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Número 17 – fevereiro/março/abril - 2009 – Salvador – Bahia – Brasil - ISSN 1981-1861 -

O CONCEITO DE SERVIÇOS PÚBLICOS NO DIREITO


CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

Prof. Alexandre Santos de Aragão


Professor-adjunto de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Professor do Mestrado em Regulação e Concorrência da Universidade Candido Mendes.
Professor da Pós-graduação em Direito da Administração Pública da Universidade Federal
Fluminense – UFF. Professor-visitante do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ. Professor de Pós-graduação da Fundação Getulio Vargas – FGV (Rio de
Janeiro e São Paulo). Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP.
Mestre em Direito Público pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Advogado.

"La permanence d'une institution n'est pas non plus


l'immuabilité absolue, mais bien la permanence dans les
caractères fondamentaux".
(Maurice Hauriou1)

SUMÁRIO: 1 – Advertência Preliminar. 2 – Metodologia da Ciência do Direito e a Elaboração de


Conceitos Jurídicos em um Direito Administrativo em Evolução. 3 – A Busca de um Conceito de
Serviço Público. 4 – O Conceito de Serviço Público à luz da Constituição Federal de 1988. 4.1 – Os
Dispositivos Constitucionais Pertinentes à Atividade Prestacional do Estado. 4.2 – Os Sentidos de
"Serviço Público" extraíveis da Constituição. 4.2.1 – Concepção Amplíssima de Serviço Público (e os
"Princípios dos serviços públicos"). 4.2.2 – Concepção Ampla de Serviço Público. 4.2.3 – Concepção
Restrita de Serviço Público. 4.2.4 – Concepção Restritíssima de Serviço Público. 4.2.5 – A
Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF. 4.2.6 – O Conceito Proposto. 5 – Institutos
Afins. 5.1 – Funções Públicas e Poder de Polícia. 5.2 – Serviços Uti Universi. 5.3 – Fomento. 5.4 –
Atividades Econômicas exploradas pelo Estado (em concorrência com iniciativa privada e como
monopólio). 6 – Serviços Públicos Sociais e Serviços Compartidos. 7 – Conclusões.

1 – ADVERTÊNCIA PRELIMINAR.

Em 1953, B. CHENOT advertia que o conceito de serviço público "é o


exemplo mais claro de uma dessas noções ditas fundamentais cujo conteúdo só
pôde ser precisado em breves períodos de tempo e cujos contornos logo

1
HAURIOU, Maurice. Principes de Droit Public, Larousse, Paris, 1910, p. 132.
começam a se quebrar com as contradições das leis e das decisões
jurisprudenciais. A história do serviço público demonstrou que o único sentido do
termo é o que a ele foi dado pelas fantasias titubeantes do legislador e pelos
esforços pragmáticos do juiz".2

Pretendemos, superando ainda que parcialmente essas dificuldades,


deslindar os traços básicos do regime dos serviços públicos e o conceito dele
inferível. No Brasil, como a Constituição contém uma minuciosa disciplina das
atividades estatais, constitui ela o principal marco a partir do qual se deve buscar
o conceito de serviço público.3

2 – METODOLOGIA DA CIÊNCIA DO DIREITO E A ELABORAÇÃO DE


CONCEITOS JURÍDICOS EM UM DIREITO ADMINISTRATIVO EM EVOLUÇÃO.

É inegável o papel dos conceitos jurídicos, naturezas jurídicas e


classificações4 para a sistematização da ciência jurídica, principalmente para fins
didáticos. Essa importância não deve, contudo, ser superdimensionada, havendo
de se ter consciência dos seus limites diante da realidade multifacetária e
dinâmica que pretendem, em uma contínua tentativa, organizar,5 sempre a partir
do direito posto pelo legislador.6

2
CHENOT, B. L'Existencialisme et le Droit, in Revue Française de Science Politique, 1953, p. 60
3
Os serviços públicos são mais afetos a serem explicados através de noções, homogêneas
dialeticamente através da história, do que através de conceitos, menos dinâmicos se comparados
com a plasticidade das noções. No presente trabalho, como teremos em vista o Direito Positivo
Brasileiro, parece-nos possível tentar buscar um conceito – não mais apenas uma noção – dos
serviços públicos.
4
Não pretendemos entrar em pormenores bizantinos das diferenças entre essas expressões até
por serem intimamente relacionadas entre si.
5
"Talvez para superar um possível complexo de inferioridade em relação às ciências naturais, a
ciência jurídica dedicou muito de sua atenção ao estudo taxionômico. Classificar espécies de
categorias jurídicas ditando com precisão sua conceituação e natureza foi sempre considerado
uma meta para o jurisconsulto tradicional. A despeito da evidente contribuição para o apuro
técnico do estudo jurídico, devemos relativizar a importância desse tipo de análise. Pelo menos
não podemos realizá-la sem reconhecer a existência de uma conflituosa relação entre direito e
objetividade, posto que a categoria jurídica é um dado cultural que se constrói a partir de
determinadas premissas políticas, que podem variar em função do tempo, do contexto social e até
mesmo de posições pessoais do intérprete. Não devemos desconsiderar, contudo, o legado do
esforço pandectista. O direito também é técnica, e a sua melhor expressão, pode, com certeza,
contribuir para o atendimento dos valores a que pretende promover" (RODRIGUES, Geisa de
Assis. Ação Civil Pública e Termo de Ajustamento de Conduta, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2002,
pp. 139-140).
6
"Lê-se em Garcia-Amigo que 'a natureza jurídica é, sem dúvida, a questão mais importante no
estudo de cada instituição'. Deve-se ter cuidado, porém, com a equivocada sugestão
conceitualista que pode ligar-se a esta asserção, pois a solução do problema só pode ser um
posterius resumidor das soluções dadas a concretas questões de regulamentação" (PINTO,
Carlos Alberto da Mota. Cessão da Posição Contratual, Atlântida Editorial, Coimbra, 1970, p. 192).
Também Charles Eisenmann afirma que os "juristas acreditam geralmente que as classificações
lhes seriam dadas à partida, que seriam pré-estabelecidas, com as qualificações e com as

2
ROBINSON denuncia que "as cansativas pesquisas dos juristas para 'descobrir'
a natureza jurídica de determinada instituição ou relação estão de antemão
irremediavelmente fadadas ao fracasso. A explicação para que, apesar de tudo isto,
continuar-se tentando elaborar conceitos, classificações e naturezas jurídicas, é, entre
outras, o desejo de se achar um ponto de partida fixo e seguro para a posterior tarefa de
classificação e sistematização. Além disso, há o desejo de equiparar as instituições de
surgimento recente às de outras linhagens mais ilustres, atenuando dessa maneira o
choque da novidade mediante sua absorção por um mundo familiar de idéias já
elaboradas".7

Ensina GENARO R. CARRIÓ que "não podemos ter a falsa segurança de que
os tecnicismos da linguagem jurídica podem enquadrar todos os casos. A experiência
diária dos tribunais e, em geral, o contato profissional com o Direito, nos mostram que
essa segurança é quimérica. (...) Não há como deixarmos de tropeçar com a imprecisão
e a relatividade dos conceitos jurídicos, pois existem numerosas zonas de transição, nas
quais o jurista deve estar atento para não cair na tentação de uma perigosa geometria
jurídica".8

Devemos evitar que a discussão sobre o conceito e classificação dos


serviços públicos seja meramente convencional, já que não é raro que
divergências conceituais entre juristas não sejam substanciais, mas relativas
apenas a diferentes significados atribuídos à mesma palavra: "é uma ilusão pensar
que cada palavra corresponde a um – e apenas um – significado; a grande maioria delas
tem uma pluralidade de significados. Também é ilusória a crença de que o uso de uma
mesma palavra para indicar objetos diversos pressupõe necessariamente – salvo os
casos de mera homonímia – que todos esses objetos têm uma propriedade ou um
conjunto de propriedades em comum, que integram o corpo de uma entidade que a
palavra denomina. O fato de estarmos usando uma mesma palavra não garante que
estejamos nos referindo à mesma coisa".9

Além disso, “boa parte das controvérsias dos juristas sobre problemas de
classificação são abordadas como se fossem questões de fato, sem que se advirta que
não há sentido em refutar como 'falsa' uma classificação – ou seus resultados – e
postular em seu lugar uma outra, 'verdadeira', como se tratassem de dois modos
excludentes de reproduzir com palavras certas divisões e subdivisões que estariam na
'natureza das coisas'. As classificações não são, nem verdadeiras, nem falsas, são
funcionais ou inúteis; suas vantagens ou desvantagens dependem do interesse que guia
quem as formula, e a sua fecundidade para apresentar uma área de conhecimento de
uma maneira mais facilmente compreensível ou mais rica das conseqüências práticas
desejadas pelo autor que as elabora. Sempre há múltiplas maneiras de agrupar ou

divisões em classes correlativas ou pelo menos, com uma parte importante delas – isto
naturalmente, pelo e no próprio direito positivo, pelos e nos seus materiais" (EISENMANN,
Charles. Problemas de metodologia das Definições e das Classificações, in Archives de
Philosophie du Droit, 1966, apud MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito, trad. Ana Prata,
Editorial Estampa, Lisboa, 1994, p. 140).
7
Cf. CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguaje, 4ª. ed., Abeledo-Perrot, Buenos Aires,
1990, pp. 101-102, grifamos.
8
CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguaje, 4ª. ed., Abeledo-Perrot, Buenos Aires,
1990, pp. 54-55.
9
CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguaje, 4ª. ed., Abeledo-Perrot, Buenos Aires,
1990, p. 94.

3
classificar um campo de relações ou de fenômenos; o critério para se decidir por uma
delas é dado apenas por critérios de conveniência científica, didática ou prática".10

Do ponto de vista didático, uma simplificação exagerada dos conceitos e


das classificações, ao invés de ajudar, tende a confundir quando, em um segundo
momento de aprofundamento, se tentar entender a realidade jurídica através dos
conceitos, dentro dos quais não será possível enquadrar a realidade jurídica, em
uma eterna tentativa de classificação de novas figuras atípicas com um arsenal
conceitual que, ainda que permanentemente atualizado, será sempre muito
insuficiente.11

Essa insuficiência é verificada com especial intensidade em momentos de


grandes alterações socioeconômicas e legislativas, em que fica mais evidente que
os conceitos tradicionais não são, em maior ou menor escala, instrumentos aptos
a apreender e organizar a nova realidade jurídica e institucional.12 "Nas fases de
transição, o risco na atividade de elaboração de conceitos e classificações é redobrado;
risco de não se levar em consideração as mudanças, esforçando-se em manter vivos
conceitos já superados; ou de apenas considerar inadequadas as velhas categorias,
limitando-se a uma obra destrutiva, com uma espécie de absolutização do relativismo".13

Assim, considerando estarmos vivendo um momento de forte "evolução do


14
é natural que os seus conceitos tradicionais necessitem de
direito administrativo",
alguma atualização para se manterem operacionais.

A maioria das discussões dos juristas sobre conceitos e classificações


"talvez se deva ao fato de a que teoria jurídica é manejada com classificações herdadas,
muitas das quais com o aval de um enorme prestígio e tradição milenar. Os juristas então
crêem que essas classificações constituem a 'verdadeira' forma de agrupar as regras e
os fenômenos, em lugar de ver nelas simples instrumentos para melhor compreendê-
los.15 Os fenômenos – se crê – devem acomodar-se às classificações, e não o contrário.”
16

Os conceitos tradicionais do Direito Administrativo se caracterizam pelos


pressupostos ideológicos de supremacia da Administração Pública sobre o

10
CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho e Lenguaje, 4ª. ed., Abeledo-Perrot, Buenos Aires,
1990, pp. 98/9, grifamos.
11
CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho e Lenguaje, 4ª. ed., Abeledo-Perrot, Buenos Aires,
1990, p. 53.
12
"Discussões e livros são sempre e inevitavelmente mais fundados na realidade de ontem do que
na de hoje; entramos na história a reculons, como já escrevia Paul Valery!" (ASCARELLI, Tullio.
Norma Giuridica e Realtà Sociale, in Il diritto dell'economia – Rivista di Dottrina e di
Giurisprudenza. Anno I, n°. 10. 1955, p. 16).
13
ROSSI, Giampaolo. Metodo Giuridico e Diritto Amministrativo: alla ricerca di concetti giuridici
elementari, texto inédito gentilmente cedido pelo autor, com próxima publicação na Rivista Servizi
pubblici e appalti.
14
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução, 2ª. ed., Ed. RT, São Paulo, 2003.
15
"Como é preciso arrumar bem as coisas e criar uma ordem, mais vale retomar aquele que é
usado há muito tempo: o velho argumento da autoridade nascida da prática, o 'cômodo' elevado à
categoria de teoria" (MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito, trad. Ana Prata, Editorial
Estampa, Lisboa, 1994, p. 140).
16
CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguaje, 4ª. ed., Abeledo-Perrot, Buenos Aires,
1990, pp. 98-99, grifamos.

4
particular e do papel do Estado como o grande provedor das necessidades
sociais. Não são necessários maiores esforços para constatar que, se esses
pressupostos ideológicos não foram totalmente ultrapassados, encontram-se pelo
menos seriamente comprometidos, inquinando também, como não poderia deixar
de ser, os conceitos que deles defluíam.

Afinal, como explicitam LUIS ALBERTO WARAT e ANTONIO ANSELMO


MARTINO, "as definições não podem se limitar à descrição ou explicação dos conceitos,
(...) devendo incluir a existência de conceitos impregnados de carga emotiva e ideológica,
e previstos com força operativa, de maneira que a mera explicitação racional e lógica não
é capaz de delimitar o seu conteúdo. (...) No plano jurídico é imprescindível efetuar uma
análise pragmática de sua linguagem que tome em conta fundamentalmente a relação
dos signos com a intencionalidade dos seus usuários, que nunca perca de vista o
contexto fático e ideológico no qual as mensagens normativas estão submersas. (...) Se
não se nutre desse contexto, corre o perigo de se divorciar totalmente da realidade e
perder o ritmo de adaptabilidade (...)."17

Constituem um importante norte as considerações de CHARLES


EISENMANN18 sobre a adoção, cisão e mudanças das terminologias no Direito:
"não se deve esquecer que os problemas de terminologia são problemas de
conveniência, e não problemas de idéias, de verdade. Uma terminologia ideal apenas
empregaria cada signo verbal em um único sentido, para designar apenas uma noção,
disto decorrendo a ausência de qualquer ambigüidade ou equívoco sobre o sentido das
palavras: saberíamos sempre, com certeza absoluta, sem hesitação nem reflexão, o que
cada um quer dizer."

A realidade está bem longe desse ideal! Em determinado momento, as


pessoas de certa língua se deparam com uma terminologia estabelecida que
muitas vezes lhes parece, com razão, defeituosa. Evidentemente que ela não lhes
obriga a utilização de maneira definitiva e absoluta, senão não haveria jamais
mudança! É normal tentar aperfeiçoar a terminologia, 'lutar por reforma'. Todavia,
1º.) Não há dúvida que a resistência oposta pelo costume da utilização da
terminologia é bastante grande; a inércia do hábito é tão grande que se deve
pretender reformar a terminologia apenas se isto for verdadeiramente
indispensável ou extremamente desejável; não se deve romper apenas pelo
prazer de inovar, satisfação pueril, excessivamente buscada... com ilusão;19 2º.)
Na proposta de reforma terminológica, devem ser observadas as seguintes
regras:

17
WARAT, Luis Alberto e MARTINO, Antonio Anselmo. Lenguaje y Definición Jurídica,
Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, Buenos Aires, 1973, pp. 25, 28 e 56-57.
18
EISENMANN, Charles. Cours de Droit Administratif, Tome II, LGDJ, Paris, 1983, pp. 798-799.
19
"Uma vez aceita uma proposição dogmática, ela não precisa ser estritamente retida por um
período ilimitado. Mas exclui o simples abandono sem nenhuma razão. Não basta que deva haver
igualmente boas razões a favor de uma nova solução como para a que deve ser preterida. A razão
para a nova solução tem de ser suficientemente forte para justificar não só a nova solução, mas
também o rompimento da tradição. O princípio da inércia de Perelman portanto se mantém. Quem
apresentar uma nova solução, fica com o ônus da prova" (ALEXY, Robert. Teoria da
Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica [trad.
Zilda Hutchinson Schild Silva], Ed. Landy, São Paulo, 2001, p. 253).

5
1. ela só se justifica se aumentar a clareza das idéias, aumentando-lhes a
clareza da linguagem, ou seja, se a reforma aproximar os termos do ideal,
da 'unidade de sentido';

2. ela deve, então, tender a este resultado;

3. quando o termo é claramente de etimologia estrangeira, é recomendável


levar ao sentido que ela dá;

4. quando ele é emprestado de uma área técnica a outra, ou da linguagem


comum, que era anterior, é desejável mantê-lo na acepção concernente a
essas, isto é, utilizá-lo apenas se a noção a designar-se for similar, se
apresentar elementos essenciais comuns.

Em outras palavras, a afetação dada às palavras é, em si, puramente


convencional; não podemos condenar nenhuma delas como falsa; não se pode
jamais demonstrar que se deve ou não empregar um termo em tal sentido para
designar tal noção. Mas seria extremamente desejável que esta afetação obedeça
a uma disciplina bastante estrita. Deve-se, permanentemente, estar pensando
nisso, velando por isso, todas as vezes que estivermos a examinar uma questão
de terminologia.

Na conceituação não devemos tomar em conta os fundamentos das


relações jurídicas cujas terminologias estão sendo analisadas, mas sim dos seus
próprios conteúdos, já que "a natureza das relações de direito resulta unicamente do
seu conteúdo".20

Aplicando a assertiva especificamente ao nosso tema, podemos afirmar


que a determinação do conceito e da classificação das atividades estatais, entre
elas os serviços públicos, deve se dar pela técnica jurídica por elas utilizada, e
não por suas respectivas finalidades ou fundamentos político-sociais.21

O grande desafio na elaboração de conceitos jurídicos é determinar até


que ponto devem abranger técnicas e fenômenos jurídicos distintos, aumentando
o número de classificações internas aos conceitos, ou, ao revés, até que ponto
deve buscar a maior determinabilidade possível de regime jurídico, contemplando
apenas os fenômenos jurídicos que tiverem entre si pontos de coincidência
suficientemente fortes para propiciar uma "unidade de sentido.22

20
EISENMANN, Charles. Cours de Droit Administratif, Tome II, LGDJ, Paris, 1983, p. 800,
grifamos.
21
FALLA, Fernando Garrido. Tratado de Derecho Administrativo, vol. II, 10ª. ed., Ed. Tecnos,
Madrid, 1992, p. 300.
22
Nas palavras de A. WEILL, "o jurista deve resistir à tentação de estabelecer demasiadas
categorias, senão elas deixam de ser utilizáveis; ao inverso, não se deve contentar com algumas
grandes categorias. Ao mesmo tempo que a classificação nas categorias traz a ordem, pode haver
um interesse prático na simplificação" (A. WEILL apud MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao
Direito, trad. Ana Prata, Editorial Estampa, Lisboa, 1994, p. 140).

6
O que deve guiar o jurista no mister de elaborar um conceito jurídico são
dois fatores: a operacionalidade do conceito a ser alcançado, de forma que ele
seja realmente capaz de dar uma maior organização à ciência do Direito, podendo
dele se extrair um regime jurídico mínimo comum a diversas manifestações
jurídicas;23 e atendimento aos objetivos metodológicos visados pelo seu autor,
sendo o instrumento mais eficiente possível para responder aos pontos de
indagação científica que ele pretende responder. Na verdade, repisamos, não há
conceito certo ou errado em razão da sua menor ou maior amplitude, mas sim
conceito menos ou mais operacional e instrumental face aos objetivos científicos
visados.24

Um conceito não pode ser nem tão amplo que deixe de ter utilidade para o
estudo do Direito, abrangendo fenômenos com pouco conteúdo jurídico em
comum; nem tão restrito que deixe de desempenhar o papel organizador e
agregador de fenômenos jurídicos distintos, mas que tenham algum denominador
comum suficientemente relevante.

GIAMPAOLO ROSSI considera uma regra lógica "colher o núcleo de um


problema e não se limitar ao seu entorno, devendo-se separar os perfis essenciais de
uma fattispecie ou de um fenômeno, distinguindo-o daqueles meramente marginais; não
ver de forma absoluta o que é questionável; não aderir acriticamente à moda; evitar seja
a simplificação, seja a generalização imprópria. (...) O escopo capital de toda teoria é de
tornar quase irredutíveis elementos fundamentais mais simples e mais numerosos
possíveis, apoiando-se todo o edifício sobre um número menor de elementos conceituais.
(...) Perfis comuns como um 'núcleo-base' do qual os elementos decorrem em suas

23
"A função própria dos conceitos jurídicos, quer sejam eles enunciados pela lei, quer sejam
doutrinariamente construídos, é a de aglutinar situações parificadas por uma 'unidade de regime'.
É de isolar conjuntos de princípios e regras incidentes quando ocorridas dadas situações,
individualizando-os no confronto com outros conjuntos regentes de outras situações no que
concerne a suas existências, validades e efeitos. Ou, dito pelo reverso: é a de localizar os eventos
cuja presença se constitui em um termo, um ponto, ao qual está referido um conjunto determinado
de princípios e regras que formam um bloco homogêneo, diverso de outros blocos normativos
reportados a outras situações. (...) Convém, todavia, ter presente que esta homogeneidade é
sempre relativa. É que, como disse Agustín Gordillo, invocando lições de Hospers, 'possivelmente
não há duas coisas no universo que sejam exatamente iguais em todos os aspectos', assim como,
'de igual modo, provavelmente não há duas coisas no universo tão diferentes entre si que não
tenham algumas características comuns de maneira que constituam uma base para ubicá-las
dentro de uma mesma classe'." (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Serviço Público e sua
Feição Constitucional no Brasil, in Direito do Estado: novos rumos, Tomo 2 [Direito Administrativo],
Ed. Max Limonad, São Paulo, p. 14).
24
"Certamente, a arte do jurista consiste em classificar. Não pelo mero prazer do exercício
intelectual, mas para ser útil. Ao fazer classificações, ao distinguir as noções, o jurista tem a
vocação de fazer com que o conhecimento do Direito progrida. Esta tarefa pode ser realizada de
diversas maneiras. São essas 'maneiras' que permitirão determinar o 'valor científico' da noção
elaborada, em suma, o seu interesse" (COLLET, Martin. Le Contrôle Juridictionnel des Actes des
Autorités Administratives Indépendantes, LGDJ, Paris, 2003, pp. 29-30). "A nomenclatura e a
variedade de divisões e subdivisões dos objetos classificados irão, porém, variar de acordo com a
finalidade e o critério a que serve o grupamento. Nesse quadro, as classificações serão mais ou
menos adequadas à explicação de determinado objeto" (ÁVILA, Humberto Bergmann.
Argumentação Jurídica e a Imunidade do Livro Eletrônico, in Temas de interpretação de Direito
tributário [org. Ricardo Lobo Torres], Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2003, p. 114).

7
específicas diversidades, ou apenas uma 'base mínima', um denominador comum que,
25
de qualquer maneira, compreende as diversas figuras".

Como observa MARTIN COLLET, "a verificação da existência de um regime


jurídico peculiar reside no nível de unidade e de especificidade que possui. Uma regra ou
um conjunto de regras só formam regime de uma categoria jurídica se forem a ela
especificamente relacionadas. Quanto à unidade, ela significa apenas que o conjunto de
objetos que formam a categoria devem estar submetidos às regras que formam o seu
regime jurídico: o princípio da igualdade, por exemplo, faz parte do regime jurídico do
serviço público, já que todas as missões de serviço público estão a ele sujeitas.
Naturalmente que unidade de regime não significa identidade de regime. Da mesma
forma que, para fazer parte de uma mesma categoria jurídica, objetos diferentes devem
responder à mesma definição (às características essenciais da classe). Essa categoria
deve ter um regime jurídico cujos traços essenciais sejam compartilhados pelo conjunto
dos seus elementos, que podem possuir traços particulares e secundários. Por exemplo,
JEAN-LOUIS BERGEL indica que 'a qualificação de um ato, de um fato, de um fenômeno
jurídico, consiste em vinculá-lo a uma categoria existente, porque ele tem a natureza
desta e lhe toma emprestado o regime jurídico. A impossibilidade de integrar a categoria
significa que ele tem uma natureza diferente'."26

É a partir desses pressupostos metodológicos que, interpretando as


normas da Constituição de 1988,27 buscaremos conceito os serviços públicos,
classificá-los e diferencia-los das outras modalidades de atividades estatais.

3 – A BUSCA DE UM CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO.

Os serviços públicos constituem conceito que historicamente tende a uma


amplitude bastante dilargada, oriunda da sua matriz francesa, que, via de regra,
equiparava os serviços públicos a toda atividade estatal. Muito disso se deve ao
caráter mítico que os serviços públicos adquiriram ao longo do tempo,28 como se

25
ROSSI, Giampaolo. Metodo Giuridico e Diritto Amministrativo: alla ricerca di concetti giuridici
elementari, mimeo, 2005, com próxima publicação na Revista Servizi Pubblici e Appalti.
26
COLLET, Martin. Le Contrôle Juridictionnel des Actes des Autorités Administratives
Indépendantes, LGDJ, Paris, 2003, p. 31.
27
"As classificações elaboradas pela ciência do Direito, enquanto voltadas à explicação coerente
do ordenamento jurídico, submetem-se a limites deles decorrentes. Com efeito, será a
compatibilidade com o ordenamento jurídico que permitirá avaliar a procedência da classificação"
(ÁVILA, Humberto Bergmann. Argumentação Jurídica e a Imunidade do Livro Eletrônico, in Temas
de interpretação de Direito tributário [org. Ricardo Lobo Torres], Ed. Renovar, Rio de Janeiro,
2003, p. 114). No mesmo sentido, ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do
discurso racional como teoria da justificação jurídica (trad. Zilda Hutchinson Schild Silva), Ed.
Landy, São Paulo, 2001, p 245-246.
28
"O mito não se funda na realidade, ainda que a concepção imaginária possa ter alguma
semelhança com a realidade. Porém, alguns fatos reais são chamados de mitos pela falta de
relação entre o conceito teórico da definição e a dedução real do fato. O mito não é realidade,
nem verdade. A mitologia jurídica é o oposto da realidade jurídica. É por isso que o conceitualismo
sofre quando, ao invés de ser explicado pela necessidade do conceito, se apóia em uma realidade
ausente. O mito é inverossímil, um erro. Mito significa fábula. É coisa fantástica ou semifantástica.
Não é nada se não uma simulação, porque em algum aspecto se parece com os seres reais. É um

8
a exclusão de alguma atividade estatal do seu conceito representasse uma capitis
diminutio, uma desvalorização dessa atividade, lançando-a em um limbo jurídico.

Com base nisso, grande parte dos conceitos existentes na doutrina dos
serviços públicos abrange, com maior ou menor amplitude, atividades estatais
que, se possuem a mesma base axiológica ou teleológica – o bem-estar da
coletividade –, têm regimes jurídicos com pouco ou nada em comum (atividades
indelegáveis/atividades delegáveis à iniciativa privada; financiadas por
impostos/por tarifas e taxas; exploráveis comercialmente/gratuitamente;
exclusivas do Estado/compartilhadas com a iniciativa privada; de uso
obrigatório/facultativo; manifestações do jus imperii estatal ou não; atividades
administrativas, legislativas e jurisdicionais, etc.).

Devemos aqui nos ater à acima citada lição de CHARLES EISENMANN,


segundo a qual, na elaboração dos conceitos, não devemos tomar em conta os
fundamentos das relações jurídicas que estão sendo analisadas, mas sim os seus
próprios conteúdos, ou seja, o seu regime jurídico.29

O fundamento da atividade estatal – o bem comum ou a satisfação das


necessidades dos cidadãos – não deve ter maior importância para fins de
conceituação dos serviços públicos, até porque toda atividade estatal, de qualquer
dos Poderes, possui, de uma maneira ou outra, esse fundamento ou finalidade. O
foco deve ser dado, portanto, no regime jurídico.

É natural que o conceito de serviços públicos abranja atividades com


regimes jurídicos em parte distintos, que, por sua vez, serão agrupadas em
subgrupos que constituirão as suas classificações. Todavia, deve haver algo
quantitativa e qualitativamente comum aos regimes jurídicos dessas diversas
atividades que justifique a colocação de todas elas sob o mesmo conceito geral. 30

Por essas razões, desde já devemos, por total diversidade de regimes


jurídicos, excluir do conceito de serviços públicos as atividades legislativas
(edição de normas gerais e abstratas pelo Poder Legislativo) e jurisdicionais

conceito que deseja ser imagem e uma imagem que deseja ser conceito" (BIELSA, Rafael.
Metodología Jurídica, Librería y Editorial Castellví S.A., Santa Fé – Argentina, 1961, p. 580).
29
EISENMANN, Charles. Cours de Droit Administratif, Tome II, LGDJ, Paris, 1983, p. 800.
30
"Para ser 'lógico', o conceito deve ter uma ou mais divisões, no seio de um conjunto definido de
objetos – de um universo particular. Cada subgrupo deve abranger um certo número de objetos
com uma ou mais características comuns, distintas daquelas que apresentam os objetos deixados
de fora do subgrupo" (COLLET, Martin. Le Contrôle Juridictionnel des Actes des Autorités
Administratives Indépendantes, LGDJ, Paris, 2003, p. 30). Trata-se da noção germânica,
divulgada nos países latinos sobretudo por Martin-Retortillo Baquer, do "supraconceito", ou seja,
um conceito superior formulado a partir de instituições ou figuras jurídicas que apresentam uma
clara homogeneidade em virtude da mesma realidade substancial a que se referem, abrangendo,
portanto, vários conceitos parciais reunidos sob a mesma denominação comum. Naturalmente que
os conceitos primários reunidos no supraconceito não são , nem poderiam ser, idênticos entre si,
pois se assim fossem essa categoria conceitual mais abrangente (o supraconceito) seria
despicienda (cf. RIVA, Ignacio M. de la. Ayudas Públicas: Incidencia de la intervención estatal en
el funcionamiento del mercado, Ed. Hammurabi, Buenos Aires, 2004, p. 114).

9
(composição definitiva de conflitos), voltando-se a pesquisa doravante
exclusivamente às atividades administrativas.31

4 – O CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO


FEDERAL DE 1988.

A Constituição Brasileira de 1988 é uma Constituição compromissória, no


sentido de que busca conciliar os diversos interesses públicos e privados e
ideologias envolvidas em sua elaboração e na sua posterior aplicação. Não
haveria como os serviços públicos escaparem a essa lógica, ainda mais sendo
atividades que se encontram justamente no limiar da esfera pública e da esfera
privada.32

31
O conceito segundo o qual o Direito Administrativo é a parte da ciência jurídica que analisa as
regras e os princípios que regem a Administração Pública, é um conceito que deixa a desejar
porque não esclarece o que deve ser entendido por "Administração Pública", que possui duas
acepções principais: uma subjetiva, outra objetiva. Pela primeira, "Administração Pública" seria o
conjunto de órgãos e entidades estatais ou deles delegados que exercem atividade administrativa.
A acepção objetiva de "Administração Pública", por sua vez, já deseja caracterizar
substancialmente a própria atividade administrativa. É aí onde avultam as dificuldades. Para os
juristas mais apegados à noção oitocentista de separação de poderes, seria "a aplicação da lei de
ofício" (Miguel Seabra Fagundes). Outros juristas afirmam que seria aplicar a lei visando à
satisfação do interesse público, ou ainda, a busca da satisfação do interesse público dentro dos
quadros estabelecidos em lei. Juristas há que não distinguem a atividade administrativa da
jurisdicional. Haveria para eles uma função de estabelecimento de normas gerais e abstratas –
função legislativa –, e outra de aplicação concreta dessas normas, na qual estariam abrangidas as
funções administrativa e jurisdicional. Entendemos, contudo, que a função jurisdicional pode
perfeitamente ser apartada da administrativa pelas seguintes razões: a administração se exerce
de ofício, a jurisdição quando provocada; as decisões da Administração não têm definitividade, as
da jurisdição são cobertas pelo manto da coisa julgada; a administração é a atividade por
substância de busca da satisfação do interesse público, ao passo que a jurisdição tem como
principal foco a aplicação pura e simples da lei, sem perder de vista, naturalmente, o bem comum.
Outros autores, capitaneados por Georg Jellinek (entre nós, por exemplo, Diogo de Figueiredo
Moreira Neto), diante da multifacetariedade das atividades estatais desenvolvidas pelo poder
Executivo, que abrange desde a expedição de ordens concretas de poder de polícia administrativa
e aplicação de sanções, ao fomento, atuação direta na economia, planejamento econômico, etc.
Diante desta diversidade de funções, que em grande parte não podem ser enquadradas como
facilidade no esquema tripartite clássico, engendrou-se, ao nosso ver procedentemente, a
conceituação subsidiária de atividade administrativa, ou seja, desta como sendo toda a atividade
estatal que não fosse legislativa ou jurisdicional. Estes autores esteiam também a sua posição no
fato de que a Administração Pública sempre foi a atividade nuclear do Estado; que as atividades
jurisdicionais e legislativas como manifestações autônomas do poder estatal é uma construção
recente do Estado liberal; e, por fim, que se pode imaginar um Estado sem Legislativo e sem
Judiciário, mas jamais sem Administração Pública.
32
"A definição do que seja, ou não, serviço público pode, entre nós, em caráter determinante,
formular-se somente na Constituição Federal e, quando não explícita, há de ter-se suposta no
texto daquela. A lei ordinária que definir o que seja, ou não, serviço público terá de ser contrastada
com a definição expressa ou suposta pela Constituição" (LIMA, Ruy Cirne. Pareceres [Direito
Público], Livraria Sulina, Porto Alegre, 1963, p. 122).

10
Há atividades, como a militar e a diplomática, cuja integração na esfera
pública foi sempre considerada natural e indene de controvérsias. Por outro lado,
a maioria das atividades econômicas, seja por não possuírem maior relevância
para as necessidades básicas da coletividade (ex., fabricação e comercialização
de sorvetes, de móveis de escritório, etc.), seja porque, mesmo tendo
importância, são supridas satisfatoriamente pelo mercado (ex., alimentos,
medicamentos, vestuário, etc.), integram indubitavelmente a esfera privada, ou
seja, da livre iniciativa, sujeita apenas ao poder de polícia administrativa ou
regulação exógena.33

O mesmo não se dá com os serviços públicos, atividades econômicas lato


sensu, que não têm ínsita em si a integração à esfera pública ou privada, ou seja,
são atividades que, ontologicamente, poderiam pertencer a uma ou outra esfera,
mas que o Constituinte ou o Legislador, em função de uma avaliação do interesse
da coletividade em determinado momento histórico, entendeu que o Estado
deveria, para cumprir as suas funções constitucionais de proteção dos liames
sociais, tomar a atividade como sua.

4.1 – OS DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS PERTINENTES À ATIVIDADE


PRESTACIONAL DO ESTADO.

A Constituição Brasileira de 1988 é uma Constituição de um Estado que


não é absenteísta, no sentido de não ser neutro diante das necessidades de
desenvolvimento econômico e social da coletividade, o que, necessariamente,
pressupõe que seja, diretamente ou através da iniciativa privada, um Estado
garantidor de determinadas prestações necessárias à realização desses
desideratos, radicados, sobretudo, na dignidade da pessoa humana e na redução
das desigualdades sociais e regionais (artigos 1º. e 3º., CF).

O princípio da dignidade da pessoa humana “impõe limites à atuação estatal,


objetivando impedir que o poder público venha a violar a dignidade pessoal, mas também
implica (numa perspectiva que se poderia designar de programática ou impositiva, mas
nem por isso destituída de plena eficácia) que o Estado deverá ter como meta
permanente a proteção, promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para
todos.”34

33
"O que justifica a regulação da public utility é a necessidade de sua regulação, não apenas a
necessidade do produto" (BONRIGHT, James. Principles of Public Utilities Rates, Columbia
University Press, 1961, p. 89). Parafraseando ao nosso sistema jurídico a frase do autor norte-
americano, podemos afirmar: o que justifica a instituição de um serviço público é a necessidade de
maior intervenção do Estado, não apenas a necessidade do produto.
34
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988, 3º. ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2004, p. 110.

11
Nessa senda, a Constituição dispõe em seu artigo 6o que "são direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".35

Colocado o quadro sobrejacente às largas obrigações do Estado Brasileiro


com o bem-estar da coletividade, o conceito de serviço público no Direito Positivo
Brasileiro não pode prescindir de uma análise específica de cada uma das
previsões constitucionais de prestação de serviços pelo Estado.

No art. 9º., § 1º. a Constituição se refere a serviços “essenciais” (mas não


"públicos") prestados pela iniciativa privada, em relação aos quais há restrições
ao exercício do direito de greve por parte dos trabalhadores.36

No art. 21, integrante do Capítulo que enumera os bens e as competências


legislativas e materiais da União, são previstas como sendo de sua competência
uma série de atividades econômicas prestacionais, cabendo-lhe prestar o serviço
postal e o correio aéreo nacional (inciso X); explorar, diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações (inciso
XI); explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os
serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens (inciso XII, 'a'), os serviços
e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de
água (inciso XII, 'b'), a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura
aeroportuária (inciso XII, 'c'); os serviços de transporte ferroviário e aquaviário
entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de
Estado ou Território (inciso XII, 'd'); os serviços de transporte rodoviário
interestadual e internacional de passageiros (inciso XII, 'e'); os portos marítimos,
fluviais e lacustres (inciso XII, 'f'); explorar os serviços e instalações nucleares de
qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o
enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios
nucleares e seus derivados (inciso XXIII).37

35
Especificamente quanto à criança e ao adolescente, o art. 227 também dispõe: "É dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
36
Art. 9º. É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a
oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. § 1º. - A lei
definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades
inadiáveis da comunidade. § 2º. - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.
37
A maioria dessas atividades são consideradas com relativa tranqüilidade como serviços
públicos. Mas há algumas em que essa qualificação é controversa, como a concernente à
exploração dos minérios nucleares, geralmente considerada como monopólio da União de
atividade econômica stricto sensu, e os correios, considerados por LUÍS ROBERTO BARROSO
como atividade econômica stricto sensu não monopolizada pela União, em outras palavras, para
esse autor a União deve manter um serviço de correio, mas sem exclusividade (BARROSO, Luís
Roberto. “Regime Constitucional do Serviço Postal. Legitimidade da Atuação da Iniciativa Privada”,
in Revista de Direito Administrativo – RDA, 2000, vol. 222).

12
Note-se que esses incisos do art. 21, apesar de preverem uma série de
atividades da competência da União, em nenhum momento se referem a elas
como "serviço público", mas apenas a "serviço". Nessa passagem a única alusão
genérica a "serviços públicos" se dá ao determinar caber à união "prestar
assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos"
(inciso XIV), naturalmente entendidos em sentido lato, como todas as atividades
desse Ente.

Ainda no art. 21, demonstrando a hibridez das matérias nele arroladas, há


a previsão do exercício do poder de polícia em determinadas matérias (p. ex.,
"executar a inspeção do trabalho" – inciso XXIV), de competências legislativas (p.
ex., "instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano" – inciso XX), de serviços
uti universi (p. ex., "manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e
cartografia de âmbito nacional" – inciso XV) e algumas outras atividades de
provimento de necessidades da coletividade, ainda que não necessariamente
tenham a natureza de um "serviço" (p. ex., "promover a defesa permanente contra
as calamidades públicas" – inciso XVIII).

No art. 22, V, a Constituição dispõe incumbir privativamente à União


legislar sobre "serviços postais"; no art. 24, IV, prevê a competência concorrente
para legislar sobre "custas dos serviços forenses".

Ainda no Título concernente à Organização do Estado e divisão de


competências entre os Entes Federados, ficou estabelecido caber aos Estados-
membros explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás
canalizado (art. 25, § 2º.).

A Constituição se refere também aos serviços internos, de apoio


burocrático, das assembléias legislativas (art. 27, § 3º.), da Câmara dos
Deputados (art. 51, IV), do Senado Federal (art. 52, XIII), do Congresso Nacional
(art. 57, § 3º., II), dos Tribunais (art. 96, I, 'b') e do Ministério Público (art. 127, §
2º.).

O art. 30 dispõe ser da competência dos Municípios "organizar e prestar,


diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de
interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial" (inciso
V), assim como o "atendimento à saúde da população" (inciso VII).

O art. 23 é o principal dispositivo que prevê as competências materiais, ou


seja, de exercício de atividades, comuns a todos os Entes Federados, ou seja,
que podem ser exercidas por todos eles, podendo ser divididas em três grupos
básicos: atividades de fomento (ex., "fomentar a produção agropecuária" – inciso
VIII); atividades cujos benefícios se refletem indistintamente em toda a
coletividade, de maneira inespecífica e indivisível (ex., "proteger os documentos,
as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos" – inciso III), e atividades
específicas e divisíveis, cujo benefício pode ser individualmente identificado e
quantificado (ex., "promover programas de construção de moradias" – inciso IX).

13
Há na Constituição também uma série de referências a "serviços públicos
de saúde" (arts. 34, VII, 'e'; 35, III; 167, IV; 198).

Quanto aos serviços de educação, dispõe o art. 205 serem "direito de todos
e dever do Estado e da família". Em relação ao Estado, os seus deveres são
especificados no art. 208,38 o que não impede que a educação também possa ser
prestada pela iniciativa privada por direito próprio, não por delegação estatal (art.
209).

A Constituição estabelece também em normas programáticas obrigações


do Estado em relação ao desenvolvimento urbano (art. 182), à cultura (art. 215),
ao desporto e ao lazer (art. 217), à ciência e à tecnologia (art. 218), ao meio
ambiente (art. 225), à proteção da família (art. 226) e à proteção dos índios (art.
231).

Todas essas atividades forem consideradas essenciais pelo Constituinte,


devendo, observada a reserva do possível e a alocação orçamentária de
recursos, ser necessariamente desenvolvidas pelo Estado. Porém, da mesma
forma que a educação, apesar dessa essencialidade e imprescindibilidade da
prestação estatal, não estão excluídas da iniciativa privada, que também as pode
prestar independentemente de qualquer delegação e, muitas vezes, até mesmo
de autorização administrativa (ex., para ajudar famílias carentes ou apoiar
manifestações culturais não é necessário o consentimento da Administração). Ao
revés, quanto mais agentes estatais, privados e comunitários exercerem essas
atividades, mais se atenderá aos objetivos constitucionais. Em alguns
dispositivos, essa circunstância chega a ser expressamente afirmada pelo
Constituinte, ao se referir à atividade como sendo um dever do Estado e da
sociedade.39

Seriam essas atividades, prestadas tanto por particulares como pelo


Estado, sempre serviços públicos? Apenas o seriam quando prestadas pelo
Estado? Ou, diversamente, como não são exclusivas do Estado, não podem ser
qualificadas como serviços públicos, ainda quando prestadas pelo Estado?

38
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - ensino
fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a
ele não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;
III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na
rede regular de ensino; IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos
de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística,
segundo a capacidade de cada um; VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições
do educando; VII - atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas
suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. § 1º. -
O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º. - O não-oferecimento do
ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da
autoridade competente. § 3º. - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino
fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à
escola.
39
Ex.: Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

14
No Capítulo da Administração Pública, a Constituição se refere a "serviço
público" no singular, como sinônimo, ou do próprio Estado, ou de todas as
atividades estatais, inclusive legislativas e jurisdicionais.40 O art. 37, XIII, por
exemplo, veda vinculações "para o efeito de remuneração de pessoal do serviço
público"; o art. 38, IV, disciplina a contagem do "tempo de serviço" para servidores
que ocuparem cargos eletivos; o art. 39, § 7º., dispõe que a lei determinará os
instrumentos de "desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade,
treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização
do serviço público"; os dispositivos referentes à aposentadoria de servidores
públicos se referem a "efetivo exercício no serviço público" para contagem de
prazo (ex., arts. 40, § 1º., III, e art. 142, § 3º., III); aproveitamento "no serviço
público" (art. 53, I, ADCT).41

No art. 37, § 1º., o Constituinte faz alusão a "serviços dos órgãos públicos"
juntamente com atos, programas, obras, serviços e campanhas, para neles proibir
a publicidade que caracterize promoção pessoal de agentes públicos. O objetivo
do dispositivo é deixar claro que nenhuma atividade da Administração Pública
pode ser usada para promoção pessoal.

O art. 37, § 3º., dispõe que a lei disciplinará "as reclamações relativas à
prestação dos "serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de
serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da
qualidade dos serviços". Note-se que, ao se referir aos "serviços públicos em
geral", dá a entender que a nossa Constituição contemplaria duas acepções para
o termo, uma geral, lato senso, e uma mais específica, mais técnica, stricto sensu.

O § 6º. do art. 37 é o importante preceito da responsabilidade civil objetiva


das pessoas jurídicas de Direito Público e das pessoas jurídicas de direito privado
prestadoras de "serviços públicos". O preceito denota a importância da
qualificação ou não de determinada atividade como "serviço público", já que lhe
estabelece um regime específico de responsabilidade civil.

O dispositivo abrangeria o serviço público em sentido lato, incluindo


empresas terceirizadas de serviços administrativos internos da Administração
Pública, ou apenas as que fossem delegatárias de serviços públicos prestados
aos usuários? A última resposta parece impositiva, já que "a terceirização

40
"A expressão 'serviço público' às vezes vem empregada em sentido muito amplo, para
abranger toda e qualquer atividade realizada pela Administração Pública, desde uma carimbada
num requerimento até o transporte coletivo. Quando se fala 'ingresso no serviço público', é
atribuído sentido amplo ao termo. Se esta fosse a acepção adequada, todo o Direito Administrativo
conteria um único capítulo, denominado 'serviço público', pois todas as atividades da
Administração aí se incluiriam. No sentido amplo da expressão 'serviço público' são englobadas
também as atividades do Poder Judiciário e do Poder Legislativo, quando se menciona o seguinte:
O Judiciário presta um serviço público relevante; o Legislativo realiza um serviço público. Evidente
que aí a expressão não se reveste de sentido técnico, nem tais atividades sujeitam-se aos
preceitos norteadores da atividade tecnicamente caracterizada como serviço público" (MEDAUAR,
Odete. Direito Administrativo Moderno, 7ª. ed., Ed. RT, 2003, p. 336).
41 Muitas vezes, e não só em matéria de servidores públicos, a legislação infraconstitucional
também usa essa acepção de "serviço público". Veja-se, por exemplo, o art. 5º., 'h', do Decreto-lei
nº. 3365/41, que prevê "a exploração e manutenção dos serviços públicos" como uma dos casos
de utilidade pública para fins de desapropriação.

15
compreende apenas a execução material de uma determinada tarefa, em nome e
sob a responsabilidade do Poder Público".42 Nesses casos, portanto, é o Estado
que continua a prestar o serviço, fazendo-o apenas através de empresa
terceirizada.

Seguindo com a análise em ordem numérica dos dispositivos


constitucionais, nos deparamos com o art. 54, I, 'a', da Constituição Federal,
dispondo que os Deputados e Senadores não poderão ter contrato "com pessoa
jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou
empresa concessionária de serviço público".

O art. 61, § 1º., II, 'b', dispõe competir privativamente ao Presidente da


República a propositura das leis que disponham sobre os "serviços públicos" dos
territórios.

O art. 109, IV, confere a Justiça Federal a atribuição de julgar os crimes


praticados contra "serviços ou interesses da União ou de suas entidades
autárquicas ou empresas públicas"; e o art. 144, § 1º., I, dispõe que à Polícia
Federal compete apurar as infrações penais praticadas "em detrimento de bens,
serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas
públicas." Já os Municípios poderão instituir guardas municipais para proteção
dos seus "serviços" (art. 144, § 8º.).

O art. 129, II, dá ao Ministério Público o encargo de "zelar pelo efetivo


respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados nesta Constituição".

Tais "serviços de relevância pública", ou seja, relevantes para a satisfação


de direitos constitucionais, equivalem à figura do "serviço público", ou são mais
amplos? A última alternativa é a que nos parece correta, uma vez que o âmbito de
proteção do Ministério Público alcança também a iniciativa privada, mormente
quando exerce atividades que, apesar de eminentemente privadas, afetam com
intensidade os interesses fundamentais da população (ex., fornecimento de
medicamentos, de alimentos, serviços particulares de saúde e de educação, etc.).

É com essa acepção que no art. 197 as ações e serviços de saúde são
considerados de "relevância pública" independentemente de serem prestadas
pelo Estado ou pela iniciativa privada, o que pressupõe a incidência de uma
regulação estatal mais intensa do que seria admissível nas atividades privadas
em geral. Por exemplo, é admissível que as empresas privadas de saúde adotem
ações de prevenção e combate a epidemias.43

42
RODYCZ, Wilson Carlos. “A Responsabilidade Civil das Empresas Privadas por Danos
Causados na Prestação de Serviços Públicos Delegados”, in Revista de Direito do Consumidor,
vol. 12, nº. 45, 2003, p. 208.
43
WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira, Ed. Lumen Juris,
Rio de Janeiro, pp. 130-133.

16
O art. 136, § 1º., II, admite no Estado de Defesa "a ocupação e uso
temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo
a União pelos danos e custos decorrentes." Já o art. 139, VI, permite no Estado de
Sítio a "intervenção nas empresas de serviços públicos".

O art. 145, II, de grande importância para os nossos objetivos conceituais,


prevê, como uma das espécies de tributos, as "taxas, em razão do exercício do poder
de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e
divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição". O dispositivo coloca
os serviços públicos divisíveis (uti singuli) como uma das espécies de serviços
públicos e os distingue do poder de polícia.

O Art. 149-A dispõe que "os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir
contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação
pública", que, naturalmente, constitui um serviço uti universi.

O art. 150, VI, 'a', veda aos Entes da Federação instituir impostos sobre o
"patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros", assim como das "autarquias e
fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à
renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes"
(§ 2º.). São excetuados da imunidade tributária os "serviços, relacionados com
exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a
empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou
tarifas pelo usuário" (§ 3º.).

Este parágrafo claramente pressupõe que (a) os serviços remunerados são


espécies de serviços prestados pelo Estado, e (b) que o Estado também presta,
sob regime jurídico de direito privado, serviços que constituem atividades
econômicas stricto sensu, não serviços públicos.

O art. 194, parágrafo único, II, determina a isonomia, a seletividade e a


distributividade dos benefícios e serviços da seguridade social, que "compreende
um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade,
destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social".

O art. 227, § 1º., II, se refere a "bens e serviços coletivos" para determinar
que o Poder Público assegure aos portadores de deficiência física o acesso a
eles.

O art. 246 dispõe que "a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre
os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a
transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à
continuidade dos serviços transferidos," dispositivo que veio a ser regulamentado
pela Lei nº 11.107/05

De enorme importância são os dispositivos constantes do Capítulo dos


princípios da ordem econômica (arts. 170 a 181), que deixam bastante exposto o
liame dos serviços públicos com o Direito Constitucional Econômico, de maneira

17
que os serviços públicos podem, na dicção desse Capítulo constitucional, ser
considerados uma espécie de atividade econômica.44

É do Capítulo dos princípios da ordem econômica que consta o único


dispositivo da Constituição que disciplina os serviços públicos de forma genérica.
Trata-se do art. 175, que dispõe que a sua prestação "incumbe ao Poder Público
(...), diretamente ou sob regime de concessão ou permissão",45 o que pressupõe uma
idéia de serviço público como atividade específica, divisível e remunerável por
cada indivíduo que dela usufruir. Não se falaria de delegação à iniciativa privada
se ela não pudesse cobrar tarifas dos usuários.46 Também pressupõe a
titularidade do Estado sobre tais atividades, pois do contrário a iniciativa privada
não precisaria de um contrato de concessão ou de permissão para prestá-las.

De extrema relevância é também o caput do art. 173, por força do qual a


exploração de atividades econômicas pelo Estado deve ser excepcional,
subsidiária, admitida apenas em razão da segurança nacional ou de relevante
interesse coletivo, vedado o monopólio, salvo nas hipóteses já previstas na CF.47
Quando isso ocorrer, ou seja, nos casos em que a Administração Pública, direta
ou indireta, exercer "atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou
de prestação de serviços", deve se submeter ao mesmo regime jurídico das
empresas privadas, que continuam livres para desempenhá-las sem precisar de
qualquer delegação do Poder Público (§ 1º.). Inclui, portanto, a prestação de
serviços pela Administração Pública como uma das possíveis espécies de
atividades econômicas por ela explorada.

44
Quanto à caracterização dos serviços públicos com atividades econômicas lato sensu, ver o
Tópico 4.2.6. infra.
45
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão
ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei
disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos,
o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade,
fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II - os direitos dos usuários; III - política
tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado. As figuras da concessão e da permissão
também são referidas no art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão,
permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Estas
concessões são, no entanto, bastante atípicas face à forte ingerência do Legislativo e do Judiciário
em sua concessão e extinção, respectivamente, conforme dispõem os parágrafos do artigo. Outra
espécie atípica de atividade são os serviços de cartório, que, objeto do art. 236 Os serviços
notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. O
dispositivo prevê um serviço do Estado que, no entanto, deve necessariamente ser delegado à
iniciativa privada.
46
O art. 202, § 5º., também se refere às "empresas privadas permissionárias ou concessionárias
de prestação de serviços públicos" para sujeitá-las a um regime especial "quando patrocinadoras
de entidades fechadas de previdência privada." Em seu sentido literal, pressupõe que haja
permissionárias ou concessionárias de prestação de serviços públicos que não sejam privadas.
47
"A empresa pública sempre terá privilégios em sua atuação, nem que seja no seu financiamento
com capital público, cujo acionista é menos exigente em relação a dividendos. Por isso, a
competência leal entre a empresa pública e a privada é quase impossível, o que torna necessário
o princípio da subsidiariedade da empresa pública, a fim de que a liberdade de empresa em uma
economia de mercado seja efetiva" (ORTIZ, Gaspar Ariño. Principios de Derecho Público
Económico, Ed. Comares e Fundación de Estudios de Regulación, Granada, 1999, p. 221).

18
Fica a indagação se essas atividades econômicas exploradas pelo Estado
em concorrência com a iniciativa privada, consistentes na prestação de serviços,
são serviços públicos48 ou atividades econômicas stricto sensu. Pela própria
menção à atuação do Estado em condições de igualdade com a iniciativa privada,
denota-se não se tratar de serviço público, que, com a exceção dos serviços
públicos sociais – o que não é o caso –, exclui a livre iniciativa, nos termos do art.
175.

De grande importância também são os arts. 176 e 177, que estabelecem o


monopólio da União sobre determinados bens e atividades. As jazidas são
propriedade distinta da do solo por força do art. 176, caput, do texto maior. O solo,
por força do Código Civil, compreende espaço aéreo e subsolo correspondentes.
Entretanto, a Constituição preceitua que, havendo solo e subsolo com jazida, está
é objeto de direito distinto do objeto de direito denominado solo.

É relevante a comparação que deve ser feita entre o art. 177, que prevê
atividades econômicas que só podem ser prestadas pela União ou por seus
delegatários (ex., produção e refino do petróleo), e o art. 175, que também
estabelece que determinadas atividades, que ele chama de serviços públicos, só
podem ser prestadas pelo Estado ou por seus delegatários, ainda mais quando se
considera que ambos os artigos integram o Capítulo da disciplina constitucional
das atividades econômicas. Sendo assim, é possível indagar se os serviços
públicos poderiam ser caracterizados como as atividades econômicas lato sensu
monopolizadas pelo Estado delegáveis à iniciativa privada mediante a cobrança
de tarifas.

Da exposição descritiva dos dispositivos constitucionais relacionados com


a temática dos serviços públicos, podemos concluir que a República Federativa
do Brasil é, por excelência, um Estado prestacional, com uma série de obrigações
com a sua população. A questão é saber se todas essas obrigações jurídicas
devem ter a sua execução material considerada como prestação de serviço
público, ou se apenas uma parte delas deve sê-lo.

48
Neste sentido, em posição minoritária, sustentando ser o art. 173, caput, o fundamento para o
Estado, além de poder explorar atividades econômicas stricto sensu em concorrência com a
iniciativa privada, poder também criar novos serviços públicos além dos já previstos na
Constituição, ver DERANI, Cristiane. Privatização e Serviços Públicos: as Ações do Estado na
Produção Econômica, Ed. Max Limonad, São Paulo, 2002, p. 197. O Min. Maurício Corrêa
também já fez essa associação entre o art. 173 e os serviços públicos (no caso dos correios) no
seu voto no Recurso Extraordinário nº. 220.906-9-DF. A associação é, ao nosso ver,
improcedente, já que o art. 173 se refere apenas a atividades econômicas stricto sensu, o que é
claramente demonstrado pelo mandamento constante desse artigo de que a exploração pelo
Estado não exclui a concorrência em igualdade de condições com iniciativa privada.

19
4.2 – OS SENTIDOS DE "SERVIÇO PÚBLICO" EXTRAÍVEIS DA CONSTITUIÇÃO.

A Constituição Brasileira de 1988, apesar de, ao contrário da maioria dos


Países em que foram construídas as teorias sobre os serviços públicos, possuir
várias regras específicas sobre eles,49 não chega a ser precisa na utilização da
nomenclatura, ora se referindo a serviços públicos em sentido apenas econômico,
como atividades da titularidade do Estado que podem dar lucro (ex., arts. 145, II,
e 175), ora como sinônimo de Administração Pública (ex., art. 37), ora para tratar
do serviço de saúde prestado pelo Estado (ex., art. 198). Outras vezes se refere
apenas a "serviços" (ex., art. 21) e a "serviços de relevância pública" (ex., arts.
121 e 197).

Assim, a Constituição Brasileira de 1988 poderia, em tese, contemplar as


seguintes concepções doutrinárias de serviços públicos, de acordo com a sua
maior ou menor abrangência:

4.2.1 – CONCEPÇÃO AMPLÍSSIMA DE SERVIÇO PÚBLICO (E OS "PRINCÍPIOS DOS


SERVIÇOS PÚBLICOS").

Advém da escola clássica do serviço público de LÉON DUGUIT,


equivalendo o serviço público a todas as atividades exercidas pelo Estado, ou,
quando menos, a um sinônimo da própria Administração Pública (critério orgânico
ou subjetivo), sejam elas externas ou internas, inerentes ou não à soberania,
econômicas/potencialmente lucrativas ou não, prestacionais, de polícia
administrativa ou de fomento.50

Essa concepção possui, inspirada em outro discípulo da escola do serviço


público, GASTON JÈZE, uma versão levemente mais restritiva, no sentido de que
serviços públicos seriam todas as atividades exercidas pelo Estado em regime
jurídico de Direito Público por uma decisão política dos órgãos de direção do
Estado (critério formal).51

49
"Na França, e em países que sofreram a influência do conceito francês de serviços públicos,
como a Itália, Grécia e Portugal, inexiste um conceito constitucional de serviços públicos, embora
haja alusões a serviços públicos nas respectivas constituições. A noção, nesses países, foi muito
mais trabalhada pela jurisprudência e pela doutrina, as quais, assim como a legislação, não têm
os pesados condicionamentos constitucionais existentes no Brasil" (COUTO E SILVA, Almiro do.
“Privatização no Brasil e o novo Exercício de Funções públicas por Particulares. Serviço Público à
Brasileira?”, in Revista de Direito Administrativo – RDA. Ed. Renovar, vol. 230, 2002, pp. 72-73).
50
Com essa concepção amplíssima, ver, por exemplo, MEIRELLES, Hely Lopes. Direito
Administrativo Brasileiro, 23ª. ed., Ed. Malheiros, 1998, pp. 284 e seguintes. Em sentido similar,
COMADIRA, Julio Rodolfo. “El Servicio Público como Título Jurídico Exorbitante”, in Revista de
Direito Administrativo e Constitucional – A & C, vol. 19, 2004, p. 84 e seguintes.
51
"Na sua mais antiga formulação, para a caracterização do serviço público fazia-se mister a
reunião de três elementos essenciais: a) serviço de interesse geral ou de utilidade pública (critério
funcional ou objetivo); b) prestado pelo Estado direta ou indiretamente, por delegatários privados
(critério subjetivo ou orgânico); e c) sob regime jurídico especial, de Direito Público. Os dois
últimos elementos há muito já se modificaram. Pessoas jurídicas de Direito Privado também
prestam serviço público, mas seria sempre necessária a existência de um vínculo orgânico com o

20
BENJAMIN VILLEGAS BASAVILBASO52 explica esse critério: "A verificação
dessa decisão política não pode, por sua própria natureza, ficar subordinada a um critério
estático; resultará, outrossim, de um conjunto de circunstâncias, sendo cada uma delas
isoladamente insuficiente, sendo para esse efeito muito relevante o papel interpretativo
dos tribunais. Entre essas circunstâncias pode ter influência na determinação do serviço
público: o estabelecimento de obrigações especiais para assegurar o funcionamento do
serviço; o monopólio na sua exploração; o ato legislativo ou legislativo que os cria; o
regime jurídico especial a que se encontra sujeito. (...) A análise dessa posição
doutrinária leva à dedução dos seguintes princípios fundamentais: a) a organização e o
funcionamento do serviço público podem ser modificadas a qualquer momento; b) só
podem ser considerados serviços públicos os serviços realizados pelo Estado ou por
seus concessionários; e c) a existência, em tese, de dois procedimentos para a
satisfação dos interesses coletivos, um atuando de acordo com o Direito Privado e outro
de acordo com o Direito Público. (...) Na realidade, diz JÈZE, 'atualmente quase todas as
concessões de serviço público se relacionam com os serviços econômicos, que por isso
são chamados de serviços industriais. Mas nenhum obstáculo jurídico há para que a
concessão de serviço público seja empregada para outros serviços públicos: polícia,
justiça, cobrança de impostos'. Esta opinião permite, sem dúvida, apreciar os dilatados
limites que o eminente mestre atribui à noção do serviço público e que levou MÁRIO
MASAGÃO a tecer as seguintes considerações: 'Assusta, todavia, que, não um
economista, mas um jurista da responsabilidade de JÈZE, emita tal opinião, insustentável
diante dos princípios elementares do Direito Público'."

Nessa passagem, uma observação deve ser feita: é muito comum na


doutrina dizer-se que os serviços públicos se caracterizam pelo regime jurídico
especial de Direito Público, mas poucos chegam a realmente dizer o que isso
significa. O máximo a que a doutrina parece ter chegado é, como faz JÈZE, a
enunciação de indícios, ou à necessidade de atendimento de alguns princípios,
como a universalidade, continuidade, etc., princípios também, por si próprios,
bastante fluidos e também aplicáveis, ainda que parcialmente, a atividades
privadas (ex., os planos de saúde não podem ser interrompidos abruptamente),
mormente em razão da publicização dos contratos privados;53 da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, que também incidem sobre as relações
privadas, podendo até chegar a impor a celebração de contratos interprivados (p.
ex., quando a empresa é a monopolista de fato no mercado, quando a empresa
discrimina seus clientes por critérios ilegítimos, etc.);54 e das imposições de ordem
pública da legislação consumerista.55

Estado. No tocante ao regime jurídico, ele não é só o de Direito Público, a que se subordinam os
serviços públicos de natureza administrativa. Quase sempre a prestação dos serviços públicos
industriais e comerciais se realiza sob regime misto”. (COUTO E SILVA, Almiro do. “Privatização
no Brasil e o novo Exercício de Funções públicas por Particulares”. Serviço Público à Brasileira?,
in Revista de Direito Administrativo – RDA. Ed. Renovar, vol. 230, 2002, p. 47, excursos nossos).
52
BASAVILBASO, Benjamin Villegas. Derecho Administrativo, Tomo III, Primeira Parte,
Tipografica Editora Argentina, Buenos Aires, 1951, pp. 14-17.
53
GOMES, Orlando. Decadência do Voluntarismo Jurídico e Novas Figuras Jurídicas, in
Transformações Gerais do Direito das Obrigações, 2ª. ed., Ed. RT, São Paulo, 1980.
54
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Ed. Lumen Juris, Rio de
Janeiro, 2004.
55
A função social da empresa, expressão da função social da propriedade, contemplada no Novo
Código Civil e na Ordem Econômica Constitucional, "traz consigo a idéia do estabelecimento de
comportamentos empresariais, positivos e negativos, instrumentalizando a utilização do capital a
favor da pessoa humana. Não foi por outro motivo que a Constituição de 1988 tratou da atividade

21
Além de haver casos em que esses princípios (universalidade,
continuidade, igualdade...) podem ser aplicados a atividades privadas, a sua
aplicação na Administração Pública é comum a todas as atividades estatais e
administrativas, e não apenas aos serviços públicos, pelo menos em um conceito
que não seja tão amplo deles. Portanto, a colocação desses princípios como os
princípios peculiares reitores dos serviços públicos só faz sentido se
equipararmos os serviços públicos a todas as atividades estatais.

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, por exemplo, após enumerar os


princípios que para ele caracterizariam o "regime especial" dos serviços públicos
(supremacia do interesse público, universalidade, continuidade, impessoalidade,
motivação, modicidade das tarifas, etc.), acaba reconhecendo que "este
arrolamento, obviamente não representa senão o realce dado a alguns princípios dentre
os que compõem o regime jurídico administrativo, tendo em vista a sua ressonância
evidente nos serviços públicos, ou por constituírem especificações deles perante tal
56
temática". Em outras palavras, os tais princípios dos serviços públicos são, na
verdade, os princípios da Administração Pública.57

Chega-se à mesma conclusão com as indagações formuladas por


RODOLFO CARLOS BARRA: "Se pensarmos nas características de 'universalidade',
'regularidade', 'igualdade' e 'continuidade', a que outro instituto do Direito Administrativo
elas também não teriam que ser atribuídas? Pode por acaso a Administração atuar com
discriminações arbitrárias, e de maneira que não seja sustentada por um critério de
universalidade para o interesse público...? Naturalmente que haverá matizes de caso
para caso, mas a realidade substancial é idêntica. Se formos definir o serviço público por
58
esses princípios, todo o Direito Administrativo será serviço público".

econômica, submetendo a ordem econômica à valorização do trabalho humano, à função social da


propriedade, redução das desigualdades sociais e regionais e livre iniciativa e tendendo à
afirmação da dignidade da pessoa humana, conforme orientação do art. 170" (FARIAS, Cristiano
Chaves de. Direito Civil – Teoria Geral, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005, p. 247).
Ressalvamos, apenas, que os valores da ordem econômica devem ser ponderados, não havendo
preponderância de uns em relação a outros a priori, e que muitas vezes será a priorização da livre
iniciativa que mais fará com que a empresa cumpra a sua função social.
56
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Serviço Público e sua Feição Constitucional no Brasil, in
Direito do Estado: novos rumos, Tomo 2 (Direito Administrativo), Ed. Max Limonad, São Paulo, p.
29.
57
Não estamos a afirmar, obviamente, que esses princípios não são aplicáveis aos serviços
públicos. Eles lhes são aplicáveis, assim como o são a todas as espécies de atividade
administrativa, o que lhes retira, contudo, a capacidade de constituir um regime jurídico
especial de apenas uma delas (a atividade militar e os serviços burocráticos internos não podem
ser descontinuados; o fornecimento de mercadorias por uma estatal exploradora de atividade
econômica stricto sensu não pode ser discriminatório; se o Estado vem a atuar por razões de
segurança nacional, nos termos do art. 173, como agente econômico em concorrência com a
iniciativa privada, a atividade não pode sofrer solução de continuidade; as taxas pelo exercício do
poder de polícia e da jurisdição não podem impedir o acesso à atividade estatal por serem caras
demais; etc.)
58
BARRA, Rodolfo Carlos. Los Principios Generales de la Intervención Pública: la regulación, la
policía, el fomento y el servicio público, in Servicio Público, Policia y Fomento (Jornadas
organizadas por la Facultad de Derecho de la Universidad Austral), Ed. RAP, Buenos Aires, 2003,
p. 53, grifamos.

22
Assim, entendemos que o único ponto mais relevante do que se poderia
chamar de um regime jurídico identificador dos serviços públicos é, com a
exceção dos serviços públicos sociais em razão de expressa referência
constitucional, a impossibilidade de a iniciativa privada prestá-los por direito
próprio, sendo admitida apenas como delegatária do Poder Público, como
veremos mais adiante.

4.2.2 – CONCEPÇÃO AMPLA DE SERVIÇO PÚBLICO.

Uma segunda concepção corresponderia os serviços públicos às atividades


prestacionais em geral do Estado, ou seja, às funções que exerce para
proporcionar diretamente aos indivíduos comodidades e utilidades,
independentemente de poderem deles ser cobradas individualmente ou não, ou
de serem de titularidade do Estado. Assim, abrangeriam os chamados serviços
públicos econômicos (remuneráveis por taxa ou tarifa), os serviços sociais (que
podem ser prestados livremente – sem delegação – pela iniciativa privada) e os
serviços uti universi (inespecíficos e indivisíveis, sem beneficiários identificáveis
com exatidão).

Ficariam de fora do conceito apenas a polícia administrativa, que, ao invés


de prestar utilidades aos indivíduos, lhes restringe a esfera de liberdade; e o
fomento, que apenas visa a incentivar a sociedade e o mercado a, eles próprios,
atuarem no sentido da realização do interesse público.

4.2.3 – CONCEPÇÃO RESTRITA DE SERVIÇO PÚBLICO.

Essa concepção de serviço público abrangeria apenas as atividades


prestacionais que tivessem um liame imediato com os indivíduos, podendo os
seus beneficiários ser identificados e a sua fruição quantificada.

A diferença em relação à concepção anterior é que ficariam excluídos os


serviços uti universi, insuscetíveis de serem remunerados pelos seus beneficiários
diretos. O Conceito conteria então os serviços públicos econômicos e sociais, que
constituiriam a sua classificação básica.59

4.2.4 – CONCEPÇÃO RESTRITÍSSIMA DE SERVIÇO PÚBLICO.

Decorrente dos arts. 145, II, e 175 da Constituição, que prevêem a


remuneração específica dos serviços públicos por taxa ou tarifa, respectivamente,
essa concepção contemplaria apenas os serviços que pudessem ser financiados
dessa forma (os serviços específicos e divisíveis, em que é possível a
59
Em outros momentos desse trabalho trataremos com mais vagar da distinção entre essas
categorias de atividades prestacionais do Estado.

23
identificação de quem usufruiu o serviço e em que proporção), devendo ainda,
nos termos do art. 175, ser de titularidade exclusiva do Estado, exploráveis pela
iniciativa privada apenas mediante concessão ou permissão.60

Por esse conceito, estariam excluídos, além dos serviços uti universi, os
serviços sociais, que não são titularizados pelo Estado com exclusividade,
constituindo também atividades abertas à iniciativa privada (ex., saúde e
educação).

4.2.5 – A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF.

A jurisprudência do STF61 não possui uma sistematização bem elaborada


do conceito de serviço público, havendo apenas menções esparsas ao conceito
ao longo de alguns votos, que variam de acordo com a situação concreta
apreciada.

É comum a referência aos serviços públicos como sendo apenas aqueles


reservados ao Estado, o que é natural, uma vez que até mesmo a doutrina, na
qual se pressupõe uma maior preocupação sistematizadora, muitas vezes se
refere apenas a essa espécie de serviço público, ainda que não a considere a
única, por ser a mais peculiar.

No Recurso Extraordinário nº. 220.906-9-DF houve um interessante debate


travado entre os Ministros MARCO AURÉLIO, MOREIRA ALVES, SEPÚLVEDA
PERTENCE e ILMAR GALVÃO sobre se o arrolamento de um serviço no art. 21
da Constituição (no caso, o serviço dos correios) como sendo de competência da
União, representava ou não o monopólio da atividade por ela.

A discussão começou quando o Ministro MARCO AURÉLIO indagou:


"Ministro Moreira Alves, não lhe parece que, no caso, não se trata de monopólio? A
atuação não está no rol constitucional das atividades em que há monopólio. O que consta
da Constituição é que a União é compelida a manter o serviço, coisa diversa. (...) São
coisa distintas: a obrigação da União manter o serviço e monopólio".

O Ministro MOREIRA ALVES redargüiu afirmando: "Trata-se de monopólio.


Não se pode interpretar de outra forma. Se ela tem que manter o serviço postal, ninguém
pode mantê-lo".

60
Para essa posição, os serviços públicos poderiam ser conceituados como "a atividade
administrativa desenvolvida pelo Estado direta ou indiretamente, que tem por finalidade satisfazer
necessidades individuais de relevância coletiva, mediante prestações periódicas e sistemáticas,
que constituem o objeto principal de uma relação jurídica concreta com os usuários e demais
administrados, e asseguradas por normas e princípios que outorgam prerrogativas de Direito
Público a quem a cumpre para possibilitar a melhor satisfação das necessidades coletivas"
(HUALDE, Alejandro Pérez. El Concesionário de Servicios Públicos Privatizados, Depalma,
Buenos Aires, 1997, p. 07).
61
No presente Tópico pretendemos, naturalmente, trazer à baila apenas as decisões do Supremo
às quais tivemos acesso que possam contribuir, de maneira geral, para a formulação de um
conceito de serviço público.

24
No Recurso Extraordinário nº. 220.999-7, demonstrando uma abertura à
concepção material ou objetiva de serviço público, como sendo a atividade que
atende ao interesse público, o STF não considerou suficiente a inclusão do
transporte aquaviário no rol das atividades da competência da União (art. 21, XII,
'd', CF) para qualificá-lo como serviço público, no caso concreto, por tratar-se de
transporte efetuado por empresa pública das mercadorias fabricadas por empresa
privada. Para o Ministro NELSON JOBIM, citando CIRNE LIMA, não haveria o
necessário requisito de "utilidade pública" da atividade para que pudesse ser
considerada como serviço público e, portanto, de prestação obrigatória pela
União, que poderia, então, ter mesmo permitido que a sua prestação cessasse.62

Em outro julgado, privilegiando o critério orgânico ou subjetivo de


conceituação do serviço público (serviço público como a atividade do Estado), o
STF decidiu: "Competindo à União, e só a ela, explorar diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão, os portos marítimos, fluviais e lacustres, art. 21,
XII, f, da CF, está caracterizada a natureza pública do serviço de docas" (Recurso
Extraordinário nº. 172.816).

A narrativa desses julgados adverte que se deve evitar absolutizações de


afirmações esparsas de Ministros do Supremo, que, naturalmente, devem ser
sempre consideradas no contexto do caso concreto e com as naturais limitações
que o STF vem tendo, provavelmente em razão da quantidade de processos que
lhe são submetidos, em fixar os marcos teóricos de suas decisões, o que, todavia,
certamente contribuiria para a construção de uma jurisprudência mais sólida, que
evitaria inclusive a propositura desnecessária de algumas novas ações.

O que, no entanto, independentemente de questões conceituais, a


jurisprudência do STF tem deixado claro, muitas vezes encampando as lições
doutrinárias do hoje Ministro EROS ROBERTO GRAU,63 é o papel que o serviço
público tem na delimitação da esfera pública e da esfera privada,64 ou seja, entre
o âmbito de atuação do Estado (serviços e monopólios públicos), e o âmbito em
princípio exclusivo do mercado, da livre iniciativa privada.65

62
O acórdão é louvado por EROS ROBERTO GRAU em sede doutrinária (GRAU, Eros Roberto.
Constituição e Serviço Público, in Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo
Bonavides, Ed. Malheiros, São Paulo, 2003, pp. 262-263).
63
Ver os ensinamentos do autor expostos ao longo do presente artigo.
64
Naturalmente que essas fronteiras possuem algumas áreas em comum, como as previstas no
art. 173, em que Estado e iniciativa privada podem explorar em concorrência atividades
econômicas stricto sensu.
65
Fazendo a mesma delimitação, o Superior Tribunal de Justiça, ao considerar os serviços de
radiodifusão sonora serviços públicos por qualificação constitucional, ainda que a Constituição não
o faça expressamente, já decidiu, em acórdão com a seguinte ementa: "Os serviços de
radiodifusão sonora de sons e imagem e demais serviços de telecomunicações constituem, por
definição constitucional, serviços públicos a serem explorados diretamente pela União ou
mediante concessão ou permissão... (art. 175, CF). (...) As TVs educativas, cujos serviços que
exercem são regidos por normas de Direito Público e sob regime jurídico específico, não
desenvolvem atividades econômicas sob regime empresarial e o predomínio da livre iniciativa e da
livre concorrência e não estão jungidas ao sistema peculiar às empresas privadas, que é
essencialmente lucrativa. Não se inclui no conceito de atividade econômica, aquela que a
Constituição qualificou como serviço público, ainda que potencialmente lucrativa (v. g. serviços de

25
Nessa esteira, o MINISTRO NELSON JOBIM afirmou, no julgamento do
Recurso Extraordinário nº. 220.906-9-DF, que, "no tratamento dos direitos
econômicos, o texto de 1988 reforçou a opção por uma 'constituição do Estado Liberal'.
Essa constatação choca-se com alguns que, condicionados por perspectivas políticas
não positivadas, insistem em ver, no texto original de 1988, quanto aos direitos
econômicos, uma 'Constituição do Estado de Direito Social'."

Em acórdão de 1979, o Supremo, ao apreciar questão relacionada a hotel


do Estado de Santa Catarina arrendado a particular com a obrigação de explorar
a sua hoteleira, contrato realmente muito mais próximo ao fomento, afirmou que
"não deve ser considerado serviço público aquele que outro particular pode prestar
independentemente de concessão", ou seja, a hotelaria, atividade que não é de
titularidade estatal exclusiva.66

A matéria vem sendo ultimamente apreciada pelo STF em relação à


caracterização da atividade exercida pela Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos – ECT como serviço público ou como atividade econômica, do que
decorreria, segundo o Supremo, a caracterização dessa entidade como "Fazenda
Pública" ou como empresa privada, respectivamente. A posição do Supremo tem
sido a de considerá-la serviço público, aplicando-se à ECT a imunidade tributária
recíproca, a sistemática de execução de dívidas por precatório, etc.

O MINISTRO CARLOS VELLOSO chegou a inferir do fato de a ECT


prestar um serviço público que ela é, materialmente, uma autarquia, não uma
empresa pública.67

A tradição doutrinária do Direito Brasileiro afirma a existência de duas


espécies de empresas públicas e sociedades de economia mista: as exploradoras
de atividades econômicas e as prestadoras de serviços públicos. Seriam grandes
os problemas administrativos que essa posição do STF geraria na estrutura da
Administração Indireta de todos os Entes da Federação, acarretando maior
publicização da Administração Indireta, justamente na contramão da tendência
mundial de adoção de métodos mais flexíveis em relação ao Direito Público com
vistas à maior agilidade e eficiência.68

radiodifusão sonora), mas se sujeita a uma disciplina cujo objetivo é realizar o interesse público"
(MS nº. 5307/DF).
66
Recurso Extraordinário nº. 89.217-6, Santa Catarina.
67
"É preciso distinguir as empresas públicas que explorem atividade econômica, que se sujeitam
ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e
tributárias (CF, art. 173, § 1º.), daquelas empresas públicas prestadoras de serviços públicos,
cuja natureza jurídica é de autarquia, às quais não há aplicação do disposto no § 1º. do art. 173
da Constituição, sujeitando-se tais empresas prestadoras de serviço público, inclusive, à
responsabilidade objetiva (CF, art. 37, § 6º.). (...) No caso, tem-se uma empresa pública
prestadora de serviço público – a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT –, serviço
postal (CF, art. 21, X). Além de não estar, portanto, equiparada às empresas privadas, integra o
conceito de Fazenda pública. Assim, seus bens não podem ser penhorados, estando sujeita à
execução própria das pessoas públicas: CF, art. 100" (Voto do Ministro-Relator Carlos Velloso,
proferido no Recurso Extraordinário nº. 220.907-5 Rondônia, grifamos).
68
Há, não se pode olvidar, corrente minoritária que concorda com essas recentes decisões do
Supremo, equiparando essas entidades privadas da Administração Indireta à Fazenda Pública
quando a sua atividade for serviço público. Ver, nesse sentido, BAZILLI, Roberto Ribeiro.

26
O emprego de pessoas jurídicas de direito privado na Administração
Indireta (empresas públicas e sociedades de economia mista) – não mais de
autarquias – para prestar serviços públicos econômicos visou exatamente a esses
objetivos. A própria figura dos serviços públicos industriais ou comerciais resulta
de construção do Conselho de Estado francês, que nela pressupunha justamente
a aplicação predominante de regras do Direito Privado.

Em um desses casos (Recurso Extraordinário nº. 220.906-9-DF), o


MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA afirmou: "As empresas prestadoras de serviço
público operam em setor próprio do Estado, no qual só podem atuar em decorrência de
ato dele emanado. (...) Não se aplicam às empresas públicas, às sociedades de
economia mista e a outras entidades estatais e paraestatais que explorem serviços
públicos a restrição contida no art. 173, § 1º., da Constituição Federal, isto é, a
submissão ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às
obrigações trabalhistas e tributárias, nem a vedação do gozo de privilégios fiscais não
extensivos às do setor privado (CF, art. 173, § 2º.)" (grifos no original).

No Recurso Extraordinário nº. 172.816, o Supremo, ao decidir pela não


expropriabilidade por Estado-membro de bem afeto a serviço público federal
prestado por sociedade de economia mista, decidiu pela inaplicabilidade do art.
173, § 1º., CF, em acórdão assim ementado: "A norma do art. 173, § 1º., da
Constituição aplica-se às entidades públicas que exercem atividade econômica em
regime de concorrência, não tendo aplicação às sociedades de economia mista ou
empresas públicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de

“Serviços Públicos e Atividades Econômicas na Constituição de 1988”, in Revista de Direito


Administrativo – RDA, vol. 197, 1994, pp. 10-21; e MUKAI, Toshio. O Direito Administrativo e os
Regimes Jurídicos das Empresas Estatais, 2ª. ed., Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2004. Esse autor,
que chega a ver uma simulação na criação de pessoas jurídicas de Direito Privado para prestar
serviços públicos, o que seria uma forma de escapar das regras de Direito Público (p. 267), afirma
que "no Brasil, em face do texto constitucional, as empresas públicas (stricto sensu) e as
sociedades de economia mista só podem ser criadas legitimamente para a exploração de
atividades econômicas. Aqui sim, portanto, a forma e o fundo se harmonizam, havendo, então,
perante o direito, um aspecto essencial a ser considerado: é o Direito Privado puro, que, em
grande parte, rege tais sociedades. (...) Quanto à extensão do Direito Administrativo, de modo
pleno, às empresas públicas (as que prestam serviços públicos industriais ou comerciais), para
nós, ela se impõe, não em virtude da aplicação da teoria da personalidade única (pública) do
Estado, como quer Gordillo, mas sim, em razão da extensão a tais empresas (pelo fato de sua
atividade ser própria e originária do Estado) dos princípios do Direito Público, em especial do
Direito Administrativo" (pp. 283 e 284). Preferimos a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello,
que assim critica a definição do Decreto-lei nº. 200 (não vinculante de outros atos legislativos da
mesma hierarquia de lei ordinária), que restringiria o conceito de empresa pública às que
explorassem atividade econômica: "Tal característica não pode ser proposta como um elemento
de sua definição. Deveras, algumas empresas públicas efetivamente são concebidas como
instrumento de atuação estatal no referido setor. Outras, entretanto, foram criadas e existem para
prestação de serviços públicos, serviços qualificados, inclusive pela Constituição em vigor, como
privativos de entidade estatal ou da própria União. Donde, a atividade em que se substanciam
apresentam-se, do ponto de vista jurídico (...), como a antítese da exploração da atividade
econômica, já que esta, perante a Lei Magna, é de alçada dos particulares, típica da iniciativa
privada – e não do Poder Público" (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito
Administrativo, 17ª. ed., Ed. Malheiros, São Paulo, 2004, p. 175).

27
exclusividade. O dispositivo constitucional não alcança, com maior razão, sociedade de
economia mista federal que explora serviço público, reservado à União".69

Note-se que a ementa distingue claramente as figuras (1) da atividade


econômica explorada pela União sem monopólio, em concorrência com iniciativa
privada, (2) a atividade econômica explorada pela União com monopólio e (3) os
serviços públicos explorados pela União.

O grande problema da linha de pensamento que vem sendo adotada pelo


Supremo em relação à ECT é a dificuldade – para não dizer impossibilidade – da
diferenciação entre os serviços públicos industriais ou comerciais (só exploráveis
por pessoas jurídicas de direito público) e as atividades econômicas stricto sensu
exploradas pelo Estado (passíveis de exploração por empresas públicas ou
sociedades de economia mista), já que a doutrina que sustenta essa posição
distingue-os afirmando que aquele, como todo serviço público, atende ao
interesse público objetivo, ou seja, o interesse público já existente na natureza
das coisas, ao passo que estas atendem apenas a um interesse público subjetivo,
ou seja, que vem a ser considerado pelo Estado como tal.70

Ora, mas como identificar um interesse público que já estaria presente na


"natureza das coisas"? Essas concepções essencialistas, que procuram encontrar
definições de direito positivo na natureza das coisas, possuem uma excessiva
carga de subjetividade, ainda mais em se tratando da distinção entre serviços
públicos industriais e atividades econômicas exercidas pelo Estado, com muitos
pontos em comum, até pela origem, já que, como observa RUY CIRNE LIMA,71 a
maioria dos hoje considerados serviços públicos industriais começaram a ser
prestados pelo Estado como atividades econômicas monopolizadas, de fato ou de
direito.

4.2.6 – O CONCEITO PROPOSTO.

Preliminarmente, cumpre lembrar que, conforme exposto no início deste


trabalho, não há classificação ou conceito que por essência seja correto ou errado
(o certo é que nenhum deles será perfeito),72 mas sim mais ou menos adequado
aos objetivos metodológicos perseguidos.

69
O Ministro Sepúlveda Pertence se pronunciou no mesmo sentido no Recurso Extraordinário nº.
220.906-9-DF, assim como o Ministro Carlos Velloso na ADIn nº. 1552-4. Ver também os
Recursos Extraordinários nos. 100.433-RJ e 204.653-RS, 229.696-PE e 225.011-MG, em que
houve decisão pela impenhorabilidade dos bens de empresa pública prestadora de serviço
público. No Recurso Extraordinário nº. 407.099/RS, foi, pelas mesmas razões, reconhecida a
imunidade tributária recíproca à ECT.
70
MUKAI, Toshio. O Direito Administrativo e os Regimes Jurídicos das Empresas Estatais, 2ª. ed.,
Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2004, pp. 219-220.
71
LIMA, Ruy Cirne. Organização Administrativa e Serviço Público no Direito Administrativo
Brasileiro, in Revista de Direito Público, vol. 59-60, pp. 131-132.
72
Massimo Severo Giannini, ao se perguntar a respeito de qual das concepções de serviço
público está correta, responde: "Por mais que a resposta possa parecer estranha, as duas
concepções de serviço público estão corretas. O que estamos chamando de diversas

28
Devemos, portanto, focados na busca da identificação das fronteiras entre
o espaço público e o privado e de como os serviços públicos neles se inserem,
verificar qual das acepções de serviço público acima expostas é mais operacional.

A primeira acepção (amplíssima), apesar de correspondente à noção


clássica francesa de serviço público, que definia ao próprio Estado como sendo
um conjunto de serviços públicos, em cujo conceito estariam incluídas até mesmo
as atividades jurisdicionais e legislativas, poderia até ser adotada em um trabalho
de ciência política ou de sociologia, mas seria de escassa utilidade em um estudo
jurídico, já que abrangeria atividades totalmente díspares entre si em termos de
regime jurídico. Nessa acepção, uma obra sobre serviços públicos seria um
tratado geral de Direito do Estado.

JAVIER URRUTIGOITY observa que um conceito muito lato de serviço


público faria com que fosse "apenas um conceito 'metajurídico'. As conseqüências
práticas dessa postura seriam quase idênticas às teses que negam a idéia de serviço
público".73

A segunda acepção exposta de serviço público (ampla) aproxima-se


bastante do ideal, mas possui o inconveniente de colocar sob a mesma rubrica
atividades que, do ponto de vista estritamente jurídico, são muito diferentes: os
serviços uti universi e os serviços uti singuli.

Os regimes jurídicos dessas atividades pouco ou nada possuem em


comum, e os poucos pontos que possuem, como a possibilidade de serem
exigidos judicialmente do Estado, nem que seja como tutela de interesses difusos
ou coletivos, são na verdade comuns a todas as atividades estatais, o que nos
levaria de volta ao conceito de serviço público amplíssimo acima analisado. Não
há uma peculiariedade que identifique apenas os serviços uti universi e uti singuli
no conjunto das atividades estatais.

O conceito restritíssimo (quarta hipótese supra-aventada – a terceira


veremos em seguida), contemplador apenas dos serviços públicos
tradicionalmente chamados de "econômicos", por possibilitarem a sua exploração
pela iniciativa privada com fins lucrativos, seria o tecnicamente mais bem
delimitado. Seria, no entanto, restrito demais, já que não se deve exigir que um

'concepções', na verdade são diversos conceitos. Se existissem termos distintos para indicá-los, a
questão ficaria claríssima" (GIANNINI, Massimo Severo. Diritto Amministrativo, Ed. Giuffrè, Milão,
3ª. ed., 1993, p. 24, grifamos). Transladando a questão para o âmbito mais geral da hermenêutica
do Direito Constitucional Econômico, no qual a matéria dos serviços públicos se insere, Ronaldo
Porto Macedo Jr. afirma que "qualquer interpretação do regime jurídico do mercado é sempre a
interpretação de um regime jurídico específico e possível, dentre outros igualmente possíveis, que
também o jurista tem como tarefa reimaginar, reformular e transformar visando a sua adaptação
frente às finalidades possíveis que possam orientar o seu redesenho, como por exemplo o
desenvolvimento econômico, a liberdade de comércio e defesa da propriedade privada e do
Estado mínimo, a justiça social (...). Em outras palavras, o arranjo institucional que dá suporte a
uma ordem de mercado tem forte aspecto de contingência e de plasticidade" (MACEDO JÚNIOR,
Ronaldo Porto. Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor, Ed. Max Limonad, São Paulo,
1998, p. 53).
73
URRUTIGOITY, Javier. Retribuición en los Servicios Públicos, in Los Servicios Públicos:
régimen jurídico actual (coord. Marta González de Aguirre), Depalma, Buenos Aires, 1994, p. 66.

29
conceito abranja apenas fenômenos jurídicos idênticos, sob pena de não lograr os
seus objetivos de sistematização, já que para cada fenômeno haveria um
conceito. O conceito deve, outrossim, contemplar o maior número possível de
fenômenos distintos que possuam em comum um regime jurídico mínimo
significativo.74

Contra essa concepção restritíssima de serviços públicos também militam


os próprios termos utilizados pela Constituição no art. 145, II, que, ao especificar
a divisibilidade e a especificidade, parece pressupor que os serviços públicos
específicos e divisíveis seriam apenas uma das espécies de serviço público.

Por outro lado, o art. 175 realmente alude a serviços públicos pressupondo
serem econômicos (vide a referência à "política tarifária"), dando a impressão que
constituiriam a única espécie de serviço público.75 Todavia, não podemos
desconsiderar a inserção desse artigo na Ordem Econômica (o art. 175 estaria
tratando apenas dos serviços públicos econômicos) e a existência de dispositivos
constitucionais específicos que expressamente chamam de "serviços públicos" os
serviços (gratuitos) de saúde prestados pelo Estado.

Além disso, cada vez mais se tem procurado atribuir, não só aos serviços
públicos, como às demais atividades estatais, formas de gestão econômica,
através de mecanismos mais ou menos híbridos e atípicos de delegação à
iniciativa privada, principalmente através das denominadas Parcerias Público-
Privadas, falando-se até mesmo, por exemplo, na delegação à iniciativa privada
da gestão de presídios.

Na verdade, está havendo uma economicização das atividades estatais


como um todo, sendo questionável a identificação de apenas uma delas como
sendo as atividades estatais econômicas por excelência, os "serviços públicos
econômicos", que constituiriam, naquela concepção restritíssima, a única espécie
de serviço público.

Passamos, então, à terceira acepção de serviço público – ao seu conceito


restrito –, que, ao nosso ver, é o mais operacional por contemplar um conjunto de
atividades (serviços públicos econômicos e serviços públicos sociais) que, apesar
de não terem regimes jurídicos idênticos (uns só podem ser prestados pela
iniciativa privada mediante delegação do Poder Público, outros quando muito
necessitam apenas de autorizações administrativas de polícia; uns são via de

74
"O serviço público é uma categoria que opera, às vezes, em plenitude, quando se reúnem todas
as notas que idealmente devem conformar o seu regime, e, por outro lado, em outras ocasiões,
também estamos ante um serviço público, ainda que as suas notas características estejam apenas
parcialmente presentes" (MACHADO, Santiago Muñoz. Servicio Público y Mercado, Vol. IV [El
Sistema Eléctrico], Ed. Civitas, Madrid, 1998, p. 73).
75
A distinção entre serviço público (espaço público) e atividade econômica stricto sensu (espaço
privado), "jungida ao modelo constitucional brasileiro, parece levar em conta a titularidade do
gestor, daí deriva a distinção categórica entre duas esferas, a pública e a privada. Uma distinção
de tal ordem não encontra equivalente na doutrina comunitária sobre a matéria (...). Isso ocorre
porque o direito comunitário privilegia o enfoque objetivo, enquanto que entre nós, por força da
norma constitucional, a análise da matéria impõe-se pelo critério subjetivo" (JUSTEN, Mônica
Spezia. A Noção de Serviço Público no Direito Europeu, Ed. Dialética, São Paulo, 2003, p. 181).

30
regra cobrados dos usuários, outros geralmente são gratuitos; etc.), possuem um
mínimo satisfatório de pontos em comum (“unidade de sentido”) capaz de
justificar a sua inclusão no mesmo conceito (ambos são em maior ou em menor
escala sujeitos à legislação consumerista; são específicos e divisíveis; geram
direitos subjetivos individuais; etc.).

Além de ser mais operacional, esse conceito também é inferível da


Constituição Federal de 1988, razão pela qual o adotaremos na seguinte forma:
serviços públicos são as atividades de prestação de utilidades econômicas a
indivíduos determinados, colocadas pela Constituição ou pela Lei a cargo do
Estado, com ou sem reserva de titularidade, e por ele desempenhadas
diretamente ou por seus delegatários, gratuita ou remuneradamente, com vistas
ao bem-estar da coletividade.

Esse conceito76 busca na Constituição a acepção mais consentânea com a


evolução político-econômica pela qual as atividades prestacionais do Estado vêm
passando e com o foco que vem sendo dado pela doutrina aos serviços
específicos e divisíveis. É inclusive curioso notar como, mesmo as monografias
que adotam uma acepção ampla dos serviços públicos, abrangentes dos serviços
uti universi, o fazem no primeiro capítulo, para, nos capítulos seguintes, tratarem
de aspectos referentes apenas aos serviços uti singuli, como a aplicabilidade do
Código de Defesa do Consumidor, a inserção da concorrência, as modalidades de
delegação, a remuneração por taxa ou tarifa, etc.77 É esse inconveniente – de se
ter um conceito muito amplo, mas se analisar o regime jurídico de apenas parte
das atividades dele integrantes – que, por razões metodológicas, buscamos
evitar.

O conceito acima proposto pode ser decomposto em seus vários


elementos.78 Vejamos:

 "prestação": beneficia diretamente os indivíduos, em


contraposição à polícia administrativa, que restringe a esfera
jurídica dos indivíduos por ela atingidos e apenas
mediatamente beneficia os outros membros da coletividade.

76
De maneira similar, apenas sem distinguir os serviços universais dos específicos, conceitua
Floriano de Azevedo Marques Neto: "Em sentido estrito, pode-se conceber serviço público como
as atividades dotadas de conteúdo econômico, revestidas de especial relevância social, cuja
exploração a Constituição ou a Lei cometem à titularidade de uma das esferas da federação como
forma de assegurar o seu acesso a toda gente, permanentemente" (MARQUES NETO, Floriano
de Azevedo. “A Nova Regulação dos Serviços Públicos”, in Revista de Direito Administrativo –
RDA. Ed. Renovar, vol. 228, 2002, p. 18).
77
Exemplo desta postura, muito comum no Brasil e alhures, pode ser visto em GROTTI, Dinorá
Adelaide Musetti, O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988, Ed. Malheiros, São Paulo,
2003.
78
Nessa passagem os serviços públicos serão comparados com outras atividades estatais,
distinções que também merecerão abordagem específica.

31
Por esse fator os serviços públicos distanciam-se também do
fomento, em que o Estado não atua em prol da coletividade,
mas apenas apóia iniciativas sociais ou econômicas privadas
que podem trazer benefícios coletivos. Distinguem-se
igualmente da atividade jurídica da Administração Pública,
ainda que em favor dos administrados, em razão dela ser
desvestida de natureza econômica. Diferenciam-se ainda dos
serviços uti universi, que não têm os seus
destinatários/consumidores finais identificados;

 "de utilidades econômicas”: Como ensina EROS ROBERTO


GRAU, "inexiste, em um primeiro momento, oposição entre
atividade econômica e serviço público; pelo contrário, na
segunda expressão está subsumida a primeira. Podemos
afirmar que a prestação de serviço público está voltada à
satisfação de necessidades, o que envolve a utilização de bens
e serviços, recursos escassos. Daí por que serviço público é
um tipo de atividade econômica.79 (...) No que concerne ao art.
170, caput, a ordem econômica pressupõe o exercício de
atividade econômica enquanto gênero. O que afirma o preceito
é que toda a atividade econômica, inclusive a desenvolvida
pelo Estado, no campo dos serviços públicos, deve ser fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo
por fim (fim dela, atividade econômica, repita-se) assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
etc."80

Faríamos, com ODETE MEDAUAR, apenas uma ressalva, no


sentido de que os princípios da ordem econômica devem ser
aplicados aos serviços públicos, mas quando isso for possível,
ou seja, no que coube: "Alguns preceitos contidos no art. 170
destinados a nortear a atividade econômica não se aplicam aos

79
"A questão do serviço público apresenta uma faceta econômica, na medida em que envolve
uma alocação de recursos materiais (escassos) para satisfação de certas necessidades humanas.
Como esses recursos materiais comportam diferentes destinações, impõe-se escolher um destino
para eles, dentre os diversos possíveis. Considerando o tema sob o prisma da opção por uma
certa destinação para os recursos materiais, tem de reconhecer-se que o serviço público
apresenta uma manifestação de cunho econômico. Aliás, sob esse enfoque não há maior
diferença entre serviço público e atividade econômica. Em todos os casos, encontra-se diante da
relação entre recursos materiais escassos e fins potencialmente excludentes entre si a satisfazer"
(JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das Concessões de Serviço Público, Ed. Dialética, São
Paulo, 2003, p. 19).
80
GRAU, Eros Roberto. Constituição e Serviço Público, in Direito Constitucional: estudos em
homenagem a Paulo Bonavides, Ed. Malheiros, São Paulo, 2003, pp. 250-251. "Daí por que a
preservação dos vínculos sociais e a promoção da coesão social pelo Estado assumem enorme
relevância no Brasil, a ele incumbindo a responsabilidade pela provisão, à sociedade, como
serviço público, de todas as parcelas da atividade econômica em sentido amplo que sejam tidas
como indispensáveis à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência social"
(ob. cit., p. 259).

32
serviços públicos. É o caso da livre iniciativa, por exemplo; não
se pode dizer que a prestação dos serviços públicos é
informada pela livre iniciativa. A decisão de transferir a
execução ao setor privado é sempre do poder público. Também
é impensável aplicar ao serviço público o preceito do parágrafo
único do art. 170 (possibilidade de condicionamento do
exercício de atividade econômica à prévia autorização
administrativa), porquanto todos os serviços públicos prestados
por particulares devem sê-lo mediante titulação, na qual está
subentendido o consentimento do Poder Público".81

EGON BOCKMANN MOREIRA também afirma que "não se dá


a incidência do princípio da subsidiariedade no setor dos
serviços públicos, cuja definição constitucional – "Incumbe ao
Poder Público (...) a prestação de serviços públicos" (art. 175) –
torna inversa a relação. O serviço público é reservado de forma
primária ao Estado, podendo ser concedido o seu exercício aos
particulares. Não há serviço público exercido de forma
subsidiária pelo Poder Público (mas sim pelas pessoas
privadas). Nem tampouco se poderia cogitar de o Estado
'intervir' num setor que lhe é próprio. Quanto aos serviços
públicos, o Estado tem o dever de sempre atuar (de forma
direta ou indireta), pois sua racionalidade exige a prestação
pública contínua e adequada".82

 "a indivíduos determinados”: exclui, por extrema diversidade de


regimes jurídicos, os serviços uti universi;

81
MEDAUAR, Odete. Serviços Públicos e Serviços de Interesse Econômico Geral, in Uma
Avaliação das Tendências Contemporâneas do Direito Administrativo: obra em homenagem a
Eduardo García de Enterría, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2003, p. 125. A assertiva parece
pressupor no art. 175 a publicatio da atividade considerada serviço público. Quanto à
aplicabilidade do princípio da livre iniciativa aos serviços públicos, concordamos com a autora no
sentido de que a publicatio realmente retira a atividade do seio da livre iniciativa. Eros Roberto
Grau afirma que todas as atividades econômicas lato sensu, inclusive os serviços públicos, se
fundam nos termos do art. 170 da Constituição na valorização do trabalho e na livre iniciativa, mas
"não quer isso, naturalmente, significar que o serviço público seja de livre iniciativa – ou seja de
iniciativa da empresa privada – mas sim que, na sua prestação, deve, aí também, o Estado, não
opor empecilho à liberdade humana, no quanto seja socialmente prezável” (GRAU, Eros Roberto.
A ordem Econômica na Constituição de 1988, 4ª. ed., Ed. Malheiros, São Paulo, 1998, pp. 228-
229). Em outras palavras, as empresas privadas não têm o direito de prestar serviços públicos,
mas uma vez que a elas seja delegado o exercício de algum deles, deve ser respeitada a iniciativa
privada que, dentro do marco regulatório, possuem para alcançar os seus objetivos.
82
MOREIRA, Egon Bockmann. O Direito Administrativo da Economia, a Ponderação de Interesses
e o Paradigma da Intervenção Sensata, in Estudos de Direito Econômico (CUÉLLAR, Leila e
MOREIRA, Egon Bockmann), Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2004, p. 93.

33
 "colocadas pela Constituição ou pela Lei”: não há de se falar
em criação de serviço público, mormente quando reserva a
titularidade de atividade econômica lato sensu ao Estado, sem
esteio na Constituição, ainda que em suas normas
programáticas (hipótese admissível apenas para os serviços
públicos sociais, por não serem reservados ao Estado), ou em
leis formais, mas jamais por iniciativa da própria Administração
Pública que de per se retire setores de atividades econômicas
da iniciativa privada. Da mesma forma, ao contrário do que
preconizava DUGUIT, não há de se falar em serviço público,
por mais essencial que seja para a coletividade, apenas em
razão da "natureza das coisas", da sua importância para o
liame social, sendo imprescindível, além desse dado, o
reconhecimento pelo direito positivo da responsabilidade do
Estado pela atividade;

 "a cargo do Estado, com ou sem reserva de titularidade": O


importante no conceito de serviço público proposto não é a
titularidade exclusiva do Estado sobre a atividade, com a
conseqüente retirada da atividade da esfera de atuação da livre
iniciativa privada, o que, todavia, muitas vezes se verifica.83

O importante para o conceito é a responsabilidade do Estado


sobre a atividade, a sua obrigação em prestá-la, com ou sem
exclusão da atuação por direito próprio dos empresários
privados, sujeitos, no máximo, nessa hipótese, à autorização
administrativa.84

Em relação aos serviços públicos que não são objeto de


publicatio, a Constituição assegura a atuação também da
iniciativa privada: saúde (art. 199 – "são livres à atividade
privada"), educação (art. 209), assistência social (art. 204, I, in
fine, e II, que se referem à prestação da atividade pelo Terceiro

83
Os serviços públicos reservados ao Estado (publicatio) são, por excelência, os serviços públicos
econômicos, tal como regulados no art. 175. O fato da atividade estar reservada à titularidade
estatal (publicatio) não quer dizer que o seu prestador deva ser único. A unicidade de titular (o
Estado) não corresponde necessariamente à exclusividade de prestador, uma vez que o titular
exclusivo pode outorgar o seu exercício a diversos concessionários, conjuntamente com a
prestação pelo próprio Estado, ou não. Sobre o tema, ver também GORRITI, Silbia Sarasola. La
Concesión de Servicios Públicos Municipales: Estudio Especial de las Potestades de Intervención,
IVAP, Oñati, 2003, p. 23.
84
"Em princípio, poder-se-ia pensar que o titular exclusivo dos serviços seria o Estado. Nem
sempre, porém, é assim, como já se anotou. Há certos serviços que serão públicos quando
prestados pelo Estado, mas que concernem a atividades em relação às quais a Constituição não
lhe conferiu exclusividade, pois, conquanto as tenha colocado a seu cargo, simultaneamente
deixou-as liberadas à iniciativa privada" (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Serviço Público e
sua Feição Constitucional no Brasil, in Direito do Estado: novos rumos, Tomo 2 [Direito
Administrativo], Ed. Max Limonad, São Paulo, p. 30)

34
Setor) e previdência social (art. 202, que se refere à atuação
"complementar" da iniciativa privada).

O fato de a Constituição assegurar expressamente a


possibilidade de atuação da iniciativa privada nesses serviços,
não quer dizer, naturalmente, que ela esteja vedada em outros
serviços públicos sociais ou mais especificamente culturais,
como a cultura, o lazer e a pesquisa. A Constituição só foi
expressa em relação a atividades sociais a respeito das quais
historicamente já se discutiu quanto à necessidade de
estatização. Naquelas outras atividades sociais, ao revés,
sempre prevaleceu a idéia de que, quanto mais pessoas as
prestassem, mais atendido estaria o interesse público;

 "desempenhadas diretamente pelo Estado ou por seus


delegatários”: "É óbvio que nos casos em que o Poder Público
não detém a exclusividade do serviço, não caberá imaginar a
outorga a terceiros, pois quem o desempenhar prescinde dela
para o exercício da atividade em questão".85 Classicamente,
apenas em relação aos serviços reservados ao Estado
(serviços públicos econômicos) pode ser cogitada a prestação
pela iniciativa privada em regime de delegação. Já em relação
aos serviços não reservados (serviços públicos sociais) a
delegação é, em princípio,86 despicienda;

 "gratuita ou remuneradamente”: os serviços que estiverem


delegados à iniciativa privada devem, salvo quando
subsidiados ou pagos diretamente pelo Estado ser
remunerados pelos usuários, já que a delegação pressupõe a
lucratividade da atividade. 87

Os serviços não delegados à iniciativa privada, sejam os


serviços públicos sociais, que nem teriam como ser delegados
por não serem reservados ao Estado, (ex., um teatro do
Estado); sejam serviços públicos econômicos, reservados ao
Estado, mas que o Estado preferiu prestar diretamente, podem

85
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Serviço Público e sua Feição Constitucional no Brasil”,
in Direito do Estado: novos rumos [org. Paulo Modesto], Tomo 2 [Direito Administrativo], Ed. Max
Limonad, São Paulo, 2001, p. 31-32.
86
Essa é a afirmação tradicional, que, no entanto, relativizamos em razão de algumas
experiências de Parcerias Público-Privadas – PPPs, que parecem tornar cogitável a delegação à
iniciativa privada de serviços não exclusivos do Estado, sendo por ele total ou parcialmente
remunerados.
87
No caso dos serviços delegados à iniciativa privada a remuneração dos usuários pode,
excepcionalmente, até não cobrir todos os seus custos, desde que haja receitas ancilares ou
alguma espécie de subsídio por parte do Poder Concedente, hipótese por si bastante polêmica.

35
ser remunerados integral ou parcialmente pelos usuários, ou
serem arcados exclusivamente pelo Estado.

 "com vistas ao bem-estar da coletividade"88 – o serviço público


tem que visar imediatamente o interesse público primário, ou
seja, a melhoria das condições sociais e econômicas da
sociedade, não interesse público secundário, de fortalecimento
dos interesses fiscais e estratégicos do Estado, casos em que
estaremos mais próximos do conceito de atividade econômica
monopolizada.

É muito comum a associação entre o interesse coletivo a ser


atendido pelos serviços públicos e a preservação da dignidade
da pessoa humana (art. 1º., III, CF), o que, na grande maioria
das vezes, realmente procede. Há, contudo, alguns serviços
públicos mais ligados à infra-estrutura (ex., fornecimento de
energia elétrica a grandes indústrias, transporte hidroviário de
minério), cujo liame com a dignidade da pessoa humana é
apenas indireto, como decorrência do desenvolvimento da
sociedade como um todo.89 Por isso preferimos adotar, no
conceito proposto, o termo mais genérico de "bem-estar da
coletividade", ao invés de "dignidade da pessoa humana",
associável diretamente apenas às pessoas físicas.90

Aprofundaremos um pouco mais a delimitação do nosso conceito de


serviços públicos ao confrontá-los, no Tópico que segue, com institutos e
atividades com os quais podem guardar algumas semelhanças. As diferenças
servirão para individualizar melhor os institutos pelos contrastes recíprocos.

88
"Naturalmente que todo segmento da atividade econômica tem transcendência para o sistema
como um todo, sendo às vezes difícil graduar-lhes a importância, sendo que a sua dimensão
coletiva justifica alguns poderes de intervenção, controle e supervisão administrativa. Mas em
determinados casos essa importância alcança um valor nevrálgico, não tanto pelo montante do
faturamento ou pela percentagem do PIB que possa representar, mas sim pelo seu caráter de
conquista alcançada pelo desenvolvimento da sociedade (educação básica para todos, energia
elétrica residencial, meios de transporte motorizados...), cuja fornecimento é assegurado pelo
Poder Público" (SÁNCHEZ, Rafael Caballero. Infraestructuras en Red y Liberalización de Servicios
Públicos, INAP, Madrid, 2003, p. 68).
89
"Esta produção em que o objeto produzido prevalece sobre o valor obtido pode ser inclusive
produção de bens destinados à indústria e ao comércio" (DERANI, Cristiane. Privatização e
Serviços Públicos: as Ações do Estado na Produção Econômica, Ed. Max Limonad, São Paulo,
2002, p. 196).
90
"A dignidade, acima de tudo, diz com a condição humana do ser humano" (SARLET, Ingo
Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, 2ª. ed., 2002, Editora Livraria
do Advogado, Porto Alegre, p. 27).

36
5 – INSTITUTOS AFINS.

Os serviços públicos constituem meio de satisfação de necessidades


coletivas que, como expõe JORGE H. SARMIENTO GARCÍA, calcado em
MIGUEL S. MARIENHOFF, "são satisfeitas através de prestações materiais, em
espécie, periódicas e sistemáticas".91 Examinemos um pouco mais detidamente essa
assertiva:

1) Nos serviços públicos a prestação é de caráter material,


constituída pela realização de um serviço ou pelo uso de um meio
técnico, como o fornecimento de energia ou de água potável,
utilização de telefone, envio de uma correspondência, etc. Por um
lado, então, deve se tratar da "prestação de uma atividade, ou
seja, que se constitua no desenvolver de um comportamento
contínuo, que se apresenta como uma fluência, seguidamente
disponibilizado e não como uma obra, um produto no qual se haja
cristalizado dada atividade, como fruto acabado dela".92 Por outro
lado, a materialidade da prestação é tomada em "contraposição à
atividade nucleada na produção de atos jurídicos administrativos
(...) Então, por dizer essencialmente com uma atividade material,
ao contrário do Poder de Polícia, o serviço público não se
substancia em atividade jurídica, embora, como é óbvio, seja
juridicamente regulado e sua efetivação pressuponha a prática de
atos administrativos";93

2) prestações em espécie, ou seja, em atividades ou em bens,94


não em dinheiro, com o que a atividade seria melhor qualificada
como de fomento social,95 não como um serviço;

91
GARCÍA, Jorge H. Sarmiento. Noción y Elementos del Servicio Público, in Los Servicios
Públicos: régimen jurídico actual (coord. Marta González de Aguirre), Depalma, Buenos Aires,
1994, p. 17, grifamos.
92
GARCÍA, Jorge H. Sarmiento. Noción y Elementos del Servicio Público, in Los Servicios
Públicos: régimen jurídico actual (coord. Marta González de Aguirre), Depalma, Buenos Aires,
1994, p. 17. Igualmente, CASETTA, Elio. Manuale di Diritto Amministrativo, Ed. Giuffrè, Milão,
2000, p. 605. O STF já ementou: "Taxa de conservação das redes de água e esgoto. Distinção
entre obra pública e serviço público. A obra pública, sendo execução material de um projeto, é
limitada no tempo, enquanto o serviço público tem caráter de continuidade. A obra pública agrega
valor aos imóveis por ela beneficiados; os serviços públicos, conquanto os beneficiem, não
produzem uma integração de valor. Conservação de redes de água e esgoto é serviço público, e
não obra pública" (RE 115.561-1-SP, Rel. Min. Carlos Madeira).
93
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Serviço Público e sua Feição Constitucional no Brasil”,
in Direito do Estado: novos rumos [org. Paulo Modesto], Tomo 2 [Direito Administrativo], Ed. Max
Limonad, São Paulo, 2001, pp. 21-23.
94
Na economia atual "desaparece a distinção entre o setor industrial e o setor de serviços. Na
transição para a sociedade da informação, não se cria nenhum novo setor produtivo. Antes ao
contrário, o aumento da produtividade que depende do conhecimento penetra e transforma todos
os setores de produção – agricultura, indústria e serviços – e dissolve a distinção entre 'bens' e
'serviços'. Tudo o que se diz sobre a 'sociedade pós-industrial' ou a 'sociedade de serviços' se
torna um mito tão insustentável como a antiga distinção entre setores primário, secundário e

37
3) as prestações devem ser periódicas e sistemáticas, de maneira
que a sua oferta deve ter certo caráter de permanência no tempo
e de sistematização. É por isso que, por exemplo, a atuação das
forças armadas em favor da população em um momento de
enchente (transportando pessoas, fornecendo alimentos, etc.)
não pode ser tecnicamente considerada serviço público; e

4) por fim, a prestação deve ser "ao público", ou seja, dirigida


diretamente aos membros da coletividade, de maneira que não
podem ser considerados serviços públicos aqueles que a
Administração presta a si mesma, como os serviços internos
financeiros, de transporte de seu pessoal, de aperfeiçoamento
dos funcionários, de consultoria interna, etc.96

Também por essa razão não podem ser considerados públicos os


serviços que não se destinam ao público, mas sim a um grupo
circunscrito de pessoas (ex., os serviços de telecomunicações
prestados apenas para a comunicação entre os empregados de
determinada empresa, a energia elétrica autoproduzida, etc.).97
Naturalmente que, ainda mais em países do Terceiro Mundo,
poucos serviços públicos são prestados a todos os membros da
sociedade, mas o importante, para que o requisito conceitual seja
atendido, é que esteja em tese aberto republicanamente à
população em geral, na medida, naturalmente, das
possibilidades técnicas e econômicas d estágio em que a
universalização do serviço se encontrar.

Algumas das figuras que passaremos a analisar são pacificamente


apartadas da noção de serviço público, outras são, por parte da doutrina,
consideradas como espécies de serviços públicos. Para o conceito restrito de

terciário. Quem pretender interpretar a dinâmica da economia da informação sob o ponto de vista
das classificações do antigo paradigma laboral subestima o seu potencial autenticamente
revolucionário, constituído pela possibilidade de comunicação direta on line entre diversos tipos de
atividade: desenvolvimento, produção, gestão, aplicação, distribuição. Há a dissolução do antigo
paradigma territorializado da sociedade industrial. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, existe uma
multiplicação de opções que exige decisões e requer um certo esforço de padronização" (BECK,
Ulrich. La Sociedad Del Riesgo Global [trad. Jesús Alborés Rey], Siglo Veinteuno de España
Editores, Madrid, 2002, pp. 179-80).
95
Alguns autores em um apuro conceitual preferem chamar tais atividades estatais de "atividade
assistencial pública", uma vez que, ao contrário das atividades de fomento, satisfazem
imediatamente à finalidade pública visada, não sendo instrumentais e auxiliares de atividades
privadas como o fomento (RIVA, Ignacio M. de la. Ayudas Públicas: Incidencia de la intervención
estatal en el funcionamiento del mercado, Ed. Hammurabi, Buenos Aires, 2004, pp. 134-135).
96
URRUTIGOITY, Javier. Retribuición en los Servicios Públicos, in Los Servicios Públicos:
régimen jurídico actual [coord. Marta González de Aguirre], Depalma, Buenos Aires, 1994, p. 65;
GARCÍA, Jorge H. Sarmiento. Noción y Elementos del Servicio Público, in Los Servicios Públicos:
régimen jurídico actual (coord. Marta González de Aguirre), Depalma, Buenos Aires, 1994, p. 17.
97
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Serviço Público e sua Feição Constitucional no Brasil”,
in Direito do Estado: novos rumos [org. Paulo Modesto], Tomo 2 [Direito Administrativo], Ed. Max
Limonad, São Paulo, 2001, p. 23.

38
serviços públicos que adotamos, será fundamental o confronto comparativo com
algumas dessas figuras.98

5.1 – FUNÇÕES PÚBLICAS E PODER DE POLÍCIA.

O conceito de serviço público contempla apenas as atividades


especificamente prestacionais do Estado, pelas quais o Poder Público
proporciona aos indivíduos a satisfação de alguma das suas necessidades,
excluindo as atividades que visam ao público apenas mediatamente e ao Estado
(ou a coletividade indistintamente considerada) imediatamente, como a segurança
nacional e a diplomacia,99 assim como as atividades que, ao invés de concederem
utilidades aos particulares, restringem o seu âmbito de atuação, "não apenas para
proteger a segurança, a moralidade e a saúde públicas, como também para
promover o bem-estar geral da população" (poder de polícia administrativa).100

A distinção entre serviço público, de um lado, e, de outro, as funções


públicas, gênero do qual a polícia administrativa constitui espécie, remonta à
distinção muito divulgada por ORLANDO entre atividade jurídica e atividade social
do Estado: "O Estado desenvolve a atividade jurídica ou de polícia para prevenir os
danos sociais e assegurar a paz e a ordem pública. Seu efeito é a limitação dos direitos
individuais, razão pela qual se manifesta como uma relação jurídica entre soberano e
súdito. Esse tipo de atividade não pode ser exercida pela iniciativa privada. Ao revés, a
atividade social do Estado dá lugar a um tipo de relações entre a Administração Pública e
o administrado, cuja base costuma estar na liberdade do cidadão. Nessas atividades, o
Estado não se apresenta mandando, mas sim estabelecendo e prestando serviços".101

Observa MARÇAL JUSTEN FILHO que "até se pode afirmar que as


competências estatais mais basilares não são reconhecidas como 'serviço público'. Na
esteira do pensamento italiano, reputa-se que certas atuações estatais envolvem
manifestação inerente de competências políticas, tal como se passa com as funções
legislativa e jurisdicional. Somente se poderia considerar tais atividades como serviço

98
Alguns dos institutos que serão abordados já foram mencionados ao longo do trabalho de
maneira meramente instrumental à elaboração do conceito de serviço público. No presente
Tópico, todavia, alguns institutos que consideramos de maior importância dogmática serão objeto
de análise específica.
99
Quanto a tais atividades, Julio Rodolfo Comadira afirma que, apesar de genericamente poderem
ser consideradas serviços públicos, "têm a sua origem muito antes do constitucionalismo (Justiça,
Defesa, Relações Exteriores...), mas a sua prestação estava na realidade desprovida de qualquer
significação prestacional, pois se tratava mais de atender as necessidades do aparato estatal do
que proporcionar utilidades aos súditos" (COMADIRA, Julio Rodolfo. “El Servicio Público como
Título Jurídico Exorbitante”, in Revista de Direito Administrativo e Constitucional – A & C, vol. 19,
2004, p. 84).
100
MALJAR, Daniel Edgardo, Intervención del Estado en la Prestación de Servicios Públicos, Ed.
Hammurabi, Buenos Aires, 1998, p. 121. No Direito Alemão considera-se que há três modalidades
de intervenção do Estado para cumprir a sua missão: a administração ordenadora
(ordenungsverwaltung), a administração prestadora (leistungsverwaltung) e administração de
orientação (lenkungsverwaltung) (cf. JUSTEN, Mônica Spezia. A Noção de Serviço Público no
Direito Europeu, Ed. Dialética, São Paulo, 2003, p. 138).
101
FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho Administrativo, vol. II, 10ª. ed., Ed. Tecnos,
Madrid, 1992, p. 119.

39
público se a expressão fosse aplicada em sentido amplíssimo".102 "A maior parte das
notas que os franceses aplicam ao seu conceito de serviço público o são às funções, e o
erro deles está em querer ampliá-las aos verdadeiros serviços, que se desenvolvem nos
campos econômico e social".103

Não estão incluídas, portanto, no conceito de serviço público as funções


públicas soberanas, indelegáveis, como a defesa nacional, a diplomacia, a
tributação, o poder de polícia administrativa, etc.

Como expõem GEORGE VEDEL e PIERRE DEVOLVÉ, "polícia e serviço


público se diferenciam pelo dado de que aquela se exerce mediante prescrições, e este
por prestações. Naquele caso, o Estado regulamenta atividades privadas, enquanto que
no segundo ele toma a si próprio o encargo de satisfazer uma necessidade".104 "Tanto o
serviço público, como o poder de polícia são títulos justificativos idôneos para a
intervenção do Estado na atividade econômica. Mas, enquanto o primeiro pressupõe a
titularidade da competência (denominada de publicatio) por parte da Administração
Pública, o poder de polícia regula mediante normas gerais o exercício de atividades
realizadas por particulares em razão do direito constitucional de iniciativa privada".105

NELSON JOBIM encampa a distinção entre funções públicas e serviços


públicos, ao classificar as competências do Estado brasileiro previstas no Título III
da Constituição ("Organização Político-Adminstrativa do Estado") nas seguintes
categorias: "funções exclusivas, tais como manter relações com Estados estrangeiros,
declarar a guerra ou celebrar a paz, emitir moeda, elaborar e executar planos de
ordenação do território nacional e de desenvolvimento econômico e social, organizar e
manter o Poder Judiciário, o Ministério Público, etc. (CF de 1988: art. 21, I, II, VII, IX,
XIII,…). Essas são tarefas típicas do Estado, Entretanto, neste mesmo Capítulo estão
elencadas tarefas que podem ser realizadas, quer pelo setor público, quer pelo segmento
privado da sociedade. Neste mesmo campo de atuação estão reservadas as tarefas que

102
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das Concessões de Serviço Público, Ed. Dialética, São
Paulo, 2003, p. 21.
103
TREVIJANO, García, apud GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti, na obra O Serviço Público e a
Constituição Brasileira de 1988, Ed. Malheiros, São Paulo, 2003, p. 116. Mônica Spezia Justen
assinala que, "como conseqüência da movimentação doutrinária no sentido de uma concepção
objetiva de serviço público forjou-se, no direito italiano, a separação entre 'função pública' e
'serviço público'. Essa divisão parece ter sido uma necessidade para a qualificação técnico-jurídica
das atividades da Administração Pública. De modo genérico, difundiu-se que a 'função pública'
compreenderia todo tipo de atividade jurídica, autoritativa, inerente à soberania do Estado, tais
como a polícia e a diplomacia, destinada a satisfazer os interesses da coletividade no seu
conjunto. A função pública seria a expressão do poder administrativo. Por serviço público,
entendeu-se uma atividade social, imputável, direta ou indiretamente, ao Estado ou a um Ente
público, caracterizada pela prestação técnica ou material em favor dos cidadãos (segundo alguns,
singularmente considerados)" (JUSTEN, Mônica Spezia. A Noção de Serviço Público no Direito
Europeu, Ed. Dialética, São Paulo, 2003, p. 87). Para uma crítica da distinção, ver TESAURO,
Alfonso. Istituzioni di Diritto Pubblico, vol. 2, Torinense, Torino, 1961, p. 104 e segs. O autor, por
exemplo, afirma que os serviços públicos reservados ao Estado não prescindem da puissance
publique, e que toda atividade administrativa é, ao mesmo tempo, social e jurídica, e que muitas
vezes as ditas funções públicas também terão caráter material, como, por exemplo, a defesa
nacional (cf. JUSTEN, Mônica Spezia. A Noção de Serviço Público no Direito Europeu, Ed.
Dialética, São Paulo, 2003, p. cit.).
104
DEVOLVÉ, Pierre e VEDEL, George. Droit Administratif, Tomo II, 12ª. ed., Presses
Universitaires de France – PUF, Paris, 1992, p. 684.
105
MALJAR, Daniel Edgardo, Intervención del Estado en la Prestación de Servicios Públicos, Ed.
Hammurabi, Buenos Aires, 1998, p. 116.

40
o Estado exerce por si ou delega ao setor privado através do regime de concessões.
Neste caso a realização ocorre de forma direta pelo próprio Estado, ou concedida de
forma exclusiva ao setor privado, ou como terceira hipótese, praticadas
concomitantemente por ambos. Neste caso se encontram o serviço postal, os serviços de
radiodifusão, os de energia elétrica, ... (CF de 1988: art. 21, X, XI, XII, 'a', 'b', 'c', 'd', 'e',
'f',…). Mas existe uma terceira categoria de atuação do Estado, que transcende às
tarefas típicas e exclusivas, bem como daqueles serviços prestados sob a forma de
concessão ou diretamente, que é quando exerce atividades no campo empresarial, quer
sob o regime de monopólio, quer quando o Estado adentra o campo direto da exploração
106
de atividade econômica (art. 173 da Constituição Federal)".

5.2 – SERVIÇOS UTI UNIVERSI.

A inclusão dos serviços uti universi (prestados a todos os membros da


coletividade de forma indistinta, inespecífica e indivisível – ex., iluminação pública,
segurança pública, arquivos públicos, etc.) e dos serviços uti singuli (nos os
beneficiários e as quantidades usufruídas da utilidade são determináveis) no
mesmo conceito, apesar de essa ser a tradição da doutrina brasileira, sofre o
óbice de não identificar pontos comuns em seus respectivos regimes jurídicos.107

Fácil de ver "que não se está aqui a exaltar uma mera exigência analítica de
dissociar apenas para separar. A forma como as categorias são denominadas pelo
intérprete é secundária. A necessidade de distinção não surge em razão da existência de
diversas denominações para numerosas categorias. Ela decorre, em vez disso, da
necessidade de diferentes designações para diversos fenômenos. Não se trata, pois, de
uma distinção meramente terminológica, mas de uma exigência de clareza conceitual:
quando existem várias espécies de exames no plano concreto, é aconselhável que elas
também sejam qualificadas de modo distinto. A dogmática constitucional deve buscar a
clareza também porque ela proporciona maiores meios de controle da atividade
estatal".108

A única coisa que os serviços uti universi e os serviços uti singulii têm em
comum em termos de regime jurídico é a possibilidade de serem exigidos
compulsoriamente do Estado no caso de sua omissão.109 Mas isso, na verdade, é

106
JOBIM, Nelson. O Mercado Segurador Brasileiro, artigo do autor citado no voto por ele
proferido no Recurso Extraordinário nº. 220.906-9-DF.
107
Também excluindo os serviços uti universi do conceito de serviço público, SUNDFELD, Carlos
Ari. Fundamentos de Direito Público, Ed. Malheiros, São Paulo, 1992, pp. 81-82.
108
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos, Ed. Malheiros, São Paulo, 2003, p. 17. Devemos também lembrar a advertência de que
"os juristas devem evitar assimilar as categorias jurídicas às 'coisas em si', em relação às quais o
Direito é indiferente" (cf. COLLET, Martin. Le Contrôle Juridictionnel des Actes des Autorités
Administratives Indépendantes, LGDJ, Paris, 2003, pp. 29-30).
109
Na doutrina tradicional uma das principais diferenças que eram colocadas entre os serviços uti
universi e os uti singuli era a possibilidade de apenas estes poderem ser exigidos judicialmente (v.
g., MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 23ª. ed., Ed. Malheiros, 1998, p.
288). A assertiva continua a ser verdadeira, mas desde que seja frisado estarem sendo
consideradas apenas as pretensões de exercício de direitos subjetivos individuais, já que,
realmente, só os serviços uti singuli têm liame com um indivíduo determinado. Ocorre, contudo,
que o processo civil se coletivizou, e também os serviços uti universi podem, em tese, ser exigidos

41
uma característica de toda atividade estatal que seja essencial para a
coletividade, seja ela estritamente prestacional ou não (p. ex., se o Estado
deixasse de exercer as suas funções diplomáticas, de defesa nacional ou de
fiscalização seria cabível uma ação civil pública para obrigá-lo a retomá-la).

Igualmente, o fato de ambos constituírem deveres do Estado em relação à


coletividade não pode ser considerado determinante, porque se assim fosse todas
as atividades estatais seriam serviços públicos. A segurança nacional através das
forças armadas, por exemplo, é um dever primordial de qualquer Estado para com
a sua sociedade.

A exteriorização através de atividades materiais, o que ocorre tanto nos


serviços uti universi, como nos serviços uti singulii, também é pouco para colocá-
los sob o mesmo conceito, já que a semelhança, meramente material, de ambos
pouco se reflete em semelhança de regimes jurídicos (financiamento primordial
por impostos X taxas ou tarifas, possível aplicação do Código de Defesa do
Consumidor X sua inaplicabilidade, delegabilidade X indelegabilidade, etc.).

Como afirma BENJAMIN VILLEGAS BASAVILBASO,110 nos serviços uti


universi "sequer existe usuário propriamente dito, sendo o Estado quem os utiliza
diretamente, para benefício da coletividade". É por isso que JORGE H. SARMIENTO
GARCÍA afirma que "a prestação deve constituir o objeto essencial de uma relação
jurídica concreta com um usuário, o que significa que a noção de serviço público deve se
limitar àquelas atividades destinadas a proporcionar atividades específicas a
determinados habitantes (usuários), já que só nesses casos a atividade se configura
como uma prestação em sentido técnico, ou seja, uma atividade que um sujeito deve
efetuar em benefício de outro, a quem se dispensa uma utilidade concreta em razão de
uma relação jurídica de natureza obrigatória existente entre ambos. Portanto, não são
serviços públicos aquelas atividades que, como a defesa nacional, ainda que traduzam
benefícios para os cidadãos, não constituam o objeto de uma concreta relação jurídica,
111
como ocorre nos serviços de telefone, gás, etc."

Ademais, a indivisibilidade e a inespecificidade dos serviços uti universi os


identificam com as demais atividades não-prestacionais do Estado, já que
também nessas há benefícios para a coletividade em geral incapazes de serem
mensurados e identificados os seus concretos beneficiários. Por exemplo, poder-
se-ia dizer que, quando o Estado, através do poder de polícia, evita que um
particular polua um rio, presta um serviço à coletividade, no sentido de que
beneficia todos aqueles que seriam prejudicados pela poluição, e aí mais uma vez
voltaríamos ao indesejável conceito amplíssimo de serviços públicos.

judicialmente, mas através dos instrumentos processuais de tutela de interesses coletivos e


difusos. Ver LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública, Ed. RT, São Paulo, 2003.
110
BASAVILBASO, Benjamin Villegas. Derecho Administrativo, Tomo III, Primeira Parte,
Tipografica Editora Argentina, Buenos Aires, 1951, p. 57.
111
GARCÍA, Jorge H. Sarmiento. Noción y Elementos del Servicio Público, in Los Servicios
Públicos: régimen jurídico actual (coord. Marta González de Aguirre), Depalma, Buenos Aires,
1994, p. 17.

42
Não é por outra razão que DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTI
entende que os serviços uti universi "avizinham-se do conceito da função pública, ou
112
seja, como atividade própria e exclusiva do Estado". Com efeito, se não se pode
chegar a dizer que as funções públicas são todas serviços uti universi, devemos
admitir pelo menos que esses constituem uma categoria bem significativa entre as
funções públicas.

CAIO TÁCITO, citando CINO VITTA, afirma que "são entre nós chamadas de
funções públicas aquelas atividades que são destinadas ao benefício da coletividade
indistintamente considerada, ou seja, dos cidadãos considerados mais uti universi que uti
113
singuli".

O grande precursor e inspirador da exclusão dos serviços uti universi do


conceito de serviço público foi RENATO ALESSI,114 autor de enorme influência na
doutrina brasileira, talvez mais que em seu país natal, que, partindo da figura das
"prestações administrativas", sustentou uma recíproca limitação conceitual entre
elas e os serviços públicos: só pode ser serviço público se for uma prestação
administrativa e vice-versa.

Parte do pressuposto de que os serviços públicos constituem relações


jurídicas que só existem nas prestações uti singuli, já que, nos serviços uti
universi, não é possível a identificação dos sujeitos integrantes da relação (que
membros da coletividade se beneficiam do serviço?) e o seu exato objeto (em que
proporção se beneficiam?).

Vejamos em suas próprias palavras: "Devem ser excluídas do conceito de


serviço público as atividades que, malgrado voltadas a beneficiar genericamente os
cidadãos, não têm como conteúdo uma prestação em sentido próprio, em sentido técnico.
Devem ser excluídas, assim, todas aquelas atividades que traduzem apenas uma
vantagem oferecida e usufruída pelos cidadãos enquanto membros da coletividade. Ou
seja, nos referimos àquelas atividades uti universi, como, por exemplo, as atividades
voltadas a garantir a segurança interna e externa; o serviço de iluminação dos
logradouros públicos, etc. Isso porque o desenvolvimento por parte da Administração
Pública de tais atividades é insuscetível de gerar qualquer relação jurídica concreta entre
o Estado e os cidadãos que de fato vierem a delas se beneficiar. Não se pode, portanto,
conferir a essas atividades o caráter de prestação em sentido técnico, o que só é possível
em relação àquelas atividades pessoais que sejam o objeto de uma relação jurídica
obrigacional concreta".115

112
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti, em O Serviço Público e a Constituição Brasileira de 1988,
Ed. Malheiros, São Paulo, 2003, p. 110.
113
TÁCITO, Caio. “A Configuração Jurídica do Serviço Público”, in Revista de Direito
Administrativo – RDA, vol. 233, 2003, p. 376.
114
ALESSI, Renato. Le Prestazioni Amministrative Rese ai Privati, Giuffrè, Milano, 1946.
115
ALESSI, Renato. Le Prestazioni Amministrative Rese ai Privati, Giuffrè, Milano, 1946, p. 33,
grifos do original. "A outra corrente, representada por Zanobini, define que o serviço público é
qualquer prestação de utilidade realizada por um ente público dirigida tanto aos cidadãos
genericamente considerados, uti universi, como aos singularmente considerados, uti singuli.
Segundo explica Zanobini, em ambas as situações se constata a fruição de um serviço prestado
pelo Estado ou outro ente público, seja a uma pessoa específica ou a um grupo indeterminado. A
característica da atividade de utilidade prestada uti universi é a dificuldade de distinguir a
'quantidade' fruída por cada cidadão. Um exemplo clássico dessa modalidade é a iluminação de

43
Sendo assim, com base nas premissas metodológicas acima colocadas em
relação à formulação de conceitos jurídicos, não parece ser adequada, salvo se
apenas por tradição,116 a inclusão dos serviços uti universi no conceito de
serviços públicos,117 que abrangeria, então, apenas os serviços uti singuli do
Estado, sejam eles exclusivos (vedados à iniciativa privada, salvo delegação) ou
não.

Esses sim, apesar de distintos (sujeitos a concessão ou não,


impossibilidade de a livre iniciativa exercer a atividade livremente, entre outras
diferenças), possuem em seus regimes jurídicos pontos em comum
suficientemente relevantes para serem colocados no mesmo conceito, como a
remuneração poder ser feita por tarifa ou taxa, haver direitos subjetivos individuais
à sua prestação, aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor,
possibilidade de concorrência, etc.

5.3 – FOMENTO.

Para JORDANA DE POZAS, conhecido classicamente como o propositor


da tríplice classificação das atividades administrativas em poder de polícia,
serviços públicos e fomento, "este se distingue da polícia porque, enquanto a polícia
administrativa previne e reprime, o ele protege e promove, sem fazer uso da coação; e se
distingue do serviço público, em que a Administração Pública realiza de maneira imediata
e com os seus próprios meios o fim perseguido, ao passo que o fomento se limita a
estimular os particulares a que, eles próprios, voluntariamente, desenvolvam atividades
econômicas que cumpram as finalidades da Administração".118

DANIEL EDGARDO MALJAR prefere a perspectiva de DIEZ, para quem "a


diferença fundamental está em que o serviço público implica em uma prestação
obrigatória a cargo do Estado, quer a realize direta ou indiretamente, constituindo,
conseqüentemente, uma obrigação de fazer. Ao revés, o fomento não é de caráter

vias públicas" (JUSTEN, Mônica Spezia. A Noção de Serviço Público no Direito Europeu, Ed.
Dialética, São Paulo, 2003, p. 83).
116
"O fenômeno posto em evidência consiste na invocação de conceitos e princípios tradicionais,
aceitos por força de inércia perante o peso da tradição. Outras vezes, todavia, e a distinção entre
essas hipóteses nem sempre é fácil, em vez de uma adesão comodista ou arbitrária, mas sempre
acrítica, a dogmas feitos, a invocação de tais subsídios, na hermenêutica, na criação ou na
aplicação do direito, esconde uma opção por interesses bem determinados, oculta, assim, atrás de
um cripto-argumento, por força da consciência da debilidade das razões substanciais da solução
que se quer consagrar ou por prurido metodológico que não dispensa o credenciar-se uma
solução com um conceito de velha linhagem. Seja qual for o móbil do recurso ao cripto-argumento,
sempre se fia do temor reverencial que inspira o dogma o efeito persuasivo que precede a
consagração duma solução jurídica. Apresentar-se-á, então, uma tese apoiada em razões que não
são as que provocaram a sua formulação e a forma como ela é proposta, como convicção
emergente de certa base argumentativa, não reflecte o movimento de pensamento que lhe deu
origem" (PINTO, Carlos Alberto da Mota. Cessão da Posição Contratual, Atlântida Editorial,
Coimbra, 1970, pp. 21-22).
117
É muito mais apropriada, como visto, a inclusão dos serviços uti universi como espécie de
função pública.
118
POZAS, Luis Jordana de. “Ensayo de uma Teoría General del Fomento en el Derecho
Administrativo”, in Estudios de Administración local y general. Homenaje al Profesor Jordana de
Pozas, Instituto de Estudios de Administración Local, Madrid, 1961, p. 42.

44
obrigatório para o Estado, mas a sua realização traz sempre consigo uma obrigação de
dar. Não há dúvidas que na atividade de fomento, quando, por exemplo, a Administração
Pública confere uma subvenção a uma indústria privada, é o particular quem,
colaborando com a Administração Pública, contribui para a satisfação das necessidades
gerais. Daí se dizer que se trata de uma atividade indireta, precisamente porque não é
prestada pela Administração Pública, mas sim pelo particular por ela apoiado".119

Na doutrina brasileira, CÉLIA CUNHA MELLO afirma que "o sujeito


competente para fomentar não realiza diretamente nenhum ato para melhorar ou
desenvolver o objeto fomentado, persuade outrem. (...) No serviço público, a lei confere
ao ente público competência para prestá-lo, diretamente ou sob o regime de concessão
ou permissão, na forma do disposto no art. 175, do texto constitucional, ao passo que no
fomento a competência atribuída legalmente ao ente estatal se restringe a conferir a ele
poderes para adotar, discricionariamente, medidas promocionais que terminam por
convencer outrem a fazer ou deixar de fazer algo".120

Observe-se que a nota essencial da distinção do fomento para o serviço


público é que naquele a atividade permaneça sendo uma atividade privada,
apenas apoiada pelo Estado. Se a subvenção estatal, aqui colocada como uma
das (principais) técnicas do fomento,121 passar a ser de tal monta que a
Administração Pública de fato se substitua ao particular, então já estaremos
diante da prestação da atividade pela própria Administração Pública, podendo o
particular eventualmente ser caracterizado como um delegatário atípico (OSCIP's,
etc.) ou um ente terceirizado.122

5.4 – ATIVIDADES ECONÔMICAS EXPLORADAS PELO ESTADO (EM


CONCORRÊNCIA COM INICIATIVA PRIVADA E COMO MONOPÓLIO).

De acordo com a doutrina e jurisprudência majoritárias,123 a Constituição de


1988 distingue claramente o serviço público da atividade econômica explorada
pelo Estado, que em seu conjunto constituem as atividades econômicas lato
sensu. 124

119
MALJAR, Daniel Edgardo, Intervención del Estado en la Prestación de Servicios Públicos, Ed.
Hammurabi, Buenos Aires, 1998, p. 283.
120
MELLO, Célia Cunha. O Fomento da Administração Pública, Ed. Del Rey, Belo Horizonte,
2003, pp. 54-56. Na doutrina nacional, ver também TRAMONTIN, Odair. Incentivos Públicos a
Empresas Privadas & Guerra Fiscal, Ed. Juruá, Curitiba, 2002.
121
Cf. SAINZ, Alfredo Arranz. La Gestión de Subvenciones: Perspectiva jurídica de su concesión y
disfrute, Tribuna Libros, Madrid, 1996, pp. 13-14.
122
Cf. ALCÁZAR, Mariano Baena del. “Sobre el Concepto de Fomento”, in Revista de
Administración Pública, nº. 54, Madrid, 1967, p. 76.
123
Por todos, GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, Ed. Malheiros,
São Paulo, 4ª. ed., 1998, pp. 137-139.
124
Quanto à caracterização dos serviços públicos com atividades econômicas lato sensu, ver o
Tópico 4.2.6 supra. Na ordem econômica temos, de um lado, o art. 175 sobre os serviços públicos,
e, de outro, artigos como o 173 e o 177 sobre atividades econômicas exploradas pelo Estado. Ao
revés, na Espanha, por exemplo, não há dispositivo específico para os serviços públicos, que são
contemplados no art. 12.2 da Constituição como monopólios do Estado. Nesse país não há, então,
ao menos pela literalidade da sua Constituição, diferença entre serviço público e atividade

45
A atividade econômica lato sensu destina-se à circulação de bens e/ou
serviços do produtor ao consumidor final. O serviço público é a atividade
econômica lato sensu que o Estado toma como sua em razão da pertinência que
possui com necessidades ou utilidades coletivas. Há atividades econômicas
exploradas pelo Estado, em regime de monopólio ou não, que possuem,
naturalmente, interesse público, mas que não são relacionadas diretamente com
o bem-estar da coletividade, mas sim a razões fiscais, estratégicas ou
econômicas (p. ex., o petróleo, as loterias, em alguns países o tabaco, os
cassinos, etc.).

EROS ROBERTO GRAU é muito claro ao alertar "que a mera atribuição de


determinada competência atinente ao empreendimento de atividades do Estado não é
suficiente para definir essa prestação como serviço público. No caso (art. 21, XXIII, CF),
assim como no do art. 177 – monopólio do petróleo e do gás natural –, razões creditadas
aos imperativos da segurança nacional é que justificam a previsão constitucional de
atuação do Estado, como agente econômico, no campo da atividade econômica em
sentido estrito. Não há, pois, aí serviço público. (...) O que determina a caracterização de
determinada parcela da atividade econômica em sentido amplo como serviço público é a
sua vinculação ao interesse social."125

Em relação à atividade econômica stricto sensu, a Constituição estabelece


numerus clausus o monopólio em favor da União de uma série de bens e
atividades a eles correlatas, com destaque para os bens minerais, inclusive os
minerais nucleares e o petróleo (arts. 20, 21, XXIII, 176 e 177).126

A exploração pelo Estado de outras atividades econômicas stricto sensu,


que, além daquelas que são objeto de monopólio, são permitidas ao Estado
apenas em regime de concorrência com a iniciativa privada e desde que sejam
necessárias aos imperativos da segurança nacional ou ao atendimento de
relevante interesse coletivo (art. 173). Vige para essas atividades o princípio da
liberdade de iniciativa, que não exclui o que a doutrina espanhola chama de
iniciativa econômica pública, desde que atendidos esses conceitos jurídicos
indeterminados.

Uma diferença formal importante é que a prestação de atividades


econômicas pelo Estado em concorrência com a iniciativa privada pode ser
prevista tanto na Constituição, como em leis formais,127 desde que atendidos os
conceitos jurídicos indeterminados postos no caput do art. 173 (segurança

econômica monopolizada pelo Estado, distinção que, nesse país, se baseia tão-somente na
construção de parte da doutrina. A respeito das discussões doutrinárias existentes na Espanha
sobre o tema, ver FALLA, Fernando Garrido. Tratado de Derecho Administrativo, Ed. Tecnos,
Madrid, 10ª. ed., 1992, pp. 329-334.
125
GRAU, Eros Roberto. Constituição e Serviço Público, in Direito Constitucional: estudos em
homenagem a Paulo Bonavides, Ed. Malheiros, São Paulo, 2003, pp. 255, 257 e 262.
126
Para maiores detalhes quanto ao monopólio minerário, inclusive de exploração de Petróleo, ver
ARAGÃO, Alexandre Santos de. “As Concessões e Autorizações Petrolíferas e o Poder Normativo
da ANP”, in Revista de Direito Administrativo – RDA, vol. 228, 2002.
127
Trata-se de uma reserva absoluta de lei formal. A própria lei deve prever a atividade econômica
considerada relevante, não podendo haver qualquer atribuição de poder normativo para a
Administração Pública para tanto. A própria lei formal deve, em si, já possuir toda a densidade
normativa necessária.

46
nacional ou relevante interesse coletivo).128 Já em relação aos monopólios, não
há delegação do Constituinte para que o Legislador possa criar outros além dos já
previstos na própria Constituição.

Na comparação entre os serviços públicos e as atividades econômicas


exploradas pelo Estado há duas ordens de semelhanças simétricas.

Em primeiro lugar, temos os serviços públicos do art. 175, reservados ao


Estado e conseqüentemente vedados à iniciativa privada salvo delegação, e as
atividades econômicas monopolizadas, que também são reservadas ao Estado,
podendo igualmente ter apenas o seu exercício delegado à iniciativa privada (arts.
176 e 177). Em segundo lugar, há os serviços públicos sociais, que o Estado
presta sem excluir a iniciativa privada, e as atividades econômicas exploradas
pelo Estado com base no art. 173, sem titularizar a atividade, ou seja, sem
impedir que também possam ser exploradas pela iniciativa privada por direito
próprio.

A diferença em ambos os casos é que os serviços públicos têm por objetivo


o atendimento direto de necessidades ou utilidades públicas, não o interesse
fiscal ou estratégico do Estado, como ocorre com as atividades econômicas stricto
sensu.

"Uma coisa é a atuação empresarial do Estado, desenvolvida com


objetivos de rentabilidade econômica e conforme o mercado, e outra é –
ou deveria ser – a atividade 'de não-mercado' ou de serviço público. Esta
se define porque, a partir dos princípios de universalidade e de igualdade
que a preside, se dirige à satisfação de uma necessidade coletiva com
objetivos de justiça e de solidariedade social, prevalentes, em todo caso,

128
A maioria da doutrina entende que o art. 173 representa a adoção do princípio da
subsidiariedade no direito econômico brasileiro, ou seja, que o Estado só pode exercer
atividades econômicas fora dos casos já previstos na Constituição diante da
impossibilidade da iniciativa privada explorá-la satisfatoriamente. Outros autores, contudo,
questionam a assertiva, afirmando que o dispositivo utiliza conceitos jurídicos
indeterminados de praticamente impossível sindicabilidade judicial, com o que o juízo
sobre a sua presença ou não em determinada atividade acaba sendo de fato relegado
apenas ao juízo do Legislador ordinário, a exemplo dos conceitos de relevância e urgência
na edição de medidas provisórias em relação aos quais o STF já consolidou o
entendimento de que não pode controlá-los. De nossa parte, entendemos que, apesar de
tais conceitos realmente nem sempre permitirem o controle jurisdicional de
constitucionalidade, sob pena de o Judiciário se substituir ao Legislador, há zonas de
certeza negativa em que não haverá dúvidas quanto à possibilidade do controle. Para uma
específica análise da aplicação do Princípio da Subsidiariedade sobre a exploração de
atividades econômicas pelo Estado, admissível apenas nos casos de falha do mercado, ver
ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Econômico, in
Revista dos Tribunais – RT, vol. 800, 2002, e RICHER, Laurent. “Service Public et Intérêt
Prive”, in Archives de Philosophie du Droit, Tomo 41 – Le Privé et le Public, Ed. Sirey, Paris,
1997, p. 295.

47
sobre os critérios econômicos de rentabilidade na exploração do
serviço".129

RAMÓN PARADA também denota que a atuação econômica (stricto sensu)


do Estado não se funda na idéia de essencialidade dos serviços, mas no mais
amplo e difuso conceito de interesse público, no qual pode ser incluída qualquer
atividade de produção industrial ou de serviços econômicos que, de uma forma ou
outra, beneficie os habitantes de determinado local, ainda que apenas para lhes
proporcionar emprego, ou mais simplesmente para obter recursos para serem
destinados a outras atividades do Poder Público.130

O interesse do Estado nesses casos, afirma GASPAR ARIÑO ORTIZ, "não é


um interesse de utilidade do público, mas um interesse econômico global".131 Tanto nos
serviços públicos como nas atividades econômicas o Estado busca a realização
de finalidades públicas, que, todavia, são de espécies muito diferentes: "na gestão
econômica não há uma finalidade de serviço ao público, isto é, aos cidadãos
individualmente considerados, mas uma finalidade de ordenação econômica, de
conformação social, de serviço nacional, isto é, de promoção econômico-social da nação
considerada em seu conjunto".132

Em termos semelhantes, CRISTIANE DERANI afirma que "a diferença entre


um serviço público e uma outra atividade econômica exercida pelo Estado está
materialmente no seu produto e na forma de distribuição. Se o produto é de valor de uso
de toda a coletividade, e por isso se garante a universalidade, a equidade e a
continuidade, estamos diante de uma produção econômica retirada do mercado, para que
sua dinâmica se realize em razão do suprimento, para a coletividade, de valores de uso
essenciais à coesão social. Se o produto, embora não necessário à coletividade, obedece
a outros imperativos de interesse coletivo ou – uma especificidade deste – de segurança
nacional, por representar um agregador da sociedade no âmbito da produção econômica,
deve ser produzido, em um regime que não poderá ser designado como totalmente de
mercado, em virtude da natureza pública do agente, do capital investido e da distinção

129
MORENILLA, José Maria Souvirón. La Actividad de la Administración y el Servicio Público, Ed.
Colmares, Granada, 1998, p. 574. Gaspar Ariño Ortiz observa, no entanto, que há atividades
estatais em que o interesse por ingressos financeiros está associado a finalidades de serviços ao
público, casos em que prevalecerá a natureza de serviço público (ORTIZ, Gaspar Ariño. Principios
de Derecho Público Económico, Ed. Comares e Fundación de Estudios de Regulación, Granada,
1999, p. 501).
130
PARADA, Ramón. Derecho Administrativo, I, Ed. Marcial Pons, Madrid, 11ª. ed., 1999, p. 478.
"A atividade econômica desenvolvida pelo Estado também apresenta interesse público, só que
subjetivo, à medida que depende da valorização da Administração; não traz em si mesma o
interesse público; mas se lhe atribui um interesse público" (BAZILLI, Roberto Ribeiro. “Serviços
Públicos e Atividades Econômicas na Constituição de 1988”, in Revista de Direito Administrativo –
RDA, vol. 197, 1994, pp. 15-16). Caso muito comum foi a transferência para o Estado de grandes
indústrias como forma de evitar que fechassem as suas portas. Ampliar em STEFANELLI, Maria
Alessandra. La Tutela dell'Utente di Publici Servici, Ed. CEDAM, Padova, 1994, p. 68.
131
ORTIZ, Gaspar Ariño. Principios de Derecho Público Económico, Ed. Comares e Fundación de
Estudios de Regulación, Granada, 1999, p. 241.
132
ORTIZ, Gaspar Ariño. Principios de Derecho Público Económico, Ed. Comares e Fundación de
Estudios de Regulación, Granada, 1999, p. 494, grifamos.

48
dos seus objetivos em relação aos objetivos individuais que movem as relações de
mercado".133

6 – SERVIÇOS PÚBLICOS SOCIAIS E SERVIÇOS COMPARTIDOS.

Há uma série de atividades assistenciais e culturais (saúde e educação, e,


mais tarde, cultura, lazer, pesquisas científicas, etc) que na Idade Média eram
satisfeitas por ordens religiosas, de caridade e outros entes intermédios entre os
indivíduos e o poder político, como a Igreja e as corporações de ofício. Com a
proscrição dos entes intermédios pelas revoluções liberais, o Estado teve que
assumir estas atividades.

Porém, a iniciativa privada pôde, via de regra, ultrapassado o furor


revolucionário liberal, voltar a explorá-las. Nesse momento, os entes intermédios
sem fins lucrativos também foram reabilitados para o seu exercício.

O Estado, no entanto, por impossibilidade desses atores não-estatais


atenderem de forma integral as exigências da sociedade em relação à fruição
desses serviços, exigências muitas vezes constitucionalmente positivadas, não
poderia voltar a deixar de prestá-los, deixando-os novamente apenas com a
iniciativa privada e com o terceiro setor. A partir de então, essas atividades
passaram a ser chamadas de serviços públicos (sociais ou culturais) quando
prestadas, e não apenas fiscalizadas, pelo Estado.134

Elas possuem a peculiaridade de poderem ser prestadas tanto pelo Estado


como pela iniciativa privada, com ou sem fins lucrativos. São atividades
econômicas com potencial lucrativo, mas que, mesmo não sendo monopólios
naturais, o mercado e o terceiro setor não são capazes de por si sós satisfazer os
fortes interesses coletivos em usufruí-las.135 Por essas razões o Estado também
as presta, mas o faz gratuitamente ou de forma bastante subsidiada, pois do
contrário as necessidades sociais correlatas continuariam insatisfeitas, razão pela
qual o Constituinte entendeu deverem elas ser em regra satisfeitas

133
DERANI, Cristiane. Privatização e Serviços Públicos: as Ações do Estado na Produção
Econômica, Ed. Max Limonad, São Paulo, 2002, pp. 197-198.
134
Marçal Justen Filho classifica os serviços públicos como "sociais: aqueles que satisfazem
necessidades de cunho social ou assistencial, tal como a educação, a assistência, a seguridade;
comerciais e industriais: aqueles que envolvem o oferecimento de utilidades materiais necessárias
à sobrevivência digna do indivíduo, tal como a água tratada, a energia elétrica, as
telecomunicações; culturais: os que satisfazem necessidades culturais, envolvendo o
desenvolvimento da capacidade artística e o próprio lazer, tais como museus, cinema, teatro"
(JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, Ed. Saraiva, Rio de Janeiro, 2005, p.
499). Entendemos que os serviços públicos ditos culturais podem, sem que isso cause nenhuma
alteração no seu regime jurídico, ser considerados tanto como espécie autônoma, como integrante
da categoria dos serviços públicos sociais.
135
ROJAS, Francisco José Villar. Privatización de Servicios Públicos, Ed. Tecnos, Madrid, 1993, p.
156.

49
independentemente das condições financeiras dos cidadãos usuários, conforme
dispositivos constitucionais analisados no Tópico 4.1 supra.

Uma questão que se coloca é se essas atividades podem ser colocadas


sob a mesma categoria jurídica, independentemente de serem prestadas pelo
Estado ou por particulares por direito próprio (não como delegatários estatais).

A Constituição indica em sentido negativo ao, por exemplo, tratar dos


serviços de saúde prestados pelo Estado como "serviços públicos de saúde" (art.
198), mas se valendo da nomenclatura distinta de "serviços de relevância pública"
quando deseja abranger também os casos em que sejam prestados pela iniciativa
privada (art. 197, CF). Em outras palavras, a Constituição as considera serviços
públicos quando prestadas pelo Estado, e serviços de relevância pública quando
exploradas por particulares, mantido, nesse caso, o regime jurídico privado e as
regras da livre iniciativa,136 sem prejuízo, naturalmente, em alguns casos
(principalmente saúde e educação), da forte regulação sobre elas incidente,
inclusive mediante a sujeição a autorizações administrativas prévias e operativas,
constituindo-as como atividades econômicas privadas de interesse público.

O STF, ao julgar a ADIn nº. 319-4-DF, contra lei que estabelecia controles
sobre o aumento do valor das mensalidades das escolas privadas (Lei nº.
8.039/90), afirmou o caráter privado dos serviços prestados por esses
estabelecimentos, mas, realizando uma ponderação entre os interesses públicos
e privados envolvidos, considerou constitucional o controle dos preços. Forte
ingerência estatal também tem sido admitida nos serviços privados de saúde.137

Também há polêmica a respeito desses serviços sociais, quando prestados


pelo Estado, poderem ou não ser incluídos na categoria dos serviços públicos.
Grande parte da doutrina considera, com base no art. 175 da Constituição, que
apenas as atividades sob reserva estatal exclusiva, ou seja, titularizadas pelo
Estado, apenas delegáveis à iniciativa privada, podem ser consideradas serviços
públicos, adotando o conceito restritíssimo (Tópico 4.2.4), no qual não estão
contidos os serviços sociais e culturais prestados pelo Estado sem exclusão da
iniciativa privada.

CARLOS ARI SUNDFELD, por exemplo, sustenta que "os serviços públicos
importam na criação de utilidades e comodidades fruíveis direta e individualmente pelos
particulares, em setores reservados exclusivamente ao Estado". Já "os serviços sociais
são, à semelhança dos serviços públicos, atividades cuja realização gera utilidades ou
comodidades que os particulares fruem direta e individualmente. No entanto, diferenciam-
se daqueles por não serem exclusivos do Estado. (...) A prestação de tais serviços é
dever inafastável do Estado, tendo os indivíduos o direito subjetivo de usufruí-los. O
objetivo do Constituinte ao outorgar tais competências ao Poder Público não foi a de
reservá-las, mas sim a de obrigar a seu exercício. Os particulares exploram os serviços

136
"O Estado também pode assumir a realização de atividades de interesse público de titularidade
privada (...). Isto não provoca uma mutação ou extensão do regime jurídico do serviço público
quando as atividades são prestadas pelos particulares" (CASSAGNE, Juan Carlos, La Intervención
Administrativa, 2ª. ed., Ed. Albeledo-Perrot, Buenos Aires, p. 39).
137
V. GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti, na obra O Serviço Público e a Constituição Brasileira de
1988, Ed. Malheiros, São Paulo, 2003, p. 140.

50
sociais independentemente de qualquer delegação estatal. Tais serviços se
desenvolvem, portanto, em setores não reservados ao Estado, mas livres aos
particulares. Daí uma importante conseqüência: quando prestados pelo Poder Público,
submetem-se ao regime de Direito Público; quando prestados pelos particulares,
sujeitam-se ao regime de Direito Privado. Tal dualidade se justifica, porquanto os serviços
138
sociais são, ao mesmo tempo, atividade estatal e atividade dos particulares".

DANIEL EDGARDO MALJAR139 diz que foi com a necessidade metodológica


da maior redução possível do âmbito do conceito de serviço público que "surgiu a
idéia da publicização das atividades denominadas de 'serviços públicos'." VILLAR
PALASI detectou como eles se tornaram uma técnica institucional de criação de
títulos de poderes administrativos de intervenção na vida econômica e social.
Para caracterizar esta manifestação, o autor lança mão do tradicional termo da
'publicatio', entendida como a técnica que se dirige à criação de títulos ope
proprietatis, de potestade sobre atividades privadas, com o fim de controlá-las.
Com a publicatio se encontrou o caminho, no Direito Administrativo, para restringir
o conceito, situando o mesmo como uma atividade estatizada, desenvolvida pela
Administração Pública ou delegada aos particulares mediante o regime jurídico da
concessão de serviço público, distinta de outras atividades desenvolvidas pela
Administração que cumprem finalidades extremamente diversas.

ARIÑO ORTIZ também já afirmou que, "caso se deseje chegar a um conceito


coerente de serviço público, é preciso afirmar a exclusividade da atividade a favor do
Estado, pois, do contrário, o serviço público seria uma coisa indefinível e, portanto, inútil
para o Direito. (...) Nosso Direito conhece há muito tempo atividades industriais ou
comerciais que, sem pressupor o exercício de prerrogativas típicas de Direito Público,
têm a titularidade reservada ao Estado (exclusividade regaliana). Essas atividades são os
serviços públicos em sentido estrito".140

Aplicando esses pressupostos teóricos aos serviços sociais, se afirma que,


"em razão de sua natureza, esses serviços, quando estão sendo prestados pelo Estado,
não perseguem fins lucrativos, sendo geralmente até mesmo deficitários, o que determina
um regime especial de financiamento, já que apenas podem ser mantidos através de
impostos ou contribuições; enquanto que os serviços públicos cuja natureza é industrial
ou comercial admitem apenas o financiamento na base de preços ou taxas. (...) Também
são características daquele tipo de prestações a possibilidade de atuação dos
particulares exercendo um direito próprio, dentro dos limites que forem fixados pelas leis.
Essa característica constitui uma das diferenças fundamentais com o regime de serviço
público, pois nesses últimos o particular atua, não exercendo um direito próprio, mas por

138
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público, Ed. Malheiros, São Paulo, 1992, p.
83. A passagem é interessante para relativizar a importância prática de algumas divergências
classificatórias e conceituais. No caso, por exemplo, apesar de o autor, ao contrário do que
propomos, separar conceitualmente os dois institutos, acaba ao final da citação atribuindo regime
jurídico público aos serviços sociais prestados pelo Estado.
139
MALJAR, Daniel Edgardo, Intervención del Estado en la Prestación de Servicios Públicos, Ed.
Hammurabi, Buenos Aires, 1998, pp. 95-97.
140
Na doutrina brasileira, neste sentido, ver, entre outros, AZEVEDO, Fernando Costa de. Defesa
do Consumidor e regulação: a participação dos consumidores brasileiros no controle da prestação
de serviços públicos, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002, pp. 39-40.

51
delegação da Administração, no marco do contrato administrativo de concessão de
serviço público."141

Entendemos, no entanto, como já exposto no Tópico 4.4 supra, que, apesar


da plausibilidade da tese exposta, essas atividades (saúde, educação, etc.)
devem ser denominadas em seu conjunto como "serviços compartidos", sendo
que, quando exploradas pelos particulares, são atividades econômicas privadas,
eventualmente, de interesse público ou regulamentadas, e quando exploradas
pelo Poder Público são serviços públicos sociais, espécie classificatória do gênero
serviço público caracterizada, ao contrário de todos os demais serviços públicos,
pela inexistência da reserva de titularidade estatal.

É com essa perspectiva que EROS ROBERTO GRAU faz, com


nomenclatura diversa, a mesma distinção entre as duas (únicas) espécies que, a
nosso ver, existem de serviços públicos. Vejamos as palavras do Ministro:
"Cumpre distinguirmos os serviços públicos privativos dos serviços públicos não-
privativos. Entre os primeiros aqueles cuja prestação é privativa do Estado (União,
Estado-membro ou Município), ainda que admitida a possibilidade de entidades do setor
privado desenvolvê-los, apenas e tão-somente, contudo, em regime de concessão ou
permissão (art. 175 da Constituição de 1988). Entre os restantes – serviços públicos não-
privativos aqueles que têm por substrato atividade econômica que tanto pode ser
desenvolvida pelo Estado, enquanto serviço público, quanto pelo setor privado,
caracterizando-se tal desenvolvimento, então, como modalidade de atividade econômica
em sentido estrito. Exemplos típicos de serviços públicos não-privativos temos nas
hipóteses de prestação dos serviços de educação e saúde".142

141
MALJAR, Daniel Edgardo, Intervención del Estado en la Prestación de Servicios Públicos, Ed.
Hammurabi, Buenos Aires, 1998, pp. 226-227. Outros autores também afirmam: "Aceitar a
publicatio como elemento delimitador do serviço público faz com que este seja uma atividade da
competência exclusiva do Estado, com todas as diferenças lógicas com aquelas outras atividades
de prestação, tanto as concorrentes entre a Administração Pública e os particulares, ou as
privadas fortemente disciplinadas, diferenças como o título de habilitação de gestores privados,
poderes de alteração unilateral das condições de prestação do serviço, regime de afetação de
bens, substituição do concessionário, poder tarifário, etc. Nesse contexto, cabe afirmar que as
concessões só podem ter lugar em relação às atividades de titularidade reservada ao Estado,
mediante, naturalmente, uma lei formal. Na falta de reserva, vige em toda a sua vitalidade o
princípio da livre iniciativa, e tais atividades, por mais regulamentadas que sejam, exigirão apenas
a autorização prévia e a fiscalização que todo serviço 'ao público' demanda (bancos, seguros,
farmácias, e demais atividades disciplinadas). Assim, os serviços chamados assistenciais (saúde,
educação, esporte, beneficência, cultura), ainda quando sejam prestados em estabelecimentos
públicos, não são serviços públicos, nem se lhes aplica o seu regime jurídico, só naquilo que
decorrer tão-somente das condições subjetivas de pessoa jurídica de Direito Público, sempre em
grande monta regida pelo Direito Público, do Ente que o presta" (URRUTIGOITY, Javier.
Retribuición en los Servicios Públicos, in Los Servicios Públicos: régimen jurídico actual [coord.
Marta González de Aguirre], Depalma, Buenos Aires, 1994, p. 66).
142
GRAU, Eros Roberto. Constituição e Serviço Público, in Direito Constitucional: estudos em
homenagem a Paulo Bonavides, Ed. Malheiros, São Paulo, 2003, p. 252. No mesmo sentido,
MODESTO, Paulo. “Reforma Administrativa e Marco legal das Organizações Sociais no Brasil”, in
Revista de Direito Administrativo – RDA, vol. 208, 1997, p. 210. "O conceito de serviço público, no
Brasil, segue, em suas grandes linhas, a noção clássica francesa, designando, por conseqüência,
aquele serviço que é prestado por órgão estatal, visando fim de utilidade pública, ou executado por
particular, mas, neste caso, sempre por delegação do Estado. Em outras palavras, para
qualificação de um serviço como público, a par do interesse geral a que se destina satisfazer, é
indispensável a existência de um vínculo orgânico entre ele e o Estado. Este é o titular do serviço,

52
Para, à luz do direito positivo brasileiro, considerá-los serviços públicos
quando prestados pelo Estado, ainda que sem reserva, há as seguintes razões:
(a) a referência explícita ou implícita da Constituição a alguns deles como
"serviços públicos" (de saúde – art. 198 –, por exemplo); (b) natureza e finalismo
específico, consistentes na busca de oferta a todos os potenciais usuários para
satisfação de suas necessidades; e (c) o fato de alguns desses serviços não
poderem ser, até pela pertinência com alguns direitos fundamentais (ex.:
liberdade de ensino e de aprendizagem),143 de titularidade exclusiva do Estado, o
que acarretaria uma restrição à liberdade individual, não de cunho empresarial (p.
ex., uma expressão da liberdade religiosa é a possibilidade das religiões criarem
os seus colégios católicos, judaicos, presbiterianos, etc., e dos pais que
integrarem alguma dessas confissões neles matricularem seus filhos). 144

muito embora a sua gestão possa ser transferida a particulares. Nesse contexto, seria inaceitável
falar-se em exercício de função pública por particulares sem existir qualquer ato jurídico de Direito
Público, mesmo implícito, que importe delegação do desempenho daquela função, o que equivale
a dizer que a atividade privada, por mais relevante e útil que seja para toda a sociedade, não
caracteriza, por si só, via de regra, serviço público. Por certo, há tipos de atividades de interesse
geral que são desempenhadas tanto pelo Estado como pelos indivíduos. O Estado não se
apresenta, nesses casos, como o titular exclusivo dos serviços. É o que acontece, entre muitas
outras hipóteses, com as atividades relacionadas com o ensino ou a saúde. Quando prestadas
pelo Estado ou executadas por delegação estatal elas se inserem no âmbito do conceito de
serviço público. Se ausente qualquer laço com o Estado, elas são geralmente tidas e consideradas
como atividades ou serviços puramente privados. Há neste particular, entretanto, uma exceção
importante. Por vezes a intensidade da nota de interesse público que assinala certas atividades
desempenhadas pelos particulares faz com que a elas se estenda o Direito Público, por
considerar-se que seus prestadores estão investidos em funções públicas delegadas, de sorte que
alguns dos seus atos são tidos como atos administrativos, impugnáveis pela via do mandado de
segurança. É o que acontece com os atos de diretores de estabelecimentos privados de ensino
suscetíveis de serem combatidos por aquela ação constitucional. Segundo antiga classificação de
Laubadère, seriam eles atos administrativos em sentido apenas funcional. Por outro lado, uma vez
que os estabelecimentos privados de ensino não são permissionários nem concessionários de
serviços públicos, necessitando porém de autorização do Estado para que possam funcionar,
como ocorre com algumas atividades privadas (CF, art. 170, parágrafo único), não é impertinente
ver nessa situação excepcional algo muito semelhante, senão idêntico, às hipóteses
compreendidas pelo conceito de serviço público em sentido 'objetivo' ou 'impróprio', ou 'virtual', no
sentido que dá a estas expressões a doutrina italiana, e nas quais sobreleva o caráter de 'missão
de interesse geral', com a qual se confunde a noção de serviço público em sentido puramente
material" (COUTO E SILVA, Almiro do. “Privatização no Brasil e o novo Exercício de Funções
públicas por Particulares”. Serviço Público à Brasileira?, in Revista de Direito Administrativo –
RDA. Ed. Renovar, vol. 230, 2002, pp. 45-46).
143
MORENILLA, José Maria Souvirón. La Actividad de la Administración y el Servicio Público, Ed.
Colmares, Granada, 1998, pp. 574-575. Por essas razões, o Tribunal Constitucional Federal
Alemão já considerou inconstitucional o monopólio público da televisão (cf. MACHADO, Santiago
Muñoz. Tratado de Derecho Administrativo y de Derecho Público General, Tomo I, Civitas, Madrid,
2004, p. 255).
144
"'Frank Moderne identificou uma vertente doutrinária que não admite que sejam incluídas na
idéia de serviço público atividades que, constitucionalmente, identificam-se com as liberdades
públicas ou direitos fundamentais. Por exemplo, a educação é um direito fundamental que é
garantido constitucionalmente, portanto, não deveria identificar-se como um serviço público. Sob a
ótica das liberdades públicas, a configuração da educação como serviço público corre o risco de
afetar liberdades constitucionalmente garantidas, tais como a liberdade de empresa (de construir
estabelecimentos de ensino) e mesmo a garantia da liberdade de pensamento (através da
imposição de uma dada ideologia). Uma decorrência importante da compatibilização das
liberdades públicas com o âmbito dos serviços públicos é a incompatibilidade de existência de

53
A grande conseqüência da caracterização dessas atividades como serviços
públicos quando prestadas pelo Estado é excluí-las da vedação de concorrência
desleal do Estado com a iniciativa privada prescrita no art. 173, §§ 1º. e 2º., da
Constituição Federal,145 aplicável apenas às atividades econômicas exploradas
pelo Estado que não sejam qualificáveis como serviços públicos.146

O art. 173 da Constituição tem, com efeito, como seu único objeto as
atividades econômicas stricto sensu exploradas mas não monopolizadas pelo
Estado. Não abrange, portanto, de um lado, as atividades econômicas lato sensu
que a Constituição ou o Legislador considere serviços públicos (reservados ou
não ao Estado), nem, por outro lado, as atividades econômicas stricto sensu
monopolizadas pelo Estado.

Assim, as escolas privadas não podem argüir a concorrência desleal das


escolas públicas que gozem de favores do Poder Público, que inclusive as
financia a ponto de assegurar o acesso gratuito, uma vez que a educação pública,
ainda que não exclua a iniciativa empresarial privada no setor, não é atividade
econômica do Estado, mas sim um serviço público.147

Referência Bibliográfica deste Trabalho:


Conforme a NBR 6023:2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT),
este texto científico em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

ARAGÃO, Alexandre Santos de. O CONCEITO DE SERVIÇOS PÚBLICOS NO DIREITO


CONSTITUCIONAL BRASILEIRO. Revista Eletrônica de Direito Administrativo
Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 17,
fevereiro/março/abril, 2009. Disponível na Internet:
<http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp>. Acesso em: xx de xxxxxx de xxxx

monopólio sobre a atividade que resulta de liberdade pública" (JUSTEN, Mônica Spezia. A Noção
de Serviço Público no Direito Europeu, Ed. Dialética, São Paulo, 2003, p. 121).
145
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade
econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º. A lei estabelecerá o
estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que
explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de
serviços, dispondo sobre: I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela
sociedade; II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos
direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III - licitação e contratação de
obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV - a
constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de
acionistas minoritários; V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos
administradores. § 2º. - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão
gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.
146
Cf. Tópico precedente.
147
MORENILLA, José Maria Souvirón. La Actividad de la Administración y el Servicio Público, Ed.
Colmares, Granada, 1998, pp. 574-575. O autor ibérico também afirma (ob. cit., p. 215) "existirem
autênticos serviços públicos prestados pela Administração ainda que a atividade de que trate não
tenha sido monopolizada de jure por esta, e sem que, portanto, esta atuação prestacional pública,
efetuada sem reserva, deva reconduzir-se à mera iniciativa pública (na economia) desenvolvida
em paridade de trato e livre concorrência com as empresas privadas análogas (caso em que
certamente não estaríamos diante de serviço público)."

54
Observações:
1) Substituir “x” na referência bibliográfica por dados da data de efetivo acesso
ao texto.
2) A REDAE - Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico - possui
registro de Número Internacional Normalizado para Publicações Seriadas
(International Standard Serial Number), indicador necessário para referência
dos artigos em algumas bases de dados acadêmicas: ISSN 1981-1861
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