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David Safier

Maldito Karma

Tradução
Artur Costa e Emília Ferreira
Booket é uma chancela de
Planeta Manuscrito
Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito
1200-242 Lisboa • Portugal
Reservados todos os direitos
de acordo com a legislação em vigor
© 2007,
7 David Safier
© 2007,
7 Rowohlt Verlag GmbH, Reinbek bei Hamburg
© 2010, Planeta Manuscrito
Título original: Mieses Karma
Revisão: Fernanda Fonseca
Paginação: Guidesign
1.ª edição Booket: Junho de 2012
Depósito legal n.º 345 868/12
Impressão e acabamento: Printer Portuguesa
isbn: 978-989-657-314-0
www.planeta.pt
CAPÍTULO 1

O dia da minha morte não teve graça nenhuma. E não


foi só porque morri. Para ser mais exacta, isso ficou mais
ou menos em sexto lugar no rankingg dos piores momentos
do dia. No quinto lugar, ficou o instante em que Lilly olhou
para mim com olhos sonhadores e me perguntou:
– Mamã, por que não ficas em casa? Hoje é o dia dos
meus anos!
Ao ouvir isto, veio-me à cabeça a seguinte resposta: «Se há
cinco anos eu soubesse que o teu aniversário havia de coin-
cidir um dia com a entrega dos Prémios TV, tinha tentado
que nascesses antes. E de cesariana!»
Mas limitei-me a responder-lhe em voz baixa:
– Oh, querida, tenho tanta pena.
A Lilly mordiscou com tristeza a manga do pijama e,
como já não conseguia aguentar mais o seu olhar, juntei
lesta a frase mágica que volta a pôr um sorriso em qualquer
cara infantil por mais triste que esteja:
– Queres ver a tua prenda de anos?
Eu também ainda não a tinha visto. Teve de ser o Alex
a tratar disso, porque eu, com tanto trabalho, há meses que
não fazia compras em lugar nenhum. Também não sentia
falta nenhuma. Nada me punha mais nervosa do que per-
der tempo na bicha do supermercado. E as coisas boas da
vida, da roupa aos sapatos e produtos de cosmética, eu não
precisava de comprar. As melhores marcas eram-me ama-
velmente oferecidas, por ser Kim Lange, a apresentadora do
mais importante programa de debates televisivos da Alema-

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nha. A revista Gala incluía-me entre as «trintonas mais bem
vestidas», ainda que um outro grande título da imprensa
cor-de-rosa me definisse de modo menos lisonjeiro como
uma «chata gordalhufa com ancas adiposas». Indispus-me
com a revista porque eu tinha proibido a publicação de foto-
grafias da minha família.
– Temos aqui uma senhorita linda que quer a sua prenda –
gritei de dentro de casa.
E do jardim chegou o som de uma resposta:
– Então essa senhorita linda terá de vir aqui buscá-la!
Dei a mão à minha emocionada filha e disse-lhe:
– Vá, calça as pantufas.
– Não quero calçá-las! – protestou a Lilly.
– Vais ficar constipada! – avisei.
Mas ela limitou-se a responder:
– Mas ontem não me constipei. E também não as calcei.
E, antes que eu conseguisse encontrar um argumento
razoável contra essa lógica infantil cerrada e obtusa, a Lilly
já se tinha lançado em corrida, descalça pelo jardim, res-
plandecente de orvalho.
Segui-a, sentindo-me derrotada e respirando fundo. Chei-
rava a «daqui a nada é Primavera» e senti-me feliz pela milio-
nésima vez, com uma mistura de perplexidade e orgulho, de
poder proporcionar à minha filha uma fantástica casa com
um enorme jardim em Potsdam, quando eu tinha sido criada
num prédio de apartamentos prefabricados da Alemanha de
Leste. Nesse sítio, o nosso jardim eram três simples canteiros
de gerânios, amores-perfeitos e pontas de cigarros.
O Alex estava à espera da Lilly ao lado de uma coelheira
que ele próprio tinha construído. Com os seus trinta e três
anos continuava muitíssimo atraente, como uma versão
jovem de Brad Pitt, mas, por felicidade, sem o seu sedutor
olhar de aborrecimento. De certeza que o seu corpo ainda
me deixaria louca se as coisas tivessem corrido bem entre
nós. Mas, infelizmente, nesse momento a nossa relação

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estava tão estável como a União Soviética em 1989. E tinha
o mesmo futuro.
O Alex sentia-se mal por estar casado com uma mulher
de sucesso; e eu por ter de privar com um dono de casa
frustrado, cada dia mais farto de ouvir os comentários das
outras mães no parque infantil: «É mesmo maravilhoooso
que um homem trate dos fi lhos em vez de andar a correr
atrás do sucesso.»
Por isso, as nossas conversas começavam com frequência
com «interessas-te mais pelo teu trabalho do que por nós»
e acabavam ainda com maior frequência com um «tem cui-
dado, Kim, estás quase a fazer transbordar o copo».
Dantes, pelo menos, reconciliávamo-nos com facilidade
na cama. Agora já há três meses que isso não acontecia.
E era pena, porque as nossas relações sexuais iam de boas
a excelentes, tudo dependendo de estarmos em melhor ou
pior forma nesse dia. E isso deve, com certeza, querer dizer
alguma coisa porque com os homens que tive antes do Alex
as relações sexuais não eram do tipo de deitar foguetes.
– Aqui tens a tua prenda, boneca – disse o Alex sorrindo,
e apontando para o porquinho-da-índia que mordiscava na
sua toca.
A Lilly gritou entusiasmada:
– Um porquinho-da-índia!
E eu pensei, horrorizada: Um raio de uma roedora grá-
vida!
Enquanto a Lilly olhava louca de alegria para a sua nova
mascote, eu agarrei o Alex pelo braço e puxei-o de lado.
– Esse animal está quase a parir – disse-lhe.
– Não, Kim, só está um bocadinho gordo – acalmou-me
ele.
– Aonde o foste desencantar?
– A uma protectora dos animais – respondeu com inso-
lência.
– E por que não o compraste antes numa loja de animais?

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– Porque nesses sítios os animais estão tão desesperados
como os tipos que vão ao teu programa.
Toma! Isso era para me afectar e afectou. Respirei fundo,
olhei para o relógio e disse com voz trémula:
– Nem trinta segundos.
– «Nem trinta segundos» o quê? – perguntou o Alex des-
concertado.
– Não estiveste nem trinta segundos a falar comigo sem
que tivesses de me atirar à cara o facto de hoje ir à entrega
dos prémios.
– Não te atirei nada à cara, Kim. Apenas questiono as
tuas prioridades – replicou.
Tudo aquilo me exasperava, porque eu tinha querido que
ele me acompanhasse à entrega dos Prémios TV. Ao fim e ao
cabo, devia ser o melhor momento da minha carreira profis-
sional. E, caramba, o meu marido devia estar ao meu lado.
Mas não podia questionar as suas prioridades porque estas
consistiam em organizar a festa de aniversário da Lilly.
Assim sendo, disse-lhe com azedume:
– E o raio da roedora está prenha!
– Faz-lhe um teste de gravidez – respondeu o Alex seco e
girou nos calcanhares em direcção à gaiola.
Fiquei a olhar para ele, fulminando-o com o olhar
enquanto ele tirava o porquinho e o punha nos braços de
uma Lilly supercontente. Os dois deram-lhe dentes-de-leão
para comer. Eu fiquei de parte. De certo modo, fora de jogo,
o que se estava a tornar, cada vez mais, o meu lugar habitual
dentro da nossa pequena família. Um sítio nada agradável.
E ali, fora de jogo, não pude deixar de pensar no meu
próprio teste de gravidez. Não me aparecia o período e
consegui ignorá-lo durante uns seis dias, com uma energia
repressiva sobre-humana. Ao sétimo, fiz um sprintt até à far-
mácia, logo ao princípio da manhã, com um «merda, merda,
merda» nos lábios. Comprei um teste de gravidez, regressei
a casa com novo sprint, o teste caiu-me na retrete, de tão

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nervosa que estava, voltei a correr à farmácia, comprei outro
teste, regressei outra vez a correr, mijei em cima do tubinho
e tive de esperar um minuto.
Foi o minuto mais longo da minha vida.
Um minuto no dentista já é longo. Um minuto de música
e danças tradicionais na televisão é ainda mais comprido.
Mas o minuto de que um cabrão de um teste de gravidez
precisa para decidir se vai ou não marcar uma segunda
linha é a mais dura prova de paciência do mundo.
Embora ainda tivesse sido mais difícil ver a segunda linha.
Considerei a possibilidade de abortar, mas não podia
suportar a ideia. A minha amiga Nina teve de o fazer aos
dezanove anos, depois das nossas férias em Itália, e eu vi
o quanto sofreu com isso. Para mim era muito claro que,
apesar da dureza a que estava acostumada por ser apresen-
tadora de um programa de debate, levaria os pesos de cons-
ciência muito mais a fundo do que a Nina.
Assim sendo, seguiram-se nove meses que me desconcerta-
ram profundamente: enquanto o pânico tomava conta de mim,
o Alex tratava-me com o maior carinho e estava muitíssimo
expectante em relação à criatura. De certo modo, isso deixava-
-me furiosa, porque me fazia sentir ainda mais mãe desnaturada.
Na verdade, o processo da gravidez foi muito abstracto
para mim. Via as ecografias e sentia pontapés na barriga. Mas
só em pouquíssimos e breves momentos de felicidade fui capaz
de compreender que dentro de mim crescia uma pessoinha.
A maior parte do tempo estava ocupada a lutar contra os
enjoos e as alterações hormonais. E a assistir a aulas de prepa-
ração para o parto, nas quais tinha de «me aperceber do útero».
Seis semanas antes do parto, deixei de trabalhar e, afun-
dada no sofá de casa, formei uma ideia de como devem sentir-
-se as baleias encalhadas na praia. Os  dias decorriam com
lentidão e, quando as águas se romperam, podia ter-me sen-
tido aliviada por ter enfim chegado a hora; isto se não estivesse
precisamente na fila para a caixa de um supermercado.

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Deitei-me logo no chão frio, como o médico me tinha
indicado que fizesse nessa situação. À minha volta, os clientes
comentavam coisas como: «não é a Kim Lange, a apresentadora
do costume?», «tanto me faz, desde que abram outra caixa!» e
«ainda bem que não sou eu que tenho de limpar esta porcaria».
A ambulância levou quarenta e três minutos a chegar,
durante os quais dei alguns autógrafos e tive de esclarecer a cai-
xeira que se tinha criado uma falsa imagem dos apresentado-
res masculinos dos noticiários («não, não são todos maricas»).
Ao chegar à sala de partos, começou um parto de vinte
e cinco horas. A  parteira incentivava-me, continuamente,
no meio de dores terríveis: «Seja positiva. Dê-lhe as boas-
-vindas!» E eu, desarvorada pela dor, pensei: Se sobreviver a
isto, mato-te, meu ganda estupor.
Pensei que morria. Sem o Alex e os seus modos tranqui-
lizadores, era certinho que não tinha aguentado. Não parava
de me dizer, com voz firme: «Estou contigo! Sempre!» E eu
apertava-lhe a mão; com tanta força que levou semanas sem
a poder mexer em condições. (As enfermeiras confessaram-
-me depois que davam sempre nota aos maridos de acordo
com o carinho com que tratavam as mulheres nas horas
stressantes do parto. O Alex conseguiu um sensacional 9,7.
A nota média era de 2,73.)
Quando, depois daquele tormento, os médicos me puse-
ram a Lilly – espremida pelo parto – em cima da barriga,
todas as dores foram esquecidas. Não podia vê-la porque os
médicos ainda estavam a tratar de mim. Mas sentia a sua pele
suave e enrugada. E esse foi o momento mais feliz da minha
vida. Agora, cinco anos depois, a Lilly estava diante de mim,
no jardim, e eu não podia festejar o seu aniversário com
ela porque tinha de ir a Colónia à entrega dos Prémios TV.
Engoli em seco e aproximei-me, de coração apertado, da
minha pequenina, que estava a pensar num nome para dar
ao seu porquinho-da-índia («vai chamar-se Pipi, Peidoca ou
Bárbara»). Dei-lhe um beijo e prometi-lhe:

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– Amanhã passo o dia contigo.
O Alex comentou com desdém:
– Se ganhares o prémio, amanhã vais passar o dia inteiro
a dar entrevistas.
– Então, passo a segunda-feira com a Lilly – respondi, já
com a mosca.
– Tens de te reunir com a direcção – contra-atacou o Alex.
– Então não vou.
– Sim, tá bem – disse, com um sorriso sarcástico que des-
pertou em mim um profundo desejo de lhe enfiar uma barra
de dinamite na boca. E concluiu: – Nunca tens tempo para
a miúda.
Mal ouviu isto, os olhos tristes da Lilly disseram: «O papá
tem razão.» E isso tocou-me na alma. Tanto que me deixou
a tremer.
Desconcertada, fiz-lhe uma festa no cabelo e disse-lhe:
– Juro-te por tudo o que é mais sagrado que muito em
breve passaremos juntas um dia fantástico.
A Lilly sorriu débil. O Alex ia dizer alguma coisa, mas
fulminei-o com o olhar e ele, sabiamente, pensou duas
vezes. De certeza que viu nos meus olhos um vislumbre das
barras de dinamite. Dei mais um abraço à Lilly, saí para o
terraço1, entrei em casa, respirei fundo e pedi um táxi para
o aeroporto. Por estas horas, ainda não suspeitava como
seria difícil cumprir a promessa que tinha feito à Lilly.

1
Das memórias de Casanova: na minha vida número cento e treze como
formiga, um dia dirigi-me à superfície com uma companhia. Por ordem da
rainha, tínhamos de fazer o reconhecimento do terreno em redor do nosso
domínio. Marchávamos sob um calor abrasador, sobre umas pedras arden-
tes, aquecidas pelo sol, quando de repente o Sol escureceu de um modo
quase apocalíptico. Os meus olhos dirigiram-se para o alto e vi a sola de
uma sandália de mulher descendo imparável na nossa direcção. Foi como
se o céu caísse sobre as nossas cabeças. E então pensei: Mais uma vez tenho
de morrer, porque um humano não presta atenção suficiente aos seus passos.

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CAPÍTULO 2

No quarto lugar dos momentos mais miseráveis do dia


ficou a visão do meu reflexo no espelho da casa de banho do
aeroporto. Não foi por, uma vez mais, comprovar que, para
uma mulher de trinta e dois anos, tinha demasiadas rugas
à volta dos olhos que esse momento foi miserável. Nem tão-
-pouco porque o meu cabelo de palha se negara a ficar de
um modo razoável (para isso já eu tinha duas horas reserva-
das com a minha cabeleireira Lorelai, antes da entrega dos
prémios). Foi um mau momento porque perguntei a mim
mesma se seria atraente aos olhos do Daniel Kohn.
Esse Daniel também tinha sido nomeado para a catego-
ria de Melhor Apresentador de Programas de Informação e
era conhecido por ser um tipo moreno e escandalosamente
atraente que, ao contrário da maioria dos apresentadores do
país, possuía um encanto natural. O Daniel tinha perfeita
consciência do efeito que causava nas mulheres e gostava de
tirar partido disso. E, sempre que nos encontrávamos numa
festa dos meios de comunicação, olhava-me bem fundo nos
olhos e dizia: «Se me ligasses alguma, eu renunciaria a todas
estas mulheres.»
Como é natural, havia tanta verdade nesta frase como
na afirmação: «No Pólo Sul existem elefantes cor-de-rosa.»
No entanto, uma parte de mim desejava que fosse ver-
dade. E  outra parte sonhava ganhar o Prémio TV, passar
depois mesmo à frente da mesa do Daniel, com garbo e
dando uma gargalhada triunfal, e, nessa noite, ter sexo sel-
vagem com ele no hotel. Durante horas. Até o director do

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hotel quase deitar a porta abaixo porque um grupo de rock
instalado no quarto ao lado se tinha queixado do barulho.
Contudo, a maior parte de mim odiava-me pelos pensa-
mentos que ocorriam às duas primeiras partes. Se acabasse
na cama com o Daniel era certinho a aventura chegar aos
ouvidos da imprensa, o Alex pediria o divórcio e eu, mãe
desnaturada, partiria decididamente o coração da minha
pequena Lilly. O meu desejo de ir para a cama com o Daniel
provocou-me então um tal sentimento de culpa que pensei
que não iria voltar a olhar para a minha cara no espelho nos
próximos vinte anos.
Lavei as mãos com rapidez, saí da casa de banho do aero-
porto e dirigi-me à porta de embarque. O  Benedikt Car-
stens saudou-me com um eufórico «Hoje será o nosso dia,
miúda!» enquanto me dava um valente apertão na bochecha.
O Carstens, sempre impecavelmente vestido, era o meu
chefe de redacção e o meu mentor. Quase, quase, o meu mestre
Yoda pessoal, embora com bastante maior domínio da sintaxe.
Tinha-me descoberto na emissora de rádio de Berlim, para
onde fui trabalhar quando acabei o curso. A princípio, era uma
simples redactora. Porém, um domingo de manhã o apresen-
tador não apareceu. Na noite anterior, tinha saído para tomar
uns copos e tinha expressado a um porteiro turco a sua teoria
de que a sua mãe não era mais do que uma cadela sarnenta.
Tive de ir de modo espontâneo «para o ar» para substituir
esse homem que estaria indisposto durante muito tempo e,
pela primeira vez na minha vida, ouvi-me a dizer: «Bom dia.
São seis da manhã.» A partir desse momento, fiquei viciada.
Adorava a embriaguez da adrenalina, no momento em que a
luz vermelha se acendia. Tinha encontrado o meu caminho!
O Carstens observou o meu trabalho durante uns meses,
até que por fim me procurou e disse:
– Você tem a melhor voz que eu já ouvi. – E ofereceu-me
emprego na cadeia de televisão mais espectacular da Ale-
manha. Ensinou-me a  apresentar-me diante das câmaras.

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E revelou-me o mais importante para uma pessoa se mexer
nesse mundo: como ficar com o lugar dos colegas. Nesta última
área, e graças aos seus ensinamentos, consegui amadurecer
até me tornar especialista, tendo ficado conhecida na redac-
ção como a que «vai deixando o caminho pejado de cadáveres
e ainda os espezinha». Mas, se esse era o preço a pagar para
poder cumprir o meu destino, eu pagava-o de bom grado.
– Sim, hoje será o nosso dia – disse ao Carstens, com um
sorriso preocupado.
Ele olhou-me e perguntou:
– Passa-se alguma coisa, miúda?
Como não podia responder «quero ir para a cama com
o Daniel Kohn, da concorrência», limitei-me a dizer:
– Não, está tudo bem.
– Não vale a pena disfarçares. Sei muito bem o que se
está a passar contigo – respondeu.
O pânico tomou conta de mim. Sabia do Daniel Kohn?
Tinha-o visto a meter-se comigo na recepção aos média que
tinha sido dada na Chancelaria? E que eu ficara toda corada
como se o Robbie Williams me tivesse chamado ao palco em
pleno concerto?
O Carstens sorriu.
– Eu, no teu lugar, também estaria nervoso. Não é todos
os dias que uma pessoa é nomeada para os Prémios TV.
Por breves segundos, senti-me aliviada: afinal, não tinha
nada a ver com o Kohn. No entanto, logo a seguir tive de
engolir em seco. Estava mesmo com os nervos em frangalhos,
mas a minha consciência pesada em relação à Lilly tinha con-
seguido reprimi-lo toda a manhã. Em contrapartida, agora, o
nervosismo voltava a fazer-se presente com todas as suas for-
ças. Iria ganhar o prémio dessa noite? Iriam as câmaras filmar
o meu sorriso de vencedora? Ou sairia apenas no jornal de
domingo como a «vencida gordalhufa com ancas adiposas»?
Os meus dedos aproximaram-se, nervosos, da boca, mas,
no último instante, consegui evitar roer as unhas.

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*
Ao chegar a Colónia, registámo-nos no Hyatt, um hotel
de luxo onde ficavam todos os nomeados para os Prémios
TV da Alemanha. Assim que cheguei ao quarto, deixei-me
cair na cama macia, fiz zappingg ao ritmo de uma décima de
segundo por canal, fui parar aos canais pagos e perguntei-
-me quem raio é que desembolsaria vinte euros para ver um
filme porno intitulado Danço por Esperma.
Decidi não desperdiçar demasiados neurónios com seme-
lhante pergunta e ir até ao bar tomar um desses chás chineses
relaxantes, com um ligeiro sabor a sopa de peixe.
No bar, um pianista tocava umas baladas de Richard
Claydermann, tão enjoativas que imaginei estar num saloon
do Oeste Selvagem: ele a tocar as suas melodias e eu a orga-
nizar um linchamento.
E, de repente, mesmo quando já estava em casa do fer-
reiro de Dodge City a preparar o alcatrão e as penas com a
rapaziada, vi… o Daniel Kohn.
Estava a fazer o check in na recepção, e eu senti a minha
pulsação aumentar de ritmo. Uma parte de mim esperava
que ele me visse. A outra rezava para que até viesse sentar-
-se ao meu lado. Mas a maior parte de mim perguntava-se
como é que poderia fazer calar de vez as outras partes, estú-
pidas e irritantes, que me complicavam a vida.
Com efeito, o Daniel olhou para mim e sorriu. A minha
parte que o tinha desejado teve um momento de alegria
incontida e gritou, ao velho estilo do Fred Flinstone: Yabba
Dabba Doo!
O Daniel aproximou-se de mim e sentou-se à minha
mesa com um cordial «olá, Kim». A parte que tinha rezado
por isso agarrou a parte um e cantou em coro com ela: Oh,
happy days!
Quando a parte três se predispunha a protestar, as outras
duas agarraram-na, amordaçaram-na e resmungaram:
«Cala-me esse bico de vez, ó desmancha-prazeres!»

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– Nervosa por causa desta noite? – perguntou-me ele.
Tentei disfarçar o meu nervosismo e dar uma resposta
o mais firme possível.
– Não – respondi, ao fim de uns intermináveis segundos,
e tive de admitir que essa resposta deixava muito a desejar
em termos de firmeza.
Daniel estava calmo.
– Também não tens razões para isso. Vais ganhar, de certeza.
Disse-o de uma forma tão encantadora que quase acredi-
tei na sua sinceridade. Mas, claro está, ele estava firmemente
convencido de que quem ia ganhar era ele.
– Depois de teres ganho, vamos celebrar – continuou.
– Muito bem, está combinado – respondi.
Essa também não foi uma resposta em particular bri-
lhante, mas ao menos tinha pronunciado quatro palavras
seguidas e com sentido. Era um pequeno progresso, em ter-
mos de desenvoltura.
– Também podemos celebrar se for eu a ganhar? – per-
guntou ele.
– Claro que sim – respondi, com uma ligeira tremura na
voz.
– Então, aconteça o que acontecer, vai ser uma bela noitada.
Daniel levantou-se com um ar deveras satisfeito (tinha
conseguido o que queria) e disse:
– Desculpa, mas tenho de ir andando. Tenho de ir arran-
jar-me.
Fiquei a vê-lo afastar-se, observei o seu rabo fantástico
e imaginei como ficaria no duche, debaixo de água. Só de
pensar nisso, roí as unhas.

– O que aconteceu às tuas unhas? Nem mesmo se passas-


ses fome… – observou a minha estilista Lorelei, enquanto
me dava uns retoques no salão de cabeleireira do hotel.
Ao meu lado estava formada uma concentração de fêmeas
do sector: actrizes, apresentadoras, apêndices dos famosos.

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Nenhuma delas era candidata a qualquer prémio, o seu
único interesse era suplantar a concorrência no que tocava a
«ver e mostrar-se». Todas me desejaram muita sorte e, como
é natural, faziam-no muito sérias. Eu também lhes respon-
dia com ar sério, ao dizer-lhes: «Estás linda», ou «Estás com
um óptimo aspecto!» ou «Que exagero, o teu nariz nunca
serviria de heliporto».
A conversa seguiu nesse tom hipócrita. Até ao momento
em que a Sandra Kölling entrou na sala.
Sandra ficaria, no máximo, em quarto lugar num con-
curso de duplos da conhecida apresentadora Sabine Chris-
tiansen e tinha sido a minha predecessora no programa de
entrevistas do horário nocturno. Eu tinha ficado com o seu
lugar porque era melhor do que ela. E porque era mais tra-
balhadora. E porque tinha feito um aviso discreto à direcção
quanto ao seu problema com a cocaína.
Todas as presentes sabiam que, a partir de então, a Sandra
e eu cultivávamos uma inimizade como as que só se vêem
nas séries americanas. Por isso, todas se calaram e ficaram
a olhar para nós. Ficaram à espera da discussão furiosa de
duas hienas repletas de ódio. E regozijavam-se com isso.
A Sandra bufou:
– É o cúmulo.
Eu não dei resposta. Limitei-me a olhá-la fixamente nos
olhos. Durante muito tempo. Com dureza. Com frieza.
A temperatura da sala baixou pelo menos quinze graus.
A Sandra começou a tiritar de frio. Eu continuei a cravar-
-lhe o olhar. Até que ela não aguentou mais e saiu.
As mulheres recomeçaram as conversas. A Lorelei voltou
a ocupar-se do meu cabelo. E a minha imagem no espelho
sorriu-me, satisfeita.

Quando a Lorelei acabou o seu trabalho, o meu cabelo


estava perfeito e apenas um arqueólogo seria capaz de encon-
trar rugas nos contornos dos meus olhos, sob a maquilha-

19
gem. Até conseguiu ocultar as minhas unhas roídas debaixo
de umas artificiais. Já só faltava o vestido, que tinham de me
levar ao quarto. Um Versace! Estava louca de alegria com os
trapinhos, que valiam mais do que um carro pequeno, e que
Versace tinha feito para mim, para a gala, e, como é natu-
ral, de borla. Já o tinha experimentado numa loja de Berlim
e estava bastante convencida de que nessa noite iria usar o
melhor vestido do mundo: era um vermelho lindo, caía suave
sobre a pele, realçava-me o peito e disfarçava-me as coxas.
Que mais é que uma mulher pode pedir a um vestido?
Sentei-me esperançosa no meu quarto e pensei, com
orgulho, no longo caminho percorrido: de miúda de um
bairro de apartamentos prefabricados, onde as pessoas pen-
sariam com certeza que Versace era um futebolista italiano,
a apresentadora de famosos programas de tertúlia que, den-
tro de duas horas, iria ganhar o Prémio TV, envolta num
fabuloso vestido Versace, que o Daniel Kohn iria arrancar
à noite, para fazer amor, selvaticamente, com ela…
Naquele mesmo instante, tocou o telemóvel. Era a Lilly.
Um  maremoto de má consciência tomou conta de mim:
a Lilly chamava-me à terra. E eu a pensar em enganar o meu
marido, seu pai!
A festa de anos ia de vento em popa e a Lilly contava,
toda contente:
– Primeiro, fizemos corridas de sacos, depois com ovos
e depois uma guerra de bolos sem bolos.
– Uma guerra de bolos sem bolos? – perguntei, confusa.
– Salpicámo-nos com ketchup… e com maionese… e ati-
rámos esparguete à bolonhesa umas às outras – explicou ela.
Sorri ao imaginar o fraco entusiasmo das outras mães
quando fossem buscar os filhos.
– A avó ligou para me dar os parabéns – continuou a
Lilly e o sorriso desapareceu da minha cara.
Há anos que tentava, por todos os meios, manter longe da
família o desastre que eram os meus pais.

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O inútil do meu pai tinha-nos abandonado, por causa de
uma das suas muitas conquistas, quando eu era da mesma
idade que a Lilly. A  partir de então, a minha mãe contri-
buiu para o aumento anual de doze por cento das vendas de
álcool do bairro. Quando se armava na «avozinha querida»
costumava ser para me sacar ainda mais dinheiro do que
o que já lhe enviava por mês.
– E como é que estava a avó? – perguntei com algum
receio, porque temia que estivesse bêbeda quando telefonara
à Lilly.
– Estava a balbuciar – respondeu ela, com o tom calmo
de uma miúda que nunca tinha conhecido a avó num estado
diferente.
Procurei as palavras mais adequadas para lhe explicar a
questão do balbuciar. Mas, antes mesmo de ter tempo para
encontrar uma única, a Lilly gritou:
– Oh, não!
Fiquei sobressaltada.
– Que se passa? – perguntei, inquieta, enquanto pela
minha cabeça passavam de imediato uns milhares de cená-
rios catastróficos.
– O palerma do Nils está a queimar formigas com uma
lupa1!
A Lilly desligou de repente e eu respirei fundo; não tinha
acontecido nada de mal.
Fiquei cheia de saudades a pensar na miúda, e ficou clara
uma coisa: nessa noite não haveria nenhum «Daniel Kohn
arranca vestidos de Versace».

1
Das memórias de Casanova: as formigas têm muitos inimigos naturais:
aranhas, baratas, diabretes com lupas. Ardi, como acontecia aos cristãos na
antiga Roma, e morri uma segunda vez nesse dia, em que a sorte simples-
mente não me sorria. O último pensamento que consegui formular no meu
espírito agonizante foi: «Se alguma vez conseguir reunir suficiente bom
Karma para voltar ao mundo como homem, darei pessoalmente uma valente
patada no rabo de cada pirralho que me salte ao caminho com uma lupa.»

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Pensei se deveria chamar o Alex ao telefone para lhe
agradecer o facto de ter organizado uma festa de anos tão
divertida. Mas quanto mais pensava nisso mais ficava claro
que íamos acabar a discutir outra vez.
Até custava a crer que alguma vez tivéssemos sido felizes
juntos.
O Alex e eu tínhamo-nos conhecido numa viagem pela
Europa que eu fiz quando acabei o 12.º ano. Ele viajava de
mochila, eu viajava de mochila. Ele gostava de viajar pelo
mundo, eu fazia-o pela minha amiga Nina. Ele gostava de
Veneza, e para mim era insuportável o siroco estival, o ar
pestilento dos canais e a praga de mosquitos que chegava
a atingir proporções francamente bíblicas.
Na minha primeira noite em Veneza, a Nina fez, na
praia, o que sabia fazer melhor: deixar os italianos loucos
com os seus angelicais caracóis louros. Eu, pela minha
parte, empenhei-me a matar mosquitos e a perguntar a
mim mesma como é que se pode ser tão idiota para se deci-
dir construir meia cidade em cima de água. Enquanto isso,
mantinha à distância os italianos impregnados de hormonas
que a Nina ia caçando para mim. Um deles chamava-se Sal-
vatore. Só tinha abotoados os dois últimos botões de baixo
da camisa branca, tresandava a after shave barato e enca-
rava os meus No, no!! como um convite para enfiar a mão
por baixo da minha blusa. Defendi-me com uma bofetada
e um Stronzo!! Não sabia o que a palavra queria dizer, mas
já a tinha ouvido a um gondoleiro que rejeitara, e deixou o
Salvatore deveras furioso. Ameaçou que me batia se não me
calasse.
Não disse mais nada.
Enfiou-me a mão debaixo da blusa. Senti subir uma onda
de pânico e nojo. Mas não conseguia fazer nada. Estava
paralisada de medo.
No momento em que ia pôr-me a mão numa mama, o
Alex parou-o. Apareceu vindo do nada. Como um cavaleiro

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numa história de amor – nas quais eu não acreditava graças
ao meu pai. O Salvatore virou-se a ele com uma faca. Disse
um disparate qualquer em italiano e, embora eu não tivesse
percebido uma única palavra, a cantilena era bastante clara:
se o Alex não o largasse de imediato, acabaria por se tornar o
protagonista da sua própria versão de Inverno de Sangue em
Veneza. O Alex, que tinha praticado jiu-jitsu durante anos,
tirou-lhe a faca da mão com uma simples palmada, com tal
força que o Salvatore decidiu que o melhor era ir-se embora
com o rabo entre as pernas, no sentido literal da expressão.
Enquanto a Nina passava a noite a perder a sua virgin-
dade, o Alex e eu ficámos sentados nas margens da laguna,
falando e falando. Gostávamos dos mesmos filmes (Quanto
mais Quente Melhor, Aonde Pára a Polícia, A  Guerra das
Estrelas), gostávamos dos mesmos livros (O  Senhor dos
Anéis, Catch 221 e da banda desenhada de Calvin e Hobbes)
e odiávamos a mesma coisa (professores).
Quando o Sol voltou a nascer sobre Veneza, disse-lhe:
«Acho que somos almas gémeas.» E o Alex respondeu-me:
«Eu não acho; tenho a certeza.»
Como estávamos enganados!
Voltei a guardar o telemóvel no bolso e, de repente, senti-
-me só, na cama macia do meu quarto num hotel de luxo.
Terrivelmente só. Este era o meu grande dia e o Alex não ia
partilhá-lo comigo. E eu não queria telefonar-lhe.
Era muito claro para mim: já não gostávamos um do
outro. Nem sequer um bocadinho.
E esse momento ocupou o lugar número três dos piores
momentos do dia.

1
Livro de Joseph Heller, publicado nos anos de 1960, passado durante
a Segunda Guerra, e do género da série televisiva M.A.S.H. Este livro deu
origem a uma expressão idiomática em inglês que se refere às situações em
que, apesar de haver várias opções, todas conduzem ao fracasso. (N. dos T.)

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CAPÍTULO 3

Cinco minutos depois, durante os quais fiquei para ali


sentada e aturdida, bateram à porta: um paquete trazia-me
o vestido do Versace. Tinha chegado o grande momento:
tirei-o com cuidado do embrulho, com o firme propósito
de dar saltos de alegria. Mas as minhas pernas continuaram
presas com firmeza ao chão. Estava em estado de choque.
O  vestido era azul! Raios partam! Não era para ser azul!
Nem era para ser caicai! Aqueles grandes idiotas tinham-
-me mandado o vestido errado.
Telefonei logo à empresa:
– Sou a Kim Lange. Enviaram-me o vestido errado.
– Como? – perguntou uma voz do outro lado da linha.
– Isso mesmo pergunto eu! – respondi com uma voz
situada, sem margem para dúvidas, na frequência mais alta.
– Hum… – ouvi, e esperei que, a esse som, se seguissem
algumas palavras. Mas não foi isso que aconteceu.
– Talvez fosse melhor deitar uma vista de olhos aos seus
papéis – propus com uma voz capaz de partir um copo de
cristal.
– Muito bem. Vou já fazer isso – ouvi a voz dizer, num
tom aborrecido.
O sujeito que me atendia estava mais interessado noutras
coisas: a contabilidade, ver televisão, meter o dedo no nariz.
– Daqui a uma hora tenho de estar na entrega dos Pré-
mios TV – insisti.
– Prémios TV? Nunca ouvi falar disso – respondeu.

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