CLEMENTE DE ALEXANDRIA
O PEDAGOGO
TRADUÇÃO
IARA FARIA
JOSÉ EDUARDO CÂMARA DE BARROS CARNEIRO
2014
EDITORA ECCLESIAE
LIVRO I
CAPÍTULO I
O OFÍCIO DO PEDAGOGO
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
DA BONDADE DO PEDAGOGO E DE SEU AMOR PELOS HOMENS
O Senhor nos é útil e nos ajuda em todas as coisas como homem
verdadeiro e Deus verdadeiro: perdoa os nossos pecados enquanto Deus; instrui-nos
enquanto homem, ensinando-nos a não pecar. Como o homem foi criado por Deus, por
Ele é amado. Todas as outras criaturas também surgiram do nada, através de um só de
seus comandos. Mas Ele modelou o homem com as próprias mãos, insuflando-lhe na
alma todas as virtudes que lhe são próprias. Se Deus nos quis criar à sua imagem e
semelhança, é evidente que o fez ou por causa da excelência da nossa natureza, ou por
algum outro motivo igualmente digno de sua solicitude e de seu amor. Se por Ele fomos
criados por causa da bondade de nossa natureza, esse Deus, a suma bondade, amou em
nós aquilo que é bom; pois há no homem algo de amável, e isto é o que provém da
própria vontade de Deus. Sendo por um outro motivo, não há a menor dúvida de que,
não fosse a criação, as outras obras de Deus, privadas da faculdade de conhecer e adorar
seu criador, jamais poderiam testemunhar a divina perfeição. Ele criou as coisas para o
homem; portanto, o homem deveria necessariamente ser criado. Logo, Deus criou as
coisas materiais por um motivo alheio a essas mesmas coisas: criou-as somente por
causa do homem. Ele sabia o que ia fazer e fez aquilo que era a sua vontade, pois não há
nada que Deus não possa fazer. O homem, criatura de Deus, é, portanto, um ser amado.
Ora, Deus não poderia deixar de amar tudo aquilo que merece ser amado. Logo, Ele nos
ama. Como não nos amaria, dado que, do seu coração paternal, ele nos envia seu único
filho, que é fonte inesgotável de amor e de fé? E o próprio Senhor reconhece que esse
amor, quando nos disse: “Pois o próprio Pai vos ama, porque me amastes e crestes que
vim de Deus” (Jo 16, 27). E reafirma, quando volta-se ao Pai: “Amaste-os como amaste
a mim” (Jo 17, 23). Segue, portanto, que a vós se revela a vontade do pedagogo; a
natureza de seus auxílios e a maneira doce e afetuosa pela qual nos convida a praticar o
bem e desviar-nos do mal. Ainda é mais claro que esse Verbo divino exerce a nosso
favor um outro ofício, cujo objetivo é de nos instruir nas coisas invisíveis, espirituais e
misteriosas.
Mas como não é uma questão que pretendo tratar agora nesses ensinamentos, é-
me suficiente fazer-vos observar como é adequado retribuir, de alguma forma, a um
Deus que por amor nos conduz à suma bondade. Observemos como é justo conformar
nossa vida aos seus mandamentos, não apenas cumprindo fielmente aquilo que Ele nos
ordena – ou evitando fazer aquilo que Ele nos proíbe – mas, procurando sempre
assemelhar-se a Ele da maneira mais perfeita que nos seja possível, com a ajuda dos
exemplos que nos aparecem diante dos olhos – seja para imitá-los, seja para deles fugir.
De fato, passamos por profundas trevas nesta vida, e não saberíamos delas sair sem o
apoio de um guia que jamais se engana, enfim, um guia confiável e fiel. E este guia é
por excelência o bom pedagogo, que não é, como nos diz a Escritura, um cego
conduzindo cegos ao precipício. “Se um cego conduz outro cego, ambos cairão no
abismo” (Mat 15, 14). Pelo contrário, é o Verbo cujo olhar austero penetra nos mais
secretos vincos do nosso coração. Como não há luz que não ilumine, nem motor que
não faça mover coisa qualquer, também é impossível que a suma bondade não seja útil
aos homens; que não os conduza para a salvação. Tiremos, portanto, nossos preceitos de
seus exemplos e obras. O Verbo se fez carne para melhor nos ensinar a prática e a teoria
da virtude. Que esta seja a nossa única lei: encaremos os seus preceitos e seus avisos
como a via mais curta e mais direta para nos conduzir à eternidade. Seus mandamentos
estão repletos de razão –– e não de medo!
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
TODOS OS QUE TOMAM A VIDA DA VERDADE SÃO FILHOS DE DEUS
CAPÍTULO VI
CONTRA OS QUE PENSAM QUE „CRIANÇA‟ REPRESENTA UMA MARCA DA
FRAQUEZA NASCENTE DA NOSSA INSTRUÇÃO
O Batismo, como um remédio soberano, cura todos os nossos pecados, sem exceção,
fazendo-os desaparecer sem deixar o menor traço. Ele chega, pela graça da iluminação
que é derramada sobre nós, de tal modo que já não somos mais os mesmos de antes de
havê-lo recebido. Se o conhecimento nos aparece ao mesmo tempo em que a
iluminação; se a luz vem sempre iluminar nosso espírito; se, de grosseiros e ignorantes
que seríamos imediatamente, nós merecermos, num instante, ser chamados de
discípulos, isso é efeito a instrução que recebemos? Seria difícil precisar quando isso
ocorreu. A instrução que recebemos pelos sentidos dos ouvidos conduz-nos à fé. A fé
nos é ensinada pelo Espírito Santo no instante em que recebemos o Batismo. Que a fé,
com efeito, é a salvação universal, e que a justiça e a bondade de Deus são comunicadas
igualmente a todos os homens, o apóstolo Paulo assegura-nos nestes termos: “Antes que
a fé viesse, estávamos debaixo da guarda da lei, encerrados para aquela fé que havia de
ser revelada” (Gal 3, 23)
Assim, a lei foi nossa primeira pedagoga em Jesus Cristo, a fim de que a fé nos
justificasse. Vindo a fé, a lei deixou de ser a nossa pedagoga. Vós não sabeis que não
estamos mais sob o jugo dessa lei severa que nos governava pelo medo, mas sim, sob a
condução do Verbo, que é o pedagogo do livre-arbítrio? O apóstolo acrescenta em
seguida palavras que nos fazem ver que Deus não faz distinção das pessoas:
Observai como ele chama de crianças aqueles que estão submissos ao medo e ao
pecado, e como ele chama de filhos àqueles que vivem sob a fé, a fim de melhor
distingui-los das crianças, que estão sob o jugo da lei. Diz: “E assim já não és servo,
mas filho. E se és filho, também és herdeiro por Deus” Que falta então aos filhos
herdeiros? Eis aqui a explicação que podemos dar a essas palavras de São Paulo (que
era judeu de nascimento) : “Quando eu era menino, falava como menino, julgava como
menino, discorria como menino. Mas depois que eu cheguei a ser homem feito, dei de
mão às coisas que eram de menino” (I Cor 13, 11). Mas a infância , segundo Cristo, é a
perfeição. Devemos, portanto, defender aqui nossa infância contra a infância da ei; e
aqui devemos ainda dar a interpretação das seguintes palavras do mesmo apóstolo: “E
eu, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, senão como a carnais, como a
pequeninos em Cristo. Leite vos dei a beber, não comida, porque ainda não podíeis; e
nem agora ainda o podeis, porque ainda sois carnais”. (I Cor 3, 1-2)
Não creio que seria preciso compreender essas palavras de uma maneira judaica,
e eu oporei aqui outras palavras da Escritura: “Desci para livrá-los das mãos dos
egípcios, e para fazê-los passar desta terra para outra terra boa, e espaçosa; para uma
terra onde correm arroios de leite e de mel” (Ex 3, 8) Uma dúvida extrema nasce da
comparação dessas duas passagens. Se o começo da fé em Jesus Cristo é a infância
caracterizada pelo leite, e se esta infância deve ser desprezada como fútil e pueril, como
é possível que o repouso concedido, após o festim, ao homem perfeito e ao verdadeiro
douto seja simbolizado pelo leite, que não parece ser outra coisa senão o apoio da
infância? Nós poderíamos esclarecer as dificuldades dessas duas passagens lendo a
primeira da seguinte maneira: “Leite vos dei a beber”, e adiciona, após um curto
intervalo, “como às crianças”, a fim de que a separação que eu indico leve-nos a esta
interpretação: eu vos instruí em Jesus Cristo, eu fiz correr no vosso espírito um alimento
simples, natural, espiritual, tal como o leite, que é o alimento dos animais, que jorra dos
seios cheios de amor. Assim, podemos entender a passagem do apóstolo de maneira
seguinte: “Como as amas alimentam com seu leite os recém-nascidos, assim também
eu, com o Verbo, que é o leite de Cristo, alimento-vos com um alimento espiritual”.
O leite, portanto, é o mais perfeito dos alimentos e aquele que nos conduz à vida
eterna. Por isso, a Escritura promete-nos o leite e o mel após a cessação das nossas
fadigas. É com justiça que o Senhor promete igualmente o leite aos justos, a fim de
provar que o Verbo é duas coisas ao mesmo tempo, o alfa e o ômega, o começo e o fim.
Parece que Homero adivinhou, sem intenção, essa natureza misteriosa do leite, quando
ele chama aos homens virtuosos de “seres que se alimentam de leite” (γαλακηοθάγοι –
galaktofágoi). Podemos então tomar no mesmo sentido estas palavras do mesmo
apóstolo: “E eu, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, senão como a carnais,
como a pequeninos em Cristo”. O apóstolo entende por pessoas espirituais aqueles que
já creem no Espírito Santo, e por pessoais carnais os catecúmenos que não foram ainda
purgados por seus antigos erros.
Ele os chama de carnais porque seus pensamentos, como o dos gentios, eram
ainda pensamentos carne. “Porquanto havendo entre vós zelos e contendas, não é assim
que sois carnais, e andais segundo o homem?” (I Cor 3, 3) Por isso o apóstolo diz:
“Leite vos dei a beber”, o que quer dizer: “Eu derramei em vós, pelas minhas instruções,
conhecimentos que vos servirão de alimentos para a vida eterna” (1 Cor 3, 2). O leite
que ele os deu a beber é o símbolo da felicidade perfeita que os espera. Deveras, os
homens „bebem‟ e as crianças mamam: “O meu sangue verdadeiramente é bebida”.
Quando o apóstolo diz que nos deu a beber do leite, não é claro que ele deseja falar
dessa alegria perfeita, isto é, o conhecimento da verdade que encontramos no verbo, que
é nosso leite, nosso alimento? Estas palavras que ele acrescenta: “não comida, porque
ainda não podíeis”, podem significar, sob a figura de um alimento mais resistente, essa
grande revelação que terá lugar na vida futura, quando veremos Deus face a face.
“Nos”, diz o mesmo apóstolo, “agora vemos a Deus como por um espelho em enigmas,
mas então o veremos face a face” (I Cor 13, 12) Prosseguindo com o mesmo assunto,
ele acrescenta: “E nem ainda agora podeis, porque ainda sois carnais. Porquanto
havendo entre vós zelos e contendas”, não seremos mais dominados pela carne, como
pensaram alguns, mas tendo uma face semelhante à dos anjos, veremos a promessa face
a face”.
Como, então, se o cumprimento dessa promessa nos espera no fim da vida,
podem eles se gabar de saber que “o olho não viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais veio
ao coração do homem”, já que tudo o que sabem aprenderam pelo ministério dos
homens em vez do ministério do Espírito Santo? Como compreenderiam esses mistérios
que não foram revelados senão àqueles que foram arrebatados ao terceiro céu, mistérios
impenetráveis que são cobertos de um profundo silêncio? Mas se é a sabedoria humana
que o fazem falar, e se é o único motivo que podem nos dar, não poderíamos dizer que
tem glórias vãs da sua ciência? Escutem a regra que prescreve a Escritura: “Não se
glorie o sábio no seu saber, nem se glorie o forte na sua força, e não se glorie o rico nas
suas riquezas; porém, nisto se glorie aquele que se glóría em conhecer-me e em saber
que eu sou o Senhor” (Jer 9, 23-24)
Nós, que somos instruídos pelo Senhor, nos gloriamos no nome de Cristo.
Como, então, não supor que o Apóstolo falou aqui do leite que damos às crianças, já que
somos os pastores que governam as Igrejas à imagem do Bom Pastor, e que vós sois as
ovelhas que nos foram confiadas? Dizendo que o Senhor é o leite do rebanho, não
dizemos alegoricamente que Ele é o guardião? Mas voltemos novamente nosso espírito
ao verdadeiro significado destas palavras: “Leite vos dei a beber, não comida, porque
ainda não podíeis”, isso não significa que se trata de um tipo de alimento distinto do
leite, que já é um alimento mais substancial do que os outros. Pois o Verbo é por vezes
doce e fluido como o leite, por vezes compacto e sólido como os outros alimentos.
Podemos ainda comparar o leite à pregação da palavra divina, que corre e se espalha por
todos os lados, e o alimento sólido à fé, que, auxiliada pela instrução, torna-se o
fundamento inabalável de todas as nossas ações. Por esse alimento, nosso espírito
transforma-se, por assim dizer, em um corpo firme e sólido. Tal é o alimento do qual o
Senhor nos fala no Evangelho segundo São João, quando nos diz: “Comam da minha
carne e bebam do meu sangue” (Jo 6, 53) Este alimento é a imagem evidente da fé e da
promessa. Através dessa bebida e desse alimento, a Igreja, semelhante a um homem
formado por diversos membros, é regada e solidificada. Ela alimenta seu corpo e seu
espírito: seu corpo, de fé; seu espírito; de esperança. Ela, como o Senhor, também é
constituída de carne e sangue. A esperança é o sangue da fé, animando-a e fazendo-a
viver no nosso espírito. Destituída da esperança, a vida da fé seria como aquela de um
homem que perde seu sangue.
Se alguém deseja dar sua opinião e disser que o Apóstolo, sob o símbolo do leite,
pensou falar das primeiras instruções, comparando-as à primeira alimentação da alma, e
que por alimentos sólidos ele se referia aos conhecimentos espirituais que servem de
degrau para alcançar uma ciência mais alta, eles sabem, quando dizem que a carna e o
sangue de Jesus Cristo são alimentos sólidos, que essa ciência ilusória . Deveras, o
sangue é a primeira coisa feita no corpo do homem. Por isso mesmo é que alguns
filósofos não temem vê-lo como a essência do espírito. O sangue, após a mulher ter
concebido, muda de natureza por uma espécie de cocção: ele engrossa, descolore-se,
perde vida. O amor materno crê poder assegurar a existência da criança. O sangue é
mais fluído que a carne; pois ele é uma espécie de carne líquida, e o leite é a parte mais
doce e sutil do sangue. Contudo, somente o sangue transforma e aumenta os seios, que
então começam a inchar, por ordem de Deus, autor da geração e que alimenta a todos.
Ali, mudando de natureza, com o auxílio de um doce calor, ele se transforma em um
alimento muito agradável à criança. O leite provém então do sangue. Partindo das
numerosas veias que atravessam os seios em todos os sentidos, o sangue se refugia no
reservatório natural, onde se forma o leite. Este sangue, agitado pelos espíritos vitais,
embranquece, como embranquecem as ondas do mar quando, perturbadas pelo sopro
impetuoso dos ventos, lançam sua espuma na orla. No entanto, a substância do sangue
não muda.
É assim que a água dos rios, quando é arrebatada por uma corrente rápida e luta
contra os ventos, transforma-se na superfície em uma branca espuma que jorra longe das
suas margens. É assim que a saliva embranquece na nossa boca sob influência do nosso
hálito. Que haveria, então, de extraordinário em afirmar que o sangue pode tomar essa
cor magnífica devido ao calor interior? O leite não muda de substância, mas de
qualidade; e certamente vós não encontrareis alimento que seja mais nutritivo, mais
doce e mais branco do que o leite. Portanto, o leite é em tudo semelhante ao alimento
espiritual, que é doce como a graça, nutritivo como a vida, branco como o Cristo. Nós já
provamos que o sangue do verbo possui todas as propriedades do leite; aquele alimenta
a alma, e este dá a vida. O Cristo oferece-nos seu sangue da mesma maneira como o
leite é fornecido à criança após seu nascimento. Os seios, que se mantêm direitos e
firmes, parece que são instruídos a apresentar um alimento fácil de tomar, alimento
elaborado previamente pela natureza. É assim que o fiel tira o leite da salvação. Os seios
não são naturalmente cheios de leite, como uma fonte que está repleta de água; eles
possuem as disposições necessárias para transformar os alimentos em leite e para
destilá-lo. Deus, que é o Pai e provedor de todos os seres engendrados e regenerados,
prepara com suas próprias mãos o alimento mais conveniente ao recém-nascido; como o
maná, alimento celeste dos homens, foi derramado do alto do céu pelos antigos hebreus.
Sem dúvida, daí vem que as amas chamam de maná o primeiro leite que escapa de seu
seio. De mais a mais, as mulheres grávidas quando se tornam mães, produzem
naturalmente o leite. Nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de uma Virgem, não diz que os
seios das mulheres sejam afortunados; ele não tira daí sua subsistência. Mas enviado do
alto do céu por um pai pleno de bondade e de amor pelos homens, Ele se dá a si mesmo
aos homens sábios, como um alimento espiritual.
Ó milagre místico! Há somente um Pai, um verbo, um Espírito Santo, este Deus
único que é o Pai de todos os seres e está presente em toda parte. Há somente uma mãe
que é virgem, e é a Igreja, a qual eu amo a ponto de honrá-la com o doce nome de mãe.
É a única mãe que não teve leite, pois é a única que não foi mulher. Ela é ao mesmo
tempo virgem e mãe, pura como uma virgem e terna como uma mãe. Ela chama e reúne
ao seu redor seus filhos, que alimenta com o leite da sua palavra; ela não teve leite
porque o corpo de Jesus Cristo é o alimento que ela dá aos seus filhos, a essa gente nova
que os sofrimentos do Senhor criaram, e das quais ele mesmo envolveu o corpo
nascente e levou-o com seu precioso sangue. Ó Santo! Ó Santo Admirável! O verbo é
tudo para essa criatura: Pai, mãe, pedagogo, ama.
“Comam da minha carne”, disse-nos Ele, e “bebam do meu sangue”. Eis os
alimentos requintados que o Senhor nos dá: Ele nos oferece sua carne e verte seu
sangue, a fim de que seus filhos não sintam falta de nada para se nutrir e crescer. Ó
mistério que supera a razão! Ele ordena que nos despojemos do homem carnal e
corrompido, ordena que nos abstenhamos dos velhos alimentos, a fim de que,
participando da nova alimentação que Ele nos preparou, e recebendo Ele próprio, nosso
Pai e Salvador, no nosso seio, possamos, pela sua presença, purificar nossa alma das
paixões! Desejais desses mistérios uma explicação menos sábia e mais comum? Escutai,
então, o que vou dizer: o Espírito Santo que criou a carne do salvador, é o símbolo da
carne; o sangue designa o Verbo, pois o Verbo espalha-se sobre a vida como um sangue
rico e fecundo, o Senhor é a reunião do Verbo e do Espírito. O Senhor, que é tanto
Espírito como Verbo, é o alimento das crianças. Este alimento é Nosso Senhor Jesus
Cristo; este alimento é o verbo de Deus; este alimento é o Espírito feito carne, a carne
celeste santificada, o leite do Pai, o único alimento dos filhos; o verbo, que é nosso
amigo e nosso provedor, e cujo sangue verteu por nós; o salvador da humanidade, por
quem nós cremos em Deus, por quem nós corremos a beber no seio do Pai, onde o leite
faz-nos esquecer nossas dificuldades.
Eis porquê o apóstolo São Pedro diz: “Deixai, pois, toda malícia, todo o engano,
fingimento e inveja, e toda a sorte de detrações. Como meninos recém-nascidos, desejai
o leite espiritual com todo o ardor, para com ele crescerdes para a salvação. Se é que
haveis de provado quão doce é o Senhor”. Nossos adversários afirmam que o leite não é
um alimento sólido? É fácil provar-lhes que estão enganados e que não estudaram bem
as operações misteriosas da natureza. Quando o inverno estreita os poros do corpo e não
deixa saída ao calor interior, os alimentos bem digeridos trazem às veias uma grande
abundância de sangue, pois o corpo nada perde pela transpiração. Por isso, as amas têm
mais leite nessa estação do em qualquer outra. Já demonstramos que o sangue
transforma-se em leite nas mulheres grávidas, sem que essa transformação altere em
nada a substância daquele. É como ocorre com a cabeleira dos velhos, que antes loira,
torna-se branca. Durante o verão, ao contrário, estando os poros mais abertos, os
alimentos são digeridos mais rapidamente; também é o leite menos abundantes, assim
como o sangue, pois não se assimila todo o alimento.
Se os alimentos preparados com o calor natural transformaram-se em sangue, e
se o sangue converte-se em leite, não podemos negar que aquele seja matéria-prima
deste, como a vinha e do vinho; somos alimentados com leite desde o nosso nascimento.
Mal somos regenerados, já somos embalados pela esperança do repouso eterno e da
Jerusalém celeste que nos foi anunciada, donde manam o mel e o leite, conforme a
Escritura, que são os símbolos materiais do alimento espiritual que ali nos é preparado.
Já que o Verbo é a fonte eterna da vida, recebendo também o nome de rio de azeite, não
é sem razão que São Paulo, para continuar a alegoria, chama-o de leite, alimento que ele
nos dá a beber e que nos conduz à salvação, fazendo-nos cidadãos do Céu e
incorporando-nos ao coro dos anjos. Por isso, diz o Apóstolo: “Leite vos dei a beber”. (I
Cor 6, 13)
Do Verbo se bebe; o Verbo, alimenta da verdade. A bebida é certamente um
alimento líquido; a mesma substância pode ser bebida ou comida, conforme as diversas
maneiras de considerá-la: o leite condensado serve de alimento; já o leite líquido serve
de bebida. Não desejo presentemente procurar outros exemplos; me é suficiente dizer
que a mesma substância pode fornecer duas espécies de alimento. O leite sozinho já é
suficiente para alimentar as crianças pequenas: é sua carne e sua bebida. “Eu tenho para
comer um manjar, que vós não conheceis”, disse Jesus, e “a minha comida é fazer eu a
vontade d‟Aquele que me enviou, para cumprir a sua obra”. Eis aqui, então, outra
espécie de alimento, alegórica como leite: a vontade de Deus. Ele também deu o nome
de cálice aos sofrimentos destinados à sua paixão; deste cálice amargo somente Ele
deveria beber até o final. Desse modo, o alimento de Jesus Cristo seria o cumprimento
da vontade do Pai, enquanto que, para nós, pequenos, Cristo é nosso alimento.
Os gregos servem-se de uma palavra, masnusai, para exprimir a ação de uma
criança, que procura de sua mãe. Somos semelhantes a essas crianças, quando
procuramos o leite do verbo, cuja ternura por nós é inesgotável. Enfim, o próprio Verbo
declara que Ele é o Pão do Céu:
Observemos aqui o mistério deste pão que Jesus Cristo chama de sua carne.
Como um grão de trigo germina até tornar-se espiga, do mesmo modo a carne sairá do
túmulo. Ela será igualmente que cobrirá a Igreja de alegria, como o trigo, quando ele é
transformado em pão pelo cozimento. Mas trataremos mais abertamente dessa matéria
no livro sobre a Ressurreição.
O Senhor disse: O pão, que eu darei, é a minha carne,”, (Jo 6, 52) carne esta que é
irrigada pelo sangue, o qual designamos alegoricamente de vinho. Como é sabido, o
pão, cortado em pequenos pedaços e mergulhado em uma mistura de água e vinho,
absorve este, mas não a água. Assim também a carne do Senhor, que é o Pão dos Céus,
absorve o sangue, tornando incorruptíveis aqueles que aspiram à salvação, e
abandonando à corrupção as paixões carnais. O verbo é representado por diversas
alegorias: a carne, pão, sangue, leite, tudo o que alimenta; o Senhor se dá a nós, que
cremos n‟Ele, sob todas as formas, para nos fazer d‟Ele gozar. Não me censureis por dar
o nome de leite ao sangue de Nosso Senhor, já que a Escritura também dá a Ele o nome
de vinho: “Lavará a sua túnica no vinho, e a sua capa no sangue da uva. (Gen 49, 11)
Ele afirma que adornará com seu sangue quem está unido ao verbo, assim como Ele
alimentará aqueles que têm fome do Verbo. Que o sangue cria o Verbo, ou a palavra, é
provado pelo sangue de Abel, que clama por Deus. O sangue não emitiria sons se ele
não fosse o verbo. Aquele justo antigo, Abel, é a imagem e o tipo do novo justo; o
antigo sangue que clama por vingança, clama por vingança pelo novo. O sangue, que é
o verbo, interpela a Deus para indicar os sofrimentos futuros do Verbo.
Contudo, a carne e o sangue que há nela reanimam-se e crescem com o leite, por
uma espécie de amoroso reconhecimento. A formação da criança dá-se no ventre da
mãe, a partir da união do sêmen do homem com o sangue da mulher, após a purificação
menstrual. O sêmen tem a faculdade de reunir o sangue em glóbulos ao seu redor, assim
como o coalho coalha, tornando o corpo da criança nem muito frio, nem muito quente;
uma temperatura amena geralmente é produtiva, já as temperaturas extremas podem
causar a esterilidade. É assim que a semente apodrece na terra excessivamente
umedecida, e murcha na terra excessivamente seca. Ao contrário, uma terra viscosa,
nem muito úmida, nem muito firme, conserva a semente e a faz crescer. Alguns
naturalistas afirmam que o sêmen dos animais é, em substância, a espuma do seu
sangue. Diógenes, de Apolônia, igualmente chamou essas operações de αθροδιζια
(afrodisia), palavra que significa “proveniente da espuma”.
Está claro, então, depois do que dissemos, que o sangue é a substância, o
principio essencial, do corpo humano. Primeiramente, o sangue depositado no útero é
uma espécie de substância úmida e leitosa. Esta substância compacta-se e faz-se carne,
tornando-se embrião e tomando vida. Esse mesmo sangue alimenta a criança depois do
parto, dado que o fluxo do leite é produto do sangue, e o leite é a fonte de alimento para
a criança. É isso também é isso também que nos faz reconhecer que uma mulher é
verdadeiramente mãe e o princípio da ternura natural que ela tem por seus filhos. É por
isso que o Espírito Santo afirma, misticamente, através do apóstolo, servindo-se da
linguagem do Senhor: “Leite vos dei a beber”.
Se com efeito, somos regenerados em Cristo, Aquele que nos regenerou
alimentou-nos do leite que é Ele próprio, isto é, sua palavra. É justo que aquele que dá a
vida tome logo o cuidado de nutrir a criança à qual a vida foi dada. Como essa
regeneração é totalmente espiritual, é preciso que o alimento também o seja. Nós
estamos intimamente unidos a Jesus Cristo; primeiramente, somos seus filhos e seus
aliados por seu sangue, do qual Ele se serviu para a nossa redenção; simpatizamos com
Ele pela palavra com a qual Ele nos nutre; enfim, seremos incorruptíveis se desejarmos
seguir suas instituições. É frequente que as amas tenham pelas crianças que lhes são
confiadas um amor mais vivo e terno do que as verdadeiras mães destes pequenos.
Esse sangue, portanto, que tem a mesma substância que o leite, é o símbolo da
paixão e da doutrina de Jesus Cristo. Assim, cada um de nós está no direito de se gloriar
por ser Filho de Deus, e de exclamar: “Eu me glorio de ser filho de um bom Pai e de um
sangue ilustre”. (lliada, XXI, 109; XX 241). É evidente que o leite se forma de sangue,
como já demonstramos. O leite que vem das vacas e das ovelhas é ainda outra prova.
Com efeito, esses animais, durante a primavera, estação na qual o ar é úmido e na qual
as ervas que os alimentam são mais suculentas, enchem-se primeiramente de sangue,
como podemos ver pela espessura das veias das suas mamas. Essa abundância de
sangue produz, então, uma grande abundância de leite. Ao contrário, no verão, seu
sangue endurece e seca com o calor, produzindo pouco leite.
Há uma grande afinidade natural entre o leite e a água, como a que existe entre o
alimento espiritual e o Batismo espiritual. Aqueles que adicionam um pouco de água
fria no leite beneficiam-se em seguida de notórios resultados. Essa afinidade existente
entre a água e o leite não permite que este último azede, devido à simpatia que esses
dois líquidos tem entre si. O Verbo e o Batismo tem entre si a mesma afinidade que o
leite e a água. O leite, que dentre todos os líquidos é o que melhor suporta a mistura
com a água, purifica o corpo do homem, assim como o Batismo purifica a alma pela
remissão dos pecados.
Misturamos também o leite e o mel, sendo esta mistura um alimento agradável
para o corpo ao mesmo tempo em que o purga. O Verbo, a palavra adoçada pelo amor
dos homens, cura-nos, de uma vez, de nossas paixões e purga-nos de nossos vícios.
Estas palavras, “sua voz fluía mais doce que o mel” (Ilíada, I, 249), parecem-me poder
ser aplicada ao Verbo, que é o mel. Os profetas, em milhares de passagens, exaltam a
doçura do Verbo, acima daquela do favo de mel. Mistura-se ainda, às vezes, o leite ao
vinho doce. Esta mistura é bastante salutar para o corpo: ela é a imagem das paixões
corrigidas pela união com a pureza. O vinho atrai o soro do leite e todos os corpos
estranhos que podem corrompê-lo e alterá-lo. Esta é também a união espiritual da fé
com o homem, que é sujeito às paixões; ela sufoca a maldade das suas concupiscências
carnais, conduz o homem à eternidade e o faz partilhar da imortalidade de Deus.
Igualmente, muitos se utiliza da gordura do leite, que chamamos de manteiga, para
alimentar o fogo de suas lamparinas. Esta é ainda uma alegoria que representa a
misericórdia infinita do Verbo luminoso, que, sozinho, faz crer e ilumina seus filhos.
Por isso, a Escritura diz do Senhor: “Ele o estabeleceu sobre uma terra alta, para que
comece os frutos do campo, para que chupasse o mel que saía da pedra, e gostasse do
azeite que se dava nos mais duros rochedos. Da manteiga das vacas, e do leite das
ovelhas, com a gordura dos cordeiros, e dos carneiros” (Dt 332, 13-14). Um outro
profeta, falando sobre o nascimento do Filho de Deus, disse: “Ele comerá manteiga e
mel” (Is 7, 15)
Eu frequentemente me surpreendo a admirar a audácia daqueles que não temem
ver-se a si mesmos como perfeitos e verdadeiros gnósticos, que estão inflados pela sua
ciência vã e que têm em si próprios uma opinião demasiadamente alta, que o próprio
São Paulo não tinha dele mesmo. Vejam, como efeito, o que diz o apóstolo, falando da
fé:
O apóstolo não se crê perfeito senão por ter renunciado à sua antiga vida em
busca de uma mulher; ele não se vangloria de ter conhecimentos perfeitos, mas, sim,
deseja a perfeição. Eis por que ele acrescenta: “E assim todos os que somos perfeitos
vivamos nestes sentimentos” (Fil 33, 15) dando-nos assim a entender que a perfeição
consiste em renunciar ao pecado e em ser regenerado na lei do Único que é perfeito,
para marchar em uma via perfeita, diferente daquela que deixamos.
Capítulo VII
Capítulo VIII
Deus não se irrita conosco, como pensam alguns, mas sua inesgotável
bondade não deixa de nos mostrar o caminho que é preciso seguir e o caminho que é
preciso evitar.
Não é um cuidado admirável assustar para não ter que punir? “O temor
do Senhor evita os pecados; sem temor é impossível ser justificado” (Eclo 1, 22) Não é
por um espírito de vingança ou de cólera que o Senhor nos pune, mas pelo espírito da
justiça. Sua justiça é toda por nossos interesses e benefícios; Ele não pode violar a
justiça por nossa causa.
Cada um escolhe seu próprio castigo quando peca voluntariamente; a
falta desta escolha nos pertence e não pode ser imputada a Deus, pois Ele não é
culpável: “Se a nossa injustiça, porém, faz brilhar a justiça de Deus, que diremos?
Acaso Deus, que castiga com ira, é injusto? Como homem, falo: não, por certo. De
outra maneira, como julgará Deus a este mundo?” Ele declara, ameaçando-nos:
Portanto, aqueles que não odeiam nem o Verbo nem a verdade, aqueles
que não odeiam a própria salvação, não são merecedores dos castigos merecidos pelo
ódio. “O temor a Deus é a plenitude da sabedoria” (Eclo 1, 20) O verbo explica-nos o
motivo da sua conduta nesta passagem do profeta Amós: “Eu vos destruí, como Deus
destruiu Sodoma e Gomorra, e vós ficastes parecendo-vos como um tição, que se tira
apenas de um incêndio; não voltastes para mim, diz o Senhor” (Am 4, 11) Vede como o
Senhor procura o arrependimento em todo lugar, como suas intenções benevolentes
brilham sobre suas ameaças: “Então disse: Esconderei deles a minha face, e considerarei
o fim que os espera” (Deut 32, 20) Onde ele deixa de olhar, penetram o vício e a
desordem; a maldade humana, contida e sufocada por sua presença, reaparece assim que
Ele se retira.
“Considerai, pois a bondade e a severidade de Deus: a severidade por certo com
aqueles que caíram, e a bondade de Deus para contigo, se permaneceres na bondade;
doutra maneira, tu também serás cortado” (Rom 11, 22), diz o apóstolo. Aquele que é
naturalmente bom odeia naturalmente o vício e se compraz em castigar aqueles que nele
caem, pois o castigo lhes é bom e útil. A vingança divina é uma punição para um crime
cometido, punição vantajosa ao culpado. Como, sem isso, a vingança comprazeria a
Deus, Ele que nos manda rezar por aqueles que nos perseguem e caluniam? A bondade
de Deus não necessita ser provada; todos a reconhecem e a confessam. Para provar sua
justiça, eu preciso apenas mostrar-vos esta passagem do Evangelho.
Para que eles sejam todos como um, como Vós, Pai sois em
mim, e eu em Vós, para que também eles sejam um em nós e creia o
mundo que vós me enviastes. E eu lhes dê a glória que vós me
havíeis dado, para que eles sejam um, como também nós somos um.
Eu estou neles e Vós estais em mim, para que eles sejam
consumados na unidade, e para que o mundo conheça que vós me
enviastes e que Vós os amastes, como amastes também a mim
(Jo 17, 21-23)
Deus é um, está mais além do um e acima da unidade mesma, de modo
que esta partícula pessoal, “Vós”, possui uma força demonstrativa para fazer conhecer
este Deus, Ser único, que é, que era e que será; um só Nome, Ser, contém estes três
tempos diferentes. Que este Deus que é único seja também o único justo, o mesmo
evangelho prova:
Este é Ele: “Eu sou o Senhor o teu Deus, o Deus forte e zeloso, que vinga
a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me
aborrecem; e que faz misericórdia até mil gerações àqueles que me amam e que
guardam meus preceitos”. É Ele que coloca uns à sua direita, outros à sua esquerda.
Nós atribuímos a bondade ao Pai e a justiça ao Filho, que é o verbo do
Pai, porque estas virtudes são inseparáveis como suas Pessoas, e seu poder é idêntico ao
seu amor. “Ele julga os homens segundo suas obras” (Eclo 16, 13), fazendo-nos
primeiramente conhecer a Jesus, que é sua justiça; e Jesus, fazendo-nos conhecer seu
Pai, que é sua bondade.
“A misericórdia e a ira sempre o acompanham”, pois Ele é tão paciente quanto
poderoso, e ameaça para perdoar. Sua misericórdia e sua cólera têm um mesmo
objetivo: a salvação dos homens. O Filho de Deus declara-nos que a bondade de seu Pai
estende-se igualmente aos bons e aos maus: “Sede, pois”, diz Ele, “Misericordiosos,
como também vosso Pai é misericordioso”. E acrescenta: “Ninguém é bom, senão
Deus”, “Vosso Pai que está nos Céus, o qual faz nascer o sol sobre bons e maus, e vir a
chuva sobre justos e injustos” (Mat 119, 17. O profeta declara: “Quando vejo o
firmamento, obra de teus dedos” (Sal 8, 4); “O Senhor firmou no Céu o seu trono” (Sal
2, 4); “O Senhor está no seu templo santo” (Jr 13, 18) O Filho de Deus declarou na
prece que Ele nos deixou como modelo: “Pia nosso que estais no céu”.
Aquele que criou os Céus é também o Criador do mundo; não podemos
negar que o Verbo não seja o Filho do Criador. Todos concordam que o Criador é justo,
e que o Verbo é seu filho, sendo Ele, portanto, Filho desse Ser que é a própria justiça.
Eis porque São Paulo disse: “Mas agora sem a lei, tem-se manifestado a justiça de Deus,
testificada pela lei e pelos profetas. E a justiça de Deus é infundida pela fé de Jesus
Cristo em todos, e sobre todos que crêem n‟Êle: porque não há nisto distinção alguma;
pois todos pecaram, e ficaram privados da glória de Deus, tendo sido justificados
gratuitamente por sua graça, pela redenção que têm em Jesus Cristo” (Rom 3, 21-24) O
justo é sempre bom, eis por que ele escreveu: “A lei é na verdade santa, e o
mandamento é santo, justo e bom” (Rom 7, 12) A justiça e a bondade formam o poder
divino: “Ninguém é bom, senão apenas Deus” (Rom 7, 12)
Mas o Filho, que está no Pai, não é também bom, e não é este o sentido
de suas palavras: “Nem alguém conhece o Pai”? O Pai era muito antes de o Filho vir ao
mundo. Há somente um Deus, bom, justo, criador, Pai e Filho ao mesmo tempo, ao
qual, graças sejam restituídas pelos séculos dos séculos. Amém! É natural a doçura do
Verbo ameaçar aqueles que Ele deseja salvar. É um digno remédio da sua bondade
divina fazer-nos corar por nossas faltas e pela vergonha ante o pecado. Se a culpa é útil,
igualmente o são as ameaças. Elas despertam nossa alma do entorpecimento na qual ela
perece, e, em vez de abençoá-la mortalmente, levam-na à salvação, assegurando a
isenção de uma morte eterna apenas como uma ligeira dor.
A sabedoria do Pedagogo aparece em mil diferentes formas; Ele
testemunho em favor dos bons, conhece-os, chama-os a Ele e exorta-os a obrar melhor.
Aqueles que, ao contrário, desejam ofendê-lo, o Senhor lhes mostra o caminho certo, no
qual essas novas leis os vão conduzir a uma vida mais virtuosa e regular. Há graça
maior do que o testemunho que Ele nos presta? É nosso Salvador que presta
testemunho ante o juiz. Inclusive a cólera de Deus – se podemos chamar de cólera seus
avisos cheios de benevolência – é uma prova do seu amor; devemos igualmente levar
em consideração que, se Deus se ressente de nossas paixões, é porque Ele se fez homem
para nos salvar.
Capítulo IX
É por essa via que Ele conserva a vida de seiscentos mil homens no
deserto; Ele amolecerá pelas punições a dureza dos seus corações. Ele pune
severamente, ele tem compaixão das suas misérias; Ele procurará remédio para elas;
enfim, Ele os adverte com uma doçura divina.
É um grande bem não pecar; mas é também um grande benefício arrepender-se
dos seus pecados e fazer penitência. Não há estado mais agradável do que gozar de uma
saúde perfeita; mas ficamos muito felizes ao nos curar de uma doença perigosa. É por
isso que nos adverte também o Pedagogo pela boca de Salomão: “Não queiras subtrair a
correção ao menino, porque se tu o fustigares com a vara, ele não morrerá. Tu o
fustigarás com a vara, e livrarás a sua alma do inferno” (Prov 23, 13-14) Os castigos e
as reprimendas, segundo a etimologia grega, são golpes que açoitam a alma para punir
os desvios e salvá-la da morte; eles inspiram a moderação e a temperança àqueles que se
deixam levar pelo descontrole e pela intemperança.
Platão, que estava bastante persuadido da eficácia das reprimendas na
elevação do espírito dos homens, e de que não poderíamos inventar um remédio melhor
para purificá-los da imundície de seus crimes, sustentava que aqueles que se abandonam
às suas paixões infames não podem sofrer das suas correções; ao contrário, aqueles que
são dóceis aos avisos que lhes são dados chegam a um alto grau de virtude e gozam de
grande felicidade (O sofista, 230 d-e). Se os príncipes e magistrados não inspiram temor
à gente de bem, como seria possível que Deus, que é a própria bondade, apavore aqueles
que tem sob sua guarda para não caírem no pecado?” “Mas se obrares mal, teme” (Rom
13, 4), diz o apóstolo; foi para imitar a conduta de Deus que São Paulo fez reprimendas
amargas às Igrejas, pois ele conhecia a debilidade daqueles que o escutavam. Disse ele
aos gálatas: “Tornei-me eu logo vosso inimigo, porque vos disse a verdade?” (Gal 4, 16)
As pessoas que gozam de uma saúde perfeita não precisam de um médico; só os doentes
necessitam deste socorro. Assim, nós, que temos inclinações viciosas como doenças, e
que nos abandonamos à intemperança e ao arrebatamento, temos a assistência perpétua
de nosso Salvador; Ele não utiliza sempre remédios doces e gradáveis, mas também
amargos e acres; as raízes amargas do medo impedem o transbordamento do pecado. A
amargura desse remédio não é destruída pela sua influência salutar. Por estarmos
enfermos, é justo que reconheçamos nossa necessidade de um Salvador; de um guia,
pois estamos extraviados; de um diretor que nos ilumine, pois estamos cegos; de uma
fonte, para apaziguar o ardor da sede que nos queima; do Príncipe da Vida, para nos
ressuscitar; de um Pastor, para nos conduzir como ovelhas; de um Pedagogo, para nos
educar como crianças.
Toda a natureza humana precisa de socorro do Messias para que, pecadores como
somos, não sejamos condenados ao suplício eterno, mas, ao contrário, encontraremos
um lugar na casa de nosso Pai, após sermos separados da palha: “A sua pá encontra-se
na sua mão; ele limpará muito bem a sua eira, e recolherá seu trigo no celeiro; mas
queimará as palhas num fogo que jamais se apagará” (Mat 3, 12)
Podemos conhecer a Sabedoria soberana do nosso santo Pastor, que é o
verbo Todo-Poderoso do Pai; podemos conhecê-la, digo, pela alegoria da qual Ele
mesmo se serve, quando compara-se a um Pastor que conduz as ovelhas; Ele declara aos
sacerdotes, falando pela boca de Ezequiel, e expõe-lhes os cuidados e as inquietudes
que a condução do seu rebanho lhe impõe: “Eu irei buscar se que se tinham perdido, e
farei voltar as que estavam desgarradas; Eu as levarei a pastar nas pastagens mais férteis
(Ez 34, 16-14) Estas são as resoluções do Bom Pastor . “Saciai -nos, Senhor, como às
ovelhas; conduzi-nos até vossa santa montanha, a esta Igreja que está acima das nuvens
e que toca o céu” (Sal 14, 1; 47, 2-3) “Eu serei, afirma Ele, o seu Pastor, e permanecerei
sempre junto a elas; eu as envolverei como a vestimenta envolve o corpo; restituirei a
saúde ao seus corpos, e as vestirei com o manto da incorruptibilidade”; elas então, dirão:
“Ele ungiu o meu corpo; chamou-me, e eu disse „eis-me aqui‟ ”. Vós, Senhor, atendestes
minhas preces muito mais rápido do que as minhas esperanças: “Então invocarás tu o
Senhor, e Ele te atenderá” (Is 59, 9) Deveras, não cairemos ante a corrupção, passando à
incorruptibilidade, pois Deus nos sustentará.
Tal é o caráter d‟Aquele que nos conduz, cuja bondade é infinita: O Filho do
homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar sua vida em redenção por
muitos”. (Mat 20, 28) É por isso que o Evangelho representa-O fatigado, devido às
penas que Ele carregava pelo gênero humano, que lhe custou a vida, até a última gota do
seu sangue. Apenas Ele merece o título de Bom Pastor. Ele é benevolente e liberal, ao
ponto de sacrificar sua vida pela salvação do seu rebanho. Sua bondade pelos homens é
inconcebível; Ele se fez homem, para tornar-se seu irmão, ainda que fosse seu Senhor;
enfim, por amor, Ele morreu por nós.
Sua justiça Ele o fez declarar pelo profeta Jeremias: “Se vós ainda
depois disto não quiserdes tomar o ensino, mas continuardes a andar contra mim,
também eu andarei contra vós” (Lev 26, 23-27) Esses caminhos tortuosos são as
censuras que Ele faz aos pecadores. A bondade que Ele tem por aqueles que receberam a
fé é constante e inalterável. As reprimendas que Ele dirige aos pecadores lhes são muito
úteis: “Porque eu vos chamei, e vós não quisestes ouvir-me; estendi a minha mão, e não
houve quem olhasse para mim. Desprezastes todos os meus conselhos, e não fizestes
caso das minhas repreensões” (Prov 1, 24-25) A este propósito, Davi diz ainda: “Uma
geração rebelde e contumaz, geração de coração inconstante, e de espírito infiel a Deus.
Não guardaram a aliança de Deus, não quiseram andar na sua lei” (Sal 77, 8-10) Eis o
que traz a cólera do Senhor, e o que o obrigou a vir em qualidade de Juiz para vingar-se
daqueles que não quiseram levar uma vida virtuosa; eis porque Ele os tratou mais
duramente: para frear o impulso que os conduz à morte. Através de David, explica
claramente o assunto: “E, apesar de tudo, pecaram ainda, não tiveram fé nos seus
prodígios Quando os fazia morrer, procuravam-no; convertidos, tornavam a buscar a
Deus. Lembravam-se que Deus era o seu rochedo, e o Altíssimo o seu redentor” (Sal 77,
32-35) Ele reconheceu que eles são convertidos somente pelo temor, e que desprezam a
bondade. Às vezes temos menos consideração pela bondade, pois ela é sempre
benevolente; respeitamos antes Aquele que se faz temer ao fazer o bem.
Há dois tipos de temor; o primeiro está envolvido pelo pudor, tal como o
que os cidadãos têm para os bons príncipes, e o que temos para com Deus, ou o que as
crianças prudentes tem para com seus pais e mães: “Um cavalo indômito faz-se
intratável, e um filho deixado à sua vontade sairá precipitado” (Eclo 30, 8) O segundo
tipo de temor está envolvido pelo ódio, tal como o que os servidores tem por seus
patrões quando estes são incômodos e difíceis, e tal como o dos judeus, que veem Deus
antes como Mestre do que como Pai. No que concerne à religião e à piedade, há uma
grande diferença entre as coisas que são livres, voluntárias e de bom coração e aquelas
que são feitas por necessidade e por obrigação. Deus é misericordioso; Ele terá
compaixão de suas fraquezas. Ele não as destruirá, mas desviará a sua cólera e não se
abandonará à indignação. A justiça e a equidade do Pedagogo fazem-se conhecer na
misericórdia. O Espírito Santo, falando pela boca de David, atribui a Deus essas duas
virtudes: “A justiça e o direito são os alicerces do vosso trono; precedem a vossa face a
bondade e a fidelidade”. Reconhece que pertencem ao mesmo poder julgar e fazer o
bem; o mesmo Deus que é justo e bom discerne o bem do seu contrário. O espelho, que
reflete as coisas, tais como elas são, não é mau com um rosto feio, assim como o
médico não é mau com um enfermo quando ele conta da sua febre. Assim, aquele que
faz reprimendas a um homem de espírito doente não deseja o mal a ele por isso, pois
não é ele a causa das suas desordens; apenas as faz serem percebidas, a fim de que o
doente renuncie aos seus maus hábitos.
Deus é soberanamente bom por si mesmo e justo conosco devido à sua
bondade. Ele nos faz conhecer pelo seu Verbo aquele que é justo; antes de ser Criador,
Ele era Deus, Ele era bom; eis porque Ele desejou criar o mundo e ser Pai. Essa
disposição amorosa foi o princípio da justiça; esta que o obrigou a criar o sol e a enviar
seu Filho ao mundo. Este anunciou em primeiro lugar a justiça celeste, quando
declarou: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai. Nem alguém conhece o Pai senão o
Filho”. Este conhecimento recíproco é o símbolo da justiça primitiva. Esta justiça é
manifestada aos homens pela Lei e pelo verbo, constrangendo os homens a fazer
penitência, pois ela é boa. Mas vós não obedeceis a Deus; vós mesmos sois a causa da
visita do Juiz.
Capítulo X
O MESMO DEUS, PELO MESMO VERBO, AFASTA A HUMANIDADE DO
PECADO PELA AMEAÇA, E SALVA-A PELA EXORTAÇÃO
Após ter considerado o método que o Verbo utiliza para dirigir a natureza
humana, para impedir os homens de cair no vício ou para exortá-los à penitência, é
preciso agora considerar sua mansidão e doçura. Já mostramos que Ele é justo, que nos
cobre de princípios, e que nos coloca a trabalhar para a nossa salvação, fazendo-nos
conhecer aquilo que é útil e vantajoso para o nosso destino. O homem é a matéria do
panegírico, enquanto que a utilidade é o motivo do qual se serve aquele que deseja
persuadir; este gênero oratório (deliberativo) tem duas relações, pois ele ou exorta ou
dissuade. Já o Panegírico (gênero encomiástico) ou elogia, ou censura, conforme a
necessidade. Aquele que deseja persuadir precisa exortar ou dissuadir, assim como o
Panegírico é obrigado a elogiar ou a censurar, consoante as ocorrências. Nosso instrutor
elogia-nos com mais frequência, pois sua finalidade é fazer-nos conhecer aquilo que é
útil.
Ditoso o homem que não se deixa levar pelo conselho dos ímpios.
Nem envereda pelo caminho dos pecadores, ou toma assento na
companhia dos soberbos; é como a árvore plantada à beira das
águas correntes, que, em tempo próprio, dá o seu fruto, e cujas folhas
não murcham. Tudo o que ele fizer há de medrar
Salmo 1, 1-3
São esses os sentimentos que Deus inspira em nós, a fim de que sejamos felizes.
Ele nos mostra que seguida o reverso da medalha, advertindo-nos dos males que
atingem os ímpios: “Não são assim os ímpios, mas serão como a palha que o vento
leva” (Sal 1, 4)
Depois de ter nos advertido das penas às quais os pecadores estão expostos, e da
destruição que os ameaça, na qual serão dissipados em cinzas, o Senhor utiliza este
mesmo motivo para retirar-nos dos vícios que nos fazem cair nos mesmos males; mas,
ao advertir-nos dos suplícios aos quais os nossos crimes nos atiram, Ele também faz ver
a magnificência com a qual recompensa aqueles que lhe servem. Ele nos faz conhecer o
caminho que devemos seguir para sermos felizes: “Se tu tivesses andado pelo caminho
de Deus, seguramente perseverarias numa paz eterna” (Bar 3, 13) Ele promete perdoar
aqueles que se extraviaram por algum mal, e dar novos conhecimentos àqueles que se
desviaram do caminho da verdade: “Detende-vos sobre os caminhos, vede e perguntai-
vos sobre as antigas veredas, para conhecer o bom caminho e andar por ele, e achareis
refrigério para as vossas almas” (Jer 6, 16) Ele nos inspira sentimentos de penitência,
para que consigamos trabalhar para a nossa salvação; se te arrependes, “O Senhor teu
Deus circundará o teu coração” (Deut 30, 6)
Eu poderia apoiar essa doutrina do sufrágio nos filósofos, que afirmam que
somente o homem perfeito merece louvores, e que o mau é digno de censura (cf.
Diógenes Laércio, Vida dos filósofos mais ilustres, VIII, 100) Mas como a maioria
desses filósofos não tem conhecimento perfeito da verdadeira felicidade, e nem da
benevolência de Deus pelos homens, eles não conhecem exatamente as recompensas
merecidas pela virtude. Posso acrescentar que a crítica e a censura serão ainda bons
métodos para tirar os homens do vício; a maioria vive com insensatez, e somente Deus é
sábio e a fonte de toda a sabedoria. Somente Ele é perfeito e, consequentemente, o único
que merece verdadeiro louvor. Mas eu não quero aprofundar-me nisso. Direi apenas que
o louvor e a censura são remédios muito necessários ao homem. Para os que são difíceis
de curar – e aqueles inveteradamente maus – é preciso empregar o fogo, o martelo e a
bigorna – isto é, as reprimendas, as censuras e as ameaças. Já aqueles que se entregam à
fé, que se instruem e fazem bom uso da sua liberdade, crescem com o elogio. A virtude
elogiada cresce como uma árvore (Baquílides, Fragmentos, 56) É nisto que se baseia
essa máxima de Pitágoras: “Se obrou mal, repreende-te; se obrou bem, alegra-te”
(Pseudo-Pitagoras, Versos Aureos, 44).
Poderíamos nos referir a uma infinidade de outras máximas para trazer os
homens à virtude e tirá-los do vício: “Para os ímpios não há paz, diz o Senhor” (Is 48,
22). Salomão diz aos jovens:
Essas máximas são o modelo da vida que os cristãos devem levar; mas, para
encorajá-los, damos-lhes a esperança de uma felicidade eterna.
Capítulo XI
O VERBO ASSUME O OFÍCIO DE PEDAGOGO ATRAVÉS DA LEI E DOS
PROFETAS
Fiz-vos ver tanto quanto me foi possível quão grande é o amor de Deus
pelos homens, e o método pelo qual Ele se serve para os instruir. Ele se compara a Si
mesmo a um grão e mostarda: que semeamos, que é possuidor de inúmeras qualidades,
que pode representar os maravilhosos efeitos da natureza, o sentido místico e espiritual
da Palavra, as vantagens e a santidade da alma razoável, o amargor das reprimendas e a
utilidade destas para retificar os costumes. Esse grão, que é tão pequenino, pode
ocasionar aos homens vários benefícios consideráveis. Embora o mel seja doce, ele
origina a bile, assim como aquele que é bom frequentemente faz nascer o desprezo e
cria ocasião para o pecado. Já o grão de mostarda propicia a bile e diminui a fleuma,
isto é, a luxúria e o orgulho, de modo que ele origina a santidade da alma e,
consequentemente, bens eternos.
Moisés e outros profetas foram intermediários do Verbo; as regras da
disciplina foram inventadas para reter no dever as crianças insolentes que não
conseguem acostumar-se ao jugo: “Todo o povo se assentou a comer e beber, e depois
se levantaram a brincar” (Ex 32, 6; I Cor 110, 7) O termo grego significa encher-se de
cuidados, como se os judeus saciassem-se com alimentos que fossem convenientes
apenas aos animais em vez de comer coisas que são mais comuns aos homens. Como
eles comeram contra as regras da razão, eles jogaram também de modo insensato. Eis
por que a memória da lei enchia-os de temor, a fim de que o remorso por seus crimes
levasse-os a fazer penitência e ações virtuosas, seguindo as máximas do Verbo, que se
adapta às necessidades.
Conforme a doutrina de São Paulo, Jesus Cristo, o verbo de Deus, o Filho
do Pai Eterno, engendrado à sua imagem, é nosso verdadeiro mestre, pois somente Ele é
bom, justo e santo. Deus nos colocou sob seu guiamento, como um pai cuidadoso dos
nossos interesses. Diz-nos: “Este é meu Filho amado, no qual tenho posto toda a minha
complacência. Ouvi-O” (Mat 17, 5; Mc 9, 7; Lc 9, 35) Este Mestre bem merece que
tenhamos por Ele toda a docilidade da qual somos capazes, pois Ele possui três
excelentes qualidades: a ciência, a bondade e a capacidade de falar com muita liberdade.
Ele é a Sabedoria Eterna do Pai: “Toda a sabedoria vem do Senhor Deus e com Ele
esteve sempre” (Eclo 1, 1) Ele fala livremente porque é o Criador do Universo: “Todas
as coisas foram feitas por Ele, e nada do que foi feito, foi feito sem Ele” (Jo 1, 3) O
amor que tem por nós obrigou-o a oferecer-se como vítima: “O Bom Pastor dá a própria
vida pelas suas ovelhas” A benevolência não é mais do que querer o bem do próximo,
por ele mesmo.
Capítulo XII
NOSSO PEDAGOGO FEZ UM AMÁLGAMA DA SEVERIDADE COM O RIGOR E
A BONDADE
Após ter-nos instruído desse modo, é preciso ainda que nosso Mestre
Jesus dê-nos máximas para bem conduzirmos nossa vida. Essas regras não são nem
muito austeras nem muito brandas; Ele nos dá, ao mesmo tempo, a força para colocar
em prática aquilo que ordena. Ele criou o homem com o pó, regenerou-o com a água,
fortificou-o pelos dons do Espírito Santo, adotou-o como seu filho, abriu-lhe a via da
salvação pelos santos preceitos que deixou; embora tenhamos nascidos da terra, Ele nos
fez homens celestes pelo seu advento; é principalmente depois deste evento que é
possível aplicar a verdade deste oráculo: “Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança” (Gen 1, 26) Somos filhos de um bom Pai, escutemos com docilidade as
máximas do nosso mestre, imitemos a vida e a santidade do nosso Salvador; tracemos o
plano de uma vida inteiramente celeste, que nos faça semelhantes a anjos, que nos cubra
de uma alegria inalterável, que nos faça participar da incorruptibilidade do nosso mestre
e seguir inviolavelmente seus vestígio. É somente Ele que prescreve as leis que
devemos observar para levar uma vida santa e virtuosa.
Contentemo-nos puramente com coisas necessárias a vida, rejeitemos
tudo o que é supérfluo para nos colocar no caminho da vida eterna; persuadidos de que
Deus tomou o cuidado de fornecer-nos todas as nossas necessidades, “não andeis
inquietos pelo dia de amanhã” (Mat 6, 34); todos os que estão comprometidos a seguir
Jesus Cristo devem contentar-se com seu estado, sem se inquietar para fazer montões
para viver. Não somos educados para a guerra, mas para as alegrias da paz eterna.
Aqueles que desejam levar uma vida prazerosa são obrigados a fazer preparativos
abundantes e sustentar grandes combates; ao contrário, aqueles que se contentam com
uma vida simples e frugal são dispensados de fazer provisões e de se munir de armas. É
o Verbo que os alimenta; é o Verbo que os conduz e os dirige, que os ensina a
frugalidade, a simplicidade, a modéstia; somente Ele inspira o desprezo pelo fausto e o
amor pela liberdade, pela honestidade, pela doçura e pela mansidão.
A prática das virtudes torna-nos semelhantes a Deus. (Gene 1, 26; Platão,
Teeteto, 176a) Não é preciso, portanto, abandonar-nos à preguiça e À indolência
criminosas; é preciso trabalhar sem relaxo e sem desencorajamento para alcançar uma
felicidade que ultrapassa todos os nossos conhecimentos e esperanças. Os filósofos
seguem outros modos e outros gêneros de vida do que os dos oradores ou dos atletas;
assim, as máximas que aprendemos na escola de Jesus Cristo inspiram-nos sentimentos
de generosidade e liberdade; aqueles que os praticam tornam-se graves, honestos e
virtuosos e levam uma vida conforme a disciplina do seu Mestre. Sua conduta não é
nem violenta nem embaraçosa; ela é moderada e uniforme. O Verbo sugeriu aos homens
meios salutares para alcançar a salvação; Ele é atento para observar discretamente todas
as ocasiões para nos fazer entrar no bom caminho e para tornar-nos razoáveis; Ele nos
faz conhecer os males aos quais estamos expostos afastando-nos das suas máximas; Ele
nos mostra a fonte e a origem das nossas paixões e ganância, que combatem a razão; Ele
as arranca pela raiz; Ele ordena que fiquemos sob sua responsabilidade; Ele nos trata
como enfermos e dá-nos todos os remédios necessários para obter uma cura perfeita.
A grande obra da bondade e de todo o poder de Deus é a salvação do
gênero humano. Os enfermos desgostam-se dos médicos que não receitam nenhum
remédio. Não devemos, pois, dar eternas ações de graça ao nosso Mestre, que nada
disfarça, que nos ameaça com antecedência, para impedir-nos de cair no pecado, que
nos faz conhecer as desordens das nossas paixões e as más consequências que elas
podem ter, que nos ensina tudo o que devemos observar para bem conduzir nossas
tarefas? Essas boas ações merecem grandes reconhecimentos e agradecimentos. Um
homem dotado de razão não deveria dedicar-se a outra coisa senão à contemplação do
divino. Contudo, é preciso também fazer reflexões acerca da natureza humana, para
viver conforme às máximas da verdade e os preceitos Mestre, que são tão justos e tão
convenientes. É preciso que nossas ações correspondam ao nosso discurso e que nos
assemelhemos perfeitamente ao nosso modelo.
Capítulo XIII
AS AÇÕES VIRTUOSAS ESTÃO EM CONFORMIDADE COM A RETA RAZÃO; O
PECADO AO CONTRÁRIO, É UM ATO CONTRÁRIO À RAZÃO