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Sutilezas do tratamento do Real no final do ensino lacaniano: a letra, o savoir-y-

faire e l’âme à tiers


Andréa Máris Campos Guerra1

Introdução
Variações da mesma nota, eis como podemos compreender esse texto. O tratamento do
Real no corpo teórico da psicanálise lacaniana é rico e avança com a topologia dos nós
borromeanos. Lacan busca, ao final de seu ensino, mostrar com a “realidade
operatória” (LACAN, 1974-75) da topologia borromeana o manejo clínico desse
elemento definitivo na posição do falasser. Aqui, a cada variação, introduzimos uma
diferença, uma novidade. Seguimos com rigor o raciocínio teórico-clínico de Lacan e,
com ele, passeamos por diferentes paisagens, a saber: (1) a letra como escrita litoral do
sujeito; (2) a introdução do Real pelo “y” no savoir-faire; (3) e, enfim, uma terceira
dimensão, l’âme-à-tiers, que ele inclui na Linguagem aplainada do significante pela via
da poesia. Foram estas as pistas que ousamos seguir, extraindo delas suas conseqüências
mais radicais, implicadas no tratamento do impossível (Real) pelo contingente. Já que
trabalhamos com seres falantes possuídores de um corpo de gozo afetado pela
Linguagem, é preciso tomar em sua especificidade a experiência do humano para com
ele fazermos nossa clínica operar. Saber-fazer-com isso é a arte!

A Letra e o Real: litoral, sulco, rasura


Ao tratar da escrita do sujeito ou daquilo que dele se pode escrever, Lacan forja o
conceito de letra. Entre Real e Simbólico, a letra dá suporte ao que, da intangibilidade
do gozo, pode ganhar traçado, litoral. Ela vivifica o gozo na escrita que singulariza a
não-relação do sujeito. Da língua mãe (lalíngua) extrai o que orientará o texto do sujeito
na repetição do contorno ao que não cessa de não se escrever, ou seja, ao impossível.
Daí o sintoma, como resultado necessário, insistir em se escrever sobre essa marca,
atualizando-a2.
Em Lituraterre (1971/1986), Lacan nos dá as indicações do que seria essa escrita. Logo
de saída brinca com a etimologia do título que inventa para seu texto a ser publicado
numa edição especial sobre Literatura e Psicanálise da revista Littérature. Desdobra os
termos de sua invenção ao dizer que ele está antes em associação com o termo latino

1 Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ), com Estudos Aprofundados em Rennes II, Professora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas, psicanalista. Email: aguerra@uai.com.br.
2 Lacan aqui recorre à lógica aristotélica (possível, impossível, contingente e necessário) para trabalhar o
sintoma e a contingência de sua solução diante do impossível de se escrever.
original Litura (em latim: risco, alteração, mancha e terra) que com Littera (referido à
letra e à palavra Literatura). O que, nos parece, indica o estatuto que irá conferir à letra
nesse texto.
Na década de 50, Lacan trazia em “A instância da letra” (1957b/1998, p. 498) que
“designamos por letra esse suporte material que o discurso concreto toma emprestado
da linguagem”, ressaltando sua materialidade em relação à Linguagem, ao significante.
Na verdade, Lacan utiliza o termo lettre3 pela primeira vez em “O Seminário sobre ‘A
carta roubada” (1957a/1998), associando-o à expressão “a letter, a litter”, uma
carta/uma letra, um lixo. Desde já, a idéia de uma materialidade se apresenta ao lado da
idéia do que faz circular o discurso. Trata-se, no conto de Edgard Allan Poe comentado
por Lacan, de uma carta a ser recuperada pois colocava em risco a rainha. Ela,
entretanto, é ‘disfarçada’ numa carta velha, dejeto, que os policiais investigadores
pegam sem se darem conta de ser exatamente a que procuravam. Com isso, Lacan
evidencia uma dimensão outra, para além da mensageira, que reside na carta. O destino
da carta extrapola sua função de levar uma mensagem. Isso aparece no conto, pois é
exatamente depois de cumprir seu destino que ela circula como objeto de mão em mão,
como materialidade passível de ser largada, pegada, rasgada, alterada – lixo, litter
(MANDIL, 2003, p. 28).
Lacan retoma o termo na década de 70 como litoral entre saber e gozo, posto que separa
dois domínios que não têm nada em comum, nem uma relação recíproca. Não se trata de
fazer fronteira entre dois, nos adverte ainda Lacan (1971/1986), pois a fronteira, ao
separar dois territórios, indicaria que eles são da mesma natureza, posto que
representável na linha demarcatória. A letra escreve a radicalidade da diferença de
consistências entre saber, elucubração em torno da verdade, e gozo, desfrute do que essa
verdade tem de inacessível.
“A borda do furo no saber, que a psicanálise designa justamente como de abordagem
da letra, não seria o que ela desenha?” (LACAN, 1971/1986, p. 23). A letra seria uma
espécie de franja que avança entre as duas consistências de naturezas diversas,
desenhando ou escrevendo essa borda tão pouco precisa no ser falante. Lacan é
cuidadoso ao avançar e diz que tudo isso não impede o que ele disse do inconsciente
enquanto efeito de Linguagem. A letra suporia sua estrutura como necessária e
suficiente. A questão é, antes, como o inconsciente comandaria esta função de letra.

3 Lettre ganha na língua francesa um jogo homofônico permitindo ser interpretada seja como carta, seja
como letra. E Lacan ainda lhe acrescenta a homofonia com litter, estendendo seu sentido a lixo, dejeto,
resíduo.
Pensar, pois, a relação entre letra e inconsciente nos conduz inevitavelmente a discutir a
posição da letra em face do significante. E, quanto a esse aspecto, Lacan é enfático logo
de saída. A letra não se confunde com o significante. “A escritura, a letra, estão no real,
o significante, no simbólico” (LACAN, 1971/1986, p. 28). Além disso, não podemos
atribuir uma primariedade da letra em relação ao significante. Ela simbolizaria efeitos
de significantes, mas isso não exigiria que ela estivesse presente nesses mesmos efeitos,
nos quais o significante não serve senão de instrumento. Seria mais importante o exame
“disto que a partir da linguagem chama do litoral ao literal” (LACAN, 1971/1986, p.
23), disso que a letra, em síntese, escreve. E o que é esse literal senão a letra enquanto
redução mínima do sujeito, enquanto sua escrita?
Ora, escrita não é impressão. E letra não é significante ou Wahrnehmungszeichen, Wz,
traço inconsciente freudiano4, aqui considerado o que de mais próximo ao significante
poderíamos encontrar em Freud. Voando sobre a Sibéria, Lacan observa sulcamentos na
terra, e não o arbitrário do signo e do mapa, os códigos, as mensagens ou as fronteiras.
Exigido um desvio de rota de seu avião, ele observa o que faz sulco na paisagem. “O
escoar é o único traço que aparece a operar” (LACAN, 1971/1986, p. 26). Toda a
elaboração de mapeamentos se faz como código sobre esses sulcos. A letra seria, então,
um remate daquilo que, no seminário sobre “A identificação” (1961-62), Lacan
distinguiu do traço primeiro e do que o apaga.
“Eu o disse a propósito do traço unário: é pelo apagamento do traço que se designa o
sujeito. Ele é marcado, pois, em dois tempos; eis o que distingue aquilo que é rasura, litura,
lituraterra. Rasura de nenhum traço que seja anterior, eis o que faz terra do litoral. Litura
pura é o literal. Produzir essa rasura é reproduzir esta metade de que subsiste o sujeito. [...]
Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há rasura que vira literal” (LACAN, 1971/1986,
p. 26-27).

Além da dimensão do sulco, Lacan também destaca a dimensão da rasura – rasura,


porém, de nenhum traço que lhe seja anterior. A idéia de rasura nos reporta ao ato de
reescrever, apagar para melhor escrever. Quando, entretanto, Lacan introduz a idéia de
uma rasura sobre o que não está lá, estira ao limite do Real a noção de Linguagem. É da
Linguagem da qual o significante apanha “seja o que for” na rede de significantes e
disso faz escrita no exato momento em que esse elemento é promovido à função de

4 Os Wz (Wahrnehmungszeichen) são os traços mnêmicos que se associam por simultaneidade e indicam


uma primeira forma de registro. Unbewusstsein (Ub) é o segundo registro que sucede ao primeiro,
referente às percepções que se associam por simultaneidade. Os traços de Ub “talvez correspondam a
lembranças conceituais” (FREUD, 1896/1976, p. 325) ainda inconscientes. Correspondem ao que Freud
posteriormente irá estabelecer como Vorstellungsrepräsentanz (representante da representação). Segundo
LIMA (1994), a questão do traço em Freud se apresenta a partir de três possibilidades diferentes de
tradução. Zeichen corresponde à idéia de insígnia, indicação, e está ligada à percepção, a Vorstellung. Zug
corresponde ao traço unário, primário, e sua conseqüência é a Bejahung primordial. E, por fim, ligado à
memória e à permanência teríamos a Spur, que aparece como Ub.
referente essencial. Donde podemos entender por que a letra não é primária, mas antes
conseqüência do advento significante, ao contrário do que se poderia supor. A letra se
destaca no exato momento em que cai como literalidade que vivifica o falasser.
“É isso que modifica o estatuto dos sujeitos. É por aí que ele se apóia num céu
constelado, e não apenas no traço unário, para sua identificação fundamental” (LACAN,
1971/1986, p. 31). O sulco aí produzido é receptáculo sempre pronto a acolher gozo. É
rota lavrada, por onde, a partir de então, o gozo escorre e pode se alojar. Enquanto fora
da cadeia significante, enquanto não reenvia à série significante e não produz
significação, a letra se faz referente do sistema significante de uma maneira singular
para cada ser vivente, escrevendo as vias de suas possibilidades de gozo. Na metáfora
naturalista de Lacan, a chuva da Linguagem faz escrita de gozo, e o que permite ler os
riachos está ligado a algo que vai além do efeito de chuva. O real, como dejeto, é aquilo
que é expulso do campo do Simbólico, criando uma marca, um rastro, um sulco.
Eis o tripé que articula a noção de letra: litoral, sulco e rasura (MANDIL, 2003, p. 49).
Não repetível, não generalizável, a letra é um conceito que permite a Lacan sofisticar a
noção de Real e sua importância para a clínica enquanto ponto de articulação com o
gozo. Fortalece a noção de que há uma língua particular para cada sujeito que fala,
lalíngua afetada por uma significação pessoal a níveis inimagináveis. E orienta o
método psicanalítico a buscar na singularidade dos sujeitos atendidos esses sulcos por
eles lavrados.

Nuances da linguagem que fazem diferença: do savoir-faire ao savoir-y-faire


No “Seminário RSI”, Lacan (1974-75) nos evidencia que o Real é o efeito de amarração
que mantém os registros atados de tal forma que rompendo-se um deles, os demais se
desatam. É esse modo de amarração, denominado borromeano e que enlaça dois a dois
os registros a partir de um terceiro, que Lacan, então, nomeia de Real.
Se o ponto de partida para um nó é um furo (neste caso, a não-relação sexual), já temos
três, e não somente dois, elementos; e sendo três, seu efeito real de amarração já é um
quarto. Em outras palavras, se dois a dois os registros se encontram livres no nó – basta
observar a figura abaixo –, o fato de o terceiro fazer nó desses dois já é um efeito real,
mais-um, sobre os elementos originários. O efeito real de amarração que se obtém seria,
em si mesmo, um quarto elemento. É ele o Real. No seminário “O sinthoma”, Lacan
(1975-76/2005) isolou esse efeito real: traçou-o na figura de maneira borromeana como
quarto elemento a atar os três registros soltos e sobrepostos uns em relação aos outros.
Evidenciou, assim, a função de amarração que este quarto elemento pode ter enquanto
sinthoma. Observe a passagem realizada comparando as duas figuras abaixo.

Figura 01 – Nó borromeano de três elementos


Nesta figura, dois a dois os registros encontram-se sobrepostos e soltos, fazendo o
terceiro a costura do nó. Já na figura 02, todos os três registros estão soltos e
sobrepostos, havendo mais-um, o quarto elemento, a realizar a amarração. Ele é o efeito
real de amarração da figura 01 isolado.

Figura 02 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Simbólico (Σ) (LACAN, 1975-76/2005,
p. 20)

Com a topologia borromeana, Lacan ensaia no final de seu ensino uma estética da
clínica psicanalítica a partir do Real como vetor de orientação. O que isso quer dizer?
Para concebermos essa dimensão do Real da clínica em jogo nesse período, vale a pena
seguirmos um rastro, uma pista que Lacan nos oferece em uma de suas lições
posteriores, a de 11 de Janeiro de 1977.
Nessa aula do Seminário XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre, ele
brinca com o sentido e a homofonia – já desde o título do seminário –, evidenciando que
o sentido desliza pela cadeia significante, mas também cifra gozo, já que o fonema por
princípio não é lógico, mas se articula, fixando vias de prazer e de desprazer. Entretanto,
resta sempre algo intocável, cifrado. Cada nova significação produzida por um sujeito
deixa um traço de escrita, tanto quanto o que esse traço não alcança. Reduzido o gozo,
sua parte viva continua pulsante, e o trajeto da satisfação se altera. Algo desse indizível,
desse intocável ganha uma alteração real, ainda que não toquemos a coisa em si.
Esta seria uma novidade muito presente no final do ensino de Lacan que põe em questão
o sentido e o saber, sobretudo a partir de uma dupla possibilidade de leitura sobre o
inconsciente. Ora ele pode ser pensado como uma elucubração freudiana de saber, ora
como real fora de sentido, apreendido pelo equívoco, pelo engano. Qualquer construção
que se faça sobre esse tropeço, já seria uma tentativa de apreendê-lo, um semblante, já
seria uma debilidade do mental. Nessa ótica, o inconsciente seria uma doença mental
(LACAN, 1974-75). Ao mesmo tempo, seria o engano, o tropeço, aquilo que permitiria
a produção no mental de sentidos diferentes, de novas configurações como forma de
resposta ao mal-estar produzido por essa dificuldade. Daí ele priorizar o saber-fazer
com isso (savoir-y-faire) mais que o saber.
A partir dos efeitos significantes, esse saber seria imposto ao homem, que não sabe
muito bem o que fazer disso (“de cette affaire de savoir”). Ele não fica à vontade com
ele. Ele não sabe fazer com (“faire avec”) o saber. É essa sua debilidade mental. Ele não
sabe “y faire”, fazer com isso. Há uma nuance importante nessa passagem do “faire
avec” para o “y faire”, resguardada pela introdução do “y” na língua francesa, que
designa uma referência anteriormente identificada. “ ‘Savoir faire’ é diferente de ‘savoir
y faire’. A introdução do ‘y’ quer dizer se desembaraçar, mas este ‘y faire’ indica que
não pegamos verdadeiramente a coisa, em suma em conceito” (LACAN, 1976-77, lição
11/01/1977). Há algo que escapa. E é para tentar dar conta disso que escapa que o
discurso vem em socorro. Tudo o que se diz a partir do inconsciente participa, portanto,
do equívoco.

A poesia e o Real que escapa no ‘y’


Para ilustrar essa dificuldade do pensamento, Lacan (1976-77) recorre a um estilo de
linguagem escrita característico da Idade Média. Nele há pouca gramática e muita
lógica. É um estilo que recorre a uma passagem da imagem à escrita, e também, sempre,
ao equívoco e ao convite a que o leitor participe da construção do texto. Se ele é lido
correntemente, pode não produzir sentido. Ao mesmo tempo em que do texto pode se
destacar um novo e outro sentido, se lido pelas entrelinhas ou pelo que não faz linha.
Trata-se, enfim, do texto “Les Bigarrures de Seigneur des Accords”, de Étienne
Tabourot5, cuja versão francesa de um verso apresentamos. Destacamos com cores as
colunas que podem ser lidas verticalmente também, além da leitura horizontal
sequencial tradicional, de sorte que a falta de sentido e o sentido que escapa podem ser
revelados e apreendidos.

5 Étienne Tabourot, Les Bigarrures du Seigneur des Accords, Paris, Jean Richer, 1583, chapitre XIII,
«Des vers rapportés », ff.130 à 134. [Gallica, N0070346_PDF_282_290]). Outros versos no livro original
podem ser visualizados através do site da Bibliothèque Nationale de France (BNF) no seguinte endereço
eletrônico: < http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k70346j>. Podemos identificar «um tipo de cruzamento
simétrico e gramatical», «frases de construção gramatical aparentemente desarticuladas e recompostas»,
uma «invenção astuciosa» que «remontaria talvez ao fim da Antiguidade grega», um «procedimento» que
«da Idade Média latina [...] ganham as poesias francesa, espanhola, inglesa e alemã dos séculos XVI e
XVII», segundo Ernst Robert Curtius em La Littérature européenne et le Moyen Âge latin, também
disponível via acesso eletrônico no seguinte endereço: <http://perso.orange.fr/preambule/formes/
formerapp/formrapp.html>.
« Autrefois j’ai fait ces suivants en faveur d’une de mes idoles parlantes :
Ta beauté, ta vertu, ton esprit, ton maintien
Éblouit, et défait, assoupit et renflamme
Par ses rais, par penser, par crainte, pour un rien
Mes deux yeux, mon amour, mes desseins, et mon âme. »

A questão que Lacan evoca, a partir desse texto, é a de como conseguir apreender esse
tipo de delicadeza que, em última instância, é um uso do inconsciente. E mais, como
precisar a maneira pela qual, nessa delicadeza, se especifica o inconsciente que é
sempre individual. Se a estrutura da Linguagem é a mesma para todos, o uso de lalíngua
é sempre único para cada sujeito. A articulação que o inconsciente estabelece como
forma de gozo é sempre singular à maneira como o sujeito se articula na língua mãe.
O exemplo de fetichismo apresentado no artigo freudiano de mesmo título é ilustrativo
da dimensão clínica desse uso. Ao discutir as circunstâncias acidentais que contribuem
para a escolha de um objeto fetiche, Freud (1927/1976) trata da arbitrariedade do
significante de um lado, mas revela, de outro, a dimensão de gozo presente em lalíngua
e capturada como letra em seus efeitos sobre a linguagem e sobre o corpo.
Trata-se de um jovem para quem a pré-condição fetichista residia num certo tipo de
‘brilho no nariz’. A surpresa de sua explicação reside no fato de que o paciente recorrera
a sua língua mãe, o inglês, para constituir o sintoma e a forma de gozo que lhe era
correlata, enquanto correntemente utilizava a língua alemã do país onde passara a viver
depois de sua primeira infância. “O ‘brilho do nariz’ [em alemão, ‘Glanz auf der Nase’]
era na realidade um vislumbre (glance) do nariz” (FREUD, 1927/1976, p. 179), que
somente o jovem experimentava como forma de satisfação sexual. A Linguagem carece,
assim, de uma terceira dimensão, já que é por estrutura aplainada em duas. Essa terceira
ordem, por seu turno, modifica as outras duas, produzindo um efeito real como novo
elemento.

L’âme-à-tiers: a terceira dimensão da Linguagem


Essa reflexão inspirou Lacan a querer identificar o Real a esse terceiro elemento
articulado à matéria de uma maneira muito singular, através do “l’âme-à-tiers” (o
espírito à terceira). Interessante aqui ressaltar ao menos dois aspectos. Primeiramente,
ao tratar da matéria do Real, Lacan a nomeia alma, espírito, mente – que em francês
encontram em “âme” a mesma significação. Já de saída, portanto, a matéria do Real é
inconsistente nela mesma.
Mas há um segundo aspecto que articula o Real e a Linguagem – e esse é o ponto
central que, entendemos, levou Lacan a teorizar os nós para explicar o Real na clínica
psicanalítica. Não há na Linguagem uma relação binária, do tipo “X (relação) Y”. Para
Peirce, é preciso uma lógica ternária, signo, objeto e interpretante no estabelecimento e
na utilização do signo linguístico. A exigência desse terceiro autoriza Lacan a falar em
“tiers”, em terceiro termo, mesmo em se tratando de uma referência à Linguagem.
Trata-se de um terceiro termo determinante, diferenciado em relação aos outros dois,
signo e objeto, posto que ex-sistente a eles.
Se não há três dimensões na Linguagem, portanto, isso não quer dizer que dois
elementos lhe sejam suficientes. É preciso uma engrenagem, um terceiro elemento
lógico, para que ela funcione como tal. Esse terceiro elemento está lá, sem contar, mas
sendo contado, considerado, e mais, sendo essencial na estrutura do funcionamento da
própria Linguagem. Ele é o que introduz a diferença e, com ela, a singularidade no uso
da Linguagem, a determinação aonde residiria a arbitrariedade. Estaria essa terceira
dimensão na torção que a banda de Moebius introduz na geometria euclidiana, forjando
uma nova topologia?
Para Lacan, no inconsciente, trata-se sempre do significante. Em suma, trata-se do fato
de que falamos, ainda que, como falasser, falemos completamente sós. Em outras
palavras, o isso dialoga, e foi isso que Lacan designou pelo nome de Grande Outro.
Trata-se do fato de que há qualquer coisa de outra, o que ele denominou de “l’âme-à-
tiers”, que não é somente o Real, mas qualquer coisa com a qual, expressamente, não
temos relação. Trata-se do (S de A), o que quer dizer que isso não responde. É bem por
isso que o eu (moi) pode se pôr a falar e mesmo a delirar. Daí nossas soluções se
colocarem entre a loucura e a debilidade. É, pois, para tratar dessa materialidade
intangível que os nós borroemanos se colocam e nos colocam a trabalho na psicanálise.
“Nós não cremos no objeto, mas nós constatamos o desejo, e desta constatação do desejo
nós induzimos a causa como objetivada. O desejo de conhecer encontra obstáculos. É por
encarnar este obstáculo que eu inventei o nó. E quanto ao nó é preciso ter desembaraço [se
rompre]. Eu quero dizer que é o nó sozinho que é o suporte concebível de uma relação
entre o que quer que seja e o que quer que seja. Se, de um lado, ele é abstrato, o nó deve,
entretanto, ser pensado e concebido como concreto” (LACAN, 1975-76/2005, p. 36-37).

Para finalizar
Do lado do analista, portanto, saber-fazer com o Real implica na arte de tratar o
impossível. Suportar o que não faz relação como ponto central para encontrar, caso a
caso, a melhor maneira de fazer uso do sintoma, sempre singular ao modo de gozo de
cada falasser. Como nos lembra habilmente a escritora-analista de si: “Não pense que
pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a
mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o
defeito que sustenta nosso edifício inteiro” (LISPECTOR, 1977, p. 17).

Referências Bibliográficas:
FREUD, S. (1976) “Carta 52 (1896)”, in Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3ª ed. Rio de Janeiro, Imago, V. I, p.
324-331.
FREUD, S. (1976) “O fetichismo (1927)”, in Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3ª ed. Rio de Janeiro, Imago, V. XXI, p.
179-188.
LACAN, Jacques. (1957a/1998) “O seminário sobre “A carta roubada”, in Escritos, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, p. 13-66.
_____. (1957b/1998) “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, in
Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 496-533.
_____. (1961-62) Le séminaire, livre IX: L’identification. Inédito.
_____. (1971/1987) “Lituraterre”, in Ornicar?Revue du Champ freudien, n° 41, Paris,
ECF, avril-juin, p. 5-13.
_____. (1971/1986) “Lituraterra”, in Che vuoi? Psicanálise e Cultura, nº. 1, Porto
Alegre, Cooperativa Cultural Jacques Lacan, ano 1, inverno, p. 17-32.
_____. (1971/2003) “Lituraterra”, in Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 15-
25.
_____. (1974-75) Livre XXII, RSI. Disponível em <http://gaogoa.free.fr/>.
_____. (1974-75/1975-76) Livre XXII, RSI, in Ornicar?, nº. 02-05, Paris, ECF.
_____. (1975-76/2005) Livre XXIII, Le sinthome. Texte établi par Jacques-Alain Miller.
Paris, Seuil.
_____. (1976-77). Livre XXIV, L’insu qui sait de l'une bévue s'aile a mourre. Inédito.
LIMA, C. R. (1994) “Uma “brecha” no fantasma: o traço de perversão”, in Opção
Lacaniana, nº 11, São Paulo, Eolia, p. 55-59.
LISPECTOR, C. (1977) A paixão segundo G.H. 5ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio.
MANDIL, R. (2003) Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro, Contra
Capa; Belo Horizonte, UFMG.

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