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Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
em Estudo de Linguagens da
Universidade do Estado da
Bahia como requisito para a
obtenção do título de mestre
sob a orientação do Prof. Dr.
Luciano Rodrigues Lima.
SALVADOR
2008
3
CDD: B869.2
4
DEDICATORIA
À memória de meu avô Miguel Archanjo de Sant’Anna, Zabá, Ojé Orepê, Tataygbi,
Obá Até (Aiê); Ijibola (Orum).
A meus pais pela minha encarnação nesta vida.
Aos meus irmãos e minhas irmãs.
Aos tios e tias que me acolheram e ainda me acolhem:
Tia Dadi, Tia Rute, Tia-mãe Nazifa, Tia Tatá, Tia Joana, Tia Iracema, Tia Iracy, Tia Dulce,
Tia Eunice, Tia Carmelita, Tia Carolina, Tia Lycia (in memoriam,); Tia Angelina, Tia
Chiquinha, Tia Lourdes, Tia Jaguaracyra, Tia Dalva, Tia Mariath.
Tio Delmiro, Tio Antenor, Tio Dão, Tio Timóteo, Tio Durval, Tio Djalma, (in memoriam);
Tio Antonio.
Aos parentes e amigos que desde tenra infância incutiram em mim a necessidade de estudar
para ser alguém na vida.
A todos e todas, indistintamente, que me ajudaram na concretização deste sonho.
Dedico especialmente ao orixá Oxum, pela inspiração, pelo entusiasmo e pelo
encantamento para escrever.
A Ogum, orixá que abre os caminhos e a estradas para que passe neles o desenvolvimento
tecnológico e os resultados das lutas por melhores dias na sociedade brasileira e baiana.
7
AGRADECIMENTOS
A Olorum.
Aos Orixás.
A Mãe Stella de Oxóssi.
A Mãe Georgete de Oxum.
Ao Ilê Axé Opô Afonjá: Comunidade-Terreiro, Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá.
A UNEB/PPGEL: Coordenação: Márcia Rios da Silva / João Santana Neto;
Secretaria (Ilana Azevedo, Camila Araújo e Danilo Araújo);
Á Biblioteca Central, Departamento de Ciências Humanas - Campus I, Colegiado de
Letras; UDO e ASSCOM;
Á Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia;
Á Secretaria Municipal de Educação e Cultura;
Ao Clube da Maior Idade Renascer, Centro de Estudos Miguel Santana, Camerata Castro
Alves, Núcleo de Cultura Popular da Bahia, Ateneu Musical Osvaldo Devay de Sousa;
IRDEB, DIMAS; Fundação Casa de Jorge Amado, Fundação Pedro Calmon, Fundação
Gregório de Mattos, Jornal A Tarde, Grupo Ambientalista Ecoterra;
Aos professores Sílvio Oliveira, Edivaldo Santos, Ildásio Tavares, Rosa Helena Blanco,
Iraci Simões da Rocha, Lícia Soares, Verbena Rocha, Narcimária Luz;
Aos colegas: Rodrigo Matos, Arizângela, Chico Mota, Lindinalva, Socorro, Flávia, Denise,
Priscila, Alzira, Odete, Edmilson Queiroz;
Aos alunos da disciplina Literatura Baiana;
A Victor Athaíde Couto (in memoriam), Coordenador do Ateliê de Projetos da Faculdade
de Economia da UFBA;
A Daniel Teixeira, Clarindo Silva, Walmir Lima, Egnaldo Araújo, José Carlos Limeira,
Bartô Daltro, Lindalva Lopes, Salete Souza, Neide Macedo, Juraci Tavares, Márcio Pereira,
Lisa Earl Castillo, Rita Almeida, Raquel Mendes, Celeste Bispo, Alexandre Babilônia,
Valdite Barbosa, Antonio Vieira (in memoriam).
8
EPÍGRAFE
“Quero ver meus filhos aos pés de Xangô, com anel no dedo!”
RESUMO
RÉSUMÉ
Ils s’agit d’un travail que analise les traits revelateurs d’une possible identification et
compromisse politique du écrivain Jorge Amado avec la dèfense et valorization des
traditions, histoire e culture du peuple noire du Bahia, dans le roman Tende des les
miracles, «La boutique aux miracles» (1969), bien comme en depoiments auteuriels. Ce
débat, aussi, les accusations de aucun critiques des un exotisme estetique dans l’oeuvre
amadienne. La disertation il’est estructuré dans troisiemme chapitres: 1) Laroiê! Jorge Exu
Amado et la transgression comme expresion literaire, ou se débat la relation du écrivain et
de sujet empirique avec l’orixá Exu; 2) Ogun kapê dan meji: candomblé, lutte e resistence
dans le sortilège amadienne, ou se verifie la expresion literaire d’ inspiration quixotesque
comme instrument de lutte pour oprimè et 3) Ojuobá Arolu: une lecture sur les regardes du
Jorge dans Tende des les miracles, «La boutique aux miracles», dans le quel se analise,
plus detiment, la probable relation identitaire du écrivain avec le peuple noire-mésti du
Bahia. Se suivre une glossaire du terme afro-bahianaise utilisé dans la recherche, et, dans
l’item ANNEXES, la disertation presente documents representatifs du Centre des Études de
la Memoire Populaire Miguel Santana, du Nucle de la Culture Populaire du Bahia et de la
activité de la extention 1e Cicle Lectures du Jorge, coordenés pour l’auteur de cette
disertation et lorsque activité sont liés au thème des cette recherche, accroitru des materiel
journalistique.
Les conclusions pointen pour une comprometiment politique et estètique du Jorge Amado,
tant comme citoyen autan comme l’écrivain , dans une l’ouevre ficitionel, avec la
preservation de la culture afro-bahianaise.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1. PRIMEIRO CAPÍTULO
1.1 Laroiê! Jorge Exu Amado e a transgressão como expressão literária ......................... 12
1.2 Ogó e tridente: Jorge e a desconstrução do simbolismo negativo de Exu ................... 14
1.3 Agô, agô Lonã! a presença ancestral do orixá dos caminhos em Salvador ................. 17
2. SEGUNDO CAPÍTULO
2.1 “Ogun kapê dan meji”: candomblé, luta e resistência num sortilégio amadiano ........ 25
2.2 Ojuobá: Pedro Archanjo na encruzilhada do materialismo ........................................ 30
2.3 Odu quixotesco: uma literatura de valorização do oprimido ..................................... 43
2.4 Oriqui: histórias de luta e superação contra o degredo na diáspora brasileira ........... 45
2.5 Adjá e abebé: nas águas de Jorge, sob a inspiração de Oxum .................................... 49
3. TERCEIRO CAPÍTULO
3.1 Ojuobá Arolu: uma leitura dos olhares de Jorge em Tenda dos milagres .................. 63
3.2 Xirê ou as voltas que o mundo dá ............................................................................... 68
3.3 Faraimará: um abraço carnavalesco em Jorge-Pedro-Amado-Archanjo .................... 75
3.4 Adarrum: o Pelourinho revisitado ............................................................................... 80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ofá e eruexin ou Jorge Amado, Tenda dos milagres e a construção da cidadania. .......... 84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GLOSSÁRIO DE TERMOS AFRO-BAIANOS
ANEXO A - Documentos institucionais do Centro de Estudos Miguel Santana e do Núcleo
de Cultura Popular da Bahia
ANEXO B - Material jornalístico; fichas e questionários do I Ciclo Leituras de Jorge
12
INTRODUÇÃO
De uma força vital sem medida, artista
de nascença, senhor da gentileza,
capaz de superar as piores condições
de existência e seguir adiante, amando
o riso e a festa, criador de civilização e
de cultura, o povo baiano marca e
atesta toda a obra da criação aqui
realizada (AMADO, 1982, p. 33).
1
A publicação do romance Jubiabá, nome homônimo religioso de Severiano Manuel de Abreu, um famoso
babalorixá que, à época, teria provocado uma retratação pública do autor, se insere num conjunto de ações
lideradas pelo etnógrafo e escritor Édison Carneiro e pelo antropólogo Artur Ramos no sentido de legitimar a
religião do candomblé, a partir da década de 1930.
13
2
Miguel A. de Sant’Anna foi informante de muitos pesquisadores entre os quais destaca-se o antropólogo
Vivaldo da Costa Lima, que por sua vez, acumula os oiês de Ogã e Obá do Ilê Axé Opô Afonjá. No seu
clássico livro A família-de-santo nos candomblés jeje-nagô da Bahia, publicado, inicialmente, em 1977,
resultado de sua tese de mestrado, ele faz um registro muito importante sobre o perfil religioso do Obá Aré
Miguel de Sant’Anna e a sua proeminência no culto ao orixá Xangô, que passaria a ser exercida ao lado da
ialorixá Senhora de Oxum, no Ilê Axé Opô Afonjá, logo após o falecimento de Mãe Aninha em 1938.
14
3
Pelourinho inicialmente, é uma referência ao instrumento de suplício colocado em lugar público para
castigar escravos e desertores da Coroa Portuguesa. Em Salvador, o largo que abrigava o pelourinho terminou
por dar nome ao lugar e sua abrangência simbólica atual, ganhou estatus de bairro.
4
Os falares africanos na Bahia têm sido alvo de longos anos de pesquisa e estudo da etnolingüísta Yeda
Pessoa de Castro, que publicou em 2000, um livro cujo título homônimo oferece uma contribuição importante
nesta pesquisa, tendo grande relevância na elaboração do glossário que foi aposto ao trabalho.
5
Considerado simplesmente como guia, o livro Bahia de Todos os Santos também pode ser tratado como obra
literária representativa, pois se constitui em uma verdadeira epopéia dedicada à cidade do Salvador; que tem
como referência cultural colonizadora a herança africano-brasileira e que, apesar do grande apelo turístico
dado pelo autor, renasce recriada no texto amadiano como cidade cujo domínio pertence a Exu.
15
O segundo capítulo tem como título “Ogun kapê kapê dan meji: candomblé, luta e
resistência num sortilégio amadiano” e nele será abordado um conteúdo temático muito
caro ao autor e refere-se à perseguição policial institucionalizada aos líderes da religião
afro-brasileira, mais especificamente o candomblé. Também será alvo de análise a
construção da trama textual amadiana, que revela uma estrutura bem elaborada do ponto de
vista estratégico e argumentativo, na qual os recursos estéticos e os gêneros literários
aparecem de forma intensa e recorrente. A utilização desses recursos, com uma finalidade
específica e determinada, deixam marcas claras da opção preferencial que o autor-narrador
fez pelo mais fraco, pelo injustiçado e perseguido. Em Tenda dos milagres o autor, afastado
das amarras político-ideológicas do Partido Comunista, mostrou-se justiceiro e libertador
ao tentar vingar o insulto6, originário de uma sociedade racista, preconceituosa e
excludente. Assim como no livro Bahia de todos os Santos, onde predomina um projeto
literário de desconstrução da influência ibero-portuguesa-espanhola, na velha Cidade da
Bahia, transformada através da escrita eloqüente e libertadora de Jorge Amado, em “Roma
Negra” ou melhor em cidade dominada pelo orixá Exu.
O terceiro e último capítulo intitula-se “Ojuobá Arolu: um leitura dos olhares de Jorge em
Tenda dos milagres” e nele será analisado de forma mais aprofundada e dialógica o projeto
literário que Jorge Amado teria criado para construir o romance publicado em 1969, e que
supostamente fora germinado na mente e no coração do autor no sábado de carnaval
daquele mesmo ano, quando a Escola de Samba Filhos do Tororó prestou-lhe uma
homenagem com o samba enredo Jorge Amado em quatro tempos, de autoria do sambista
santamarense Walmir Lima. “Era a primeira vez que Jorge Amado recebia uma
homenagem pública em pleno carnaval”, disse o compositor.
Procurando ratificar o que foi escrito no preâmbulo deste projeto cujo título já foi referido
acima, busca-se identificar, em linhas gerais, a trajetória sócio-cultural e religiosa
percorrida pelo autor-narrador Jorge Amado, considerada como fator determinante para a
construção de um projeto literário nacional dos mais ousados e dos mais inovadores, que
avançou no seu tempo e que inaugurou uma estética regional peculiar e uma escrita
transgressora marcada pelo caráter identitário e cúmplice. Por sua vez, esta pesquisa tem no
6
Essa expressão refere-se segundo LIMA, 1987, p. 71, a uma tradução livre do orucó Obá Sañyá, alusivo ao
babalorixá Joaquim Vieira da Silva, co-fundador do Ilê Axé Opô Afonjá, ao lado de Eugênia Anna dos
Santos, Obá Biyi.
16
seu antecedente histórico uma afinidade institucional com o Núcleo de Cultura Popular da
Bahia e o Centro de Estudos da Memória Popular Miguel Santana, através do Simpósio
Encontros com a Cultura Popular, atividade de extensão comunitária realizada anualmente,
desde novembro de 2001, com o seguinte tema: O mais importante na Bahia é o povo!7
Durante esse período, a obra de Jorge Amado, com ênfase na cultura afro-baiana, serviu de
tema e inspiração às atividades realizadas (debates, palestras, conferências, pesquisas,
instalações e apresentações artísticas em torno do contributo da herança africano-brasileira
em Salvador), bem como, a sua representação fragmentada nos romances do escritor e a
sua controvertida relação com o surgimento da indústria cultural e turística na década de
19708.
Outro aspecto da problemática em torno da obra de Jorge Amado é o somatório das
declarações do próprio autor sobre o seu compromisso político com as camadas populares
da Bahia e a realidade ou não dessas declarações, isto é, se elas se comprovam na sua obra
ficcional.
Ainda se fala muito, se estuda e, principalmente, se pesquisa de forma quase exaustiva,
sobre os mitos fundadores da cultura ocidental, mormente os mitos greco-romanos; pouco
ou quase nada se estuda ou se pesquisa, nas universidades brasileiras, sobre a origem dos
mitos africano-brasileiros, muitos menos sobre os mitos afro-baianos e seus ancestrais
diretos representativos de uma população que tem herdado historicamente o degredo, a
exclusão, a marginalidade e extensivamente a vulnerabilidade que tende a aumentar os
índices de violência, corrupção, tráfico e mortandade. Essa característica tem sido marcante
na trajetória do povo negro-mestiço de Salvador, apesar do rico acervo cultural que criou,
da definitiva contribuição que trouxe para o desenvolvimento da indústria turística e de
entretenimento, difundindo a Bahia para o Brasil e projetando o país no cenário
internacional dos negócios culturais.
7
O Centro de Estudos Miguel Santana foi fundado em 1998, no Pelourinho, a partir do desenvolvimento de
um projeto piloto voltado para as comemorações do centenário de nascimento do seu patrono. Formado por
uma equipe multidisciplinar procura desenvolver ações sócio-educativas de preservação e resgate do legado
cultural originário das matrizes africanas na Bahia. Por sua vez, o Núcleo de Cultura Popular da Bahia surgiu
como expressão e orientação da Rede de Agentes Culturais (RAC), criada pelo Sebrae-Bahia em conjunto
com a Secretaria da Cultura e Turismo, como forma de sistematização e profissionalização dos negócios
culturais e turísticos no Estado.
8
Em Tenda dos milagres Jorge Amado deixa muito bem marcada uma crítica remota aos efeitos da cultura
de massa nas relações institucionais e sociais, através da campanha desenvolvida pelo Jornal da Manhã em
torno da memória obscurecida de Pedro Archanjo.
17
9
Cf. TAVARES, 1996, p. 87.
18
1. PRIMEIRO CAPÍTULO
10
Cf. GOMES, 1981, p. 11
19
milagres, evocativo dos tempos remotos da sua chegada à Cidade da Bahia11 e depositário
de sua mais lídima identidade pública e pessoal por representar uma convergência entra a
literatura e a vida real.
A obra de Jorge Amado tem sido objeto de críticas desencontradas, que abrangem desde o
elogio pela valorização da cultura afro-baiana até a acusação de que nela o autor estaria se
apropriando de elementos superficiais e fragmentários dessa cultura, para utilizá-la como
moldura ou “enfeite” dos seus romances. Tenda dos milagres se constitui numa espécie
de manual de referência das principais matrizes culturais e religiosas nagô-iorubás,
predominantes sobre todas as outras, à época, e que serviram de esteio para a vida política
e literária do escritor, assim como para o desenvolvimento de sua obra ficcional. Nela o
autor cria e recria momentos cruciais de embate entre os representantes da polícia: o
personagem Nilo Argolo, expoente da Faculdade de Medicina da Bahia, o delegado auxiliar
Pedro de Azevedo Gordilho, conhecido como Pedrito Gordo, os seus principais
comandados: Zacarias da Goméia, Cobra Coral e Zé Alma Grande; e os líderes religiosos
do candomblé: ialorixás (Majé Bassan, Sabaji, Aninha, Olga, Menininha), babalorixás
(Procópio de Ogunjá, Felipe Mulexê), no romance ainda ficou registrado aquilo que poderia
esclarecer a principal pergunta formulada nesta pesquisa.
No caldeirão transbordante de informações midiáticas sobre o legado cultural deixado
pelos antepassados e que a indústria cultural e de entretenimento tendem a reproduzir,
sistematicamente, como mero produto de consumo, distanciado do seu locus e despido de
sua identidade, surge no decorrer desse discurso introdutório da pesquisa voltada para a
obra temática amadiana Tenda dos milagres, o seguinte questionamento? Em que medida a
obra de Jorge Amado se constitui como um elemento de afirmação da identidade do povo
negro da Bahia?
A força que a literatura de Jorge Amado adquiriu ao descrever, recriar e reinventar a Bahia
de outrora teria convertido os ambientes residuais do colonialismo – Salvador é descrita
como vera cidade de Exu, com destaque para a região mais famosa do seu centro antigo,
denominada Pelourinho –, em lugar e cenário de espetacularização e folclorização da cruel
realidade social em que viviam os negros e as negras de Salvador. A sua veia de jornalista-
11
Cidade da Bahia, Velha Cidade da Bahia ou simplesmente Bahia são referências arcaicas, históricas e
afetivas sobre a cidade do Salvador, primeira capital do Brasil. Cf. AMADO, 1982; PINHO, 1996 e SEIXAS,
2000.
20
escritor, a sua capacidade objetiva e às vezes reducionista, teriam por sua vez, transformado
os fatos reais e históricos em ficção.
Integrante do Movimento Negro Unificado (MNU), membro efetivo do Ilê Axé Opô
Aganju e representante do Grupo Cultural e Carnavalesco Ilê Aiyê, Maria de Lourdes
12
A Fundação Casa de Jorge Amado, instituição cultural que tem a sua guarda sob os auspícios do orixá Exu.
construiu um discurso próprio para justificar a similitude com um dos arquétipos de sua representação, a
comunicação; e saúda a todos e todas com a expressão transgressora ilustrada por uma xilogravura de Carybé:
“Se for de paz pode entrar”, atribuída ao escritor e irmão do patrono da casa, James Amado. Outra marca
desse culto é o “assentamento” do “orixá dos caminhos” na “porteira”; este, representado numa escultura do
artista Mário Cravo. Segundo Myriam Fraga, presidente da Fundação Casa de Jorge Amado, em comovido
depoimento dado no encerramento do Sarau do XVIII, no dia 7 de janeiro de 2008, a cerimônia referida acima
aconteceu à meia- noite, foi das mais tranqüilas e teve a participação entre outros, do escritor Jorge Amado e
da ialorixá Stella de Oxóssi. Segundo Myriam, embora o IPHAN tivesse determinado a retirada da escultura
representativa do orixá, a mesma permanece no local até a presente data, integrando o cenário pitoresco do
Pelourinho.
21
Siqueira (1998), em seu livro referencial Ago, ago Lonã: mitos, ritos e organização em
terreiros de candomblé da Bahia, oferece muitas informações culturais e religiosas e nele o
leitor pode encontrar algumas referências diretas e indiretas ao arquétipo do orixá Exu,
sobretudo aquelas ambientadas nas tradições nagô-iorubás da Bahia. Siqueira, ao utilizar
um discurso que coloca em evidência elementos próprios da pedagogia “nagô”, mostra-se
bem respaldada na literatura afro-baiana e afro-brasileira, como também na lucidez de suas
conclusões: Exu é aquele que realiza a ponte entre quem lhe confiou a mensagem e a
resposta / resultado (opus cit., p. 56).
A sua descrição minuciosa sobre a relação de Exu com os ritos afro-baianos e que um
tratamento que o reconhece como orixá dotado de poderes tais e que a sua primogenitura
deve ser sempre considerada e respeitada, sob a ameaça de se inverter a ordem das relações
estabelecidas e, causando prejuízos morais, materiais e sociais.
13
Para uma melhor compreensão dos aspectos que originaram o desenvolvimento das políticas patrimoniais e
turísticas no Brasil, ver SANTOS, 2005.
22
14
Para maiores esclarecimentos sobre o fenômeno e possíveis desdobramentos capitalistas na chamada
indústria cultural, ver CALDAS, 1986.
23
1.3 Agô, agô Lonã!15 a presença ancestral do orixá dos caminhos em Salvador
No livro Bahia de todos os santos, também considerado uma verdadeira epopéia afro-
baiana, o autor se vale de uma narrativa que utiliza o discurso direto em que o interlocutor-
viajante recebe as instruções iniciais do narrador-anfitrião sobre procedimentos, normas e
etiquetas sociais, culturais e principalmente as de cunho religioso, típicas da velha Cidade
da Bahia.
Quem guarda os caminhos da cidade do Salvador da Bahia é Exu, orixá dos
mais importantes na liturgia dos candomblés, orixá do movimento, por
muitos confundido com o Diabo no sincretismo com a religião católica,
pois ele é malicioso, arreliento, não sabe estar quieto, gosta de confusão e
de aperreio. Postado nas encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na
meia-luz da aurora ou no crepúsculo, na barra da manhã, no cair da tarde,
no escuro da noite. Exu guarda sua cidade bem amada. Ai de quem aqui
desembarcar com malévolas intenções, com o coração de ódio ou de inveja,
ou para aqui se dirigir tangido pela violência ou pelo azedume: o povo
dessa cidade é doce e cordial e Exu tranca seus caminhos ao falso e ao
perverso (AMADO, 1982, p. 17).
15
Expressão de saudação ao orixá Exu, utilizada na abertura da cerimônia pública dos terreiros e que se
denomina xirê. Título homônimo de um dos livros da pesquisadora maranhense radicada na Bahia, Maria de
Lourdes Siqueira.
24
16
Segundo a pesquisadora Yeda Pessoa de Castro, no seu discurso realizado durante o Exame de
Qualificação desta pesquisa, a contribuição informativa da ialorixá Olga do Alaketu tem uma presença
definidora e marcante no texto do escritor Valdeloir Rego, citado acima.
25
O que se observa, logo de início, do exposto acima, é que o autor registra uma ação
colonizadora do africano escravizado e do afrodescendente já liberto muito intensa e
fortemente marcada pela adequação regional e pela prática cultural, através da descrição de
uma cidade negro-mestiça, ou melhor ibero-portuguesa-negro-mestiça. Sob esse ponto de
vista, a cidade do Salvador, também chamada de “Roma Negra” 17, pode ser considerada a
cidade de Exu, a pátria iorubana dos nagôs no Novo Mundo, ou seja, na diáspora africano-
brasileira.
A paisagem local teria se tornado adequada e propícia, apesar do holocausto negro durante
o período colonial caracterizado pela ambição comercial européia e que resultou na
estratégia ignominiosa da escravidão africana. No entanto, a representação de Exu na obra
amadiana surpreende o leitor pela força anti-colonizadora, pelo poder de subversão e pela
17
Segundo LIMA (1987), essa denominação, contida em LANDES (1967), é resultante de um erro de
tradução. Atribuída a Eugênia Anna dos Santos, Obá Biyi, ialorixá fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, a
denominação original teria sido “Roma Africana”.
26
18
Vários outros locais são citados por Valdeloir Rego como Ogunjá, Giri, giri, Gberu, Beco dos Nagôs e
Cabula. São chamados bairros negros pela grande concentração desse contingente populacional , à época, em
zonas periféricas de Salvador.
27
O autor deixa muito bem marcado o papel primordial que o orixá primogênito da cultura
nagô-iorubá, exerce na comunidade religiosa afro-brasileira e que se expande na sociedade
multicultural de Salvador.
Ao ser protagonizado no livro amadiano, Exu se materializa no cotidiano das pessoas, nas
relações institucionais, na cultura, na religião e na política. A presença atuante do orixá
permite, por sua vez, a realização de atos transgressores, inclusive a própria escrita do
autor-narrador, que no seu percurso literário desconstrói com autonomia, independência e
propriedade intelectual a ordem estabelecida durante os séculos de colonização portuguesa
e constrói uma nova ordem de política social, cultural e religiosa onde a herança negro-
mestiça aparece com predominância sobre todas as outras.
Exu é para Jorge Amado mais que um simples orixá, mais que uma entidade de culto da
religião afro-brasileira que impõe respeito e às vezes, temor; representa mais do que o
epíteto negativo de Diabo e Demônio, redutor de traços culturais milenares, que lhe fora
atribuído pela Igreja Católica, ainda na Idade Média.
E Valdeloir continua a sua formulação exegética e litúrgica sobre Exu, informando
didaticamente o seu leitor: Exu é a divindade por onde tudo se inicia, desde a simples
saudação até um ritual complexo, para depois então se fazer o que se quer (REGO,1980) .
Exu é para o escritor uma força propulsora da vida que vivifica as coisas e os seres, que
gera movimento, que renova ambientes, que recria cultura e reinventa religião.
Por outro lado, o escritor Jorge Amado, sabedor desses “pormenores”, por ser um iniciado,
um sacerdote do candomblé, estabeleceu uma relação de cumplicidade com o orixá Exu,
tornando-O um grande aliado, um escudo, uma armadura eficiente capaz de segurar e
aparar sobre Si os resultados – na maioria das vezes surpreendentes – das “travessuras” e
“transgressões” literárias que o escritor lhE impingiu e lhE atribuiu.
28
Com Exu no meio, tem Axé, tem comunidade afro-baiana, tem negro, tem insurgência, tem
cachaça, tem farofa, tem dendê. Tem oferenda certa: tem sacrifício, tem espera e tem
resposta. Nisso está a força da obra amadiana, nisso ela se mantém até os dias atuais. Como
um iniciado legitimado pela comunidade, Jorge Amado teria feito o seu ebó “bem feito”,
escreveu para além do seu tempo, sofreu com isso duras críticas, foi rotulado, enfrentou os
defensores das “boas letras”, da “forma perfeita e acabada” da tradição literária brasileira.
19
O escritor Jorge Amado deixou marcado em duas das suas principais entrevistas publicadas, o seu perfil
identitário e a sua escolha pessoal dentre o conjunto da sua obra literária, e o romance Tenda dos milagres
(1969), prevalece nas duas. Para maior detalhamento. Cf. GOMES, 1981, p. 11; e RAILLARD, 1990, p. 83.
29
Sobre o perfil literário de Jorge Amado, o escritor Jorge de Souza Araújo (2008), através de
sua obra Floração de imaginários: o romance baiano no século 20, deixou registrado um
contributo no qual descreve traços definidores de sua atividade como romancista:
Atingido pela crítica justa de ARAÚJO (2008), Jorge Amado teria sido contemplado, ainda
que tardiamente, em sua inteireza como escritor, não apenas como narrador autoral
onisciente, na obra referida acima, com argumentos fortes e decisivos:
Segundo Benjamim Abdala Júnior (1993), em seu livro O romance social brasileiro, Jorge
Amado, pagou um alto preço com a publicação da sua obra reconhecidamente inovadora e
transgressora; colheu, por outro lado, muitos frutos, recebeu muitas láureas e continuou
desafiando as tradições acadêmicas com as “novidades” de uma literatura de forte apelo
popular e marcadamente identitária. A sua força, no entanto, reside na capacidade de fazer
rir através de uma narrativa simbólica sobre os costumes de um povo sofrido,
marginalizado e historicamente excluído da sociedade institucionalizada oficialmente. Essa
realidade, esse continuum ancestral bastante arraigado na sua vida pessoal, ofereceu-lhe
matéria prima, assunto inesgotável para escrever com “impulso” e com coerência estética
30
nas páginas dos jornais locais, atuando como jovem repórter, e, posteriormente, como
romancista, os inúmeros livros que publicou em sua longa carreira literária.
Atualmente, além de Ogan, ministro leigo de vários terreiros, Jorge Amado é Obá
Arolu, ministro de Xangô do Axé Opô Afonjá. É inegável a sua atuação em defesa
das religiões negras da Bahia, prestigiando-as, difundindo sua beleza, entronizando
em seu lugar devido as grandes figuras negras de nossa história que não constam
nos manuais oficiais e que somente agora começam a merecer memórias com apoio
interessado de televisões estrangeiras (TAVARES, 1996, p. 21).
SEGUNDO CAPÍTULO
2.1 “Ogun kapê dan meji”: candomblé, luta e resistência num sortilégio amadiano
A memória recente dos principais terreiros de Salvador ainda guarda registros da ação
implacável de perseguição policial aos líderes religiosos do candomblé (ialorixás e
babalorixás), liderada, principalmente, pelo delegado auxiliar Pedro de Azevedo Gordilho,
conhecido universalmente na Bahia por Pedrito Gordo.
Este capítulo analisa o importante contributo literário criado pelo escritor Jorge Amado no
romance Tenda dos milagres, em defesa da religião do candomblé e representado através de
uma cena memorável, de forte conteúdo argumentativo que mescla a utilização dos
recursos estéticos de linguagem (metáforas, metonímias, personificações), com os gêneros
literários de apelo fantástico (fábulas, legendas e mitos), acrescido de informações e de
acontecimentos históricos.
“Acabe com este Santo
Pedrito vem aí
Lá vem cantando ca ô cabieci
Lá vem cantando ca ô cabieci.”
(AMADO, 1969, p. 191).
Sobre esse aspecto que marcou a vida e a rotina da cidade do Salvador, durante longo
período, desde os finais do século XIX, a etnomusicóloga alemã Ângela Lühning
(1995/1996), através do seu artigo intitulado “Acabe com este santo, Pedrito vem aí...”,
oferece uma grande contribuição para o entendimento das circunstâncias históricas,
políticas e sociais que teriam reforçado os níveis de preconceito racial vigentes,
32
prolongando ainda mais o processo humilhante a que os negros foram submetidos com o
regime da escravidão.
“Procópio tava na sala
Esperando santo chegá
quando chegou seu Pedrito
Procópio passa pra cá”.
O tema da perseguição policial, presente nas redações dos jornais da época, teria sido
explorado exaustivamente nos ambientes populares e teria chegado aos cordelistas e
cantadores, como ficou registrado em trovas como as que foram citadas acima,
contundentes e reveladoras de uma realidade histórica que afligia sobremaneira os
afrodescendentes ligados ao culto religioso e práticas culturais consideradas violentas ou
sensuais como a capoeira e o samba-de-roda .
Apesar de estar relacionado na obra amadiana através do personagem Nilo Argolo, que
representa o anti-herói, pela sua deliberada oposição ao negro e ao mestiço, o personagem
real Raymundo Nina Rodrigues, favorável às teorias racistas de Auguste de Gobineau,
mostra-se no texto que se segue, com uma visão mais ampla dos processos ignominiosos de
escravidão, pelos quais os africanos e afrodescendentes foram submetidos durante séculos:
O medo do feitiço como represália pelos maus tratos e castigo que lhe eram
infligidos, em primeiro lugar; o temor supersticioso de práticas cabalísticas
de caráter misterioso e desconhecido; em segundo, o receio, aliás bem
fundado de que as práticas e festas religiosas viessem obstar a regularidade
do trabalho e justificassem a vadiagem; em terceiro, a coibição prepotente
do poder do senhor que não admitia no negro outra vontade que não fosse a
sua; tais foram os verdadeiros motivos porque, mesmo quando se concedeu
licença aos negros para divertirem ao som monótono do batuque, os
candomblés eram, de contínuo, dissolvidos pela violência, os santuários
33
Talvez, esse tipo de posicionamento tivesse inspirado a defesa do seu discípulo e fiel
seguidor Arthur Ramos, durante a realização do 2º Congresso Afro-Brasileiro da Bahia, em
1937, quando se lhe prestou um verdadeiro tributo pelo pioneirismo nos estudos africanista
na Bahia.
E Nina Rodrigues no texto introdutório do seu clássico Animismo fetichista dos negros
baianos (1995), procurou situar o leitor do ponto de vista histórico, com uma lucidez
científica incomum, quase solidária:
através da narrativa com requintes de suspense, para o embate final da trama mortal. Uma
catarse prolongada pela descrição minuciosa de cada cena, enriquecida de comentários,
digressões e pormenores fortuitos, mas que têm o efeito de aumentar a tensão e o interesse
do leitor.
Contam que, nessa hora exata, Exu, de volta do horizonte penetrou na sala.
Ojuobá disse: Laroiê, Exu! Fui tudo muito rápido. Quando Zé Alma Grande
deu um passo em direção a Oxóssi, encontrou pela frente a Pedro Archanjo,
Ojuobá ou o próprio Exu conforme opinião de muitos. A voz se abriu
imperativa no anátema terrível, na objurgatória fatal! – Ogun kapê dan
meji, dan pelú oniban! (AMADO, 1969, p. 195).
Nesse episódio o protagonista do romance Pedro Archanjo, Ojuobá entra no contexto como
juiz imperativo absoluto, e no momento exato da catarse profere as palavras mágicas,
conhecidas no ambiente ritual interno dos terreiros como sortilégio de ofó, e que lhes foram
reveladas e confiadas pela temível sacerdotisa do terreiro de Xangô Majé Bassan, mãe-de-
santo dele e de Zé Alma Grande, nos instantes finais de sua vida.
A relação de Jorge Amado com o candomblé remete ao período da sua juventude, quando
morou na região do Pelourinho e atuou como repórter policial nos jornais Diário da Bahia e
O Imparcial. Nessa época, o autor conviveu mais proximamente com algumas lideranças
religiosas do mundo afro-brasileiro que também moravam no local, dentre as quais se
35
20
A utilização do nome Jubiabá como título de seu romance provocou uma onda de protesto nos jornais da
época, tendo Severiano Manuel de Abreu como principal alvo das discussões e debates pelo fato de coincidir,
homonimamente, o título do romance com o nome do “encantado” de Severiano. Sobre esse tema o
36
obra literária o negro como protagonista e herói; nele o autor, polemizou ao confrontar
elementos da cultura local com o movimento sindical e trabalhista que surgia no Brasil
como marco histórico e social.
A trajetória de Antonio Balduíno remete à história de vida de milhares de afrodescendentes
que ainda vivem nos ambientes sociais construídos resultantes das solidariedades familiais
e comunitárias dos bairros de ajuntamento negro. Sobre o perfil do protagonista, disse: -
Baldo, cresceu órfão e sua tia Luíza fora-lhe pai e mãe -, mais adiante complementa a
origem familiar do seu personagem: “(...) – De seu pai Antonio Balduíno apenas sabia que
se chamava Valentin, que fora jagunço de Antonio Conselheiro...(...) Da mãe Antonio
Balduíno não sabia nada” –, concluiu. Balduíno já aparece no contexto do cenário
amadiano com capacidade nata para o exercício da liderança entre os demais. “Apesar de
seus oito anos Antonio Balduíno já chefiava as quadrilhas de molecotes que vagabundeava
pelo morro do Capa Negro e morros adjacentes (AMADO, 1935. p.7 ). A sua biografia,
no entanto, se resume no desejo de superação dos limites sociais em busca de um lugar ao
sol.
Nesse romance amadiano a religiosidade afro-brasileira é tratada de uma forma distanciada,
do ponto de vista identitário. Jubiabá21, pai-de-santo estabelecido e muito respeitado,
residente no morro do Capa Negro, tinha uma clientela muito concorrida e exercia uma
liderança legítima e respeitada.
A estreita relação da literatura de Jorge Amado com as expressões populares mais genuínas
do mundo afro-baiano, demonstradas de uma maneira peculiar, no romance Tenda dos
milagres, pode revelar uma profunda identificação do autor com essa cultura, que às vezes
se confunde e se mescla com o próprio texto.
antropólogo Júlio Santana Braga reservou um capítulo especial em seu livro Na gamela do feitiço (1995, p.
93-124); e, nele, trata do assunto com riqueza de detalhes, sobretudo com informações jornalísticas da época.
21
Sobre a fama, a liderança comunitária e o falecimento em 28 de outubro de 1937, do religioso Severiano
Manuel de Abreu, tratado respeitosamente por Jubiabá, ver BRAGA, 1995, p. 123.
37
Por assumir a função social de porta-voz de uma comunidade cuja população se define por
ser formada, majoritariamente, por negros e mestiços. Por outro lado, ao circunscrever parte
de sua obra ficcional nos limites de uma zona sociocultural chamada de “negritude” e que
reflete uma determinada época de conscientização política de algumas lideraças negras,
essa comunidade filia-se como potencial legatária da produção literária que lhe representou.
Nesta perspectiva, Jorge Amado se configura também com um escritor “negro”, além de ser
considerado um autor “regionalista” e de “costumes”. Mas, essas marcas não teriam sido
suficientes a ponto de enquadrá-lo numa dessas estéticas literárias, sem que provocasse
debates entre pesquisadores e estudiosos; assim como sérias acusações por parte do ativista
político Abdias do Nascimento, em sua passagem por Salvador:
22
Cf. Reportagem intitulada Deputado negro reitera crítica a Jorge Amado, publicada em O Estado de São
Paulo, dia 15 de novembro de 1983
38
como instrumento elucidativo sobre um projeto literário que procurou inovar no conteúdo e
na forma, pagando por isso, alta taxa de tributo acadêmico.
Nesse sentido, o escritor Jorge Amado ao ser considerado como “escritor negro”, a sua
literatura sob esse aspecto, seria enquadrada numa trajetória de legitimação da cultura
negra, apresentada como modelo de adequação num ambiente histórico e cultural de
adversidade; constituir-se-ia, por fim, um exemplo a ser seguido pela capacidade de
superação dos limites e obstáculos que a distingue das outras. A sua relação identitária, tão
propalada e ainda assim discutível. justificaria extensivamente, o “ser negro”, decrito acima
por BERND(1988)?
Este visual que Jorge Amado passaria a assumir, a certa altura de sua carreira literária,
afirmando possuir o munus necessário para se posicionar como escritor afro-baiano e
consequentemente, afro-brasileiro, apesar de seus traços físicos serem predominantemente
brancos.
Segundo L. V. Thomas, citado por BERND(1988, p. 54), nem cientificamente, nem
filosoficamente, pode definir-se com rigor o termo “negritude”: realidade histórica e
psiclógica, a Negritude não possui verdadeiramente realidade conceitual.
O desconcerto provocado pela assertivda referida acima, parece enfraquecer o empenho de
poetas como Aimé Cesaire e líderes políticos como Leopold Senghor e Abdias do
Nascimento. No entanto, Thomas conclui o seu racicínio com uma justificativa
compensatória do ponto de vista ideológico: É por isso que Negritude é um mito, ele
próprio gerador de mitos, e é por isso que a poesia da Negritude por sua vez nutre-se de
mito (L.V. Thomas apud BERND, 1988, 54-55). Ainda assim, mito não implica, neste caso,
em falsidade. Os mitos são elementos fundadores das culturas e nelas alimentam a sua
existência simbólica.
A estreita relação da literatura de Jorge Amado com as expressões populares mais genuínas
do mundo afro-baiano e, posteriormente, a sua utilização como elemento essencial na
construção de personagens protagonistas e secundários das tramas literárias criadas no
imaginário do escritor, ainda são discutíveis no mundo acadêmico. Sobre esse aspecto
marcante na sua obra ficcional, considera-se de grande relevância, nesta pesquisa, o perfil
biográfico do autor de Tenda dos milagres, e a sua representação fragmentada
principalmente, no personagem Pedro Archanjo Ojuobá, cuja construção literária baseada
39
23
Cf GOMES, 1981, p.9.
24
Ver SANTOS, 1962, p. 32.
40
25
Cf. CAMUS, 1989, sobre a célebre crítica publicada no jornal A Tarde no dia 9 de setembro de 1989.
41
ratificar o discurso inicial que precede o prólogo e que oferece pistas importantes para o
leitor.
Foi com o propósito de ampliar a sua leitura amadiana que Olivieri-Godet (2004), fez um
estudo minucioso do romance Tenda dos milagres, a partir das informações contidas nas
margens do livro. Dela é a seguinte conclusão:
Por sua vez, a figura de Manuel Querino, baiano de liderança marcante; nascido em Santo
Amaro da Purificação teve uma atuação política e cultural em Salvador, bastante
significativa na primeira metade do século XX: foi escritor, vereador, professor do Liceu de
Artes e Ofícios e membro do Instituto Geográfico e Histórico26.
O depoimento que se segue define muito bem o ambiente social freqüentado por Querino:
No entanto, a sua memória recriada e reinventada no romance Tenda dos milagres ficaria
marcada para sempre e de forma eloqüente, como assinalou acima, a pesquisadora e
estudiosa da obra amadiana Rita Olivieri-Godet.
Em outro momento, já citado neste trabalho, numa longa entrevista, o autor informaria a
Alice Raillard27, sua editora na França, que entre as pessoas que inspiraram Pedro Archanjo
estava Miguel Santana, Obá Aré e ele próprio, quando introduziu a temática sobre a
26
Manuel Raymundo Querino nasceu em Santo Amaro-Bahia, em 28 de julho de 1851, ficou órfão em
tenra idade, seus pais morreram vítimas da famosa epidemia de 1855. Faleceu em 14 de fevereiro de
1923. A partir de então os seus trabalhos começaram a ter certa notoriedade na Bahia. Escreveram-se
louvores à sua memória. Os seus biógrafos contaram a história do humilde professor negro, do artista
devotado ao seu trabalho, do exemplar chefe de família e amigo dedicado, do defensor das causas dos
trabalhadores e operários, dos sem nível, do estudioso das questões do negro no Brasil (AGUIAR, 1955.
p. 5).
27
Cf. RAILLARD, 1990, p. 80-1.
42
28
Pertencendo a uma antiga família-de-santo e tendo sido, desde moço, ogã confirmado de Omolu no
Engenho Velho, seria mais tarde, um dos primeiros Obás de Xangô - com o nome de Obá Aré, na Sociedade
Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, o grande terreiro de São Gonçalo do Retiro. A importância de sua
participação naquela casa de Xangô pode ser avaliada pelo cargo que lhe foi atribuído pela Ialorixá Aninha,
fundadora do Opô Afonjá, em suas determinações finais, como relata o seu neto-de-santo, o assobá Didi: “Iyá
Obá Biyi, já com a fala um pouco incompreensível, disse: Obá Aré, Obá Abiodun fica como presidente da
Sociedade, e você eu quero que fique ao lado da Ossi Dagan, lesse orixá (nos pés do santo)” (LIMA, 1996, p.
9).
43
A respeito da estreita relação do escritor Jorge Amado com o herói do romance Tenda dos
milagres, Ordep Serra (2000), oferece importante comentário informativo ao leitor
amadiano, conforme a referência transcrita abaixo:
Ora, note-se que Pedro Archanjo se parece muito com Jorge Amado. O herói de Tenda dos
milagres é um materialista dialético, um socialista, um homem empenhado na revolução
futura, na realização de uma sociedade justa e fascinado por este ideal. É plenamente ateu...
mas, ao mesmo tempo é um ogã, um ministro de Xangô, muito ligado a este deus radiante
(e também a Exu): um membro do povo de santo, com papel de destaque no culto dos
terreiros. Jorge Amado é um materialista dialético, ateu, um homem que se dedicou a lutar
pela grande utopia socialista..., mas, ao mesmo tempo, é um Obá de Xangô, com um alto
posto num ilê axé, é apaixonado pela divina beleza de Exu (SERRA, 2000, p. 65).
Jorge Amado, como outros escritores de sua época, não deixaria passar despercebidos os
traços de uma consciência contemporânea ambientada na década de 1950, e a sua obra
literária, certamente, refletiria algumas tendências desse momento fulcral com as chamadas
“minorias identitárias emergentes”, mormente as de gênero e raça. Essa tendência,
aprofundada na contemporaneidade, é descrita de forma muito bem apropriada, por
(SANTOS, 2000), em que cita o filósofo francês do Pós-Modernismo Jacques Derrida:
O romance Tenda dos milagres foi escrito numa época de efervescência cultural e de
conturbada ambientação política no Brasil e no exterior. Esse cenário teria influenciado o
autor na construção de uma temática marcadamente identitária e com uma contundente
defesa da cultura afro-baiana, caracterizada como elemento civilizatório importante no
conjunto das expressões nacionais. A citação transcrita que se segue, é representativa desse
conflito que situa o personagem Pedro Archanjo Ojuobá, numa região de fronteira, ora
44
29
Encruzilhada é uma referência direta ao território habitado pelo orixá Exu e remete a um estado de tensão,
de aporia, de questionamento e decisão. Cf. CASTRO, 2005, p. 232.
45
muito bonito, sim senhor, o frade chega a se babar de gosto, mas, vamos
convir, mestre Pedro, tudo muito primitivo, superstição, barbarismo,
fetichismo, estágio primário da civilização. Como é possível? (AMADO,
1969, p. 200).
Se acredito ou não? Vou dizer ao senhor o que até agora só disse a mim
mesmo e, se o senhor contar a alguém, serei obrigado a lhe desmentir.
Durante anos e anos acreditei nos meus orixás como frei Timóteo acredita
nos seus santos, no Cristo e na Virgem. Nesse tempo tudo que eu sabia
aprendera na rua. Depois busquei outras fontes de saber, ganhei novos bens,
perdi a crença. O senhor é materialista, professor, não li os autores que o
senhor cita, mas sou tão materialista quanto o senhor. Ainda mais quem
sabe? (AMADO, 1969, p. 200).
Situar-se ou ser situado numa encruzilhada é mais que uma simples indagação de aspectos
pessoais e identitários, é mais que uma cobrança ideológica e partidária; e o narrador ao
assumir um posicionamento mais radical e mais agressivo perante o seu personagem
protagonista que até então só havia recebido o reconhecimento de herói popular e de
46
30
Essa referência à Rua do Caminho Novo, inicialmente como reitoria da universidade aberta do Pelourinho,
se constitui numa marca criada intencionalmente pelo autor para registrar o local onde funcionava a famosa e
frequentadíssima tenda de milagres do famoso riscador João Duarte da Silva e que inspirou Jorge Amado na
escolha do título do seu romance. Outras referências importantes podem ajudar na compreensão dessa
escolha: Lá moraram o babalaô Martiniano Eliseu do Bomfim, e o Oju Obá Pierre Verger; e lá Miguel
Santana freqüentava diariamente suas aulas de inglês.
47
envolvendo-se amorosamente, com a turista finlandesa Kirsi, que teria retornado à sua
pátria grávida do mulato baiano; quando utiliza o nome religioso Ojuobá, criado na década
de 1960, e, atribuído, inicialmente, ao etnógrafo francês Pierre Verger pela iyalorixá Maria
Bibiana do Espírito Santo, em conseqüência de suas pesquisas, realizadas com o intuito de
aproximação entre os povos do Benin e do Brasil.
Muitas outras identificações poderiam ser feitas. Entretanto, o autor, não satisfeito com o
mosaico estabelecido no seu romance de maior predileção, introduziu algo mais
“cabuloso”, um enigma pessoal, uma marca individual, uma característica singular da sua
personalidade e que serviu de álibi num contexto decisório de cobrança, quase de prestação
de contas. Certamente, para ele, teria sido muito pouco escrever uma obra carregada de
elementos atributivos de sua relação estético-identitária com o povo negro-mestiço da
Bahia sem mesclar a sua trama literária com um desfecho surpreendente de sua
participação, mediante uma simples indagação entre amigos que se juntaram em um bar
para beber, após uma lida profissional diária, seguida de uma “festa” no Terreiro do
Engenho Velho, “restaurado em sua grandeza” com o fim da perseguição policial
institucionalizada. Nesse contexto, o autor oferece um perfil biográfico do protagonista
adequado e harmonizado com os ambiente sociais e culturais que ele freqüentava:
Aliás, em Tenda dos milagres (1969), Jorge Amado, na altura dos seus 57 anos de idade,
dos quais 38 consagrados à literatura, propõe, em uma entrevista, uma quebra de
paradigmas e uma reflexão existencialista mais profunda ao afirmar: “O meu materialismo
não me limita!” e conclui o seu posicionamento político com um grande desabafo que
define o seu livre arbítrio e a sua estreita relação de identidade com as camadas populares
representativas dos terreiros de candomblé. Não satisfeito, Jorge Amado aproveitaria a
oportunidade de uma entrevista para ampliar o significado da sua mensagem literária,
“trocando em miúdos” o que teria escrito em sua obra ficcional de maneira sintética e
simbólica:
48
31
N.A. O conceito de Desconstrução aqui adotado é o mesmo atribuído ao pós-estruturalista francês Jacques
Derrida.
32
O Ilê Axé Opô Afonjá, literalmente, abrigou na década de 1930, como exilado político o etnógrafo Édison
Carneiro, na casa de Oxum, episódio que ficou em sigilo durante décadas até ele próprio tornar público esse
fato. Cf. LIMA, 1987, p. 45-46.
49
O protagonista Ojuobá tem do velho e do novo; da cultura milenar originária das matrizes
africanas e da ciência centenária de tradição européia; emoção e razão, da religião
envolvente e do materialismo marxista, do popular e do erudito.
O professor Fraga Neto, companheiro de Pedro Archanjo, de certa forma, impôs o seu
questionamento ideológico com severidade na tentativa de enquadrar o bedel, criticando-o
pela sua entrega e o seu envolvimento com as práticas culturais e religiosas do candomblé,
inconcebível sob a ótica materialista da época. Diante dessa interpelação Pedro se defende
com argumentos um tanto quanto evasivos, que vão se alternando a cada investida externa,
representada no personagem Fraga Neto. Pedro Archanjo, ainda assim, sai vitorioso do
debate que sugere ao leitor uma jornada intensa e desafiadora que teria avançado pela
madrugada e alcançado a exaustão. Além de protagonista, Archanjo assume um visual novo
de proto-herói romanesco da modernidade brasileira, torna-se modelo de herói literário que
anuncia uma sociedade integrada; que não exclui o diferente, ao contrário, se enriquece
com o somatório de experiências individuais e comunitárias; ancestrais, culturais e
científicas. Esse seria o novo perfil materialista? Avança ou recua? Permanece ou sai? Uma
coisa é certa, o seu discurso argumentativo foi coerente e deixou o seu interlocutor Fraga
Neta na “corda bamba”, quando concluiu o seu discurso carregado de incertezas teóricas e
vacilante perante a exposição convicta do seu depoente: - Talvez você tenha razão, não sei.
Devo pensar ( AMADO, 1969, p. 201). Os resultados dessa “prosa” ainda são alvo de
estudo e pesquisa, no entanto a sua atualidade se mantém firme nas rodas de discussões
sobre a necessidade de implementação de ações afirmativas através das cotas sociais.
Mas, é em Tenda dos milagres que Jorge Amado retoma, com novo vigor, o tema da
perseguição policial aos candomblés da Bahia e nele realiza um feito surpreendente de
catarse literária: o escritor vinga o insulto do opressor e através dos seus personagens
promove um ato de justiça com força sobrenatural, em favor do povo oprimido dos
candomblés, ao sentenciar publicamente o seu algoz, Pedrito Gordo, com as palavras
mágicas com forte poder de transformação, conforme seguem abaixo: Ogun kapê dan meji,
dan pelú oniban!
Esse fragmento de um oriki atribuído ao orixá Ogun, “senhor dos caminhos, das lutas e das
guerras”, utilizado por Jorge Amado num contexto dramático de embate e de confronto
assume uma força mágica transformadora e conduz o leitor a uma catarse literária, através
de uma seqüenciação de fatos e desdobramentos circunstanciais; de redução e ampliação de
forças opostas, de aniquilamento e de retração. Uma verdadeira arma mortal e infalível
contra o inimigo. Prevalece nesse momento a força sobrenatural sobre os poderes materiais
de dominação humana. Esse acontecimento ganharia ampla repercussão social e alcançaria
o ambiente literário através dos seguintes versos:
“Mestre Archanjo já acabou
Com a farromba de Pedrito”
(AMADO, 1969, p. 197)
A força de uma cultura oral milenar, trazida nos tumbeiros, na época da escravidão e
reinventada na literatura amadiana, ora revisitada, nos impõe uma reflexão mais ampla
sobre o importante contributo das populações africanas que aqui aportaram e o seu clamor
de justiça continua inspirando movimentos quilombolas de insurgências definidas nos
diversos setores da sociedade: na literatura, na arte e na cultura. Tenda dos milagres (1969),
resultante de um posicionamento literário que extrapolou as medidas dos cânones, sintetiza
um projeto de vida integrada à comunidade e a ela dedicado, conforme assinalou ARAÚJO
(2008), em sua obra Floração de imaginários:
O africano escravizado, trazido para o Brasil nas inúmeras levas dos tumbeiros, trouxe
consigo, na sua mente e no seu coração práticas culturais e religiosas: danças, ritos, crenças,
cultos, mitos, música, poesia, oriqui, culinária e demais construtos da milenar civilização
africana. O que na África já era estabelecido e aceito como tradição e cultura, passaria a ser
recriado no Brasil e nos demais países da diáspora africana, através de recursos mentais
sobre-humanos. Os escravos utilizaram a imaginação e a inventividade como articulação
política e daí foram surgindo manifestações embrionárias de uma nova cultura recriada e
reinventada, adaptada ao regime de escravidão, de polícia ideológica comandado pela
Igreja Católica e pela Coroa Portuguesa. O diferente encontrado aqui no Brasil, teria sido
assimilado através das reelaborações sincréticas e das estratégias de simbiose que
possibilitariam a sobrevivência da cultura africana numa ambiente marcado pela exclusão e
pela adversidade33.
O africano ao sobreviver no degredo a que foi submetido, foi também, acumulando munus
cultural e político fundamentado nas pouquíssimas brechas que a estrutura colonial lhe
assegurava. O culto aos orixás e ancestrais, as práticas rituais milenares ao perderem as
características tribais peculiares da África, ganharam, aqui, elementos de adequação tópica
33
Cf. SANTANA, 2006, p. 82.
52
Boa parte dos africanos trazidos como escravos, eram presos políticos, por
lutas hegemônicas na África, e já pessoas de alto nível. Enquanto da Europa
vinham degredados da África vinham príncipes e princesas, como Otampê
Ajarô, filha gêmea do Alaketu, rei de Ketu, que descende em linha reta de
Oxóssi. Essa é ancestral de D. Olga de Alaketu, Olga Régis (em latim, do
rei), fundadora de seu terreiro. Esta elite aqui uniu-se aos mais aptos na
34
O conceito afro-colonizador, tema do livro do Otun Obá Aré Ildásio Tavares, é ilustrado com inúmeras
referências sobre a atuação e adequação do negro no Brasil e a sua capacidade de superação, criando cultura e
impondo civilização.
53
A cultura popular, afro-baiana, em especial, se tornou muito cara ao escritor Jorge Amado e
se constitui uma área do conhecimento que ele aprendeu a respeitar e a defender, surgindo
daí, uma relação quase simbiótica de cumplicidade ampla e irrestrita. Essa relação aparece
de forma fragmentada e às vezes alterada no sentido e na forma, e se mostra transgressora,
sobretudo, nos seus romances temáticos sobre a cultura afro-baiana, onde os seus principais
representantes e líderes comunitários recebem características mágicas, beirando o fantástico
e o sobrenatural.
A repressão policial aos terreiros de candomblé na Bahia se verificou
permanentemente ao longo da primeira metade deste século. Pouco ou
quase nada de sistemático se escreveu sobre isso, embora diversos autores
façam referência às batidas policiais registrando vez por outra, os
acontecimentos, com o auxílio de alguma notícia de jornal (BRAGA, 1995,
p. 21).35
A religião do candomblé, apresentada na maioria das vezes como uma instituição de grande
força neo-colonizadora, se impõe e se reveste de poder contra as perseguições do branco
opressor e, estrategicamente, encontra soluções e ferramentas eficazes de superação dos
obstáculos impostos pela conjuntura social dominante. Entretanto, a perseguição policial ao
candomblé é um tema que Jorge Amado conheceu ainda bem jovem, quando morou num
casarão na região do Pelourinho.
Sobre o relacionamento literário, processo no qual Jorge Amado teria utilizado de forma
fragmentária a religião do candomblé em seus romances, o comentário crítico de Jorge
Araújo (2008), surge como uma defesa e expressão eloqüente de quem conhece a obra, o
autor e a realidade local onde estão ambientados:
35
Após o comentário referido acima, surgiu em seguida, o trabalho “sistemático” da etnomusicóloga Ângela
Lühning (1995/1996), intitulado “Acabe com este santo, Pedrito vem aí...”, aonde procura elucidar fatos e
mitos em torno da memória popular do delegado Pedro de Azevedo Gordilho, tratado pela alcunha de Pedrito
Gordo.
54
Esse assunto que marcou um longo período nas crônicas policiais e manchetes dos
principais jornais que circulavam nos inícios e até meados do século XX, ganhou um
capítulo especial no romance Tenda dos milagres e nele o autor teria deixado possíveis
marcas do seu compromisso identitário, da sua ação solidária e do seu manifesto cúmplice
através de um discurso estilístico próprio com forte poder argumentativo.
Essa teria sido a Bahia que Jorge viveu na sua juventude “desenfreada” e “irresponsável”, e
foi a Bahia que ele tentou reproduzir reinventada, no seu romance preferencial e mais
característico do ponto de vista autobiográfico e identitário.
Alguns dos pouquíssimos estudiosos da obra amadiana como Miécio Tátti, Roberto Da
Matta e Eduardo Assis Duarte, procuraram entender e analisar essa obra através de uma
metodologia inclusiva de fundo sócio-antropológico. Esse tipo de procedimento literário,
tem como objetivo primordial reconhecer o valor de cada autor, a partir da contribuição
56
que a obra, ou melhor, o conjunto de sua obra oferece de benefícios para a sociedade em
geral. A essa prática, atribui-se nesta pesquisa, o nome de “crítica justa”, conceito
aproveitado de Hildegardes Vianna.
A necessidade de revisitação a determinados ambientes literários fundantes como o que se
verifica na obra, tem orientado os pesquisadores na contextualização de alguns romances
como Tenda dos milagres, na seara da antropologia cultural e isso tem de certo modo,
favorecido o surgimento de textos importantes de resgate e valorização do escritor Jorge
Amado, principalmente no ambiente acadêmico das universidades baianas. Para isso, têm
concorrido de forma decisiva as iniciativas lideradas pela Fundação Casa de Jorge Amado,
na realização de eventos que permitem reunir pesquisadores e estudiosos da obra amadiana
e na publicação de livros com os resultados desses encontros.
Eduardo Assis Duarte (1996), tem sido um dos raros críticos que assumem publicamente o
seu ardor pela obra amadiana e levantam a bandeira da sua literatura despojada de valores
burgueses, mais interessavam na possível contribuição que advém das classes populares.
Da sua identificação com o resgate literário de Jorge Amado na história da literatura, tem
surgido um movimento intenso de adesão a partir de uma compreensão mais adequada do
seu valor. Vale a pena registrar o seu comentário crítico sobre o fazer literário de Jorge
Amado:
36
Embora a terminologia adotada pela autora se restrinja à ciência do folclore, esta pesquisa propõe a
adequação dessa tradicional área de conhecimento para o conceito mais específico, mais atual e
universalmente aceito: cultura popular ou cultura popular afro-baiana, em afinidade com a obra amadiana.
58
internacional da sua obra, de outro, Jorge Amado estaria amparado pela “crítica justa37”
feita por uma autoridade da ciência do folclore na Bahia e que num gesto aparentemente
solidário procurou interpretar os procedimentos literários do seu amigo não só como um
gesto transgressor, carnavalesco ou iconoclasta. Ao contrário, o fazer literário de Jorge
Amado era, na concepção da autora, um grande esforço no sentido de dar dignidade a uma
cultura e a um povo que no passado, tinham sido jogados num ambiente vil e que ela
identificou como “folclore rejeitado”.
O seu texto flui natural e interativo, característica que possibilita uma maior interlocução
com o leitor, orientando-o e advertindo-o sobre a sua experiência como leitora amadiana,
conseqüentemente, a sua intimidade com os ambientes descritos e a sua aceitação
“pacífica” por ser folclorista.
Vianna resume a sua visão do texto amadiano com o seguinte comentário: o estudioso de
folclore encontra um manancial grande, muita matéria-prima em meio à ‘podridão’ dos
textos de Jorge Amado (VIANNA, 1982, p. 120).
Na sua singeleza comunicativa a pesquisadora de folclore citada acima oferece, por sua
vez, farto material ilustrativo e informativo sobre a relação do escritor baiano com as
manifestações populares de sua época, ditas folclóricas; como o escritor as utilizou e em
que nível sociocultural as posicionou para serem enquadras como “podridão”. A
explicação vem da própria Hildegardes Vianna:
37
A expressão faz referência direta ao trabalho do pesquisador que procura assegurar àqueles autores que
ficaram estigmatizados ao optarem por uma linha de procedimentos do fazer literário, que de certa forma,
desconstrói parâmetros e conceitos legitimados pelo cânone literário de inspiração européia.
59
compreendida em sua riqueza cultural e social; é que num passado recente fora rotulada,
durante longo período, de subliteratura pornográfica e obscena, simplista e caricatural.
Contudo, a folclorista Vianna assomou à sua defesa amadiana informações utilíssimas que
revelam ao seu leitor uma região de fronteira obscura que na maioria das vezes é omitida
até pelos próprios estudiosos da ciência folclórica. Como “boa baiana” e sabedora dos
costumes da sua terra, tema tratado amplamente na obra amadiana, ela enumera e classifica
a terminologia que o escritor usou e marcou os seus principais romances.
Segundo Hildegardes Vianna (1982), a leitura da obra de Jorge Amado não pode ser
enquadrada em padrões literários do chamado cânone que estabelece critérios rígidos e
ortodoxos de leitura e interpretação, sem os quais o leitor não poderia assimilar a obra.
A sua recomendação, exposta em forma de defesa cúmplice, se constitui na verdade, numa
valiosíssima chave de leitura amadiana, útil a qualquer leitor e que necessitaria de
divulgação ampla e adequada, principalmente numa sociedade dita pluricultural, sobretudo
racista e preconceituosa.
61
Vianna é enfática na sua tese e os seus argumentos são apresentados de forma elucidativa e
científica, apesar da larga experiência como folclorista e do seu profundo conhecimento das
dinâmicas sociais que caracterizam a cultura popular da Bahia, afirma taxativamente: Jorge
Amado é antes de tudo um portador de folclore.
A denominação “portador de folclore” é uma justificativa abrangente para o fazer literário
de Jorge Amado quando se refere às manifestações populares, ditas folclóricas. Esse
recurso utilizado largamente pelo escritor e que se denomina tecnicamente de “projeção
estética do folclore” lhe permitiu utilizar recortes históricos, eventos, situações, fatos do
cotidiano, práticas sociais e religiosas da maneira mais criativa possível, provocando no
leitor estados de humor, sensações, lirismo, revolta. Neste terreno, o autor de Tenda dos
milagres tornou-se um mestre cuja comparação escasseia na atualidade, tal o seu domínio e
envolvimento com os temas tratados.
A cada capítulo que escreve surpreende o leitor com uma destreza laboral na criação de
metáforas ricas de sentido, inovadoras e transgressoras.
Na minha busca bibliográfica deparei-me com alguns títulos sedutores de especialistas
sobre a obra amadiana, porém, todos se mostraram insatisfatórios pela falta de
profundidade teórica. Contudo, publicações mais recentes do selo Casa de Palavras da
Fundação Casa de Jorge Amado, resultado dos anais e atas de eventos comemorativos:
Simpósio Internacional de Estudos sobre Jorge Amado, que registrou os 80 anos do escritor
e que resultou no livro Um grapiúna no país do carnaval; e reflexivos como o Ciclo de
Palestras A Bahia de Jorge Amado, que resultou em livro homônimo; ambos os livros
publicados no ano de 2000, apresentam um leque de títulos bastante significativos e que
62
A obra amadiana e o seu autor, ainda aguardam iniciativas acadêmicas dignas de sua
estatura, afora iniciativas particulares de amigos e admiradores baianos que acompanharam
a sua trajetória com o médico Paulo Tavares que publicou o livro Criaturas de Jorge
Amado e Itazil Benício que publicou Jorge Amado, retrato incompleto.
Outro texto rico em informações sobre o perfil identitário de Jorge Amado, e aqui
utilizado como elemento elucidativo, é de autoria do professor e estudioso da obra
amadiana Cid Seixas, denominado: Jorge Amado e o canto épico da mestiçagem. Nele o
autor analisa com propriedade a trajetória política da fase inicial e o compromisso
comunitário da segunda fase, expresso nos romances mais significativos do autor. A sua
análise contextualiza a obra ficcional do famoso autor baiano em um momento histórico de
grandes transformações e marcado por insurgências sociais e políticas.
A origem ou as origens das tradições africanas no Brasil ainda continuam na ordem do dia
dos debates entre sociólogos, antropólogos e historiadores, assim como, ainda são
questionados em pleno alvorecer do século XXI, os papéis que os afrodescendentes podem
ou devem ocupar nos diversos setores da sociedade brasileira, diferentes daqueles que
historicamente, foram sendo reservados ao longo dos séculos de escravidão
institucionalizada promovidos pelo Estado em parceria com a Igreja Católica.
39
O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1974, em São Paulo, sob a decisiva participação do
ativista político Abdias do Nascimento, teria tido uma influência direta dos movimentos norte-americanos de
insurgência política e cultural Black Panther e Black Power; e, desse contato, surgiram várias iniciativas que
refletiriam em uma aguda tomada de consciência política na reivindicação de um “espaço” social de
reconhecimento e valorização da contribuição africana na Bahia. Dessa época em diante, o MNU da Bahia e o
Grupo Cultural e Carnavalesco Ilê Aiyê (reconhecido como primeiro bloco afro de Salvador), têm sido os
grandes baluartes de referencial histórico que se mantêm firmes nos ideais de construção de uma sociedade
igual para brancos e negros, indistintamente. Mais tarde, em 1988, surgiria em Salvador outro grupo
remanescente do MNU e que fora denominado de União de Negros pela Igualdade (UNEGRO).
65
Sou um obá, e acho que isso explica tudo. [...] É o caso de Carybé, de
Caymmi, como também de um homem que já faleceu, Miguel Santana,
sobre o qual construí o Pedro Archanjo de Tenda dos milagres - ele não é o
único, Archanjo é a soma de pessoas diferentes, mas uma delas é Miguel
Santana, Obá Aré, que já foi um personagem importantíssimo na vida do
povo. Ele já morreu. É nesse sentido que sou um obá, isto é, uma pessoa
que o povo conhece, ama e respeita ( RAILLARD, 1991, p. 80).
É inegável em Jorge Amado essa marca do homem público, mas não se pode, por outro
lado, negar ou dar um tratamento menor, quase insignificante do ponto de vista político ao
Jorge Amado ogan do candomblé do finado Procópio de Ogunjá, aquele que atuou
inúmeras vezes, junto aos representantes policiais para, através do alvará de soltura, obter a
libertação do seu “pai-de-santo” da prisão. Em 1937, durante a realização do II Congresso
Afro-Brasileiro da Bahia o autor de Jubiabá faria um discurso emocionado de saudação ao
babalaô Martiniano Elizeu do Bomfim, presidente de honra do certame. Em outro
momento, já consagrado como autor, Jorge Amado obá “suspenso” do Axé Opô Afonjá na
gestão da ialorixá Senhora de Oxum, , atuaria publicamente e de forma comprometida em
eventos de projeção nacional e internacional como o Congresso Luso-Brasileiro que
aconteceu em 1959, sob a égide da então Universidade da Bahia e no qual fez o discurso de
abertura.
Jorge Amado foi sacerdote do candomblé e exerceu a sua vocação de forma intensa e
produtiva, tendo a arte literária como ferramenta principal:
Fica mais fácil, com essa abordagem, a compreensão de uma obra literária que se distingue
por ser multifacetada, colorida, bem humorada e comprometida com a realidade coetânea
de onde surgiu. Nessa perspectiva se insere a presente pesquisa e nela busca-se reconstruir
o percurso trilhado pelo escritor baiano, de maneira especial durante a elaboração do
romance Tenda dos milagres.
Para uma melhor compreensão do fazer literário de Jorge Amado é necessário,
preliminarmente, percorrer alguns anais da história do povo negro no Brasil, ou melhor: dos
povos africanos da diáspora brasileira.
Sabe-se que no início da colonização, enquanto vieram de Portugal presos políticos e
degredados, do continente africano, mais especificamente da Costa da África, vieram
cativos, representantes de linhagem sacerdotal e real; homens e mulheres de estirpe que
trouxeram consigo nos tumbeiros, fragmentos de culturas e civilizações milenares
(SODRÉ, 2002, p.15).
O que o jovem escritor baiano conseguiu transpor para a sua obra literária inaugural, não
teria sido outra coisa senão fragmentos da religião, da cultura, da música, da dança, da
culinária, enfim, da cantada e decantada sensualidade dos povos africanos e
afrodescendentes, construtos recriados e reinventados inicialmente e de forma imorredoura,
nas senzalas, nos quilombos, nos terreiros, nos mercados, nas irmandades de negros e nos
cantos. O convívio com essas expressões, transbordantes e exuberantes na cidade do
Salvador e em algumas regiões do Recôncavo, teria provocado em Jorge Amado mais que
uma simples inspiração para escrever, teria provocado uma relação identitária muito
profunda com o povo negro da Bahia.
Expressões muito comuns como “O mais importante na Bahia é o povo” e outras alusivas a
essa temática são recorrentes na literatura amadiana, através de discursos transbordantes de
sentimento nostálgico de uma Bahia distante, sensual e aparentemente “ingênua”. Apesar
do seu caráter enfático, publicitário e apelativo, que procura vender uma imagem distorcida
da Bahia e dos baianos, como se tudo e todos funcionassem de maneira orgiástica e
carnavalesca numa rotina anual. Alguns estudiosos desses aspectos “negativos”, presentes
no discurso grandiloqüente do escritor Jorge Amado questionam o seu posicionamento
68
autoral e a sua força literária como principal responsável pela idéia de baianidade difundida
massivamente dentro e fora do Estado. Alías, uma interpretação tendenciosa e
manipuladora surgiria, em Salvador, entre as décadas de 1960 e 1970, cujo referencial
fundante dessa ideologia teria sido inspirado no discurso amadiano sobre a gente “preta e
pobre” de Salvador, formada em sua grande maioria por prostitutas, marginais, estivadores,
menores abandonados, capoeiristas, fateiras, quitandeiras, vendedoras ambulantes etc.
Chamados de “mitos crioulos” por Cid Seixas (2005), essas pessoas teriam saído da vida
real e cruel e passariam a habitar no imaginário popular recriado por Amado, a partir dos
resquícios de um Brasil escravocrata ou melhor: sobrevivências culturais afro-baianas que
o autor de Jubiabá e Tenda dos milagres teria encontrado durante a sua adolescência em
Salvador.
Nesse intenso processo de retomada do percurso literário de Jorge Amado foi de grande
utilidade o depoimento da escritora e folclorista Hildegardes Vianna (1982), nele a autora
oferece informações importantíssimas e bastante esclarecedoras sobre a origem do material
que o autor Jorge Amado teria utilizado em sua obra literária e que conseqüentemente teria
provocado as mais duras críticas oriundas de seus leitores mais pudicos e dos seus
estudiosos mais ortodoxos.
Não é difícil descobrir que Pedro Archanjo é o que deveria ter sido Manuel
Querino. Manuel Querino, na verdade, era um negro de projeção entre os
mais provectos intelectuais do seu tempo, membro do Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia. Era o que se chamava de um ‘negro vosmincê’. Negro
de vergonha, sempre fiel às suas origens, procurando o seu lugar quando
necessário (VIANNA, 1982, p. 121).
Na contemporaneidade, com o advento dos estudos culturais, a obra de Jorge Amado tem
sido revisitada e nela diversos teóricos e pesquisadores têm encontrado de forma
sistemática, farto material para justificar o surgimento e atuação de movimentos sociais,
culturais, políticos e religiosos. Sob essa perspectiva, a obra de Jorge Amado tem sido
ferramenta útil para antropólogos, sociólogos, etnomusicólogos, etnolingüístas,
etnopsicanalistas, etc.
A capacidade artística e literária de reunir em seu romance uma diversidade de tipos e
ambiências culturais teria inspirado comentários como o que se segue:
69
A literatura amadiana, de certo modo, pode ser considerada como proto-literatura do negro
na Bahia, mesmo apresentando traços culturais que são analisados mais recentemente,
como depreciativos por representantes do Movimento Negro Unificado entre os quais
destaca-se o ilustre poeta e líder político Abdias do Nascimento, que fez sérias acusações
públicas ao escritor baiano, referentes a algumas representações literárias em que o povo
negro figura com objeto sexual.
TERCEIRO CAPÍTULO
3.1 Ojuobá Arolu: uma leitura dos olhares de Jorge em Tenda dos milagres40
O romance Tenda dos milagres foi escrito no período de março a julho de 1969, no sítio do
casal Genaro e Nair de Carvalho.
O romance foi estruturado em 15 capítulos, ordenados através de títulos introdutórios, que
remetem diretamente à literatura cavalheiresca medieval, e também, à tradicional literatura
40
Ojuobá, os olhos do rei, nome ou título religioso iniciático atribuído a Pierre Verger e circunscrito ao
Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Arolu, por sua vez, é o nome de um dos doze Ministros de Xangô, também
chamados de Obás de Xangô, organização religiosa instituída pela ialorixá Eugênia Anna dos Santos, Mãe
Aninha, em 1936, e que teve a participação decisiva do babalaô Martiniano Elizeu do Bomfim. Cf. SANTOS,
1962.
70
de cordel, difundida no Brasil, através da catequese dos padres jesuítas e preservada em sua
estrutura, sobremodo, na região do nordeste41.
Ao escrever o seu romance Tenda dos milagres, Jorge Amado procurou elaborar um
prólogo especial que apresentasse, de forma sintética, as mais variadas expressões da
cultura popular afro-baiana, ambientadas, todas, naquilo que seria denominado,
metaforicamente, pelo autor, de “universidade aberta do Pelourinho”.
Trata-se da herança negro-mestiça acumulada durante séculos, desde quando foi iniciado o
tráfico negreiro para o Brasil. O escritor baiano, natural de Itabuna, teria desenvolvido uma
vocação literária especial de características marcadamente identitárias. Ele poderia ter
seguido outro percurso, até mesmo contrário, reforçando os valores republicanos de
repulsa, banimento e degredo àqueles e àquelas pessoas que foram escravizadas pelo
regime colonial sob a tutela da religião oficial. Ou poderia, ainda, ter tratado as questões de
raça e cultura com o desprezo típico da ideologia marxista.
Os dados estatísticos somam 4.000.000 de africanos que foram trazidos nos tumbeiros para
o Brasil (CASTRO, 2007, p. 126). No entanto, ao findar-se o regime escravocrata, os
governantes teriam achado que um simples ato cerimonial e protocolar, seguido de uma
queima de arquivos, apagaria, para sempre, a história de um holocausto humano cujas
dimensões são incalculáveis.
O autor de Tenda dos milagres ao conceber um prólogo para o romance que fora
considerado por ele próprio de sua maior predileção, também, não olvidaria de dotá-lo de
informações muito caras aos estudiosos de sua obra, e que se situam numa zona que foi
identificada pela pesquisadora Rita Olivieri-Godet (2000), de escritura da margem. Nela se
encontram registros históricos de importantes lideranças do mundo afro-brasileiro pós-
escravidão, que ele conheceu pessoalmente, e que já haviam morrido à época da
publicação de seu livro; pelo menos dois deles são citados na dedicatória. Com uma rubrica
editorial muito particular, ele escreveu os seguintes termos: Enquanto escrevi este livro,
muitas vezes recordei o falecido professor Martiniano Elizeu do Bonfim, Ajimuda, sábio
babalaô e meu amigo: quero aqui deixar memória de seu nome...; o outro nome lembrado
em grau de importância é o ilustre santamarense Manuel Querino, que aparece mediante
41
A tradição do cordel vindo de Portugal teria encontrado um terreno fértil na região Nordeste do Brasil,
tendo a característica arcaizante do local, como fenômeno decisivo para a sua permanência vigorosa, ainda na
atualidade.
71
uma citação feita em forma de epígrafe: “O Brasil possui duas grandezas reais: a
uberdade do solo e o talento do mestiço”.
Não sendo postas à toa, essas citações inicias, feitas em forma de rubrica editorial, também
funcionam como preâmbulo para o que será apresentado no miolo do livro, propriamente
dito, sob o signo da criação literária ou seja: são antecipações ligeiras daquilo que se
desdobrará ao longo do romance aludido acima.
Não considerando suficientes essas referências, o autor Jorge Amado ainda apensou nas
credenciais do romance alguns dados retirados de um suposto relatório policial sobre o
personagem Pedro Archanjo, datado de 1926, e que tentam definir o perfil físico, social e
psicológico do protagonista: “Pardo, paisano e pobre - tirado a sabichão e a porreta”
(AMADO, 1969, p. 6).
Também não foi por acaso que o autor introduziu logo de início essa referência policialesca
cujos dados traçam um perfil marginal daquele que representa, na obra, o papel de
protagonista e herói da trama literária. Contudo, o quadro que servirá de cenário para a
escritura do romance Tenda dos milagres será, em linhas gerais, uma transposição figurada
de uma realidade histórica cruel de homens e mulheres que integram uma sociedade distinta
pela superficialidade e pelo banimento daquilo que lhe parece diferente, representado
principalmente, na cor da epiderme e na singeleza e espontaneidade das expressões
culturais e religiosas42.
Nas referidas epígrafes, o leitor amadiano, poderá encontrar algumas dicas que ajudarão,
principalmente, àqueles que desejam fazer uma leitura sociológica e antropológica do
romance.
Em Tenda dos milagres, os olhares de Jorge (crítico, irônico, distanciado, nostálgico), se
voltaram para a comunidade soteropolitana formada por negros e negras, homens e
mulheres da resistência escravocrata do Brasil colonial. Esse aspecto preponderante revela,
de certo modo, o seu gesto preferencial de identificação com o povo de Salvador, formado
majoritariamente, por afrodescendentes: negros e mestiços.
42
Sociólogos e antropólogos como Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro em suas respectivas obras referenciais
Casa grande & Senzala e O povo brasileiro, nos dão conta através de relatos minuciosos como teria sido o
encontro cultural das etnias formadoras da nação brasileira. As diversas formas de adequação implantadas
pelo europeu a ferro e fogo, teria provocado nesse período, insurgências de negros e índios na luta pela terra
e por liberdade, resultando, daí, entre outros, o Quilombo de Palmares.
72
Como forma de situar o leitor e contribuir diretamente para a construção de uma leitura
mais crítica da obra amadiana, os olhares de Jorge são, aqui, apresentados através de
pequenos comentários que procuram traduzir a materialização da sua veia artística na
representação literária dos romances que escreveu.
O projeto estético-literário de Jorge Amado apresenta uma característica fundamental que
remete, invariavelmente, à sua biografia político-partidária de comunista e à sua adesão
açodada ao marxismo. Esses aspectos, em particular, dariam à sua obra um caráter
estritamente crítico, voltado sobremaneira, para a desconstrução de paradigmas ocidentais
advindos do mundo academicista judaico-cristão.
Em momentos oportunos e apropriados o autor de Tenda dos milagres não teria
economizado a sua verve crítica aos modelos perpetrados pela religião dita oficial. Aliás,
ele elegeu o candomblé em sua obra ficcional como a religião mais adequada politicamente,
devido às suas características de resistência histórica e ao seu caráter popular.
Segue, abaixo, um depoimento crítico do autor que revela a sua indignação com o descaso
da Igreja Católica com a preservação do seu patrimônio histórico:
A Bahia era então uma pequena cidade de cento e cinqüenta mil habitantes cujo
patrimônio artístico começava a ser destruído. Se não me engano, em 1927, foi
nomeado cardeal Dom Augusto da Silva, que deixou uma triste lembrança na
cidade - ele entrou em disputa aberta com as congregações religiosas querendo
suprimir as festas populares, a festa de Nosso Senhor do Bonfim. E este mesmo
cardeal vendeu, sim, vendeu um de nossos mais antigos monumentos históricos, a
antiga Catedral da Bahia: a igreja em que o padre Vieira havia pronunciado os seus
grandes sermões contra os holandeses (AMADO apud RAILLARD, 1991, p. 40).
Uma outra característica marcante na obra de Jorge Amado e que revela a sua capacidade
literária e domínio de escritor é a ironia. Alguns episódios corriqueiros das camadas
populares de Salvador são transformados pelo escritor em verdadeiros momentos de
lirismo, como o episódio do romance Tenda dos milagres, (AMADO, 1969, p. 23-34), em
que o personagem major Damião de Souza, assume traços biográficos do major Cosme de
Farias, que surge no momento crucial da morte de Pedro Archanjo e participa da última
solenidade alusiva ao protagonista, ratificando a sua lição de popularidade baiana de “Pai
dos pobres”, definindo, assim, a baianidade identitária que o autor assume, em tom irônico
e sarcástico.
73
Jorge Amado sempre escreveu sobre temas relacionados com a Bahia, uma Bahia distante
no tempo e no espaço, uma Bahia com seus mitos crioulos43 sob a iminência de
desaparecimento. Os seus romances são ambientados em época não muito distante, mas
também, não muito próxima da realidade em que são publicados.
Literariamente, esta época foi muito importante para mim, mais ainda do
ponto de vista humano, pelo conhecimento do povo baiano que adquiri.
Conheci sua vida, sua cultura. Para o meu trabalho de escritor, estes anos
foram fundamentais. Minha intimidade com a vida do povo tomou forma
nestes anos em que vivi muito livremente (AMADO apud RAILLARD,
1991, p. 40).
O seu olhar distanciado, no entanto, permitiu tratar de temas polêmicos e históricos e com
isso o efeito social da sua literatura foi o de provocar especulações e estimular um certo
tipo de condicionamento sugestivo. “Era um tempo glorioso, incrivelmente cheio de beleza
e aventura”.
Os longos anos que passou distante, geograficamente, da sua terra natal e da sua cidade do
Salvador, inspiraram-lhe uma literatura marcada pela ausência física e pelo tom nostálgico.
Os lugares e as pessoas que não existiam mais passaram a existir e aqueles existentes se
adequaram ao seu olhar distanciado.
O escritor Jorge Amado não abandonou a experiência que teve na juventude quando morou
no Pelourinho, ao contrário, absorveu e cristalizou em sua memória uma época marcada
principalmente pela perseguição policial, pelo preconceito religioso, pela pobreza e pela
marginalidade, prostituição e boemia.
43
Sobre as reminiscências de alguns mitos crioulos na Bahia é interessante ver o trabalho referencial Notas
sobre negros malês na Bahia, de autoria do etnólogo Antonio Monteiro, publicado em 1987, pela editora
Ianamá.
74
Até meados da década de 1950, Salvador tinha uma população com predominância de
negros concentrada, sobretudo, na região do Porto, no Tabuão, no Pelourinho e
adjacências, locais típicos para o ganho diário e para as diversas formas de sobrevivência
dos afrodescendentes44. Por outro lado, os negros e mestiços mais bem sucedidos exerciam
atividades de mando à frente de armazéns, quitandas, tendas e escritórios. Manuel Querino
foi professor, político e pesquisador, Martiniano Eliseu do Bomfim era babalaô e professor
de inglês e ioruba; e Miguel Santana foi alfaiate e empresário na administração de
embarcações no porto, destinadas ao serviço de intermediação de mercadorias para a região
do recôncavo e das ilhas. A posição de prestígio financeiro de Miguel Santana o fez figurar
no livro As elites de cor na Bahia, de autoria do sociólogo Thales de Azevedo
Essas pessoas que são citadas pelo autor não passariam de simples artesãos, artistas
anônimos que produziram cultura e desenvolveram atividades importantes ou que
desempenham uma função social intermediária, cujo mérito era atender, de imediato, as
necessidades e apelos das camadas populares45. Enfim, realizavam, sem saberem, uma
interface contínua e histórica com o segmento erudito oposto, representado no romance
pela Faculdade de Medicina, instalada no Terreiro de Jesus (conhecido também como Pátio
dos Jesuítas), instituição educacional criada por D. João VI em 1808, em sua passagem pela
Bahia46.
44
A população negra masculina que sobrevivia do subemprego braçal, representado através de serviços
prestados à população, como transportes de bens e pessoas e atividades outras como a de calafate, que ficava
em determinado local do centro de Salvador e que denominavam de Canto. Ver MONTEIRO, 1987, p. 112.
45
Dentre os inúmeros personagens secundários que constam no romance amadiano Tenda dos milagres, e que
“entraram mudos e saíram calados”, está Bibiano Soares Cupim, líder religioso de grande representatividade
comunitária em Salvador e que foi presidente de honra da Sociedade Protetora dos Desvalidos na época do
seu centenário de fundação em 1932. O autor contudo, teria deixado uma marca muito forte aliada ao seu
nome quando se referia a ele, utilizando a expressão: “axogum (sic) do Gantois” (AMADO, 1969, p. 52),
tratamento um tanto pejorativo nos terreiros, se entendido simplesmente, como “ogã de faca”. Ver CASTRO,
2005, p. 302.
46
Após ter sido abandonada por longos anos, a Faculdade de Medicina da Bahia tem passado por reformas
estruturais profundas e se organiza na atualidade para registrar a efeméride dos 200 anos de sua fundação em
2008.
47
O xirê é a síntese de tudo o que foi festejado desde o bori. É uma cerimônia “a portas abertas”. É o
momento de reunião de todos os participantes dos rituais precedidos como também membros da Família de
Santo extensa, incluindo aqueles que foram atraídos pelo som dos atabaques e se aproximaram do terreiro
podem entrar para ver o que está acontecendo e participar da festa (SIQUEIRA, 1998, p. 139).
75
O prólogo de Tenda dos milagres tem uma característica muito especial e se constitui num
grande leque de registros de manifestações da cultura popular afro-baiana, que abrange
desde a tradicional luta-capoeira angola e regional, descrita minuciosamente, através de
uma imensa variedade de golpes e toques:
Nos seus enunciados, introdutórios de cada capítulo, Jorge Amado faz uma referência direta
à literatura de cordel, expressão literária remanescente dos tempos medievos e que
sobreviveu no interior do Brasil, principalmente na região nordeste, resultante do longo
processo religioso de catequese desenvolvido nas comunidades rurais. Ainda no prólogo, o
autor fez uma menção honrosa e bem humorada do cordel no seu romance, certamente por
considerá-lo um importante veículo de comunicação, escrita utilizada como forma de
protesto, ensino, crítica e diversão:
Para melhor falar do escultor Agnaldo o autor antecipa o seu comentário listando a
variedade de madeiras de lei, utilizadas para esculpir os orixás e caboclos encomendados
pelos devotos, como se cada um deles tivesse uma preferência sobre tal ou qual madeira:
assim, do jacarandá, do pau-brasil, do vinhático, da peroba, do putumuju e da
49
Característica marcante da cultura popular, o anonimato tem sido o principal repositório do legado cultural
que se formou ao longo dos séculos de escravidão no Brasil. Em Tenda dos milagres (1969), o autor fez uma
utilização exaustiva desse contributo, tornando a sua escrita baseada no modelo dos romances medievais e na
tradicional literatura de cordel.
77
Por mais experiente que seja o autor, escrever um livro, é sempre uma nova “viagem” a ser
feita, uma longa, obscura e surpreendente trajetória a ser percorrida.
O romance Tenda dos milagres é uma revisitação da história social, política, econômica e
cultural do país. Sobre o visual político do seu autor, Cid Seixas (2006), fez o seguinte
comentário: “Jorge Amado pagou tributo à adesão açodada à ideologia do proletariado”. O
autor introduziu elementos de vária ordem em seu projeto literário, formando um rico e
colorido mosaico da sociedade brasileira que remonta ao período da escravidão no país,
1868, passa pelo final do Império, início da República, o advento do Estado Novo, e
culmina com a instalação do Regime Militar e a decretação do Ato Institucional 5 (AI-5),
em dezembro de 1968.
A trama do romance se desenvolve no caldeamento histórico e cultural do país e se resume
no profundo desejo de liberdade.
A história de vida do autor é fator determinante no romance e, às vezes, se confunde com a
própria narrativa identificável através de mecanismos de comparação e que revelam dados
biográficos e pessoais, a partir de referências e pistas deixadas no texto, assim como nas
entrevistas e depoimentos esclarecedores.
É inegável a identificação com o povo negro-mestiço da Bahia, que o autor de Tenda dos
milagres procura imprimir no seu texto.
Em Tenda dos milagres, Jorge Amado procura construir ou melhor, reconstruir do ponto de
vista estético-literário, a trajetória de resistência, de luta, e de sobrevivência cultural da
herança africano-brasileira na Bahia, situada com maior freqüência na cidade do Salvador.
Na identificação do projeto literário de Tenda dos milagres, podem ser considerados os
seguintes itens:
• Iniciativa deliberada de escrever um livro
• Escolha do tema / temática
79
• Seleção do material
• Escolha do território cenográfico/ ambientes das cenas
• Definição do protagonista e papéis secundários
• Discurso introdutório: convite sedutor à leitura da obra
• Enredo - conteúdo dramático da narrativa
• Desfecho: mensagem final do narrador
Abaixo seguem, enumeradas, a seqüenciação dos títulos e dos capítulos sucessivos do
romance em análise, Tenda dos milagres:
Inspirado na expressão latina “Urbe et Orbe”, que pode ser traduzida literalmente por “Da
cidade para o mundo”, Tenda dos milagres, se define como projeto literário de expansão e
de afirmação do contributo africano na diáspora brasileira, e, mais especificamente, afro-
baiana.
Com uma experiência acumulada de 38 anos de literatura e com uma trajetória de vida
marcada por grandes embates, e, definida, também, por grandes vitórias, Jorge Amado,
nesse romance, não esqueceu das suas origens mais remotas e de seus ambientes de maior
inspiração. Antes, ao perceber certo distanciamento do referencial crioulo que a Bahia lhe
proporcionou vivenciar, em tenra juventude, ele procurou, se não imortalizar; legitimar
com fundas raízes, as principais expressões da cultura popular afro-baiana, mormente o
candomblé e a capoeira, fixando na memória dos seus leitores, os nomes de suas mais
destacadas lideranças.
Sobre esse audacioso projeto literário que se realizou em Tenda dos milagres, o próprio
autor deixaria em forma de registro a sua deliberada iniciativa e a sua plena consciência de
escritor. Dotado de capacidade intelectual e política suficientes para interferir nos destinos
da história, afirmaria o seu projeto político-literário em depoimento de notável lucidez,
conforme nos informa Ramos (1992), em sua tese de doutoramento: “Quis registrar hábitos
e modos de viver dessa gente, que está desaparecendo diante da massificação operada pelos
meios modernos de comunicação”.
De um tudo o leitor pode encontrar em Tenda dos milagres: noções de história,
antropologia, teologia, filosofia, crítica literária, poesia, cordel, autobiografia, etnografia,
etnomusicologia, folclore, agnosticismo, arianismo, jornalismo, turismo, indústria cultural,
africanismo, negritude, publicidade, marketing, cultura popular.
Tenda dos milagres, além de ser uma obra ficcional, pode, também, ser utilizado como um
livro de informações sócio-culturais sobre a diáspora africana na Bahia. Sem nenhum
81
Tenda dos milagres surge como uma proposta alternativa de adequação e de convívio
harmonioso entre os povos formadores da nacionalidade brasileira.
Tenda dos milagres é também, um grande relato dos conflitos existentes entre brancos e
negros; eurodescendentes e afrodescendentes, mestiços, todos.
Os brancos, descendentes diretos dos degredados europeus (portugueses, espanhóis, etc.);
Os negros, descendentes diretos dos africanos escravizados de linhagem sacerdotal e real.
Todos brasileiros, todos baianos, todos mestiços.
(...) O texto amadiano se instaura como diálogo intertextual com o
substrato popular de uma civilização nascida na Bahia: os mitos e tradições
dos descendentes de príncipes e súditos africanos trazidos como escravos
(ibdem).
A tese racial de Jorge Amado em Tenda dos milagres, inspirada em Casa Grande &
Senzala de Gilberto Freyre, é, nada mais, nada menos de adequação e enriquecimento
mútuos. Para ele, todos os brasileiros, de norte a sul, são beneficiários desse ajuntamento,
dessa força cultural, dessa brasilidade, dessa baianidade, sem arianismo e sem africanismo.
50
Ara Ketu ê, fara imorá! Ara Ketu ê, fara imorá! Fragmento em forma de corruptela de um cântico
dedicado a Oxóssi que faz uma alusão à coexistência harmoniosa e à união de todos os povos nagô-iorubás.
Segundo Silveira (2006, p. 528), este canto é uma espécie de hino nacional dos nagôs de Ketu (sic) na Bahia,
traduz um apelo à fraternidade de todo o povo “que deve unir-se e viver em paz”.
82
Escritor emocionante
Realista, sensacional
Deslumbrou o mundo
Oh! Jorge Amado genial;
Sua vida em quatro tempos
Apresentamos neste carnaval.
antropológica do musicólogo carioca José Ramos Tinhorão. Depois de ter sido cantado
efusivamente no carnaval de 1969, ficaria eternizado com ligeiras alterações, no romance
que Jorge Amado começaria a escrever na “ressaca” daquele verão. Segundo depoimento
de Walmir Lima concedido ao autor desta pesquisa, era a primeira vez que o famoso
escritor baiano recebia uma homenagem pública em pleno “reinado de momo”, sendo ao
mesmo tempo, integrante do corpo de jurados e tema de um samba enredo que inspirava um
dos desfiles daquela noite de sábado, que reuniu dezesseis escolas de samba e que foi
considerada pelo Jornal da Bahia como: “Das mais contagiantes que Salvador já viu”.
Na tentativa de aproximar a narrativa amadiana das teorias bakhtinianas sobre o carnaval e
a prática carnavalizadora que o autor de O país do Carnaval, livro inaugural, Gabriela
cravo e canela, Dona Flor e seus dois maridos, A morte e a morte de Quincas Berro
D’água e Tenda dos milagres, objeto de estudo desta pesquisa, Edilberto Coutinho (2000),
construiu um texto que se propõe elucidar para o leitor uma das características mais
controversas de escritor Jorge Amado e que o distingue dos demais. Trata-se da
transgressão literária, melhor dizendo: Jorge Amado trouxe para o seu fazer literário a
rotina de uma população marginal e marginalizada.
Jorge Amado se volta para eles, mostrando que a maioria do povo é infeliz,
talvez, mas não vencida. E não se deixa vencer. Há sempre um fio de
esperança. Assim o romancista dá voz aos sem voz e vez aos sem vezo
aceito socialmente, sejam vagabundos ou prostitutas, malandros de beira de
cais ou pistoleiros do sertão. Por vezes, domina a cena do romance
amadiano a violência e o riso. Tudo é da vida, que o autor transfigura em
arte narrativa. As máscaras que desenha nessa carnavalização do social mal
resolvido pelos políticos, pelos governantes que infelicitam o País, não são
aceitas pelos que estão no nível - diria Bakhtin - no de cima, o dos
poderosos, donos de terras e de destinos humanos (COUTINHO, 2000, p.
221)
Assim como se supõe que ele tivesse desenvolvido um talento especial para submeter a
sua literatura à ideologia do Partido Comunista, chegando a ser panfletário, não teria sido
difícil para ele, transpor igualmente, ambientes sociais e culturais habitados por negros e
negras, mestiços e não mestiços, invertendo papéis, misturando as hierarquias de cima e de
baixo, confundindo-as ou mesmo fundindo-as como o fez com vários de seus personagens,
entre eles Pedro Archanjo Ojuobá.
Em Jorge Amado, vemos as oposições se fazerem dialeticamente entre a
cidade e o prostíbulo, com o carnaval se instalando no espaço da alegria e
85
O autor de Tenda dos milagres descreve o carnaval como pretexto para a transgressão
literária. Os seus personagens que já teriam sido carnavalizados na sucessão dos capítulos
passam, doravante, a compor um desfile carnavalesco e são descritos numa dimensão
sociológica, alterada pela perspectiva de ampliação de sentido literário, idealizado no
romance, como espaço de contínua reelaboração.
O único narrador efetivo que sobra para contar a verdadeira história é uma
escola de samba composta de indivíduos que representam tudo aquilo que
Pedro Archanjo Ojuobá foi e é. Em um verdadeiro tour de force, a voz
autoral implícita admite que Pedro Archanjo pertence ao povo e que o
carnaval será o derradeiro narrador de sua vida. Solução perfeita para o que
de fato havia sido uma contínua carnavalização, desde as primeiras páginas
de Tenda dos Milagres (sic) (DWYER, 1982, p. 115).
Ao retirar as máscaras que teriam dado vida aos seus personagens, criados no decorrer do
romance, a voz autoral onisciente, tendo já legitimado o seu projeto literário, lhes atribui no
epílogo, uma tarefa conclusiva sob a catarse apoteótica de um desfile carnavalesco na
Escola de Samba Meta-literária Filhos de Pedro Archanjo, nome cunhado no decorrer do
romance Tenda dos milagres.
Se houve tentativa de carnavalização no desenvolvimento da trama literária amadiana,
segundo a interpretação de John Dwyer (1982), nesse caso teria sido apenas um “ensaio”,
86
um aquecimento dos termômetros limitado, no entanto, pelos espaços físico e social. Agora,
já sem as “marcas” impostas pela literariedade dos formalistas russos, os personagens
passam a viver intensa e amplamente a dimensão do verdadeiro carnaval amadiano,
encenando “O doce ofício de Pedro Archanjo” que tivera sido apresentado em fragmentos
nos sucessivos capítulos do romance. Ainda utilizando o raciocínio de Dwyer (1982,
p.115), a literatura que havia sido carnavalizada no desenvolvimento do romance Tenda dos
milagres, nesse episódio conclusivo, teria se tornado, por sua vez, simbioticamente, no
próprio carnaval, dessa vez, sem as “hierarquizações” sociais formuladas por Bakhtin,
famoso teórico da carnavalização.
determinante e isso teria chegado num ponto tal de desenvolvimento que despertou a
atenção do antropólogo Osmundo Pinho, na sua pesquisa de mestrado intitulada
Descentrando o Pelô: narrativas, territórios e desigualdades raciais no Centro Histórico de
Salvador. Nela, o autor fez uma análise aprofundada tendo como referência dois corpos
textuais distintos: a obra amadiana e uma certa literatura tradicional de exaltação da
“cultura baiana”, identificando “a cristalização de uma determinada leitura ideológica da
Bahia como comunidade imaginada” e o papel desta leitura como um instrumento eficaz e
poderoso, condicionador do Pelourinho como local importante de afirmação e difusão de
um conjunto de aspectos relevantes da cultura negra, que foram massificados e que ele o
definiu como “Idéia de Bahia”.
Ao construir um texto objetivo, pontual, crítico e inovador, Pinho, por outro lado, procurou
desconstruir do ponto de vista sócio-antropológico um construto ideológico de legitimação
de uma realidade considerada alienante, perversa e redutora, tendo como principal
referência os textos de afirmação de uma certa baianidade, publicados por Jorge Amado:
Jubiabá (1935), Bahia de Todos os Santos (1945), e Tenda dos milagres (1969). Neles, o
autor analisa o caráter ideológico das “leituras” feitas por alguns representantes políticos no
período aproximado de trinta anos e que esse procedimento literário, de cunho político,
teria aberto espaço para uma interpretação “no plano discursivo de contradições e
desigualdades raciais que teria permanecido sem respostas no plano das relações sociais
concretas”.
Essa “Idéia de Bahia” apontada por PINHO (1996), por outro lado, remete à festejada
“Idéia de Baianidade” que vem sendo trabalhada de maneira consistente e regular pelas
empresas oficiais de turismo e pelas agências de publicidade e propaganda desde o início da
década de 1970.
Outra visão crítica sobre a realidade social, política e cultural referida logo abaixo, e de
autoria do líder comunitário e presidente do bloco afro Olodum, contextualiza o bairro do
Pelourinho como reduto de negros e negras, homens e mulheres afrodescendentes que
sofrem ainda, segundo o autor, com os efeitos da discriminação racial e social.
Quando é para apresentar para o mundo exterior o que nós somos, a cidade
do Salvador, os habitantes da cidade do Salvador, as autoridades da cidade
do Salvador, a inteligência da cidade do Salvador expressam-se como uma
cidade negra, de maioria africana, de uma profunda religiosidade africana,
de uma música, de um folclore caracteristicamente negros, e mostram isso à
população do Brasil, à população estrangeira, como uma característica da
convivência da democracia racial. Expressam isso com um cinismo fácil de
ser desmontado: a cidade do Salvador é uma cidade pobre com 2 milhões e
72 mil habitantes, dos quais 5% têm efetivamente poder de conmpra. Basta
qualquer turista, qualquer estrangeiro ou pessoa de outro estado andar um
pouquinho mais nas ruas de Salvador para detectar que aqui, na realidade,
se pratica um apartheid social e um apartheid racial (RODRIGUES, 1995,
p. 85).
A cultura popular afro-baiana, traço marcante dos escravos, originária de negros e negras,
resultante de constantes reelaborações feitas pela presença majoritária dessa população em
Salvador, que no passado foi desprezada e marginalizada, estaria assumindo a
responsabilidade de representar o Estado ao tornar-se elemento exótico de atrativo turístico.
Em sua crítica aos mecanismos institucionais de alienação social, política e cultural quando
João Jorge (1995), se refere à cultura baiana, mostra-se lúcido na abordagem e contundente
na argumentação, aqui ratificado de forma contundente pelo antropólogo Osmundo Pinho
(1996):
É um objeto construído e reposto com argamassa ideológica para a Bahia,
como comunidade imaginada e como “dissolvente” simbólico de
contradições raciais de modo a concorrer para a construção do consenso
político (hegemonia), base para a dominação (PINHO, 1996).
89
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse dia tudo já se terá misturado por completo e o que é hoje mistura de
gente pobre, roda de negros e mestiços, música proibida, dança ilegal,
candomblé, samba, capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro,
música, balé, nossa cor, nosso riso, compreende? (AMADO, 1969, p. 201).
O autor, nesse fragmento, antevê um futuro mais próspero e esperançoso para o povo
negro-mestiço da diáspora brasileira. Ao assumir uma função sócio-religiosa de onisciente
a voz do narrador representada por Pedro Archanjo se mostra mais confiante ao analisar os
fatos com a lucidez de um sábio. Surge daí, uma mistura de conformismo determinante e
uma atitude pragmática de ver as coisas solucionadas de forma racional e coerente. Ao se
situar na região fronteiriça da realidade, o protagonista é taxativo ao afirmar: “Sou a
mistura de raças e de homens, sou um mulato, um brasileiro” (AMADO, 1969, p. 201).
Vê-se nesse fragmento, muito claramente a influência da obra freyriana, em especial Casa
grande & senzala. Bastante amadurecida a idéia da democracia racial, cunhada na década
de 1930, pelo jovem sociólogo Gilberto Freyre, aceita em uma época e noutra bastante
criticada, ela ressurge no texto amadiano circunscrita no romance Tenda dos milagres, com
uma força legitimadora renovada, capaz de persuadir o leitor e dissuadi-lo de qualquer
outra contestação política. Sobre este aspecto Jorge Amado estaria alienado da realidade
brasileira e baiana ou insistindo na continuidade de um modus vivendi que apesar de ter lhe
proporcionado o desenvolvimento de uma vasta literatura “regionalista”, condenava ao
obscurantismo e à extinção a gente preta e pobre da periferia social de Salvador. Enquanto
leitor do ativista político Manuel Querino (GOLDSTEIN, 2006), também estaria
distanciado dos seus ideais sociais e libertários.
Aparentemente, Pedro Archanjo, munido de uma consciência clara e objetiva, conseguiu
um desempenho tão satisfatório que teria deixado o seu interlocutor Fraga Neto vacilante.
Entretanto, o desfecho que o autor reservou para a finalização do longo e crucial diálogo
entre o bedel da Faculdade de Medicina e o professor de parasitologia e que supostamente
entrou noite a dentro, conduziria a sua narrativa para servir de instrumento capaz de
provocar uma profunda reflexão sobre a trajetória do negro na sociedade brasileira, assim
como os diversos estágios de expiação pelos quais passou; os modos e as formas de
resistência cultural e religiosa. E o autor, num misto de griô e sacerdote, instrumentaliza do
ponto de vista filosófico-ideológico e político-cultural aquele que lhe parece menos
92
aparelhado socialmente, para o embate. Tendo chegado ao nível de catarse literária através
do poderoso recurso de auto-definição, ao afirmar “O meu materialismo não me limita”, e
ainda inconformado com o nível de conteúdo argumentativo apresentado pelo seu
personagem protagonista, o autor extrapola os limites de uma simples conversasão e passa a
atuar numa freqüência de diálogo em que a persuasão cultural prevalece sobre a imposição
ideológico-partidária.
O teor do discurso ideológico que foi embutido na fala de Pedro Archanjo pode ser situado
num período histórico muito crítico do ponto de vista político, e que se inscreve na
transição da República e se estende até a Era Vargas, culminando com o Regime Militar
que, em março de 1968, anunciava, para desespero de muitos, o Ato Institucional 5 (AI-
5)51.
Retomando o assunto “profético” permeado no diálogo entre Fraga Neto e Pedro Archanjo,
surge logo de imediato uma indagação: a “festa do povo brasileiro” anunciada de forma
eloqüente pelo narrador acima, seria uma referência antecipada, um comentário remoto
sobre o desenvolvimento da indústria cultural na Bahia, a partir dos inícios de 1970?
A possível resposta para esse questionamento surge de um texto elucidativo da
etnolingüísta Yeda Pessoa de Castro (2007, p. 125-139).
Numa singularidade característica de seu trabalho como pesquisadora, ela disseca de forma
sintética e objetiva importantes fenômenos socioculturais e religiosos deflagrados nos
longos séculos de colonização européia e que resultaram num conjunto de elementos
idiossincráticos ora denominado de afro-Brasil, a partir da análise científica de fatos
ocorridos nesse ajuntamento de brancos, índios e negros.
A leitura do ensaio Dimensão dos aportes africanos no Brasil é nada mais, nada menos
que uma dádiva do orixá Oxum, para os seus filhos refletirem melhor e mais
sossegadamente, numa manhã de sábado que, coincidência ou não, se celebra a festa de
Nossa Senhora da Conceição da Praia52. O texto-ensaio antropológico, etnolingüístico e
etno-histórico de Yeda Pessoa de Castro se constitui em uma leitura de cabeceira:
agradável, reflexiva, instigante, sedutora, informativa e abrangente. O seu estilo objetivo e
sóbrio revela nas entrelinhas o seu domínio sobre a matéria, a sua profundidade e o seu
51
Cf. SZTERLING, 1996. p. 9.
52
Ver SILVEIRA, 2006, p. 449; e CASTRO, 2005, p. 312.
93
conhecimento familiar de mais ou menos 40 anos, com os temas tratados. Com a mesma
intimidade acadêmica Pessoa de Castro procura situar o leitor nos contextos históricos:
“trocando em miúdos” eventos sociais, antropológicos e políticos que foram sendo
estratificados ao longo dos tempos, e que teriam sobrevivido na sua quase totalidade,
porém de forma fragmentada e, às vezes, fora dos contextos originais, conforme se segue:
“Aportes africanos dos negros no Brasil” vai brotando nesta pesquisa como vetor que
aponta para a necessidade de maior debate e reflexão sobre o legado afro-brasileiro,
sobretudo na Bahia.
Posicionando-se como uma mestra conhecedora das ambiências culturais e religiosas que se
desenvolveram ao longo dos séculos e ainda se desenvolvem em África, e, extensivamente,
na diáspora brasileira, ela oferece ao seu público leitor uma comovida orientação
metodológica:
Assim foi feito sem pestanejar nesses anos desastrosos de ditadura e, de lá pra cá, com a
crescente onda de nacionalismo, universalizou-se no Brasil e no mundo todo, tudo aquilo
que no passado de escravidão e forte preconceito racial, fora rotulado de “fetichismo”, de
“superstição”, de “barbarismo” e de “estágio primário da civilização”.
Nesse percurso histórico de luta e resistência, muitas foram as lideranças religiosas e
políticas que se empenharam na liberação do culto afro-brasileiro; ao que se sabe, a ialorixá
Eugênia Anna dos Santos teve destacada participação nesse processo, intercedendo junto a
Getúlio Vargas, através de seu filho-de-santo Osvaldo Aranha, então Chefe da Casa Civil53.
53
Embora todo o empenho de lideranças como Édison Carneiro, através do II Congresso Afro-Brasileiro da
Bahia, realizado em 1937; a ialorixá Aninha, através de Oswaldo Aranha, e o escritor Jorge Amado como
Deputado Constituinte em 1945, que atuaram de forma decisiva no sentido de liberação do candomblé, para a
sossegada realização de suas funções religiosas e litúrgicas. Só em 1976, no início do governo Roberto
Santos, essa realidade veio a se tornar concreta, através do Decreto Lei 25. 095 de 15 de janeiro de 1976,
conforme SANTOS, 2005, p. 156. Para maiores esclarecimentos ver também BARBOSA, 1984, p. 70.
95
Analisar o texto amadiano Tenda dos milagres sem esse importante referencial seria ignorar
o fator político decisório dos destinos que o país tomou e continua tomando, ainda sob o
impacto do passado recente de recessão de ditaduras e militarismos.
“A tenda de Jorge”, representação simbólica inspirada engenhosamente, na tenda de João
Duarte da Silva, instalada de forma estratégica noTabuão, fora plantada no Largo do
Pelourinho, certamente com o intuito de substituir o tradicional instrumento que, outrora,
havia sido utilizado para castigar o corpo, em plena praça pública, de negros e negras,
homens e mulheres condenados pela polícia colonial, por crimes e delitos supostamente
cometidos.
“A tenda literária de Jorge”, não caiu, nem desapareceu, também não conseguiu perpetuar a
dinâmica e alvissareira vida feliz e pujante de antanho. Contudo, se constitui, na
contemporaneidade, em espaço de visitação diuturna, em franco local atrativo do turismo
cultural, de pesquisa, de arte e de lazer.
Nessa sua tenda armada no Pelourinho, foi instalada em 1987, a Fundação Casa de Jorge
Amado, sua instituição representativa, cuja presidência de honra e universal é ocupada por
Exu, orixá da comunicação, dos movimentos e das reelaborações contínuas. Sob essa
perspectiva que ratifica a iniciativa acadêmica de preservar um projeto literário dinâmico e
autônomo insere-se a Jorge Amado e os ritos de baianidade: um estudo me Tenda dos
milagres.
Note-se, no entanto, que a oportunidade dada ao autor desta pesquisa, de poder, ainda que
num espaço de tempo exíguo para tal empreitada, debruçar-se sobre o livro referencial
Tenda dos milagres, constituiu-se em uma atividade muito prazerosa e muito edificante,
marcada, em toda a sua trajetória, por descobertas, encontros e reencontros; por
interlocução textual, por afinidades e, sobretudo, pela afirmação de um compromisso
social e comunitário assumido em 1992.
Conclui-se portanto, nesta pesquisa, uma etapa desse meu projeto de vida, expresso
inicialmente, por um sentimento de solidariedade e espírito fraternal, quando no dia 6 de
agosto de 2001, participei das cerimônias fúnebres daquele que fora no passado meu irmão
ritual. Ali procurei representar a nossa comunidade-terreiro Ilê Axé Opô Afonjá e
principalmente, manifestando, o profundo sentimento de gratidão pela cativante amizade
96
que ele nutriu por meu avô Miguel Archanjo de Sant’Anna, Obá Aré, seu irmão de Axé
mais velho.
O “ebó encomendado” está pronto e será entregue ao “mensageiro” para cumprir o seu
destino. Nele foram utilizadas as ferramentas rituais milenares trazidas pelos africanos nos
tumbeiros: o tridente, o ogó, a adaga, o obé, o ofá e o eruexim, o abebé e o adjá.
Feito o padê conforme manda o figurino, já com a lamparina acesa, seguiu-se o xirê no
ritmo do afoxé e no toque do adarrum, aonde “Pedro Archanjo Ojuobá vem dançando, não
é um só, é vário, numeroso, múltiplo, velho, quarentão, moço, rapazola, andarilho,
dançador, boa-prosa, bom no trago, rebelde, sedicioso, grevista, arruaceiro, tocador de
violão e cavaquinho, namorado, terno amante, pai-dégua, escritor, sábio, um feiticeiro.
Todos pobres, pardos, paisanos”. Ao lado, exibem-se: “capoeiristas, filhas-de-santo, iaôs,
pastoras, orixás, o Terno de Reis e o Afoxé, passistas e formosas cantam, dançam e abrem
alas”.
Neste “despacho” acadêmico do projeto referido acima, estão a comida e a bebida
prediletas e necessárias para agradar o “orixá da rua” e assim, pedir-lhe passagem na
comunicação aiyê-orun, dos elementos essenciais indispensáveis à liturgia da vida, na
celebração da festa diária ou mesmo, no desfile lítero-carnavalesco anual instituído desde
sempre, na noite dos tempos.
A “tenda literária de Jorge” representada simbolicamente pelo romance Tenda dos
milagres, às vésperas de completar quarenta anos, ora revisitada através desta pesquisa tem
se revelado, sobretudo, como um projeto político-literário de valorização e resgate da
contribuição africano-brasileira, reconhecido mais recentemente, como fator estruturante e
conjuntural da nação (RIBEIRO apud QUERINO, 1955, p. 4).
Este trabalho desenvolveu-se na tentativa de identificar na obra amadiana indícios de um
projeto pessoal mais ambicioso e mais ousado por parte do autor, no qual teriam ficado
marcas identitárias de um escritor que afirmara no passado, enquanto viveu, ter encontrado
nos ambientes de resistência nagô-iorubá da Bahia, o sentido do viver integrado, do
escrever inspirado e do ser libertário.
Jorge Amado teria achado esse modus vivendi bom para si? Teria por outro lado, se
mostrado desejoso de assegurar a sua continuidade; para que outros daqui e d’além mar
também conhecessem e desfrutassem dos benefícios da capoeira, do candomblé, do samba
97
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GLOSSÁRIO
ADARRUM (kwa) (ºBR) - sm. toque muito rápido de tambor para acelerar o transe de
possessão durante as cerimônias rituais (CASTRO, 2005, p. 141).
ADJÁ (kwa) 1. (ºPS) - s.m. ideofone, campainha de metal ou campa, usada durante as
celebrações litúrgicas afro-brasileiras (CASTRO, 2005, p. 141).
AFOXÉ - s.m. - 1. Festa profana celebrada pelos negros malês e que era comum no Rio de
Janeiro e na Bahia. 2. Grupo carnavalesco constituído por negros pertencentes ao
candomblé (SCISÍNIO, 1997, p. 33); (CASTRO, 2005, p. 143).
AGÔ - Forma de pedir licença (SANTOS, 1993. p. 123); (CASTRO, 2005, p. 144).
AJIMUDA - Aquela que carrega a espada, título feminino, usado no culto de Oyá(sic) e
geledé (SANTOS, 1993. p. 111); (CASTRO, 2005, p. 148).
AXÉ - s.m. Nome dado pelos nagôs à força vital, o maior bem da existência para as
religiões negras africanas (SCISÍNIO, 1997, p. 33); (CASTRO, 2005, p. 161).
BABALORIXÁ - Homem que ocupa a posição hierárquica mais elevada no culto aos
orixás (SANTOS, 1993. p. 113); (CASTRO, 2005, p. 164).
BALÉ XANGÕ - Sacerdote supremo do culto ao orixá Xangô (SANTOS, 1993. p. 113);
BAMBOXÊ - (kwa) (PS) - s.m. “tio” africano, originário da Nigéria, que morou na cidade
do Salvador no fim do século XIX. Yor. Bangbose (CASTRO, 2005, p. 167.
CANDOMBLÉ - s.m. - 1. Espécie de batuque dos negros. 2. Festa religiosa dos negros
jeje-nagôs na Bahia, mantida pelos seus descendentes e mestiços. 3. Lugar onde esta festa
se realiza. 4. Macumba no Rio de Janeiro. 5. Xangô em Alagoas e Pernambuco. 6. Sede
religiosa do culto do negro, com o barracão onde os filhos-de-santo cumprem sua longa
iniciação sob a direção do pai-de-santo ou mãe-de-santo (SCISÍNIO, 1997, p. 81);
(CASTRO, 2005, p. 196).
EBÓ - Trabalho para os orixás, notadamente Exu. Ás vezes com sacrifício de animais, às
vezes, não (MAIA, 1985. p. 112); (CASTRO, 2005, p.224).
EXU - (kwa) 1.(ºPS) - s.m. divindade nagô-queto, capaz de fazer tanto o bem quanto o mal,
tido como mensageiro dos orixás, preside a fecundidade, as encruzilhadas, os caminhos
perigosos e escuros. Antes de qualquer cerimônia, sacrifício de animais e oferendas lhe são
feitas. Cada divindade dispõe de um Exu, ora masculino, ora feminino, que toma nomes
diferentes, mas sempre representado por figura de barro ou ferro. Seu ilê fica do lado de
fora do barracão e está sempre cuidadosamente trancado. Dia: segunda-feira. Cores:
vermelho e preto. Comida: axoxó, farofa de dendê (aminjá, aminuó), pipoca, feijão preto,
qualquer tipo de quadrúpede, mel e cachaça, sempre preparadas pela dagã. Sacrifícios: bode
e galo pretos. Simbolismo: ogó, tridente e lança de ferro. Saudação: laroiê!. Outros nomes:
Alaqueto, Anã, Aqueçã, Bará, Baranlá, Baru, Compadre, Elebara, Eroco, Homem-da-rua,
Homem-das-encruzilhadas, Jeguedê, Jiguidi, Jiramavambo, Lebá, Lonã, Mavambo,
Mavumbo, Odara, Olodé, Tibiriri, Tiriri, Tiririlonã, Tranca-rua, Tronqueira, Umbó,
Xequetê.
2. (º BR)-s.m. espírito maligno, o diabo.
3. (LP) - exp. “virar Exu”, ser tomado de cólera, enfurecer-se; não ser Exu pra gostar de
farofa”, para deixar-se enganar por mentiras ou lisonjas, ser tapeado.
F
FARAIMARÁ - Em uma tradução livre pode significar também união, abraço,
solidariedade, fraternidade (SANTANA, 2008).
G
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GRIÔ - s.m. O griô ou griot, segundo (CASTRO, 2000), detém todos os conhecimentos
orais de sua comunidade e em conformidade com o momento oportuno os utiliza como
instrumento didático-educacional, formador, reflexivo e crítico (SANTANA, 2007).
IANSÃ (kwa) (ºBR) - s.f. orixá do fogo, do trovão e tempestade, uma das três esposas de
Xangô, mulher corajosa e destemida, a única aiabá a quem é permitido dançar qualquer
toque consagrado às outras divindades. Cores: vermelha e rosa. Dia da semana: 4ª. Feira.
Comida: amalá, anua, ecuru, omolucum. Insígnia: afindijá, espada, iruquerê, iruxim.
Saudação: eparrei! Nomes: Ajimuda, Balé, Cuiabalé, Eua, Obá. Nomes iniciáticos:
Mitauadê, Turqué (CASTRO, 2005, p. 248).
LONÃ (kwa) (ºPS) -s. m. nome de Exu, o dono dos caminhos. (CASTRO, 2005, p.266).
NAGÔ - adj. s. 2g. - 1. Relativo ao ou indivíduo dos nagôs, grupo de escravos sudaneses
oriundos da região de Ioruba e que receberam esse nome na Bahia. s.m. 2. A língua falada
pelos nagôs, isto é, o ioruba, que na Bahia foi a língua geral dos escravos (...).
Abundantemente exportados para o Brasil, os nagôs tiveram prestigiosa influência social e
religiosa entre os povos mestiços, conservando com os mesmos processos de aculturação,
seus mitos e tradições sociais (CÂMARA CASCUDO apud SCISÍNIO, 1997, p. 260);
(CASTRO, 2005, p.295).
NANÂ - (kwa) 1.(ºPS) - s.f. mãe, avó maternal (CASTRO, 2005, p. 296).
NEGRO - adj. s.m. - 1. Diz-se do ou indivíduo de raça negra, preto. 2. (pej.) escravo. 3.(p.
ext.) indivíduo que trabalha muito (SCISÍNIO, 1997, p. 260).
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ODU - (kwa) ( º LS) - sm. No jogo do Ifá, o valor de cada uma das sementes ou dos
búzios, conforme a sua disposição (CASTRO, 2005, p. 301).
OFÓ - Encantamento que tem o poder de aliviar a dor (CAMPOS, 2003, p. 88); Cf.
(SILVEIRA, 2006, p. 398).
OGÂ - (kwa) (ºPS) - s.m. Título nagô-queto, dado aos membros do terreiro que são
escolhidos pelos orixás para exercer uma função civil, podendo desempenhar papéis
especificamente religiosos no contexto sagrado, pertencem a duas categorias: ogã suspenso
ou confirmado (CASTRO, 2005, p. 301);
OGÓ - (kwa) (PS) - s. m. Macete com o cabo em forma de cabeça humana, símbolo de Exu
(CASTRO, 2005, p. 303);
OGUM - hier. Divindade nagô das macumbas e candomblés. Filho de Iemanjá, preside as
lutas, as guerras e o ferro (SCISÍNIO, 1997, p. 265); (CASTRO, 2005, p.303).
OGUNJÁ - Ogunjá - é quando Ogum lá no mato vai morar, se juntando com Oxóssi pra
juntos irem caçar. Ogunjá pode também ser Ogum da encruzilhada, que recebe o “carrego”
para o Exu da estrada (MIRANDA, 1995. p. 102); (CASTRO, 2005, p.304).
OJÉ - Sacerdote supremo do culto de egungun (SANTOS, 1993. p. 121); (CASTRO, 2005,
p.305).
OPÔ AFONJÁ - Opô: raiz, enquanto Afonjá é o epíteto de Xangô, ou seja, a “raiz de
Xangô” (SANTOS, 1993. p. 120); (CASTRO, 2005, p. 161).
ORIQUI - (PS) - sm. cânticos especiais de louvor aos feitos de cada orixá ou referente a
seus atributos (CASTRO, 2005, p. 309).
OXÓSSI - Deus protetor da caça. (SCISÍNIO, 1997, p. 266); (CASTRO, 2005, p. 311).
OXUM - 1. Orixá iorubá, deusa das fontes, lagos e cursos de água. 2. Deusa do rio Oxum,
da região africana de Ijexá (SCISÍNIO, 1997, p. 266); (CASTRO, 2005, p. 312).
OXUMARÊ (kwa) (PS) - s.m. o orixá da riqueza, identificado com o arco-íris, equivalente
a São Bartolomeu e simbolizado pela serpente. Acredita-se ser criado de Xangô.
Dia: terça-feira. Cores: verde e amarelo. Comidas: aberém, Lici. Sacrifícios: carneiro,
cabra, galo, pintada. Simbolismo: brejá, idã. Insígnia: ebile. Saudação: arroboboi
(CASTRO, 2005, p. 312).
P
PELOURINHO - s.m. (...). o pelourinho nada mais foi que o moenia romano,,introduzido
na Gália, no tempo de César. Era, entre nós, uma coluna de pedra, que se colocava em
lugares públicos, geralmente diante das municipalidades, e onde os criminosos recebiam
açoites. (...) Na Bahia, em 1727, o pelourinho que havia muito se erguia defronte ao colégio
dos jesuítas, foi de lá removido a pedido do provincial da Companhia, alegando que as
execuções ali consumadas interrompiam as cerimônias religiosas. Por ordem da Câmara
Municipal, foi colocado nas vizinhanças do Convento Beneditino. Talvez os maiorais da
cidade pensassem serem os beneditinos dotados de sangue mais frio, de maneira a não se
condoerem tão facilmente com as flagelações do pelourinho (SCISÍNIO, 1997, p. 273).
QUETO -“Nação” a que pertencem candomblés importantes na Bahia. por exemplo: Ilê Ia
Nassô (Casa Branca), Menininha do Gantois, Ogunjá, Alaketo, Opô, Oxumarê (MAIA,
1985, p. 115); (CASTRO, 2005, p. 320).
RELIGIÃO - s.f. - O escravo africano trouxe de sua terra a seita religiosa de lá e aqui, a
começar pela imposição dos mestres-reza e pela força da lei que o obrigava a ter a religião
católica ele ficou com duas religiões. Não renegou sua fé, adotou um catolicismo nominal
que reduziu a simples gestos, sem significado para o seu espírito. A religião que trazia da
África resultava de sua crença, da sua fé. E a que adotou no Brasil resultava da
obrigatoriedade imposta da lei. Mesmo batizado, o negro escravo fetichista continuava o
seu culto. Já fetichista como todo bom africano, o escravo viu-se no Brasil, não se sabe se
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por influência indígena, ou por superstição, obrigado a aceitar o catolicismo popular, sua
primeira posição foi aceitar e adotar.como lembra Manoel Querino, para cada moléstia, um
santo protetor. (...) Destarte não teve o africano, dificuldade em encontrar uma como
semelhança entre as divindades do culto católico e os ídolos do seu fetichismo, conforme o
poder milagroso de cada um (SCISÍNIO, 1997, p. 289).
TERREIRO - Qualquer lugar onde se bate candomblé (MAIA, 1985, p. 120); (CASTRO,
2005, p. 341).
X
XANGÔ (kwa) 1. (PS) - s.m. orixá dos raios e do trovão,rei-herói do povo iorubá,
geralmente corresponde a São Jerônimo, é venerado nos meteoritos e machados de pedra
que são colocados em um pilão de madeira esculpida (odô) a ele consagrado. Suas três
mulheres são Obá, Oiá e Oxum, e seu criado é Oxumarê. O velho, identificado com São
Pedro, é cultuado como Aganju, Airá, Jacutã, Ogodô. O jovem, equivalente a São João, é
chamado de Obacoçô, Obaladê, Obalaiê, Obalodê, Xangô-de-Oro, Xangô-Menino. Outros
nomes e títulos: Adanji, Adelaiê, Alafim,Apará, Badê, Baianim, Balé, Xangô-Leí. Dia: 4ª.
Feira. Cores: branca e vermelha. Comida: amalá, obé. Sacrifícios: agutã, cágado, galo.
Insígnias: oxê, xerê. Simbolismo: banté, labá. Toques: alujá, bata, ibim, ilu. Saudação: cão
cabieci obá. Nomes iniciáticos: Lingucicoiá, Obaraeji, Obaraí, Obaraji.
2. (PS) - s.m. diz-se de uma pessoa turbulenta, agressiva (banto)
3. (ºBR) -s.m. nome genérico das religiões afro-brasileiras em Pernambuco e
Alagoas, e onde elas se realizam.
XIRÊ (kwa) (PS) -s.m. ordem de precedências na qual são cantados os cânticos em louvor
às divindades afro-brasileiras, que se inicia por Exu e termina com Oxalá: festividade
(CASTRO, 2005, p.353).
108
CONVITE
O NÚCLEO DE CULTURA POPULAR DA BAHIA através do Projeto Jorge
Amado: mito ou baianidade?, tem o prazer de convidar Vossa Senhoria para
participar da atividade de extensão: I CICLO Leituras de Jorge.
Coordenado por Marcos Santana, aluno do curso de Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Estudo de Linguagens (UNEB/PPGEL), o I Ciclo Leituras de Jorge
funciona como um valioso instrumento acadêmico, na medida em que possibilita o
exercício progressivo de abordagens temáticas e transversais, além de agregar pessoas e
valores culturais ao projeto em desenvolvimento.
Realizado uma vez por mês, preferencialmente, num dia de quinta-feira, e especialmente
dedicado a Oxóssi, o I Ciclo Leituras de Jorge propõe uma contínua reflexão, seguida de
debates temáticos propostos em torno da obra amadiana. Com essa metodologia, busca-se
uma melhor compreensão do legado literário que foi deixado pelo famoso escritor baiano,
assim como a sua influência a partir da década de 1970, na afirmação do conceito de
“baianidade” amplamente divulgado nos meios de comunicação de massa encabeçado pelas
empresas oficiais de turismo.
*************************************************************************
O que? Leituras de Jorge (reflexões e debates inspirados em Tenda dos Milagres)
Onde? Fundação Casa de Jorge Amado, Café Teatro Zélia Gattai
Quando? 28 de junho de 2007
Hora? Das 15 às 16h30min.
Quanto? Entrada Fraca
Apoio:
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NOME:__________________________________________________________________
ENDEREÇO:_____________________________________________________________
_________________________________________________________________________
TEL.________________________E-mail:______________________________________
NÍVEL EDUCACIONAL: Fundamental ( ) Médio ( ) Superior ( ) Pós-graduação ( )
INSTITUIÇÃO QUE REPRESENTA:________________________________________
ATIVIDADE QUE DESENVOLVE:__________________________________________
Projeto Jorge Amado: mito ou baianidade?
Visando estabelecer uma maior interatividade com o participante, solicitamos a
gentileza de responder às questões formuladas abaixo.
1. Como tomou conhecimento desse evento?
2. Já conhecia a Fundação Casa de Jorge Amado?
3. Já participou de alguma atividade sobre Jorge Amado?
4. Conhece a obra de Jorge Amado?
5. Já leu o romance Tenda dos Milagres?
6. Tem gosto preferencial por qual romance amadiano?
7. Desenvolve alguma atividade cultural ou artística?
8. Participa de alguma comunidade-terreiro?
9. Já ouviu falar sobre mitos afro-baianos?
10. Tem alguma informação sobre Miguel Santana?
11. Qual o significado do “Pelourinho” pra você?
12. Conhece as manifestações da cultura popular afro-baiana?
13. Pra você o que significa “baianidade”?
14. O que representa a capoeira pra você?
15. Qual a sua opinião sobre o candomblé?
16. Como você reage diante da expressão “Exu”?
17. Já assistiu a representações da obra de Jorge Amado em: Tv/Cinema/Teatro?
18. Considera importante um debate sobre a obra amadiana?
19. Gostaria de fazer algum comentário sobre a obra literária de Jorge Amado.
20. Gostaria de sugerir algum tema especial para os debates?
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