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BLAU NUNES: O NARRADOR DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO

Elisângela Aparecida Zaboroski de Paula*

RESUMO

Nossa pesquisa tem o intuito de apresentar a figura do narrador e demonstrar igual-


mente sua importância na obra simoniana, com base no modelo de narrador exposto
por Walter Benjamin (1892-1940). Temos a intenção ainda de revelar as particularida-
des deste personagem utilizado por João Simões Lopes Neto (1865-1916) para dar voz
as suas histórias, uma vez que, sem ele as narrativas do escritor gaúcho não teriam o
mesmo impacto quando o leitor se deparasse com os eventos contados sobre o pam-
pa, assim pretendemos observar e ressaltar a importância de um narrador, principal-
mente quando o que está sendo abordado em uma história são lendas, mitos e contos.
Blau Nunes é o narrador de Lopes Neto, mas, é mais do que isso, ele é seu amigo, é seu
eterno reencontro com os tempos antigos que já não voltam mais. Para apresentarmos
esse narrador, valer-nos-emos ainda da lenda simoniana d’“A salamanca do Jarau”.

Palavras-chave: Narrador. Walter Benjamin. João Simões Lopes Neto.

Introdução

O que apresentamos aqui são reflexões acerca de um arquétipo do narrador


apresentado por Walter Benjamin, pois para ele o narrador está distante de nós, ele se
apresenta de uma forma diversificada, e isso certamente nos atrai para ouvir uma
narrativa de um tempo passado, uma vez que uma história contada por um narrador
relata, na maioria das vezes histórias acontecidas há tempos atrás.
A função do narrador é, além de contar o fato, ser também capaz de chamar a
atenção de seu público alvo. Sem o narrador certamente as lendas, os contos, os
causos, seriam menos atrativos, seriam deixados de lado. A literatura oral utiliza-se do
narrador para difundir suas versões populares de histórias ilustres, e é graças a ele que
elas sobrevivem.
A figura do narrador na obra de Simões é fundamental, uma vez que ele vale-se
da voz de seu personagem-narrador para relatar a vida e os hábitos da gente simples
que habita a campanha. Para se ter uma ideia da importância de Blau na vida do literato
pelotense basta prestarmos atenção na descrição que Simões faz de seu amigo, de seu
companheiro de vida, de histórias, de solidão e de tristezas, porque Blau resgata na
memória de Lopes Neto a felicidade de um tempo que não volta mais e isso o faz sentir

* Graduada em Letras – Português/ Inglês pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União
da Vitória – FAFIUV – Atualmente cursa mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC. Endereço eletrônico: elisdpaula@gmail.com

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saudades. Simões diria que: “ – Quando a gente é criança é melhor; a gente não sente
saudades [...]” (LOPES NETO apud MASSOT, 1974, p. 103), mas ele, o homem, o
escritor, o gaúcho, sente saudades daquela época em que o pai montava a cavalo, em
que ele corria pela estância, em que ele colhia os ovos de passarinhos e os guardava
em sua escrivaninha, sempre na companhia de Simeão e de Romeu, seus amigos inse-
paráveis. Certamente por tantas lembranças Simões ve em Blau, seu narrador, aquele
que relembra e resgata da memória do escritor gaúcho as histórias que há muito esta-
vam guardadas, é exatamente por isso que Simões ao nos apresentar Blau tenha tanto
cuidado, tenha tanto carinho.

Fazia-me ele a impressão de um perene tarumã verdejante, rijo


para o machado e para o raio, e abrigando dentro do tronco
cernoso enxames de abelhas, nos galhos ninhos de pombas [...].
E, do trotar sobre tantíssimos rumos: das pousadas pelas estân-
cias; dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou,
dos povoados que atravessou; das cousas que ele compreendia
e das que eram-lhe vedadas ao singelo entendimento; do pêlo-a-
pêlo com os homens, das erosões da morte e das eclosões da
vida, entre o Blau – moço, militar – e o Blau – velho, paisano -
, ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações –
casos, dizia -, que de vez em quando o vaqueano recontava,
como quem estende ao sol, para arejar, roupas guardadas ao
fundo de uma arca. Querido digno velho! Saudoso Blau! (LO-
PES NETO, 2006, p. 42-43).

Através deste fragmento da apresentação de Blau feita por Simões no início de


seus Contos, percebemos que esse narrador é admirado pelo escritor gaúcho. Blau
conta suas histórias, que são as histórias do povo do Rio Grande do Sul e através de
seu jeito simples e pitoresco de contar os causos ele nos encanta e desperta em seus
leitores, ou mesmo, ouvintes uma admiração e um respeito, pois ele tem a capacidade
de nos transportar para os antigos tempos de suas narrativas. Com Blau adentramos
no folclore pampeano sem sairmos de nossos lugares, desvendamos os mistérios dos
tesouros, dos encantamentos, e conhecemos lugares jamais imaginados como a furna
que existe em um dos cerros do Jarau. Nós nos tornamos também, enquanto seus
ouvintes, personagens onde a ficção e a realidade se misturam.
Através de seu jeito tapejara de ser, ele que tem em si a valentia do sangue
indígena e que é um típico representante do povo gaúcho, sabe exatamente como
contar as histórias de seu povo e as transformações pelas quais passaram, devido ao
tempo, à guerra e ao destino.

A narrativa benjaminiana

Diz Benjamin que a verdadeira narrativa não é produto exclusivo da oralidade,


da literatura oral, mas que ela é um híbrido entre oralidade e gestos, pois para ele a

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utilização das mãos no momento de se contar uma história é muito importante, é peça
fundamental para um maior entendimento do que está sendo relatado, do que está
sendo narrado. Para ele o narrador pode ser definido como um artesão que faz com
carinho, com cuidado seu delicado trabalho. “Na verdadeira narração, a mão intervém
decisivamente com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que susten-
tam cem maneiras o fluxo do que é dito” (BENJAMIN, 1986, p. 221).
O autor também coloca o narrador, o contador de histórias, em igualdade a
figuras como os mestres e os sábios, pois, para ele, esse contador sabe dar conselhos,
e não apenas um conselho para uma situação definida, mas, para inúmeras delas, nas
quais, por sua sabedoria, consegue resolver a questão, o problema, valendo-se para
isso apenas de sua memória, que segundo Benjamin, é muito rica, pois, para tentar
resolver os problemas, as situações conflitantes esse narrador recorre a memória de
fatos acontecidos no passado com ele e também com a comunidade em geral. Ou seja,
ele vale-se de seu meio para poder resolver determinada situação, saindo-se dela
sempre bem, porque suas lembranças nunca se perdem pelo tempo, assim é o narrador
de Benjamin, é o homem que poderia “deixar a luz tênue de sua narração consumir
completamente a mecha de sua vida” (BENJAMIN, 1986, p. 221).
É evidente a associação da figura do narrador com a literatura oral popular, que
advém, principalmente das histórias contadas pelas pessoas iletradas, as quais, por
não terem a aptidão da escrita necessitavam de suas memórias para assim poder contar
uma boa história, capaz de chamar a atenção de seus ouvintes, permitindo com isso
que essa narrativa se perpetuasse ao decorrer dos tempos.
Para Benjamin o primeiro narrador verdadeiro continua sendo aquele que con-
ta, que interpreta os contos de fadas. Toda a história fantástica tem como principal
atrativo o desconhecido, o mítico, o imaginário, tudo isso aguça a curiosidade das
pessoas que ao ouvirem uma dessas narrativas imediatamente a assimilam, guardan-
do-a na memória, e com o tempo passam elas a contar aquela mesma história do seu
ponto de vista. O verdadeiro narrador precisa ter dentro de si o real interesse pela
história que irá contar, para despertar em seus ouvintes um sentimento de alegria, de
felicidade ao ouvir o que está sendo contado. “O feitiço libertador do conto de fadas
não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade
com o homem liberado” (BENJAMIN, 1986, p. 215).
Ao narrarmos uma história utilizamos a mais épica de todas as faculdades, a
memória, e isso nos traz de volta um passado ficcional que nos aproxima, muitas vezes,
de um tempo irreal, antigo e nos distancia daquele universo em que realmente estamos
inseridos. O narrador sempre está longe de nós porque sua memória recorre há um
tempo distante que a memória do ouvinte não é capaz de acompanhar, evidentemente
porque não conhece a narrativa contada pelo narrador. Por isso, podemos afirmar que
o narrador sempre relata fatos de tempos antigos que não voltam mais, mesmo que este
relato fale de coisas cotidianas, aquele fato narrado jamais acontecerá novamente
naquele seu contexto antigo, simplesmente porque o tempo já passou e aquele ato
narrado só pode ser real ou imaginário dentro daquele contexto de tempo passado.
Para Benjamin os narradores gostam de descrever as pessoas e sempre, inten-

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cionalmente, começam a contar suas histórias descrevendo algo ou alguém, principal-
mente, fazendo uma exposição acerca das circunstâncias em que os fatos foram-lhe
contados. Muitas vezes, esse narrador atribui essa sua narrativa a alguma experiência
ocorrida em sua vida. Mesmo que isso não seja completamente verdade, ele tem o dom
de convencer as pessoas, e conta suas histórias de forma que ela se torne verossímil
para quem a ouve. Esse é o verdadeiro narrador, aquele que é capaz de nos fazer
acreditar mais absurdos e mais encantadores fatos. Afinal, quando alguém narra uma
história, um fato, uma lenda ou mesmo um mito está mantendo-os vivos, perpetuando
suas vidas, e, com isso, o folclore enriquece sua gama de causos, pois, “contar histó-
rias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são
mais conservadas” (BENJAMIN, 1986, p. 205).
Certamente por isso em uma narrativa o papel do ouvinte é fundamental, uma
vez que, ao ouvir uma narração esse ouvinte passa a ser então ele um outro possível
narrador e assim essa arte de contar histórias vai permanecendo viva ao longo dos
tempos, apesar, de como nos afirma Benjamin, ser cada vez mais rara a existência de
pessoas que realmente saibam narrar, saibam contar uma história capaz de tocar a alma
de quem a escuta, pois, o fato contado só será gravado em nossa memória se ele, de
alguma forma, despertar em nós, em nossos sentimentos algum interesse.

Blau Nunes: o narrador

Por que o narrador escolhido por Simões para contar suas histórias se chamou
assim? Segundo as afirmações de Ivete Massot (1974), Blau seria um antigo boneco
que Ivete teria ganhado de presente quando ainda era criança. A roupa deste boneco
era azul, Blau em alemão, e assim ele foi chamado, o boneco Blau. Simões sempre viu o
boneco pela casa e valeu-se dele para contar as suas histórias, a sua literatura.

A personagem de simoniana nasceu inspirada num bonequinho


alemão, que Ivete Massot ganhara dos tios, vindos da Alema-
nha. Simões teria apelidado o boneco de Blau, porque era vesti-
do de azul. Mas a madrinha de Ivete completara-lhe a indumen-
tária com barbicacho de gaúcho. Assim teria nascido Blau Nu-
nes, trazendo também no nome a marca do local e do alienígena;
do Nunes, tipicamente guasca, e do alemão que, a partir de
1824, começa a entrar no Rio Grande do Sul e cuja presença vai
ser fundamental, na segunda metade do século XIX, para a vira-
da econômica do Estado (CHIAPPINI, 1988, p. 327).

Sabemos que o escritor sempre teve em sua memória, ou pelo menos tentou
demonstrar isso em seus textos, a lembrança de sua vida feliz na Graça. Lembranças da
sua infância feliz que ficou guardada dentro de seu coração e nas linhas do tempo.
Essa felicidade que ficou perdida em um passado quase mítico é relembrada por Si-
mões em sua literatura e revelada para nós através da fala de Blau. O narrador que
desafia o tempo e nos traz de volta um passado guardado dentro da alma. Certamente

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por isso nos emocionamos com suas histórias, porque elas fazem parte de um universo
encantado, feliz, onde tudo era maravilhoso. Blau tem o poder de narrar as histórias
daquele tempo onde a vida simples e o dia-a-dia eram tudo o que bastava para um
homem ser verdadeiramente feliz.
Para alguém que observe o Simões escritor e criador de Blau, poderá vê-los de
uma forma diversificada, poderá pensar que ambos eram amigos, ou mesmo que pode-
riam pertencer à mesma família, não poderia Blau ser o reflexo da imagem do avô de
Simões Lopes Neto, um homem sábio que transmitiu tudo o que sabia ao neto? Talvez
essa analogia seja apenas uma coincidência, mas o fato é que, ao olharmos os dois de
certa distância, vemos dois homens, sendo que o primeiro é bastante jovem e o segun-
do já com certa idade. Veremos que o jovem é Simões e que ele aprende com Blau, o
homem velho, uma vez que o escritor gaúcho dá voz a Blau e então passa a ser ele
quem tem todo esse conhecimento sobre o pampa e Simões apenas o escuta. Visuali-
zando os Contos Gauchescos, o que vemos ao longe?

Vemos dois homens cavalgando por uma região de planície ao


sul das Américas. Um deles é um sujeito de bastante idade, mas
altivo, rijo, e que segue em frente como se fosse um guia. O
outro, um pouco atrás, é um homem de idade, algo indefinida,
mas que não deve estar muito longe dos 25 ou 30 anos. Às vezes
eles param à sombra de uma árvore e o velho se põe a falar. Abre
os braços, gesticula, aponta em direção a determinados locais,
às vezes ri, às vezes parece estar chorando, mas sempre volta a
falar, a falar, e não para mais de falar. E o que fala parece ser de
muito interesse, pelo menos para o jovem que o acompanha. Ele
está sempre anotando coisas numa pequena caderneta, enquan-
to o velho vai falando, falando, falando. Se pudéssemos ouvir o
que diz, a essa distância, ouviríamos o velho contar histórias.
Algumas, em que ele próprio foi o protagonista, outras, que
apenas testemunhou ou ouviu falar. E outras – quem sabe? –
que simplesmente inventou. Seja como for, ele demonstra ter
muito o que dizer, muito o que contar. Ele é, sem dúvida, um
narrador (CRUZ, 2001, p. 143-144).

Blau Nunes é o narrador de Simões Lopes Neto, pois sem ele o escritor gaú-
cho estaria perdido, não saberia como contar todas as histórias que o velho pampe-
ano narrava. Por ser um homem de vida e hábitos simples, Blau sabia exatamente
como deveria ser contada uma boa história, um bom causo. Seus relatos eram um
amálgama entre realidade e ficção que estavam em sua memória, que estavam na
memória do povo gaúcho. Blau representa o povo sul-rio-grandense como um todo,
uma vez que, é através dele que a cultura, o folclore popular gaúcho é difundido, é
divulgado.
Blau ao narrar às histórias de Simões distancia-se de nós, como se ele estives-
se preso em um passado distante. Sua lembrança nos traz de volta a saudade de um
passado que já não volta mais.

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Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato
presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo distante, e
que se distancia ainda mais. [...] Vistos de uma certa distância,
os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se des-
tacam nele (BENJAMIN, 1986, p. 197).

Blau Nunes é um homem que nos apresenta histórias de um tempo antigo,


muito antigo, como nos diria João Simões Lopes Neto.
Blau é dotado “de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa
e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauches-
co” (LOPES NETO, 2006, p. 42), isso nos faz pensar que Blau Nunes, segundo os
conceitos de Benjamin, é um verdadeiro narrador.
Blau representa uma luz, advinda de sua fala, de sua narração, da sua maneira
particular de contar as histórias da campanha sul-rio-grandense. Ele guarda em sua
eficaz memória recordações de fatos há muito esquecidos, assim, como se fosse uma arca
que abrimos para tocarmos em nossas lembranças do passado, assim é Blau, símbolo de
uma antiga arca que ao abrir-se revela fatos incríveis, esquecidos pelo tempo, mas guar-
dados pela memória do destino. “É como se em Blau, esse sol – da vida das histórias do
passado – se recolhesse, voltando a germinar numa noite de aparente esquecimento,
para, periodicamente, rebrilhar e reviver nos seus ‘causos’” (CHIAPPINI, 1988, p. 324).
Blau Nunes poderia ser definido também como um típico gaúcho, uma vez que
Simões utiliza-se de sua voz para narrar suas histórias, por ele ser um homem simples,
do campo. “Blau, o herói de Simões Lopes, é o gaúcho pobre, o tropeiro, o peão de
estância, o agregado, o índio humilde” (MEYER, 1979, p. 146). Esse é Blau Nunes, o
narrador de João Simões Lopes Neto, o contador de casos, histórias, e essa é uma
dessas histórias.

A narração da lenda “A salamanca do Jarau”

Ao iniciar a narrativa da lenda d’A salamanca do Jarau, Blau Nunes, que é


narrador e também um dos personagens principais dessa história fantástica, em um
primeiro momento, nos é apresentado por Simões, mas logo Blau apresenta-se de
forma bastante eloquente e então conta quem realmente é, explicitando ao seu leitor-
ouvinte que ele representa a típica estirpe tapejara do índio pampeano, o gaúcho que
habita os campos do Rio Grande do Sul. Esse narrador simoniano, no início da
narrativa, é apresentado como um típico gaúcho que tem de seu apenas um facão,
seu cavalo e as estradas reais e nele estão enraizadas as principais características do
verdadeiro homem do extremo sul brasileiro, a coragem e a lealdade. Nesse sentido:

Era um dia, um dia, um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de


bom porte, mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o facão
afiado e as estradas reais, estava conchavado de posteiro, ali na
estrada do rincão; e nesse dia andava campeando um boi barroso
(LOPES NETO, 2006, p. 195).

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Blau, o narrador de Simões, depara-se com “um vulto de face branca e tristo-
nha”, o santão que habitava o cerro do Jarau, por ser um verdadeiro gaúcho, não
apenas foi ao seu encontro como, habilidade de um verdadeiro narrador, contou toda
a história que havia ouvido de sua avó charrua, uma narradora nata, sobre as lendas
acerca do cerro encantado, sobre as magias da moura encantada e transformada em
carbúnculo e chamada de Teiniaguá. Diria Blau:

A mãe da minha mãe dizia assim: - Na terra dos espanhóis, do


outro lado do mar, havia uma cidade chamada – Salamanca – onde
viveram os mouros, os mouros que eram mestres nas artes da
magia; e era numa furna escura que eles guardavam o condão
mágico, por causa da luz branca do sol, que diz que desmancha a
força da bruxaria... O condão estava preso no regaço duma fada
velha, que era uma princesa moça, encantada, e bonita, bonita
como só ela!... [...] Assim bateram nas praias da gente pampeana
os tais mouros e mais outros espanhóis renegados. E como eles
eram, todos, de alma condenada, mal puseram pé em terra, logo na
meia-noite da primeira sexta-feira foram visitados pelo mesmo
Diabo deles, que neste lado do mundo era chamado Anhangá-pitã
e mui respeitado. Então, mouros e renegados disseram ao que
vinham; e Anhangá-pitã folgou muito; folgou, porque a gente
nativa daquelas campanhas e a destas serras era gente sem cobiça
de riquezas [...] e; pois, escutando o que eles ambicionavam para
vencer a Cruz com a força do Crescente, o maldoso pegou o
condão mágico [...] esfregou –o no suor de seu corpo e virou-o em
pedra transparente; e lançando o bafo queimante do seu peito
sobre a fada moura [...]. E por cabeça encravou então no novo
corpo da encantada a pedra, aquela, que era o condão, aquele. [...]
Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó charrua contava à
minha mãe; e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros,
que, esses, viram! [...] (LOPES NETO, 2006, p. 198-200).

Aqui temos a narrativa aliada à literatura oral popular que está presente em
todos os meios e em todas as culturas dos mais variados povos, pois, Blau admite que
sua mãe ouvira essa história de sua avó que ouvira de quem realmente a tinha pre-
senciado. Certamente Blau, herdou dessas narradoras o dom de contar histórias, de
apresentar aos seus ouvintes, com muita criatividade e veracidade, fatos já conheci-
dos, mas que sob sua fala ganharam um cunho mais regionalista, mais cheio de vida, de
emoção e certamente por isso mais interessante. Pois, segundo Benjamin, o papel do
narrador é fundamental para que os ouvintes/ leitores apresentem interesse real pela
narrativa, para que assim ela seja facilmente assimilada pela memória e possa continuar
sendo difundida por um ouvinte que passa a ser também narrador, mas isso só ocorrerá
de fato, se o primeiro narrador estiver realmente comprometido com o que narra, ou
seja, isso só acontecerá se o contador da história for o que Benjamin chama de um
narrador verdadeiro.

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Podemos dizer que a avó charrua de Blau foi uma verdadeira narradora, capaz de
despertar em seus descendentes o real interesse pelas histórias contadas ao redor das
fogueiras, dos assados, do pampa durante as longas noites de inverno com o minuano
soprando forte, ou mesmo nos verões à sombra dos umbuzais. Blau, através de sua
narrativa é capaz de resgatar um tempo antigo, distante, ou ainda podemos dizer que ele
é capaz de reviver alguns momentos, tempos passados. O tempo primeiro, da possível
chegada da moura encantada, e do encantamento do sacristão em um dos cerros do
Jarau, juntamente com o segundo tempo, a época em que sua avó difundiu este fato e
ainda o seu tempo, que poderíamos chamar de um tempo terceiro, quando é ele quem
narra, quem nos apresenta a história do sacristão encantado por amar a teiniaguá.
Blau tem profundo interesse pela narração, é um narrador nato, assim como
seus ancestrais, por isso, talvez suas histórias sejam ouvidas por todos, até por seu
próprio criador, que preferiu a voz do povo simples, manifestada na figura do pampe-
ano para narrar as suas Lendas e os seus Contos.
Mas Blau também foi ouvinte, do sacristão encantado no cerro do Jarau, o
qual narrou toda a sua saga, desde seu encontro com a Teiniaguá encantada até o seu
encontro com Nunes, na entrada da furna encantada do cerro. O sacristão também é
um narrador, pois ao contar sua história ele transmite para Blau a segunda parte da
lenda ainda desconhecida pelo narrador simoniano. Poderíamos dizer que o sacristão
tem uma função de narrador secundário sobre a lenda do cerro encantado, uma vez que
ele, ao contar toda a sua história para Blau está permitindo que o verdadeiro narrador
difunda através de sua oralidade um pouco do folclore gaúcho. Diria então, o segundo
narrador, a Blau:

No costado da cidade onde eu vivia havia uma lagoa, larga e


funda, como uma ilha de palmital, no meio Havia uma lagoa...
[...] Um dia, na hora do mormaço, todo o povo estava nas som-
bras, sesteando. [...] Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela
portinha da sacristia, levando no corpo a frescura da sombra
benta. [...] Eu vi, vi o milagre de ferver toda uma lagoa..., ferver,
sem fogo que se visse! [...] Era a Teiniaguá, de cabeça de pedra
luzente. [...] Ali perto, entre os capins, vi uma guampa e foi o
quanto agarrei dela e enchi-a na lagoa, ainda escaldando, e fren-
teei a Teiniaguá [...] e meti-a dentro da guampa. [...] Faz duzen-
tos anos que aqui estou; aprendi sabedorias árabes e tendo tor-
nado contentes alguns raros homens que bem sabem que a alma
é um peso entre o mandar e o ser mandado...Nunca mais dormi;
nunca nem fome, nem sede, nem dor, nem riso... [...] O encanta-
mento que me aprisiona consente que eu acompanhe os homens
de alma forte e coração sereno que quiserem contratar a sorte
nesta salamanca que eu tornei famosa, do Jarau (LOPES NETO,
2006, p. 201-203, 211-212).

Temos então a junção entre narrador e ouvinte para compor a terceira parte da
lenda, onde Blau torna-se novamente ouvinte e o Sacristão seu narrador. Blau ao

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adentrar na furna ouve com muita atenção as informações narradas pelo vulto de face
branca e tristonha, bem como é o mesmo Sacristão que nos apresenta a saga de Blau na
furna. O Sacristão enquanto narrador diria para Blau Nunes, enquanto seu ouvinte:

Muitos têm vindo... e têm saído peiorados, para lá longe irem


morrer de medo aqui pegado, ou andarem pelos povoados as-
sustando as gentes, loucos, ou pelos campos fazendo vida com
os bichos brutos. [...] Poucos toparam a parada. [...] Mas todos
os que vieram são altaneiros e vieram arrastados pela ânsia da
cobiça ou dos vícios: tu foste o único que veio sem pensar e o
único que me saudou como filho de Deus... Foste o primeiro,
até agora; quando terceira saudação de cristão bafejar estas altu-
ras, o encantamento cessará, porque eu estou arrependido... e
como Pedro Apóstolo que três vezes negou Cristo foi perdoa-
do, eu estou arrependido e serei perdoado. [...] Pois bem: alma
forte e coração sereno!... Quem isso tem, entra na Salamanca,
toca o condão mágico e escolhe o que quer [...] (LOPES NETO,
2006, p. 211-213).

Apesar de Blau, na segunda e terceira parte ser também ouvinte, ressaltamos


que ele é o verdadeiro narrador da lenda simoniana, uma vez que sem ele a lenda não
seria difundida, se Blau apenas tivesse ouvido os relatos do Sacristão e não os tivesse
narrado a história de nada valeira para enriquecer o folclore gaúcho, pois, sem Blau, a
lenda não ganharia vida. Ele é o narrador, porque está contando fatos que, supostamen-
te, ocorreram com ele, o Sacristão também pode ser considerado como um narrador, mas
secundário, como já evidenciamos, pois se trata de uma entidade fantástica, mítica de um
ser que está encantando e que ao final da lenda desaparece, portanto, se Blau não
existisse a lenda não estaria perpetuada nas páginas simonianas, porque o Sacristão
voltou para o seu tempo, para o seu mundo e Blau continua próximo de nós, mesmo
quando aparenta certa distância, fato que ocorre quando está narrando uma história,
Blau é nosso ponto de ligação entre os tempos antigos, míticos e a nossa realidade.
Com isso adentramos na quarta e última parte da narrativa onde Blau volta a ser
o narrador, bem como age ainda como personagem, uma vez que ele devolve ao Sacris-
tão a onça mágica de ouro e desfaz o encantamento do cerro, libertando com isso as
almas daqueles seres vindos do tempo antigo, de um passado que já não volta mais, de
um lugar distante, ao qual Blau pertenceu enquanto narrador dessas histórias. “Assim
acabou a salamanca do Cerro do Jarau, que aí durou duzentos anos, que tantos se
contam desde o tempo das Sete Missões, em que estas cousas principiaram” (LOPES
NETO, 2006, p. 227).

Considerações finais

Observamos que Blau, o narrador simoniano, é o responsável pela difusão de


lendas como a “A salamanca do Jarau”, que faz parte do folclore e da cultura popular

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do povo que habita a região do extremo sul brasileiro. Blau é o narrador de Simões, é
seu cúmplice, seu aliado, seu interlocutor, é mais do que isso, é seu amigo, são suas
lembranças de um tempo feliz, de uma existência em que o tempo já não pode mais
retornar. Aqui apresentamos algumas reflexões acerca do narrador simoniano baseado
no modelo descrito por Walter Benjamin.
Podemos afirmar que Blau é um verdadeiro narrador porque ao falar transmite a
informação com emoção, ao narrar lendas, mitos, contos, o gaúcho não conta simples-
mente uma história, mas a transforma em algo atraente, faz com que aquela sua narra-
tiva seja assimilada por seus ouvintes/ leitores, pois, para narrar um texto, uma histó-
ria, causo ou fato não basta apenas conhecê-los, mas sim tê-los vividos intensamente
não importando se foram vivenciados em um tempo antigo ou nas asas da imaginação.
O que realmente importa é que quem narra uma lenda precisa acreditar verda-
deiramente nela, precisa ter dentro de sua alma a certeza da existência mitológica da
mesma, mesmo que isso não corresponda à realidade, mesmo que isso seja apenas
ficção, porque o que mais nos atrai em uma narrativa como essa, não é sua veracidade,
mas sim seu encantamento e isso as lendas possuem em demasia.

ABSTRACT

BLAU NUNES: JOÃO SIMÕES LOPES NETO’S NARRATOR

Our research aims to present the narrator figure and also demonstrate his importance
in the “simonian” work, based on the narrator model exposed by Walter Benjamin
(1892-1940). We intend to reveal the particularities of this character used by João
Simões Lopes Neto (1865-1916) to give voice to his stories, since without him the
narratives of the ‘gaucho’ writer would not have the same impact when the reader
came across with the events told about the ‘pampas’, so we intend to observe and
highlight the importance of a narrator, mainly when what is being discussed in a story
are legends, myths and tales. Blau Nunes is the narrator of Lopes Neto, but, he is more
than that, he is his friend, his eternal remeet with the ancient times that no longer
return. To present this narrator, we will use the “simonian” legend of “A Salamanca do
Jarau”.

Keywords: Narrator. Walter Benjamin. João Simões Lopes Neto.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:


______. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1986. v. 1.

CHIAPPINI, L. No entretanto dos tempos: literatura e história em João Simões


Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

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SEMINÁRIO DE ESTUDOS SIMONIANOS, 2., 2001, Pelotas. Anais... Pelotas: Ed.
Universitária, 2001.

LOPES NETO, J. S. Contos gauchescos. Lendas do Sul. Edição crítica por Aldyr
Garcia Schlee. Porto Alegre: Unisinos, 2006.

MASSOT, I. S. L. B. Simões Lopes Neto na intimidade. Porto Alegre: Bels, 1974.

MEYER, A. Prosa dos pagos. 3. ed. Rio de Janeiro: Presença, 1979.

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