da vida dos orixás, trabalhados com os alunos.
consagrando a unidade por meio do Aproximar as pessoas das várias realidades e
transhumano, da transcendência e do retorno ao buscar intercâmbio entre sociedade, escola e
sacralizado. universidade também é papel da educação. Em vez
Gostaríamos de frisar que as danças de se reprimir a minoria pertencente a uma cultura
realizadas nos terreiros de candomblé não discriminada, é preciso, ao contrário, externá-la.
constituem um apêndice ou forma de atração Acreditamos poder contribuir para novas
espetacularizada, mas consagram a essência dos visualizações no setor educacional, para a
rituais. Cada gesto tem um significado próprio e necessidade de um (re) nascer do humano, para a
traduz os personagens de uma história, de enredos,
percepção do sagrado enquanto parte da existência
de acontecimentos míticos e relatos sagrados.
humana.
Teatro e dança fundem-se, assim como homens e
Tendo o candomblé enquanto um
deuses. Uma força da natureza, um deus, um herói
laboratório interessante, é posssível pensarmos
e/ou um animal ancestre são encarnados ou
em transposições dessas danças rituais para o
mimeticamente reelaborados nos gestos, no olhar,
contexto educacional, seja em grupos de dança,
no uso do corpo e na realização dos passos com
escolas, universidades ou academias. É preciso
base coreográfica, unindo ludicidade ao prazer e
proporcionar aos seres em formação a
transportando-nos à configuração de um novo
capacidade de optarem a partir do conhecido, do
cenário, agora sagrado.
vivenciado e do explorado. Ficam as intenções
Pelo esplendor da gestualidade, pela relação
rito-educacionais e o convite à vivência de
eu-tu, pela cultura evidente, acreditamos que as
outros tempos e espaços, a todos os que
danças de orixás representam um tema gerador a
gostarem de ousar e se sentirem incitados a
ser trabalhado nos setores artístico, educacional
novas experiências e transposições.
e aqui, em especial, nas aulas de Educação

Revista da Educação Física/UEM Maringá, v. 11, n. 1, p. 59-67, 2000


Danças de orixás e educação física 67

ORIXÁS DANCES AND PHYSICAL EDUCATION: DELINEATING PERSPECTIVES STARTING FROM THE
RITUALS OF CANDOMBLÉ

ABSTRACT
The aim of this study is to configure dance scenes in candomblé yards seeking out ways to convert ritual
practices into educational models. Using bibliographical and field research, and case experience report, it was
possible to understand the dance and its mythical sense, as well as the sacred gesture of being in motion. Based
on the observations made at candomblé yards at the city of Campinas, the theoretical references, as well as the
experience obtained by the students of the undergraduate course in Physical Education at Unicamp, it was
possible to delineate work perspectives of orixás dances in the educational field. We verified that the gestural,
mythological and cultural riches of these dances may be used in Physical Education classes by starting with
generating themes and using camdomblé yards as an important research laboratory. Working with orixás dances
would represent a form of materializing new visualizations of cultural manifestations still considered as inferior,
and contribute to a decrease in prejudices seen in the academy and increase the relationship between university
and society.
Key words: Orixás dances, physical education, cultural manifestations.

REFERÊNCIAS SANTOS, Juana Elbein dos. Os nàgô e a morte: Pàdè,


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Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.

Endereço para correspondência: Larissa Michelle Lara, Rua Amaurici Cruz de Oliveira, 19, ap. 202. CEP 87010-220-
Maringá-PR. E-mail: laramlara@hotmail.com

Revista da Educação Física/UEM Maringá, v. 11, n. 1, p. 59-67, 2000

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