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30/08/2016 19&20 ­ Victor Meirelles e a Construção da Identidade Brasileira, por Teresinha Sueli Franz

Victor Meirelles e a Construção da
Identidade Brasileira [1]
Teresinha Sueli Franz [2]
FRANZ,  Teresinha  Sueli.  Victor  Meirelles  e  a  Construção  da
Identidade  Brasileira.  19&20,  Rio  de  Janeiro,  v.  II,  n.  3,  jul.  2007.
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/vm_missa.htm>.

*     *     *

As culturas nacionais também são formadas de
símbolos e representações. Ao construir sentidos
sobre a nação, constroem identidades. Esses sentidos
são contidos nas histórias que são contadas sobre a
nação, memórias que conectam seu presente com o
passado e imagens que dela são construídas.

Stuart Hall

Conta­nos  Carlos  Rubens  (1945)  que  Victor  Meirelles


morrera pobre, solitário e desencantado da vida, aos 70 anos
de  idade,  no  Rio  de  Janeiro.  Num  desses  momentos  de
sofrimento, próximo a sua morte, Victor Meirelles teria dito a
um artista amigo e discípulo que lhe restara, numa amargura
indefinível: “Se eu recomeçasse a minha vida, seguiria outros
caminhos”.  Ao  que  teria  perguntado  seu  discípulo  preferido:
“E  que  outros  caminhos  levariam  o  senhor  à  ‘Primeira
Missa?’”.  Pelo  que  supomos,  nenhum  outro  caminho  levaria
Victor Meirelles a sua “Primeira Missa no Brasil” [Figura 1].
Por  isso,  para  compreender  esta  pintura,  precisamos
reconstruir este caminho, andar por onde ele andou, olhar as
mesmas paisagens e mergulhar nas idéias políticas, religiosas,
estéticas e humanistas das quais o artista se serviu. Deixar­se
impregnar  pelos  sentimentos  românticos  e  indianistas  de  seu
tempo,  e  da  contraditória  e  complexa  rede  de  relações  da
segunda  monarquia  brasileira.  Enfim,  é  necessário  trilhar  os
caminhos  que  ele  percorreu,  com  um  olhar  compreensivo  e
neutro, isto é, sem preconceitos. Nesta busca do autor, nossa
meta  não  há  de  ser  encontrar  um  herói,  tampouco  um  vilão,
mas  o  artista  do  seu  tempo,  o  que  Victor  Meirelles  o  foi  em
grande  estilo.  Para  isso  é  necessário  esforço,  no  sentido  de
buscar  pistas  de  compreensão  que,  ao  mesmo  tempo,  não
obscureçam nossa visão com as idéias simplistas que até hoje
inibem uma maior compreensão de sua obra.

A indiscutível dependência entre o artista e seu tempo é o fio
condutor deste artigo.

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O  pintor  e  sua  colaboração  no  projeto  de  construção


nacional

O  autor  da  “Primeira  Missa  no  Brasil”  nasceu  em  Desterro,


atual  Florianópolis,  capital  do  Estado  de  Santa  Catarina,  em
agosto de 1832, na casa atualmente transformada em museu e
na  rua  que  hoje  leva  o  seu  nome.  Já  é  bastante  conhecido
entre  nós  seu  interesse  precoce  pela  aprendizagem  do  ofício
de  pintar,  habilidade  que  começou  a  desenvolver  quando
ainda era menino e vivia em sua ilha natal. Motivo pelo qual,
aos  14  anos  incompletos,  foi  conduzido  ao  Rio  de  Janeiro
para integrar o grupo de estudantes da Imperial Academia de
Belas  Artes,  onde  iniciou  uma  trajetória  de  estudos  que  o
levou ao Prêmio de Viagem à Europa, nos principais centros
artísticos de então, na Itália e na França.

A pintura “Primeira Missa no Brasil”, considerada uma “obra­
prima”  da  história  da  arte  nacional,  foi  produzida  em  Paris,
durante  a  longa  viagem  de  estudos  do  artista  (1853–1861)
como bolsista da Imperial Academia de Belas Artes do Rio de
Janeiro.  Humanista  ligado  ao  Romantismo,  grande
pesquisador,  observador  atento,  estudioso,  dedicado,
disciplinado  e  indiscutivelmente  comprometido  com  seu
tempo, foi o primeiro brasileiro a expor no Salão Oficial em
Paris,  em  1861,  onde  representou  seu  país  com  a  pintura
“Primeira Missa no Brasil”.

Cabe destacar que, mesmo estando em Paris, Victor Meirelles
estava  em  constante  comunicação  com  os  professores  da
Imperial  Academia  de  Belas  Artes  no  Brasil,  principalmente
com  Manuel  de  Araújo  Porto  Alegre.  Victor  cumpria  assim
uma  das  exigências  do  país  que  sustentava  sua  estada  na
França.  Embora  estudando  com  os  mestres  do  Primeiro
Mundo, permanecia sob a tutela e os comandos da Academia
no  Brasil,  portanto,  sujeito  também  às  idéias  que  esta
articulava com a elite política e cultural do País, entre eles o
Imperador Pedro Segundo e o grupo do IHGB. Sendo assim,
compreendemos que é principalmente a cultura de seu país de
origem  que  determina  sua  maneira  de  pensar  e,
conseqüentemente, de pintar.

A “Primeira Missa no Brasil” é o resultado de uma complexa
rede  de  relações  entre  as  idéias  e  utopias  que  se
desenvolveram  dentro  do  chamado  “Projeto  Civilizatório”,

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presente  no  imaginário  da  elite  cultural  e  política  do  século


XIX brasileiro. Este projeto se torna mais evidente, de forma
direta ou indireta, com a transferência da Corte Portuguesa ao
Rio  de  Janeiro,  em  1808,  e  se  consolida  com  as  monarquias
que se seguiram depois (1822–1889).

Com  a  vinda  da  Corte,  o  Rio  de  Janeiro  se  modernizava,


perdendo  aos  poucos  o  aspecto  colonial.  Em  torno  dela  se
desenvolveu  uma  cultura  laica,  mundana,  cortesã  e
aristocrática. Segundo López (1988), a Corte divertia­se com
touradas,  cavalhadas,  teatros,  saraus  e  musicais.  É  neste
cenário que emergiu a primeira academia de arte do País.

López também comenta que foi devido a mudanças políticas
entre  Portugal  e  a  França,  como  parte  de  uma  estratégia  de
reaproximação  dos  dois  países,  que  teria  surgido  a  idéia  de
trazer para o Brasil uma Missão Artística Francesa, em 1816,
com  a  finalidade  de  institucionalizar  o  ensino  artístico  no
Brasil.  Este  fato  se  consolidou  mais  tarde,  em  1826,  com  a
criação  da  Imperial  Academia  de  Belas  Artes  do  Rio  de
Janeiro.

A “Primeira Missa no Brasil”, antes de ser a produção isolada
de um artista, é uma síntese visual do “Projeto Civilizatório”
de  cunho  nacionalista  do  Segundo  Império.  Por  isso,  para
compreender esta pintura é necessário ir àquele contexto.

O  País  se  firmava  como  nação  independente.  Pensava­se  em


criar  uma  identidade  nacional,  e  a  arte  era  considerada  um
lugar  privilegiado  para  pensar  a  sociedade  e  para  inventar
uma  nova  identidade.  As  Belas  Artes  eram  instrumento  de
civilização e glória, tendo o poder de contribuir na educação
dos  povos,  com  capacidade  de  interferir  diretamente  na
realidade.  A  idéia  de  arte  ligada  à  pedagogia  e  à  civilização
estava  bem  de  acordo  com  o  projeto  civilizatório  da  jovem
nação, independente desde 1822.

Para  compreender  o  contexto  do  qual  emerge  a  pintura


“Primeira  Missa  no  Brasil”,  em  meio  aos  problemas  do
Segundo  Império,  é  necessário  também  entender  as  questões
que  envolvem  a  legitimação  deste  “Projeto  Civizatório”  em
um plano geral internacional.

Lilia  Schwarcz  (1998)  comenta  sobre  as  dificuldades  que  a


monarquia tropical teria encontrado para legitimar seu poder

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diante do mundo, o que implica, entre outras coisas, a criação,
a  ostentação  e  a  ampla  divulgação  dos  ícones  que  criou.
Cercado  de  repúblicas,  o  modelo  monárquico  brasileiro
contava  com  obstáculos  para  seu  reconhecimento,  seja  pelas
demais nações americanas, seja pela difícil comunicação com
os países europeus.

Há que se considerar o esforço interno no sentido de dissociar
a  imagem  brasileira  da  idéia  de  anarquia,  associada  a  um
sistema escravocrata persistente sobre o qual se estruturavam
a  sociedade  e  a  economia  brasileiras.  A  pesquisadora  acima
citada explica que por essa razão, desde os primeiros anos de
independência, houve evidente esforço em divulgar e efetuar
uma  imagem  ao  mesmo  tempo  comum  e  peculiar  neste
longínquo império.

Não  havia  uma  consciência  clara  das


dificuldades de transpor para o Brasil, um país
em  formação,  modelos  importados  de  países
como a França.

O  Brasil  era  constituído  de  uma  sociedade


cultural  e  artisticamente  pouco  complexa,  cuja
elite intelectual, seduzida pela cultura européia,
não  podia  perceber  até  que  ponto  era
problemático para esta cultura criar raízes e se
desenvolver  livremente  em  uma  sociedade
ainda em crescimento (BAEZ:1986, p. 15).

A via de entendimento deste período, seguramente, não passa
por respostas simples e rápidas. Podemos buscar elementos de
reflexão  na  hipótese  de  que  o  País  buscava  se  afirmar  nos
modelos  que  já  conhecia  e  tinha  consciência  de  que  eram
mais  adiantados.  Por  outro  lado,  havia  uma  angustiante
pergunta  entre  as  idéias  civilizatórias,  pergunta  esta  que
continua  sendo  motivadora  de  movimentos  culturais  e
artísticos  nacionais  ao  longo  da  história:  afinal,  o  que  é
brasileiro?

Havia,  durante  o  século  XIX,  um  desejo  geral  de  afirmação


perante o mundo capitalista. Pesavento (1997) fala do desejo
de ser moderno, participar da rota do progresso, tornar­se uma
grande  nação,  desfazer  a  imagem  do  exotismo  tropical  do
atraso e da inércia.

Para  compreendermos  por  que,  em  momentos  de  mudança,


certos símbolos vingam e outros não, devemos atentar não só
para a emissão como também para a divulgação, ou seja, para
o consumo destes símbolos.
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D.  Pedro  II,  primeiro  monarca  nascido  no  Brasil,  foi


imperador de 1840 a 1889 e tornou­se o principal mecenas do
movimento  romântico.  Lilia  Schwarcz  diz  que  é  na
iconografia  que  mais  se  nota  o  uso  de  uma  simbologia
característica  desta  monarquia  carregada  pelos  sinais  de  um
diálogo  com  a  realidade  externa  (européia),  sem,  contudo,
deixar  de  denunciar  características  singulares  locais
(nacionais).  Fértil  na  produção  de  imagens,  o  Império
brasileiro  se  destacou  em  seu  papel  de  criador  de  ícones
nacionais,  entre  hinos,  medalhas,  emblemas,  dísticos  e
brasões, entre os quais é possível incluir a “Primeira Missa no
Brasil” como parte da iconografia oficial.

O índio brasileiro e o movimento romântico

É  no  movimento  literário  romântico  que  vamos  encontrar  a


figura do índio tomando forma desde 1826, quando o francês
Ferdinand  Diniz,  empregado  consular,  chama  a  atenção  dos
brasileiros  para  a  necessária  substituição  das  tendências
clássicas  em  favor  das  características  locais.  Defendia­se  a
descrição da natureza e dos costumes, nos quais o índio devia
ser  valorizado  como  primeiro  e  mais  autêntico  habitante  do
Brasil.

Os  literatos  românticos  conviviam  com  os  historiadores  do


IHGB e com os professores e diretores da Imperial Academia
de  Belas  Artes,  entre  eles  Manoel  de  Araújo  Porto  Alegre,
quem  teve  uma  forte  relação  com  a  criação  da  pintura
“Primeira Missa no Brasil”.

Foi  nos  decênios  de  50  e  60  do  século  XIX  que,  segundo
Schwarcz  (1998),  o  Brasil  conheceu  a  consagração  do
Romantismo,  cuja  manifestação  considerada  a  mais
genuinamente  nacional,  o  indianismo,  teve  nele  o  maior
movimento  de  prestígio,  alcançando,  além  da  poesia  e  do
romance,  a  música  e  a  pintura.  Os  indianistas  ganhavam
popularidade  na  representação  romântica  do  índio  como
símbolo nacional.

Assim,  a  história  da  Imperial  Academia  de  Belas  Artes  e  a


produção  dos  seus  alunos  não  podem  ser  dissociadas  das
significações maiores do Império. Esta história ainda está por
ser  mais  bem  contada,  principalmente  no  que  diz  respeito  à
existência de um projeto civilizatório associado à construção
do Estado e da nação.
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A “Primeira Missa no Brasil”

Imagem simbólica da cultura brasileira, a “Primeira Missa no
Brasil”,  assim  como  seus  numerosos  estudos  preparatórios,
hoje  fazem  parte  das  coleções  do  Museu  Nacional  de  Belas
Artes  do  Rio  de  Janeiro  sob  o  tombo  nº  901.  Foi  produzida
durante  o  Império  de  D.  Pedro  II,  na  França,  entre  1859  e
1860,  chegando  ao  Brasil  em  1861.  É  este  entorno  que
pretendo  começar  a  reconstruir,  consciente  de  que
compreender  o  espírito  do  Brasil  no  Segundo  Império  não  é
fácil.

Onde buscar a presença de elementos comuns que justifiquem
o nascimento de um repertório de imagens e ícones como o da
“Primeira Missa no Brasil”, dentro deste contexto?

Como  apontou  Schwarcz  (1998),  havia  a  necessidade,  entre


outras coisas, da criação e da divulgação de ícones.

A “Primeira Missa no Brasil”, um destes ícones, é sem dúvida
uma  das  mais  importantes  obras­primas  da  pintura  brasileira
de  todos  os  tempos!  As  obras­primas,  segundo  Parsons
(1992),  condensam  as  sensibilidades  de  uma  época  e
exprimem  plenamente  suas  tendências  e  seus  ideais.  Ao
mesmo  tempo  em  que  encarnam  os  valores  de  uma
comunidade, são inconcebíveis sem esta comunidade. Nela o
artista fez mais do que qualquer pessoa isolada poderia fazer:
serviu­se  das  intuições  e  das  realizações  dos  outros,
conjugando­os  de  uma  nova  forma,  o  que  lhe  permitiu  falar
em nome de toda uma geração.

Essa  imagem,  ao  lado  de  outros  emblemas  e  símbolos


nacionais, vem contribuindo na formação da idéia que temos
sobre  nós  brasileiros,  a  qual  pertence  ao  campo  mítico,
silencioso  e  invisível  do  Mito  Fundador  do  Brasil.  Criação
dos  conquistadores  europeus,  apropriado  pelo  Romantismo
brasileiro,  o  velho  mito  continua  renovadamente  reinventado
entre nós.

É importante destacar também o papel da “Primeira Missa no
Brasil”  na  construção  de  uma  representação  sobre  o
“Descobrimento” e sobre a identidade brasileira vinculada ao
catolicismo  e  ao  sentido  de  conversão  que  a  navegação
portuguesa trouxe consigo, o que amplia a importância desta
pintura na construção do nosso imaginário cultural.

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Academia Imperial de Belas Artes

Tida  como  fato  primordial  para  a  sistematização  do  ensino


artístico no Brasil, a Missão Artística Francesa chegou ao País
em  março  de  1816,  a  convite  e  por  arranjo  da  Corte
Portuguesa no Brasil. Era formada por um grupo de artistas e
mestres  de  ofícios,  quase  todos  ex­bonapartistas  que  vinham
para  introduzir  o  ensino  acadêmico  das  artes  e  ofícios  no
Brasil de D. João VI.

Para a Imperial Academia de Belas Artes eram encaminhadas
as vocações artísticas das províncias do Brasil, como Manuel
de  Araújo  Porto  Alegre,  do  Rio  Grande  do  Sul;  Victor
Meirelles  de  Lima,  de  Santa  Catarina;  Pedro  Américo  de
Figueiredo  e  Melo,  da  Paraíba,  José  Ferraz  de  Almeida
Júnior,  de  São  Paulo,  entre  outros.  As  obras  destes  artistas
espelham  o  espírito  acadêmico  de  então,  voltadas  para  o
idealismo  clássico  e  para  os  mestres  consagrados  pelas
academias de Roma e de Paris.

Schwarcz (1998) chama a atenção para a relação direta que o
Imperador  Pedro  II  mantinha  com  a  Imperial  Academia  de
Belas Artes durante o seu longo Reinado. Empreendendo uma
política semelhante ao IHGB, o Imperador passou a distribuir
prêmios,  medalhas,  bolsas  para  o  exterior  e  financiamentos,
assim  como  participou  com  assiduidade  das  Exposições
Gerais  de  Belas  Artes,  promovidas  anualmente,  ou  entregou
insígnias das Ordens de Cristo e da Rosa aos artistas de maior
destaque.  Em  1845,  D.  Pedro  passou  a  custear  o  Prêmio  de
Viagem, aberto anualmente, que financiava estudos de alunos
da Academia no Exterior.

O Imperador recebeu o título de Fundador e Protetor Perpétuo
da Academia Imperial; proteger a Academia e os artistas era
também  uma  forma  de  garantir  a  produção  da  iconografia
oficial.  Da  Academia  e  de  seus  artistas,  além  da  pintura
“Primeira  Missa  no  Brasil”,  saíram  os  inúmeros  retratos,  as
cenas  familiares  e  de  poder  da  Família  Real  que  até  hoje
ilustram nossa história. A pintura histórica era o gênero mais
valorizado  na  Academia  em  meados  do  século  XIX.  Como
bem explicita Jorge Coli (1998: 117)

Meirelles  atingiu  a  convergência  rara  das


formas, intenções e significados que fazem com

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que  um  quadro  entre  poderosamente  dentro  de


uma  cultura.  Essa  imagem  do  descobrimento
dificilmente  poderá  vir  a  ser  apagada,  ou
substituída.  Ela  é  a  primeira  missa  no  Brasil.
São os poderes da arte fabricando a história.

O  modelo  de  ensino  de  arte  que  o  Brasil  importava  era,


segundo Barbosa apud Zanini (1983), o único com atualidade
no  país  de  origem  no  momento  de  sua  importação  para  o
Brasil.  Portanto,  o  neoclássico,  através  do  qual  se
expressaram os artistas da Missão Artística Francesa quando
para cá vieram organizar nossa primeira escola de arte, era o
estilo de vanguarda naquele tempo.

O  desenvolvimento  da  pintura  brasileira  começou  tomar


fôlego  a  partir  de  1840,  data  em  que  se  realizou  a  primeira
Exposição  Geral  de  Belas  Artes.  Foi  neste  cenário  que
apareceu entre os alunos, em 1847, o artista Victor Meirelles
de  Lima,  filho  de  imigrantes  portugueses,  vindo  da  cidade
Desterro, hoje Florianópolis.

Se,  por  um  lado,  a  Academia  lhes  ensinava  a  gramática


tradicional  das  artes  plásticas,  por  outro,  eles  provinham  de
uma  sociedade  sem  nenhuma  tradição  para  exprimir­se  por
meio  das  formas  eruditas  da  Academia,  onde,  mais  por
intuição  do  que  por  formação,  começaram  a  desconfiar  da
repetição  de  cenas  mitológicas  e  bíblicas  fornecidas  pelos
modelos de ensino.

Os  professores  da  Academia  de  Belas  Artes  e  o  corpo


governamental  do  país  estavam  esperando  que  surgissem
talentos.  Tudo  era  acompanhado  muito  de  perto  pelo
Imperador, que, para prestigiar, tornou­se presidente de honra
do IHGB. Desde menino, aos 14 anos, ele acompanhava tudo
de perto.

Segundo pesquisa publicada em Franz (2003), antes de Victor
Meirelles  a  Academia  enviou  outros  artistas  para  a  Europa,
através do sistema de bolsas de estudos, mas eles produziram
pouco  e  voltaram  logo.  O  primeiro  que  realmente  se  vê  nos
documentos e que tinha noção do que estava acontecendo é o
pintor  catarinense.  Ele  foi  para  a  Europa  e  atendeu  às
exigências  da  Imperial  Academia  no  Brasil  nas  obrigações
dele  esperadas.  Enquanto  os  outros  artistas  mandavam  um
desenho  ou  dois,  Victor  Meirelles  mandava  dez  ou  vinte.
Então  o  Imperador  e  os  intelectuais  da  Academia  sentiram

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que  encontraram  o  artista  que  procuravam.  E  é  por  isso  que


Victor Meirelles conseguiu a prorrogação da bolsa de estudos
por oito anos. O período normal era apenas de três anos.

Quando  Victor  Meirelles  estava  na  França,  o  diretor  da


Academia no Brasil trabalhava em sintonia com o Imperador
Pedro  II.  Mantinham  uma  reunião  semanal,  na  qual  falavam
sobre  os  avanços  acadêmicos  de  seus  alunos  e  outras
questões.  Então,  quando  Manuel  de  Araújo  Porto  Alegre  se
correspondia  com  Victor  Meirelles,  o  resultado  dessas
conversas se refletia nas comunicações com o artista.

Uma vez feito o primeiro esboço da “Missa”, Victor Meirelles
enviou­o  para  a  Academia  no  Brasil.  A  elite  cultural  queria
criar  esse  tipo  de  imagem  para  ficar  na  memória  cultural  do
País. Por isso, uma vez aceito o esboço da “Primeira Missa no
Brasil”,  o  pintor  de  Desterro  ganhou  o  financiamento  para
mais  dois  anos  de  estada  na  França  e  para  as  despesas  da
execução da obra.

Em Paris foi auxiliado por Ferdinand Denis, um homem que
tinha  vivido  no  Brasil  no  tempo  de  D.  João  VI,  que  adorou
morar aqui e ficou sendo brasilianista pelo resto da vida. Ele
era  então  o  diretor  da  Biblioteca  de  Santa  Genoviève,  que
existe  até  hoje  em  Paris.  Foi  nesta  biblioteca  que  Victor
Meirelles  analisou  a  documentação  sobre  o  índio  e  sobre  o
Brasil,  e  onde  também  encontrou  a  carta  de  Caminha,  que
tinham  descoberto  um  pouco  antes.  Estudou  a  carta  com
afinco para representar a missa descrita por Caminha.

Antes  de  ser  produto  da  mente  isolada  de  um  artista,  a
“Primeira  Missa  no  Brasil”  é  uma  síntese  visual  do  projeto
civilizatório  de  cunho  nacionalista  do  Segundo  Império
brasileiro,  e  Victor  Meirelles  de  Lima  foi  o  homem  que
concretizou em forma de pintura as idéias deste projeto.

Se,  por  um  lado,  o  artista  pintou  idéias  do  corpo  político  e
cultural  do  Brasil  de  meados  do  século  XIX  concretizadas
pelo rigor das técnicas artísticas aprendidas nas academias de
arte, por onde passou e pela fidelidade a pintura histórica em
si,  por  outro  lado,  teve  “ajudas”  que,  de  tão  próximas,
podemos chamá­las de “outras mãos”. Entre estas a principal
foi  a  de  Manoel  de  Araújo  Porto  Alegre.  Nacionalista,  foi
também  aluno  de  Debret,  na  Imperial  Academia,  no  período
que  antecede  a  Independência  do  Brasil.  Foi  professor  e
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diretor  da  Imperial  Academia  no  período  em  que  Victor


Meirelles  partiu  para  a  Europa.  Trocou  curiosa
correspondência com o artista, onde orientava detalhadamente
seus  estudos.  Falava  em  nome  do  Imperador  e  do  Corpo
Acadêmico.

Embora  a  correspondência  entre  os  dois  não  esteja  toda


publicada,  podemos  ver,  no  que  temos  à  disposição,  como
esta  troca  de  informações  se  fazia  não  somente  no  sentido
acadêmico,  mas  num  clima  de  confiança,  compreensão  e
estímulo.  Nela  Victor  era  instruído  na  composição  de  sua
primeira grande obra original.

Como pensionistas do Estado, os artistas contemplados com o
Prêmio  Viagem  ficavam  submetidos  a  rígida  legislação,  pela
qual  lhes  eram  cobradas  uma  série  de  tarefas  e  obrigações,
garantido  assim  o  sucesso  e  a  manutenção  da  bolsa.  Entre
essas tarefas estava a remessa regular de obras realizadas no
exterior. A feitura destes trabalhos artísticos era determinada
pela  Congregação  da  Escola  no  Brasil.  Para  garantir  a
manutenção  deste  campo  simbólico,  nenhum  desvio  desta
linha  doutrinária  era  permitido,  sob  pena  de  ser
imediatamente suspenso o custeio de sua permanência fora do
País (BAEZ, 1986).

Seguindo  as  instruções  de  Porto  Alegre,  Victor  Meirelles


partiu  para  uma  primeira  estada  na  Itália,  seguindo  depois
para  a  França,  onde  tomou  orientação  de  Leon  Cogniet,
professor  da  Escola  de  Belas  Artes  de  Paris.  Esta  escola,  no
século  XIX,  era  uma  instituição  cercada  de  prestígio,
considerada  a  herdeira  da  Academia  Imperial,  criada  em
1684, a fim de proteger a elite artística da França no sentido
de libertá­la das regras tirânicas que lhes eram impostas pelas
corporações de artífices – os Grêmios.

Victor  Meirelles  produziu  também  sua  “Primeira  Missa”


obedecendo  ao  olhar  exigente  do  jurado  do  Salão  Oficial  de
Paris, em 1861, do qual participou.

Além  de  estudar  a  carta  de  Caminha  e  de  seguir  uma


minuciosa  orientação  de  Manuel  de  Araújo  Porto  Alegre,  há
um outro fato importante a considerar na construção da obra
em  questão:  Victor  Meirelles  buscou  inspiração  para  a  cena
principal de sua obra [Figura 2] em outra missa, a do pintor
Francês  Horace  Vernet  (1789–1863).  A  missa  pintada  por
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Vernet intitula­se “Première messe en Kabyli” (1853) [Figura
3],  lembrando  que  o  procedimento  por  citação  é
absolutamente legítimo dentro do gênero Pintura Histórica.

O desconhecimento das regras da pintura histórica pela crítica
de  arte  nacional  causou  grande  polêmica  quando  a  pintura
chegou ao Brasil, e Victor Meirelles inclusive foi acusado de
plagiário.

Há  ainda  a  hipótese  de  que  o  tema  da  missa  era  então
recorrente.  No  Museu  Granet,  na  Provença,  França,
encontramos  outra  missa  intitulada  “Une  messe  au  Louvre
pendant  la  Terreur”,  datada  de  1847,  de  autoria  de  Marius
Granet  (1775–1849)  [Figura  4].  O  altar  no  centro,  com  um
padre levantando a hóstia, e outro de joelhos segurando suas
vestes  lembram  a  cena  principal  da  “Missa”  de  Victor
Meirelles.  Este  procedimento  também  teria  sido  legítimo
dentro do contexto cultural estético das academias de arte do
século XIX.

As  academias  de  arte  constituem  um  modelo  de  instituição


artística  pouco  conhecidas,  e,  talvez  por  isso  mesmo,  pouco
valorizadas. Cercadas de preconceitos desde o advento da arte
moderna,  chegaram  a  ser  reduzidas  simplesmente  a
instituições  regressivas,  coercitivas  da  liberdade  de  criação
artística  e  de  regulação  oficial  do  gosto.  Porém,  estas
instituições  nasceram  com  a  finalidade  de  cumprir
determinadas  necessidades  da  época,  inclusive  dos  artistas,
então  sujeitos  aos  Grêmios  –  corporações  carregadas  de
conotações  medievalizantes  e  representativas  dos  ofícios
caracterizados como mecânicos.

A  pintura  acadêmica  brasileira  do  século  XIX  não  foi


exclusivamente  neoclássica,  como  é  geralmente reconhecida,
pois  sofreu  influência  do  Romantismo  acadêmico  francês,
mais conhecido como “Pompierismo”.

Chamados pelo historiador Jorge Coli de “a forma justa” para
atingir  o  poder  de  permanência  que  a  obra  possui,  os  meios
formais adequados só poderiam resultar da Pintura Histórica.
As origens deste gênero devem ser vinculadas ao sistema de
ensino  da  pintura  das  Academias  de  Arte.  Sobre  estes
aspectos afirma Reyero (1989:16):

Os  estudantes  eram  obrigados  a  passar  por


concursos  onde  os  jurados  impunham  a  cada
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ano  o  título  que  cada  participante  deveria


executar.  O  de  história  era,  pois,  resultado  de
um  rigoroso  exercício  acadêmico,  que  apenas
uns poucos conseguiam superar.

A  Primeira  Missa  no  Brasil  remete  também,  como  bem


lembra Marilena Chauí, para a presença sempre renovada do
Mito  Fundador  do  Brasil,  apropriado  ideologicamente  pelo
Romantismo  brasileiro,  o  qual  contribui  para  construção  da
nossa  identidade,  como  membros  de  uma  nação,  criando
verdades  contraditórias  sobre  quem  somos  e  sobre  o  que
pensam  os  outros  sobre  nós  mesmos.  Utopias  que  vêm  de
longe, desde o Renascimento, do imaginário dos navegadores,
e  que  reaparecem  ideologicamente  nas  imagens  produzidas
pelos artistas no século XIX.

Abandonado  e  discriminado  pelos  republicanos,  Victor


Meirelles morreu pobre em 1903, no Rio de Janeiro.

Se  em  toda  a  história  houve  homens  e  mulheres  que  se


dedicaram  a  construir  ícones  para  seu  povo,  Victor  o  foi  no
seu  tempo  e,  se  assim  o  fez,  foi  sustentado  por  um  contexto
cultural e histórico singular e específico.

Parafraseando  o  saudoso  Alcídio  Mafra  de  Souza  (1982:14)


nunca é demais repetir: Victor é, sem dúvida um dos maiores
nomes  da  arte  nacional.  Sabemos,  porém  que  seu  mérito  e
valor  nem  sempre  foram  reconhecidos.  “É,  entretanto,
reconfortante  saber  que  sua  cidade  natal  jamais  o  esqueceu,
assim como ele também nunca esqueceu sua terrinha pacata e
bela”.

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1903. Pp. 13­7. Rio de Janeiro: Pinakoteke, 1982.

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[1]  Este  artigo  foi  publicado  na  Revista  do  Instituto  Histórico  e
Geográfico  de  Santa  Catarina,  Nº  22  em  2003,  ano  de  centenário  da
morte de Victor Meirelles.

[2]  Dra. em Belas Artes pela Universidade de Barcelona – Espanha onde
defendeu tese de doutorado em torno da pintura Primeira Missa no Brasil
(1860)  de  Victor  Meirelles  de  Lima  (Desterro,  1832  –  RJ,  1903).  É
professora  de  ensino  das  Artes  Visuais  na  graduação  e  no  mestrado  em
Artes Visuais do Centro de Artes da UDESC – Florianópolis –SC. Autora
dos  livros:  “Educação  para  a  compreensão  da  arte:  Museu  Victor
Meirelles”.  Fpolis:  Insular,  2001  e  “Educação  para  uma  compreensão
crítica  da  arte”.  Fpolis:  Letras  Contemporâneas,  2003.  E­mail:
terefranz@hotmail.br

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