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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - Departamento de História


HH587 A – História Contemporânea I
Prof. Dra. Raquel Gomes
Aluna: Daphiny Lisboa de Santana (RA: 169720)

Análise de fonte: A questão feminina em “A moça do internato”

1. Introdução:
Alexandre II assume o trono russo em 1855 em um período de movimentações
populares a favor da emancipação dos servos. Sua adesão e consequente libertação dos
mesmos desencadeou uma fase de muitas outras reformas, o que fez com que o czar ficasse
conhecido como um regente liberal. Dentre essas reformas podem ser citadas: a permissão do
estudo em universidades de outros países; a democratização das universidades nacionais com
a redução de mensalidades; e a criação de escolas para garotas de todas as classes sociais.
Assim, com o avanço da instrução da população, cresceram também as discussões quanto à
participação popular na vida pública.

Apesar de já ter alguma expressão em períodos anteriores, principalmente durante o


governo de Nicolau I, é nesse contexto que se desenvolve com mais força a questão feminina,
que tinha como foco a posição das mulheres na família e na sociedade. A discussão permeava
três pontos principais: o casamento, a educação e o reconhecimento profissional feminino,
que serão melhor desenvolvidos ao longo deste trabalho. Faz-se importante mencionar que
existe um debate historiográfico muito forte quanto a presença das mulheres dentro dessas
discussões de gênero, uma vez que a proeminência de escritos é de autoria masculina.

Sendo assim, o intuito desta pesquisa é explicitar e analisar as representações do


feminino existentes na Rússia czarista no contexto das Grandes Reformas e do
desenvolvimento da questão feminina. Mais especificamente, buscar-se-á focar as discussões
feitas por mulheres artistas, utilizando como fonte a novela A moça do internato, publicada
pela primeira vez em 1861, de autoria de Nadiêjda Khvoschínskaia, considerada por parte da
crítica como um dos mais importantes exemplos da ruptura com as tradições reacionárias
russas.

2. A construção do ideal feminino:


A Rússia, em concordância com outras sociedades ocidentais modernas, estruturou-se
sobre uma longa tradição hierárquica1 baseada no patriarcalismo. Como afirma Susan
Morrisey, apesar deste ser um termo construído em torno da dominação de gênero, ele pode
ser usado também para descrever as estruturas de poder presentes na sociedade russa, como a
relação de dominação estabelecida entre o czar e seus servidores e entre os lordes e seus
servos2. Sendo assim, as mulheres russas não escaparam do subjugamento, sofrendo com
perseguições e com códigos morais, como o Domostroi3, fortalecidos pelo Estado Autocrático
e pela Igreja Ortodoxa.

Então, vida da mulher russa, sendo ela nobre ou camponesa, girava unicamente em
torno do casamento, que era arranjado para ela assim que atingisse a idade fértil, entre 13 e 14
anos. O casamento fazia parte de uma estratégia econômica e política e, assim, os pais dessas
jovens garotas escolhiam seus maridos de acordo com as necessidades de seu clã. E, por
existir uma conexão entre a vida pública e a vida doméstica, a subordinação das mulheres em
relação aos homens reproduzia, reforçava e mantinha as ordens social e política russas, uma
vez que a estabilidade familiar, essencial para essa ordem, dependia unicamente da autoridade
dos homens sobre suas esposas4. Essa autoridade se manifestava de diversas formas e uma das
mais conhecidas foi o terem, o aprisionamento das mulheres da elite, que servia para isolar as
mulheres da convivência com os homens em um lugar recluso.

Com o avanço do Iluminismo no Ocidente no século XVIII, os revolucionários


perceberam que para equipararem a Rússia às nações europeias modernas precisavam alterar a
estrutura principal que dominava a sua sociedade: a família. Assim, foi a partir do governo de
Pedro I que se estruturou um processo de pequenas reformas, como o fim do isolamento das
mulheres nos terems e a oportunidade de escolher seus pretendentes, pequenos passos em
direção à quebra do antigo regime familiar russo. Essas mudanças permitiram uma maior
interação entre os homens e as mulheres na sociedade, fazendo com que a educação das
mulheres da elite se tornasse uma preocupação do czarado. Assim, no governo de Catarina II
começa-se a ser construído “o estereótipo feminino questionado pelos liberais-radicais: um

1
“Political and social power was essentially absolute and hierarchical: the tsar was the ‘affectionate father’
(batiushka) to his subjects; the lord, master to his serfs; the father, head of the household. These structures were
reinforced in law.” (MORRISSEY, 2003, p. 23)
2
cf. ibid., p. 24.
3
Domostroi, escrito durante o governo de Ivan IV, entre 1533 a 1584, é um manual que lista as regras para a
administração doméstica ideal, na qual o homem seria o comandante de sua casa e família.
4
cf. ENGEL, 1991, p. 136.
padrão de opulência vazia, estrangeira e agradável ao prazer masculino”5. A czarina cria, em
1764, o Smolnyi Institute for Girls of Noble Birth, onde as jovens eram ensinadas

a administrar o lar, noções de música erudita, com ênfase no piano; língua francesa,
algum entendimento de matemática, ciências e primeiros socorros. Esses institutos
funcionavam como internatos, onde as moças não mantinham quase nenhum contato
com o mundo exterior e se dedicavam integralmente a uma educação elitizada, ou
seja, tornar-se uma dona de casa agradável, que soubesse receber visitas, emitir
opiniões superficiais e pudesse socorrer algum membro da família em caso de
enfermidade nas isoladas províncias6.
Apesar de ter sido uma iniciativa que introduziu a educação como parte importante da
formação da mulher russa, ela visou agradar aos gostos dos homens e não fornecer suporte à
ideia de equidade dos gêneros, uma vez que o ensino era enviesado.

Além disso, as mudanças introduzidas afetaram negativamente as mulheres fora do


círculo aristocrático, uma vez que a ênfase na cultura e na educação aumentaram as diferenças
estruturais entre a elite e as populações mais pobres. Isso aconteceu porque, mesmo com a
criação, em 1786, de escolas que admitissem garotas sem o pagamento de mensalidade, o
acesso ainda era destinado a uma ínfima parcela da plebe, já que uma boa parte não acreditava
na necessidade da alfabetização das mulheres. Assim, a educação foi responsável por
construir mais um muro entre as mulheres da elite e as mulheres provincianas.

Fica claro que, apesar dos avanços em relação à emancipação das mulheres, as
reformas em prol da educação feminina ainda se centravam unicamente na formação de boas
esposas, mães e donas de casa para os seus maridos. Em outras palavras: o centro de interesse
dessas reformas ainda era o bem-estar dos homens. Como afirma Elizabeth A. Wood, “from
the time of Catherine’s son Paul I onward, one goal of formalized education for young
Russian girls was in fact to make sure that they did not receive too much education”7.

Logo, foi estruturada pelo homem e reforçada pela literatura romântica dos séculos
XVIII e XIX a imagem de uma mulher idealizada: submissa, minimamente culta, dócil,
prendada, subordinada, abnegada. Nikolai Gógol, importante literato russo, reproduz em uma
de suas obras, chamada Almas Mortas, essa visão cultuada da mulher ideal:

Mas tudo isso são assuntos de baixo teor, e Mme. Manílova é uma senhora bem
educada. E a boa educação, como é sabido, adquire-se nos pensionatos. E nos
pensionatos, como se sabe, três matérias principais constituem a base de todas as
Virtudes humanas: o idioma francês, indispensável para a harmonia da vida familiar;

5
FONSECA, 2017, p. 36.
6
ibid., p. 37.
7
WOOD, 2009, p. 354.
o piano, para poder oferecer momentos agradáveis ao esposo; e, finalmente, a parte
da economia doméstica propriamente dita: a arte de tricotar bolsinhas e outras
surpresas8.
Consequentemente, foram também cultuados pelos homens os exemplos práticos dessa
idealização. Apesar de controverso, o principal deles foi o caso das esposas dezembristas 9,
que seguiram seus maridos no exílio na Sibéria. O exemplo delas foi exaltado por homens e
mulheres porque demonstrava um ideal de auto-sacrifício, muito valorizado pela sociedade
russa do século XIX. Entretanto, este também foi um importante exemplo para o
desenvolvimento da questão feminina na década de 1860 porque, segundo Wood, as esposas
dezembristas

demonstrated the importance of nineteenth-century men’s ideals for women. […]


Egotism in the woman question - that is, trying to emancipate women for their own
sake - was considered unacceptable, but women taking actions that would benefit the
larger collective were lauded, especially when they were perceived as martyrs 10.

3. A ambivalência da questão feminina:


A questão da mulher foi, na Rússia dos séculos XIX e XX, voltada principalmente
para a posição da mulher dentro da família e na sociedade. Eram discussões que se dividiam
em três pontos principais: o casamento, o acesso à educação e o reconhecimento profissional
feminino. Quanto ao casamento, os debates envolviam os problemas ocasionados pelos
casamentos arranjados e pela ilegalidade do divórcio; já a questão da educação e do
reconhecimento profissional tornaram-se importantes a partir da propagação das ideias de
John Stuart Mill, que afirmava que os homens só poderiam avançar intelectual e
espiritualmente se as mulheres também o fizessem. Essas foram questões que tomaram maior
forma principalmente após a derrota do czarado na Guerra da Crimeia. Segundo Wood,

both government and society became even more obsessed with the country’s
apparent backwardness. Many of the markers of that backwardness were linked to
the female sex: high illiteracy (which theoretically could be fixed if mothers had
higher reading skills so they could help their children); high infant mortality (which
was blamed on women’s poor mothering skills, their alienation from society); high
rates of venereal disease (which could be blamed on prostitution and on the low
numbers of trained medical personnel in the country) 11.

8
GÓGOL, 1987, p. 27 apud FONSECA, 2017, p. 41.
9
A Revolta Dezembrista foi uma rebelião contra a autocracia russa, no momento de coroação do czar Nicolau I,
em 1825. Fortemente reprimida pelo regente, 5 dezembristas foram executados e uma centena foi mandada para
o exílio na Sibéria. cf. DALY, Jonathan. Police and revolutionaries. In: LIEVEN, Dominic (Ed.). The
Cambridge History of Russia: Volume 2, Imperial Russia, 1689-1917. Cambridge: Cambridge University Press,
2006. Cap. 30.
10
WOOD, 2009, p. 355, grifo do autor.
11
WOOD, 2009, p. 356.
Pode-se dizer, então, que a emancipação feminina passou a ser considerada não porque
emancipá-las seria benéfico para elas, mas sim porque seria conveniente para o bem-comum.
As mulheres tinham que provar, dentro desse contexto utilitarista, a partir de sua inserção nas
políticas de educação pública e de reconhecimento profissional, que elas tinham alguma
utilidade para a nação. Construiu-se, então, um ideal de “mulher instruída”, que pregava que
as mulheres deveriam se desprender de tudo aquilo que as tornavam femininas, fora o seu
sexo biológico, já que estes as enclausuravam, de modo a serem tampouco mulheres ou
homens, mas humanas. É claro, entretanto, que as características valorizadas e impostas à
essas mulheres eram relacionadas à essência masculina.

Sendo assim, sua educação seria controlada também pelos homens, uma vez que a
questão ainda era permeada pela misoginia tradicional à sociedade imperial russa. Isso porque
a natureza feminina ainda era associada à alguns valores, como um suposto gosto pelas
fantasias e a dominação da emoção sobre a razão, que a tornavam inferiores se comparadas a
racionalidade excepcional, característica ligada diretamente à masculinidade, mas que era
esperada de qualquer pessoa. Então, tornar-se uma mulher instruída significava, na verdade,
abdicar de sua identidade como mulher, já que esta era menosprezada, e tomar para si uma
identidade masculina, vangloriada.

Por conseguinte, as mulheres esforçaram-se, mesmo que inconscientemente, para se


distanciar dessa identidade negativa. Elas cortavam seus cabelos, fumavam e usavam uma
linguagem mais grosseira, o que era inaceitável.12 Essa rejeição da civilidade e,
principalmente, da “feminilidade” também teve expressão na literatura. Primeiro, entretanto,
faz-se importante explicitar outras contradições que permeiam a questão feminina.

Como já foi mencionado, quando se começou a pensar a questão da mulher dentro da


sociedade imperial russa, foram principalmente homens que fomentaram os novos ideais de
igualdade e emancipação, circulando-os nos veículos onde a discussão era mais respeitada,
como o jornal Sovremennik. Apesar de ser uma questão que envolvia essencialmente as
mulheres, sua participação não era necessariamente considerada pelos homens letrados.
Inclusive, acreditava-se que as mulheres pouco tinham participação nesse debate13. Isso pode
ser dito porque existiam na época dois tipos de gêneros textuais: jornalismo, considerado um
tipo sério e racional e, obviamente, dirigido e povoado por homens, e belles-lettres,

12
cf. ibid., p. 357.
13
cf. ROSENHOLM, Arja. The ‘woman question’ of the 1860s. In: MARSH, Rosalind (Ed.). Gender and
Russian Literature: New perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p, 112-128.
direcionado às mulheres que ousavam escrever. Essa diferenciação existia porque a escrita
feminina, assim como tudo ligado ao gênero, era mal vista. Os autores progressistas da época,
que publicavam em jornais como o Sovremennik, diziam que os textos escritos por mulheres
eram subjetivos, melodramáticos e que não tinham relevância social14.

Entretanto, segundo a autora Arja Rosenholm, “it was precisely belles-lettres which
functioned as a channel for female intellectual expression and through which women joined
the debate on the ‘destiny’ (prednaznachenie) of the ‘new’ woman”15. Então, para fugir desse
criticismo enviesado, percebe-se que as mulheres escritoras se esforçaram para se
desvencilhar desses estereótipos de feminilidade, a fim de que seus trabalhos tivessem alguma
aceitação. Essa abdicação do seu gênero foi feita de diversas formas, inclusive com o uso de
pseudônimos masculinos. Sendo assim, fica claro que, apesar de sentirem a necessidade em
discutir e expor problemas próximos a sua realidade e de outras mulheres, elas enfrentavam
uma pressão crítica dos literatos para escreverem textos “bons”, isto é, textos “masculinos”,
sem qualquer traço que indicasse que o texto era de autoria feminina.

Apesar da recusa de muitos autores em tomarem como importantes os belles-lettres,


um exemplo de como as mulheres participaram do debate da questão feminina é o livro A
moça do internato, que será analisado a seguir.

4. As representações do feminino em A moça do internato:


Nadiêjda Khvoschínskaia nasceu em Riazan, na Rússia, em 1824. Teve 3 irmãs, sendo
duas delas também escritoras como ela, e um irmão. A autora teve uma infância diferente
daquela de outras garotas porque recebeu incentivos de seus pais para desenvolver seu
intelecto e suas habilidades artísticas. Quando seu pai, funcionário público, é acusado
falsamente de roubar dinheiro do governo em 1831 e, assim, perde seu emprego e é obrigado
a vender todas as suas propriedades, a garota é obrigada a abandonar o pensionato onde
estudava. Entretanto, seus estudos prosseguiram com a ajuda de toda a sua família: ela passou
um ano com um tio que morava em Moscou, aprendendo italiano e um pouco de arte; estudou
latim com seu irmão e era incentivada a ler os livros da biblioteca particular de seu pai. Além

14
cf. ROSENHOLM, Arja; SAVKINA, Irina.”How Woman Should Write”: Russian Women’s Writing in the
Nineteenth Century. In: ROSSLYN, Wendy; TOSI, Alessandra (Ed.). Women in Nineteenth-Century Russia:
Lives and Culture. Cambridge: Open Book Publishers, 2012. p. 179
15
ROSENHOLM, op. cit., p. 118.
disso, como conta Diana Greene16, segundo uma de suas irmãs, Khvoschínskaia não era
repreendida pelos pais quando expressava suas opiniões e tinha discussões com o pai, algo
que não era comum à época.

A autora, assim como outras mulheres de seu tempo, também enfrentou o criticismo
de gênero. Muitos de seus contemporâneos, ao escreverem biografias ou tecerem críticas
sobre ela, enfatizavam os seus atributos físicos: diziam que ela não era atraente aos homens,
que não era feminina, que não causava boas primeiras impressões. Além disso, sua
feminilidade e, consequentemente, seu lugar como autora do sexo feminino dentro da questão
feminina, eram sempre postos em questão, uma vez que a autora violava diversas normas de
gênero, como o hábito que tinha de fumar e a linguagem que costumava usar. Isso demonstra
que, para os críticos da época, as conquistas de uma mulher bem-sucedida eram menos
importantes do que a sua aparência física e a forma como se portava. Fica claro, então, que as
dificuldades em ser mulher e uma autora de sucesso na Rússia do século XIX envolviam
muito mais do que só questões de escrita.

Além disso, a autora sofreu ainda com a interferência de seu editor, Vladimir Zotov,
que trabalhava na Literaturnaia gazeta e que começou a publicar seus poemas no jornal em
1847. Ele, sob o pretexto de “refinar” e “aprimorar” a poesia de Khvoschínskaia,
principalmente aquela permeada pela crítica ao lugar da mulher na sociedade russa, acabou
realizando um serviço de silenciamento dos protestos da autora. Não suficiente a censura
praticada pelo editor, Zotov ainda explorava o trabalho da autora, uma vez que não pagava os
montantes combinados. Um bom exemplo do empobrecimento crítico causado às poesias dela
é dado por Greene no poema “Vy ulybaetes?” (“You’re smiling?”), publicado em 1852. No
verso “Kak ptichka chto rodom privykla k kletke tesnoi” (Like a little bird accustomed from
birth to a narrow cage), Zotov alterou para “Kak ptichka grustnaia, privykshi k kletke tesnoi”
(Like a sad little bird, accustomed to a narrow cage). Fazendo isso, ele claramente tira o foco
pretendido pela autora de apontar que as mulheres estavam sentenciadas a uma cela estreita
desde o seu nascimento.17

Com a decadência do gênero da poesia a partir da década de 1830, tornar-se


reconhecida e bem-sucedida financeiramente por meio da publicação desses trabalhos era
muito difícil, ainda mais sendo mulher. Sendo assim, com a morte de seu pai em 1856 e a
necessidade de prover para a sua família, Khvoschínskaia parte para a prosa, lançando em

16
GREENE, 2004, p. 113.
17
cf. GREENE, 2004, p. 130.
1861 a novela A moça do internato na revista Anais da Pátria, “cuja popularidade permitia
que rapidamente os setores mais intelectualizados da sociedade debatessem seu conteúdo com
avidez num curto espaço de tempo”18.

A história tem como heroína a personagem Liôlienka, uma garota que vive em uma
cidade provincial com sua família e que tem como vizinho Veretísin, um rapaz bastante
pessimista e crítico da sociedade russa, que costumava ser professor em Moscou. Assim, a
prosa é apresentada em duas partes: na primeira, o cenário é a província de N.. Lá, a jovem
Liôlienka é estudante em um internato, onde aprende noções básicas de gramática, história e
ciências. Veretísin toma interesse pela garota quando a vê, feliz e “inocente”, decorando
textos sobre história, e decide, pela amargura que sente pela sociedade, que irá entristecê-la
também, para que ela veja o mundo da forma como ele o vê.

Para tal, ele começa a induzi-la a questionar as relações de poder dentro de sua casa,
no internato e também as relações que envolvem o seu gênero. Odomiro Fonseca afirma que
“o mentor percebe um potencial em Liôlienka diferente das outras meninas da província”19,
entretanto, fica claro que, na verdade, o que se apresenta é um exemplo de um homem que
decide se uma mulher é digna de sua atenção, devido a uma atitude da moça que ele considera
contrária a “feminilidade”20, e que se esforça para “ajudá-la” (o que ele considera um
“despertar”) através de encontros que acontecem por cima da cerca que separa os seus jardins.
Ele faz isso porque se considera superior a ela por perceber a sociedade de uma forma
diferente, não porque realmente se importa com o que ela pensa sobre sua situação enquanto
mulher. Isso pode ser dito porque os encontros são para ele um mero passatempo, enquanto
para a garota tornam-se extremamente importantes e causadores de suas angústias, as quais
nós acompanhamos.

Liôlienka, então, passa a mudar drasticamente seu comportamento, motivada pelos


questionamentos de seu mentor. Quando precisa fazer os exames do internato, a jovem passa
a parar de decorar seus livros e até responde errado de propósito no dia do teste, porque não
acredita mais no ensino que lhe é dado. Além disso, questiona as tarefas domésticas que é
obrigada a fazer em casa e toda a dinâmica familiar, fato que faz com que seu pai comece a

18
FONSECA, 2017, p. 120.
19
ibid., p. 125.
20
Quando o mentor conversa com a jovem sobre o concerto no coreto e ela diz que preferiu ficar em casa
porque “há muita gente lá, você tem de se vestir de dondoca, caminhar de um lado pro outro, ficar calada… Eis
toda a diversão!” (KHVOSCHÍNSKAIA, 2017, p. 48)
chamá-la de “Dona Modinha”. Percebe-se que a personagem entra em conflito com as
demandas sociais do seu gênero e começa a se rebelar contra elas.

O ponto culminante desse conflito é quando, após ter que sair do internato por ter
reprovado nos exames, os pais de Liôlienka passam a impor que ela se case com um jovem
funcionário público, já que agora é essa a única alternativa que lhe resta. As tarefas
domésticas, o trabalho manual e o treino de piano aumentam, oprimindo a garota ainda mais,
porque sua mãe e a amiga acreditam que ela precisa aprimorar suas habilidades domésticas
para agradar seu futuro marido. Seu temperamento passa a perturbar as duas mulheres porque
não é adequado para uma garota que pretende se casar. Isto é, quebrando barreiras de gênero,
a protagonista demonstra não ser a esposa idealizada:

- Não aborreça sua mãe… - Pelagueia Semiônova sussurrou para ela. - Você é uma
moça de personalidade! Renuncie às vontades, meu anjinho, renuncie. Submeta-se!
Você terá de viver com seu marido e sua família; não tente se elevar ao patamar do
seu cônjuge, que você não ganhará nada com isso!21

Então, a heroína recusa o destino que é traçado para ela, abdicando definitivamente do
casamento: “Mamãe, pode me matar aqui mesmo onde estou, mas eu não casarei com
Farfórov!”22 E, assim, foge de sua casa e vai viver com uma tia em São Petersburgo.

Já na segunda parte da história, oito anos depois, numa Rússia que vive as Grandes
Reformas de Alexandre II, somos apresentados a uma nova Liôlienka - agora Elena
Vassílievna. Quando foge para a metrópole, Liôlienka recebe instrução, com a ajuda de sua
tia, e torna-se uma artista que sustenta a si própria. Nesse momento, a autora apresenta a
heroína como um exemplo do ideal da mulher instruída: aquela que abdica da sua
feminilidade, de tudo aquilo que a conecta ao seu gênero, considerado por ela uma prisão.
Assim, sua liberdade é ambivalente, porque ela continua presa dentro de um padrão - agora
“sem gênero”, mas que na verdade é masculino - que acha que deve seguir. Como afirma
Rosenholm: “as a woman, she can achieve equality only by accepting the dominant male
interpretation of rationality; she must be wary of ‘sentimentality’ so as not to relapse into the
incompleteness of a feminine creature of feelings”23

Quando Liôlienka reencontra Veretísin em São Petersburgo, percebe-se pelo diálogo


que é travado que ela o superou: é ela agora que o ensina. Quando ela descobre que o antigo

21
ibid., p. 141.
22
ibid., p. 145.
23
ROSENHOLM, 1996, p. 121.
mentor ainda é apaixonado pelo seu primeiro e único amor Sofia, ela se choca. Isso acontece
porque Sofia, na verdade, casou-se com um rapaz que não amava, só porque ele poderia
sustentá-la e a mãe. A heroína critica a mulher, porque acredita que ao se casar, ela vendeu
sua liberdade. Nesse momento, Veretísin mostra onde permaneceu estagnado, já que vê na
atitude de sua amada um ato de altruísmo, remetendo a personagem àquele ideal feminino de
mártir, rejeitado primeiramente por ele.

- O que você chama de perfeição é uma mulher que vendeu a própria vontade, que se
arremessou num abismo…
- Ela não se vendeu, mas renunciou a si mesma; cedeu às súplicas da mãe. Ela não
amava ninguém… Seu marido é um homem honesto, que não é tolo… claro que não
é um progressista, nem um líder, mas… Para que dar o tesouro sempre ao rico, se é
o pobre que precisa mais?
- E o que você acha que ela fez para os pobres necessitados?
- Ela deu à sua mãe um fim de vida sossegado; reconciliou o marido com o pai;
transformou o velho numa pessoa mais humana e caridosa; ajudou o seu marido a
estudar, a como usar os meios para atingir os fins; deu um suspiro de vida a muita
gente.
- Ó, que grande trabalho! - interrompeu Liôlienka. - E renunciou para isso? Para
limpar o quarto da mãe, reconciliar a família, soprar feridas e ensinar o alfabeto ao
marido? E isso é a essência da superioridade?
- E quem dirá que isso não é um sinal de superioridade? - retrucou Verítisin. - Os
seres inferiores nunca compreenderão, por isso desdenham! Aqueles que se
sacrificam até as últimas consequÊncias são superiores. Só o sacrifício da perfeição
pode conduzir o ser humano a alguma coisa... 24

Percebe-se, então, que são apresentadas na novela três figuras femininas que
permeavam a questão feminina no século XIX: a mulher submissa, representada pela mãe de
Liôlienka, que está acostumada a viver para agradar o seu marido e que projeta esses
ensinamentos em sua filha. A mulher idealizada, representada por Sofia, que é aquela que é
abnegada e representa o ideal de mártir, exemplo que deve ser seguido tanto por homens
quanto por mulheres. E, por fim, a mulher instruída, representada por Liôlienka, que abdica e
recusa a ideia de todas essas outras figuras, distanciando-se da feminilidade, considerada por
ela aprisionadora.

5. Conclusões finais:
A questão feminina na Rússia do século XIX foi permeada pela ambivalência e pela
contradição. Isso pode ser dito porque, apesar de ter sido estruturada a partir de uma ideia de
emancipação feminina, fica claro que, pelo menos durante o período analisado, era uma

24
KHVOSCHÍNSKAIA, 2017, p. 160.
questão permeada ainda pelo machismo e pela misoginia. Na Rússia czariana pré-reformas, a
atitude de Nadiêjda Khvoschínskaia em escrever uma novela que desafiasse os padrões de
gênero sustentados pelos homens letrados é louvável. Entretanto, a autora não escapa da
prerrogativa, ao criar uma personagem como Liolênka, de que a masculinidade está ligada a
emancipação. Isto é, apesar de criar uma heroína que se torna, a partir do questionamento de
sua própria situação enquanto mulher, emancipada e auto-suficiente, ela prossegue
associando, assim como seus contemporâneos do sexo masculino, a feminilidade e,
consequentemente, o gênero feminino, a algo negativo, não-racional, o que não deveria ser
considerado uma real emancipação e muito menos equidade. Ao abdicar de sua identidade
como mulher, em busca de uma identidade “agênera”, essas mulheres estão, na verdade,
sustentando-se em pressupostos masculinos de liberdade e racionalidade. Sendo assim, pode-
se dizer que “the writer comes up against the limitations of her own era”25.

Referências bibliográficas:
Fonte:
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Tradução de Odomiro Fonseca.

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